APHORT
Associação Portuguesa de Hotelaria,
Restauração e Turismo
Caminhos de Santiago
A Vieira de Matosinhos
Num momento em que os históricos Caminhos de Santiago vêm registando um crescimento exponencial
de utilizadores, com destaque para o Caminho português (que as autoridades galegas reconhecem ser o
que se encontra em maior crescimento), com inegáveis impactos na valorização do património e nas
economias locais das povoações que são cruzadas por essas vias históricas e culturais, importará dar a
conhecer e reforçar que a origem de um dos mais destacados símbolos dos “Caminhos” (a concha da
vieira) se encontra em Matosinhos. Com efeito, o episódio lendário que explica como é que aquela
concha se tornou indissociável do culto e das peregrinações a Santiago tem por palco a praia desta
cidade. Lenda que, de resto, explica também a origem do próprio nome do lugar. Mas não é uma lenda
local! Dela há os mais diferentes tipos de registo também em Espanha, na Itália e noutros locais por onde
passam os “Caminhos”.
É muito antiga a tradição lendária que nos narra a história de um cavaleiro romano que, com a sua
montada, entra pelo mar e vai ao encontro da barca que transporta os restos mortais do apóstolo Tiago.
Daí resultaria a sua conversão e, também, a associação das vieiras ao culto a Santiago de Compostela.
Com efeito tal episódio aparece-nos já descrito no famoso “Liber Sancti Jacobi” conhecido também por
“Codex Calixtinus” (recentemente roubado da Cateral de Compostela, mas felizmente já resgatado).
Surgido em meados do século XII (em 1131, segundo alguns investigadores, por volta de 1160 para
outros), trata-se de um manuscrito iluminado que no seu “livro III”, ao descrever a viagem do corpo do
santo desde Jerusalém até à Galiza, nos narra já este milagre. Um milagre que, iconograficamente, será
registado durante os séculos seguintes em pinturas como o painel “Chevalier des Coquilles”, dos finais do
século XV e exposto no Museu Diocesano de Camerino (Itália), ou o retábulo da capela de Santiago da
igreja de Sta. Maria de Araceli, em Roma, pintado em 1441. Posteriores mas igualmente sugestivos e
ilustrativos deste episódio são os relevos que nos surgem nas paredes exteriores de alguns templos
galegos, incluindo o próprio santuário de Compostela, na fachada do claustro, voltada para a Plaza de las
Platerías.
A associação deste episódio lendário às costas de Matosinhos é também muito antiga. Pelo menos desde
1610 que praticamente todas as versões redigidas da lenda, em Portugal, mas também em Espanha,
indicam que o palco destes acontecimentos seria o vasto areal de Bouças - designação, até ao início do
século XX, do actual concelho de Matosinhos.
Todavia, não é credível que a adopção do cristianismo nesta região, pretensamente protagonizada pelo
cavaleiro romano Cayo Carpo no ano 44, tenha ocorrido em período tão recuado. Mesmo que vários
indícios possam ser utilizados para sugerir um contacto precoce desta área com esta religião. Entre eles
não podemos deixar de referir a arreigada tradição que nos indica a existência da missão apostólica de
Tiago nestes confins do Império Romano ou o facto de, numa das suas “Cartas”, o apóstolo Paulo referir
também o seu desejo em se deslocar até à Hispânia (“Carta aos Romanos” 15:24).
Não obstante estas pistas, a verdade, no entanto, é que até ao presente momento os nossos
conhecimentos e investigações não nos permitem fazer recuar ao século I a introdução da fé cristã nesta
região, como pretende esta lenda. Aliás, as evidências documentais e arqueológicas mais antigas que
possuímos, relacionadas com o cristianismo nesta área da Península Ibérica, apontam apenas para o
século IV. E mesmo para o resto da Península os testemunhos são muito escassos e dispersos até ao final
do século III, multiplicando-se repentinamente a partir dos primeiros anos do século seguinte. O que não
deixa, no entanto, de ser curioso (e que vem dar alguma importância a um fundo “verdadeiro” desta
lenda) é que se vem reconhecendo à Bacia do Douro uma importância fundamental na penetração e
difusão do cristianismo na Península, não sendo por isso de estranhar que (embora não em época tão
longínqua quanto pretende a lenda) a área da actual cidade de Matosinhos/estuários do Leça e do Douro
tenham sido das primeiras a contactar com esta religião.
Independentemente de todas estas dúvidas e investigações, a verdade é que a lenda de Cayo Carpo
persiste viva nos nossos dias e é uma referência na memória colectiva da comunidade. Exemplo disso
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mesmo é o facto de dois destacados artistas portugueses contemporâneos, Júlio Resende e Cutileiro, a
terem escolhido para as obras que idealizaram para o edifício dos Paços do Concelho de Matosinhos em
1987.
Mas, ainda mais sugestivo, e ilustrativo da importância e potencial (simbólico e turístico, no âmbito dos
Caminhos de Santiago) que esta lenda possui, é o facto de, muito recentemente, em 2006, diversas
personalidades, organismos e instituições de Vigo, terem reivindicado para si o cenário desta lenda. O
argumento é que, não havendo em Portugal nenhuma povoação chamada “Bouças”, a tradição lendária
só poderia referir-se ao lugar litoral de “Bouzas”, junto a Vigo. Desconheciam, contudo, que até 1909 a
designação do actual concelho de Matosinhos era… Bouças.
A LENDA
Palestina. A data é o ano 44. Um dos discípulos de Cristo, Tiago Maior, regressa à sua terra natal. Nos
anos anteriores, e obedecendo ao apelo que Jesus lhes lançara quando ascendera aos céus – “Ide e
espalhai a Boa Nova” - tornara-se num apóstolo e andara difundindo a mensagem do cristianismo por
um dos lugares mais recônditos do vasto Império Romano: do outro lado do Mar Mediterrâneo, nos
confins da Europa, na Península Ibérica. Mas este seu regresso à Palestina não foi feliz. Acusado de ser
cristão, foi preso, martirizado e morto. Discípulos seus, alguns dos quais convertidos entre as gentes da
Hispânia, resolvem então sepultar Tiago na Península, num dos lugares por onde andara pregando e
desenvolvendo a sua missão apostólica. Recolhem o corpo, colocam-no num barco de pedra que não se
afunda e, em apenas sete dias, farão uma viagem, repleta de outros milagres, que os levará até à Galiza,
às margens do rio Ulla, onde desembarcarão o corpo e lhe darão sepultura num local que, vários séculos
depois, ficará conhecido como Compostela.
Entretanto…
Um casamento. Uma praia. Uma festa. O lugar é, no noroeste da Península Ibérica, o vasto areal que se
desenvolve a sul da foz do rio Leça. A data é a mesma. O ano 44 d.C., durante o domínio romano na
região. Cayo Carpo, o principal senhor deste território, escolheu este local como o ideal para a boda do
seu matrimónio com Cláudia Lobo. A festa que planeara – com um grande número de convidados,
banquetes, exibições de lutadores, músicos e dançarinos, torneios e um infindável número de jogos –
implicava um amplo espaço. Ora, entre todos os seus domínios, esta vasta praia, ainda sem nome, era
aquela que apresentava as condições desejadas. E por isso a escolhera.
A cerimónia religiosa – pagã, uma vez que o cristianismo ainda não chegara a estas paragens e à sua elite
romana – já terminara. As refeições haviam-se sucedido, ao som das músicas e das danças. Foi então que
o noivo resolveu desafiar alguns dos seus convidados, outros senhores e exímios cavaleiros romanos,
para uma corrida de cavalos no areal. Mas com uma particularidade curiosa: o objectivo não seria
conseguir atingir em primeiro lugar uma determinada meta colocada algures na praia, mas avançar com
os cavalos em direcção ao mar, penetrar neste e levar a montada, por entre as águas, o mais longe
possível. Quem se conseguisse afastar mais da costa venceria a corrida.
Foram muitos os cavaleiros que aceitaram o repto de Cayo Carpo e encetaram a cavalgada em direcção
ao Atlântico. Os menos destros ou os que possuíam montadas de menor envergadura rapidamente
ficaram para trás. Os mais arrojados, pelo contrário, avançaram com os seus cavalos até limites
surpreendentes. Mas ninguém conseguiu igualar o jovem noivo. A distância a que deixou os seus
perseguidores deixou a todos perplexos. Até porque algo de milagroso estava a acontecer: afinal o seu
cavalo não avançara por entre as águas. Não. Miraculosamente o animal cavalgava, sem se afundar,
sobre a superfície oceânica! E de nada valia ao cavaleiro tentar parar a montada. O cavalo prosseguia,
desenfreado, sobre o mar, na direcção de um pequeno barco que, ao largo, rumava a Norte. Apreensivo,
Cayo Carpo, e a multidão que, curiosa, a tudo isto assistia na praia, esperou que se desse o encontro com
a embarcação. E, quando tal aconteceu, o senhor romano ficou ainda mais surpreso: o barco havia sido
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talhado em pedra e, no seu interior, seguia um cadáver! Os tripulantes, contudo, sossegaram-no e
explicaram que eram cristãos e que com eles levavam, para lhe dar sepultura, o corpo do seu mestre:
Santiago. Profundamente maravilhado com tudo o que assistira e do qual fora também testemunha
participativa, e depois de inteirado pelos viajantes da mensagem e ensinamentos de Jesus, Cayo Carpo
converteu-se de imediato ao cristianismo.
O regresso a terra foi seguido de um modo expectante por quem a tudo isto assistira da praia.
Precisavam de uma explicação e o cavaleiro seguramente que a tinha. Só que, se de início o cavalo
continuou a galgar sobre as águas, de repente o animal e o seu dono desapareceram, engolidos pelas
águas do mar. E quando, ao fim de alguns instantes, o desespero começava a tomar conta de todos,
temendo pelo que poderia ter acontecido ao jovem, eis que o cavaleiro e a sua montada reaparecem,
saindo das ondas para o areal. E novo milagre acontecera: Cayo Carpo e o cavalo vinham totalmente
recobertos por vieiras – um tipo de concha que, desde então, passou a ficar associado ao culto a
Santiago e aos seus caminhos de peregrinação.
A multidão aproximou-se rapidamente do noivo e, face a estes fenómenos maravilhosos que haviam
presenciado e na sequência das explicações que então lhes é fornecida pelo jovem senhor romano,
todos os presentes se converteram também ao cristianismo.
E assim se explica como é que, desde épocas muito remotas, os habitantes desta região se tornaram
cristãos; de que forma é que a vieira passou a ficar associada à devoção a Santiago de Compostela; e
também se explica como é que surgiu o nome desta praia. Isto porque, nas versões escritas mais antigas
desta lenda, nos é descrito que, quando Cayo Carpo reaparece vindo dos fundos do mar, ele e o seu
cavalo vinham todos “matizados” de vieiras. E por isso o cavaleiro passou a ser popularmente designado
por “o matizadinho” e o areal onde tudo isto se passou por praia do… matizadinho. E, ainda segundo a
lenda, foi da posterior evolução desta designação que surgiu o topónimo Matosinhos.
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Lenda de Cayo Carpo