UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE METODOLOGIA DE ENSINO CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA A EDUCAÇÃO ENQUANTO PRÁTICA TRANSGRESSORA: PRESSUPOSTOS E POSSIBILIDADES DA TEORIA QUEER MARIA CLAUDIA BULLIO FRAGELLI São Carlos – SP 2008 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE METODOLOGIA DE ENSINO CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA A EDUCAÇÃO ENQUANTO PRÁTICA TRANSGRESSORA: PRESSUPOSTOS E POSSIBILIDADES DA TEORIA QUEER Monografia exigida para conclusão do Curso de Licenciatura em Pedagogia, apresentada às disciplinas de Trabalho de Conclusão de Curso 1 e 2. Orientadora Profª Dra. Anete Abamowicz MARIA CLAUDIA BULLIO FRAGELLI São Carlos – SP 2008 2 COMPOSIÇÃO DA BANCA DRA. ANETE ABRAMOWICZ (ORIENTADORA) MS. ANDRÉA MORUZZI MS. TATIANE CONSENTINO RODRIGUES 3 Aos Corpos, primeiras vítimas do processo de educação, que reagem, resistem, não se deixam submeter. 4 "Uma coisa sou eu, outra são meus escritos..." (NIESTZSCHE, 2008, p.69). “Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso.” (LOURO, 1997, p.57). “Todos nós temos fascismo na cabeça (...) todos nós temos poder no corpo” (FOUCAULT, 2000, p.35). “A positividade dessa moral da pedagogia é mentirosa, (...) inventa o Educado-Bom, o Moralizado-Bom (...) o Infantil-Mau: culpado pelo fato de a força infantil ativa exercer sua criatividade” (CORAZZA, 2002, p.73). 5 AGRADECIMENTOS À minha família, mesmo que não botassem fé na minha seriedade docente, foram pacientes quando eu só vivi para pensar e escrever este trabalho. Também tiveram forças para me aturar e me ouvir e mais ainda para me contestar e contrariar. Meus pais, que quiseram me segurar e normalizar, mas não me impediram de voar. Às minhas irmãs, flores inspiradoras, por todo apoio, pelas brigas de domingo, pelas noites mal dormidas, pelos choros no meu colo, por darem colo ao meu choro, pelos dias de preguiça, por dar as mãos para dormir, pelo papel machê, pelas fotos em que sempre, sempre falta uma, pelas tardes de Harry Potter, por todo o macarrão. À minha orientadora, professora Anete, que aceitou me orientar e me deixou livre para pensar diabolicamente. À professora Andréia, pela ajuda sempre bem disposta e conselhos, mesmo nas últimas horas; Amigas (não só) de graduação, com quem dividi, aprendi, cresci. À Helena, por sempre medir as palavras, pelas horas de estudos, risadas, confissões, broncas, choros: amiga-mãe. À Iara, por não medir as palavras, pelo companheirismo teórico, afetivo, anímico: amiga de todas as horas. Natalia, teoria não é nada quando se tem respeito, admiração, afeto. Bia, por todas as risadas na hora do almoço e apoio teórico. Ao Biel, por me retirar do abismo de mim mesma e conseguir me fazer rir, o que não é uma coisa assim tão simples. Por compartilhar mais do que café. À Nina, fonte inesgotável de afeto, que sempre fica feliz de me ver retornar, não importa se eu saí por 5 dias ou 5 minutos, por muitas vezes ser a única que não vai embora, um devir-filha; Aos amigos e amigas fora da faculdade, que me proporcionam momentos tão felizes em meio à histeria. Filhos, esposa, cunhados... uma família complexa. Amig@s de festas, danças, bebedeiras, filmes de madrugada, lugares inesperados. Amig@s de Caxabaxa e Mr. Big! Pessoas, lugares, tempos, devires. Fim de uma graduação árdua e prazerosa. Este trabalho existe por tudo que existiu na minha vida, não só no espaço-tempo da graduação. Agradeço a todos a quem tive a oportunidade de experimentar, por fazerem parte de mim, por fazerem uma parte de mim. Uma parte de mim é este trabalho, uma parte inquieta, contestadora, diabólica, queer. 6 RESUMO Este trabalho é uma monografia exigida para a conclusão do Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos. Ele consiste em pesquisa bibliográfica de forma a fazer uma sistematização da Teoria Queer, suas raízes, pressupostos, teóricos e suas implicações para a Pedagogia. A questão que originou o trabalho foi tentar pensar uma educação que rompesse formas binárias e estagnas de compreender as identidades, que não se preocupasse em moldar, enquadrar pessoas, mas que questionasse comportamentos e corpos. Como forma de responder estes questionamentos, a Teoria Queer oferece algumas indicações. A Teoria busca romper com qualquer forma polarizada de conceber sexualidades e identidades em geral. A Teoria Queer surge nos anos 1980, como uma corrente dos Estudos Gays e Lésbicos. Outras correntes permitiram a emergência da Teoria, como também influenciaram suas bases teóricas. São três correntes principais, o Feminismo e os Estudos Gays e Lésbicos, os Estudos Culturais e o Pós-Estruturalismo francês, com maior influência de Michel Foucault e Jacques Derrida. Além de tentar esboçar estas correntes, o trabalho explicita suas influências no pensamento Queer, bem como seus princípios teóricos, objetos de pesquisa e objetivos políticos.. Por fim, a fim de responder a questão inicial, faço uma relação das influências da Teoria Queer para a Pedagogia. Palavras-chave: Educação; Diferença; Sexualidade; Teoria Queer. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO OU APRESENTAÇÃO OU CONSIDERAÇÕES INICIAIS...................................8 CAPÍTULO 1 CONTEXTO HISTÓRICO: VERTENTES QUE POSSIBILITARAM O SURGIMENTO DO QUEER....13 Feminismo; Estudos Gays e Lésbicos..................................................................14 Estudos Culturais.................................................................................................19 Michel Foucault...................................................................................................21 Jacques Derrida....................................................................................................23 CAPÍTULO 2 A TEORIA QUEER : PRINCÍPIOS TEÓRICOS........................................................................25 CAPÍTULO 3 TEÓRICOS QUEER: SÍNTESE DE PESQUISAS NA TEMÁTICA................................................30 CAPÍTULO 4 A TEORIA QUEER NA PEDAGOGIA: POSSIBILIDADES DE TRANSGRESSÃO..........................36 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................41 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................45 8 INTRODUÇÃO OU APRESENTAÇÃO OU CONSIDERAÇÕES INICIAIS A revista Nova Escola trouxe em agosto deste ano uma matéria de capa (“Você está pronto para falar de sexo?”) sobre como lidar com o sexo em sala de aula, com alunos da Educação Infantil até o Ensino Médio. A reportagem começa com o título “O Assunto é Sexo. E é Sério.”, assinada por Ana Rita Martins. Com o intuito de amenizar os “problemas” de ordem sexual, a revista propõe um projeto que ensine crianças e adolescentes a “planejar uma vida sexual saudável”. Algumas colocações podem passar despercebidas para o(a) professor(a) desavisado(a) e bem intencionado(a). Ao citar exemplos de como lidar com o tema, a revista conta a história de uma professora, cujo aluno de seis anos não parava de se masturbar na sala. A professora contou uma história e explicou que é gostoso tocar o corpo, mas a escola é lugar de estudar. Para fundamentar as propostas, a revista traz a opinião de especialistas sobre o assunto. Um deles diz que a tarefa do(a) professor(a) de Educação Infantil é mais observar os comportamentos, mas quando “um garoto abaixa a calça [...] da coleguinha, é hora de conversar sobre as diferenças entre meninos e meninas” (MARTINS, 2008, p.38). Para discutir estas diferenças, a matéria propõe um quadro com os desenhos dos aparelhos reprodutores masculino e feminino para suscitar discussões a respeito das diferenças “emocionais e comportamentais dos dois sexos” (MARTINS, 2008, p.42). Como proposta para o trabalho a partir do sexto ano, a revista sugere que se comece a abordar temas como “aborto, métodos anticoncepcionais, doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), puberdade, a primeira vez e gravidez na adolescência, entre outros” (MARTINS, 2008, p.45). É também proposta que a homossexualidade seja tratada seriamente e que se ensine o respeito às escolhas, e que a homossexualidade alheia não é uma ameaça à própria heterossexualidade. A revista também salienta que é importante o respeito à intimidade de cada um, para que o debate ocorra de forma saudável. A meu ver, estas concepções precisam de algumas pontuações. Primeiramente, é sabido que as crianças não têm sexo (FOUCAULT, 2006), mas uma “curiosidade”, ou “imitação dos adultos” (como explica a matéria citada acima). Esta matéria é um exemplo de que, por isso, o sexo na criança deve ser calado, interditado, impedido de manifestar-se (FOUCAULT, 2006). A preocupação com “abaixar as calças de coleguinhas” é um exemplo desta interdição. Com este projeto, as crianças entendem que a escola não é lugar de ter prazer e por isso o corpo deve ser calado; sexo é um assunto para ser tratado no 9 campo privado e, quando é público, é submetido a um saber médico que determina quais são as maneiras saudáveis de se praticar a sexualidade. Aprendem também que sexo não é prazer, mas está intrínseco à reprodução e a doenças. Aprendem que os homossexuais existem, mas devem ser tolerados, se não ameaçarem a sexualidade hegemônica. Por fim, as crianças aprendem que há diferenças naturais entre meninos e meninas, derivadas do seu sexo, que originam diferenças comportamentais e dão base para as desigualdades sociais. Com estas colocações, que sempre me inquietam, apresento minha monografia, meu trabalho de conclusão de curso, exigência acadêmica do Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos. O trabalho exigido tem por objetivo, conforme seu regimento, que o(a) aluno(a) articule os conteúdos que foram estudados na graduação, de forma a apresentar um caráter de terminalidade do curso. É um trabalho de monografia no qual se deve fazer, com uma escrita clara, um exercício de reflexão, articulação de objetivos, desenvolvimento metodológico, argumentação e mostrar capacidade de análise e síntese. O trabalho que apresento pretende discutir algumas questões que me foram sendo colocadas durante a graduação, principalmente no que diz respeito a relações de gênero. Por ter uma preocupação com a temática, que remete a antes da graduação, escolhi um tema que abrangesse a questão, mas que não parasse aí. Na contramão do que aprendemos no curso, conheci a Teoria Queer por meio de um amigo, no segundo ano. Foi quando li o texto de Guacira Lopes Louro, "Uma Política Pós-Identitária para a Educação” (2004). No terceiro ano, fiz uma disciplina, como ouvinte, com o professor Richard Miskolci, pesquisador da área, e pude me aprofundar na temática. Conheci minha orientadora, profª. Anete Abramowictz, no segundo semestre do terceiro ano, quando estudei Infância. Ao estudar este tema, por também ser uma preocupação da professora, fiquei muito intrigada com padrões de infância, devir-criança, infâncias etc. Foi quando procurei a professora para que me orientasse num trabalho que pretendia estudar infância à luz da Teoria Queer, de forma a, considerando que a infância pode se constituir como espaço-tempo de transgressão moral, assinalar possibilidades de construções múltiplas de infâncias. Entretanto, este trabalho era muito extenso para ser realizado em apenas um ano, por isso decidimos, minha orientadora e eu, por fazer um recorte mais específico. Desta forma, a questão que já me impulsionava e continuou a incomodar era pensar como conceber uma educação que rompa formas binárias e estagnas de compreender as identidades, uma educação que não se preocupe em moldar, enquadrar pessoas, mas que questione comportamentos e corpos. A Teoria Queer seria o viés do 10 trabalho, na sua concepção original, e por isso ela imediatamente se colocou como a possível resposta a esta inquietação. Assim, o trabalho destinar-se-ia a uma sistematização de tal Teoria, seus fundamentos, pressupostos, teóricos e suas implicações para a Pedagogia. Optei por fazer uma pesquisa teórica bibliográfica, por ter mais afinidade com este tipo. Após delinear com minha orientadora quais os aspectos a serem tratados neste trabalho, saí em busca da bibliografia, o que não foi uma tarefa fácil, por se constituir num campo teórico recente e pouco traduzido no Brasil. Para desenvolver o trabalho, delimitamos como objetivo geral a constituição da Teoria Queer e, mais especificamente, quais foram as vertentes de pensamento que mais influenciaram a teoria, quais seus fundamentos, seus pesquisadores e suas contribuições para a Pedagogia. Para conseguir responder tais questionamentos, busquei artigos que tratassem da questão. As minhas referências foram baseadas em um texto do prof. Richard, "Do Desvio às Diferenças", no qual ele trata dos diferentes olhares sobre "a diferença" e como se desenvolveram historicamente. Outro texto-base foi "Uma Política Pós-Identitária para a Educação", de Guacira Lopes Louro, que situa o desenvolvimento da teoria e em qual debate está inserida. Destes dois primeiros textos retirei minha bibliografia. Antes, contudo, de apresentar a pesquisa realizada neste ano, se devo articular os conhecimentos adquiridos no período da graduação, talvez se faça necessário delinear as concepções que desenvolvi acerca de infância, educação e escola, com relação à primeira. Concepções estas que foram desenvolvidas, ampliadas, discutidas, refutadas, retomadas. O surgimento do sentimento infância discutido por Ariés, esta é tida como um tempo e lugar específico de ser criança dentro dos padrões de normalidade branco, cristão, heterossexual, masculino, adulto e burguês. A infância em evidência traz consigo, entre os séculos XVIII e XIX, a constituição da criança como anormal (onanista). Surge o perigo da masturbação, do incesto e da pedofilia (FOUCAULT, 2001). Para garantir a “inocência” atribuída a esta fase, faz-se necessária a vigilância e a normatização destes corpos (construindo a instituição, a escola moderna) para garantir a efetivação do padrão de ser criança (FOUCAULT, 2006). Conforme Kohan (s/d), a infância padrão é majoritária: educa-se conforme modelos e tem espaço nas políticas públicas, educação etc. No entanto, há outras formas de se pensar infância e criança. Infância tomada, segundo Kohan “como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação. É a infância que interrompe a história, que se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga, 11 num detalhe; a infância que resiste aos movimentos concêntricos, arborizados, totalizantes” (KOHAN, s/d) Este tempo e espaço de ser criança se realiza a despeito do seu entorno. O tempo infantil não é um tempo cronológico, biológico e não se define em etapas préestabelecidas, estando, portanto, desvinculado de classe ou origem sócio-econômica, ou mesmo das possíveis intempéries a que a criança possa estar exposta. Para Nietzsche (2001), o espírito passa por três transformações. A primeira é converter-se em camelo, espírito que se sobrecarrega de coisas pesadas, dobra-se diante os deveres e assim anda pelo deserto. No deserto, o espírito se torna leão, quer liberdade e se recusa ao dever. Contudo, só a criança (última transformação) é capaz de impor sua vontade, ela é o movimento, gira sobre si, é a subversão da moral (NIETZSCHE, 2001), é o espírito autêntico, criativo e rebelde (CARVALHO, 2001) comparável ao Super-homem. O leão é o que diz não ao dever, ele é necessário para, no deserto, guiar o camelo (sobrecarregado do que deve) à criança (superação do dever, de si) (NIETZSCHE, 2001). A escola que temos atua de forma contrária: transforma a criança (transgressora anormal) no camelo (enquadrado, submetido). Instituições como prisão, hospital/manicômio, indústria e escola são disciplinares, buscam o ajustamento, normatização dos (possíveis) desviantes. Estas instituições baseiam-se em discursos que, por constructo social a partir do século XVII e consolidados no século XIX, têm seus alicerces na Ciência, em verdades heteronomizantes de especialistas. Pautadas no progresso científico e na ordem social, o Direito e a Medicina protagonizam a produção da normalização criando o discurso médico-legal, de maior legitimidade na sociedade (FOUCAULT, 2001). Como o padrão de normal é adulto, a criança se situa na margem da loucura, ela em si é um anormal, por isso faz-se necessária uma instituição específica para enquadrá-las em uma sociedade produtiva. A escola atua de forma a disciplinar, produzir corpos dóceis, que aceitem regras e a ordem social (FOUCAULT, 1977). A educação tratou de ajustar, enquadrar crianças em padrões de ser, agir, pensar. O curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos às vezes nos propõe pensar uma educação que não se restrinja a impor limites aos corpos e aos prazeres. São estas concepções que permearam minhas indagações e buscas. Para ser mais inteligível, este trabalho divide-se em capítulos, em ordem geral para uma discussão mais específica. O primeiro capítulo trata de explicitar as movimentações teóricas que, não só 12 permitiram a emergência da teoria Queer, mas influenciaram suas bases teóricas. São três correntes principais, o Feminismo e os Estudos Gays e Lésbicos, os Estudos Culturais e o Pós-Estruturalismo francês, com maior evidência em Michel Foucault e Jacques Derrida. O capítulo seguinte descreve o processo em que a Teoria se formulou, como uma corrente dos Estudos Gays e Lésbicos, bem como quais os pressupostos das outras correntes em que se baseia e, por fim, seus fundamentos teóricos, objetos de análise e objetivos políticos. O terceiro é uma amostra do pensamento atual, em que faço uma compilação de textos de algumas autoras, com o objetivo de apresentar o que se discute neste campo teórico, Judith Butler e Eve Sedgwick e, no Brasil, Guacira Lopes Louro e Sandra Corazza. O quarto capítulo faz uma breve colocação sobre a diferença e o diferente na escola, de forma a evidenciar as contribuições que e Teoria tem para como campo da Pedagogia. A possibilidade de se transgredir na Educação que a Teoria proporciona. E, por fim, as considerações finais, em que retomo as idéias desenvolvidas no trabalho e exponho minha opinião acerca do trabalho. 13 CAPÍTULO 1 CONTEXTO HISTÓRICO: VERTENTES QUE POSSIBILITARAM O SURGIMENTO DO QUEER Antes de conceituar a Teoria Queer, faz-se necessária uma abordagem de suas principais influências, para uma melhor compreensão de seus pressupostos teóricos. Este primeiro capítulo tem a intenção de fazer um mapeamento destas correntes teóricas que fundamentaram tal teoria. Para tanto, tomo como base Miskolci (2005; 2008), que explicita algumas vertentes. Com base no que o referido autor discute, busquei outras fontes para fazer as conceituações necessárias. A Teoria Queer, que está inserida no interior dos trabalhos que vem sendo denominados como Pós-Estrututralistas, se insere na discussão sobre as diferenças, buscando compreender pensar e criar o que é a diferença. Conforme Miskolci, há pelo menos três correntes principais que possibilitaram a origem do pensamento Queer, dentro da perspectiva da diferença. O Feminismo e os Estudos Gays e Lésbicos romperam com a idéia da diferença sexual atribuída à biologia; os Estudos Culturais se dedicaram a compreender as diferenças; e autores como Michel Foucault e Jacques Derrida são tomados como bases para a formulação de conceitos e método (2005; 2008). Desde o fim do século XIX começa-se a contestar as idéias de sujeito. No fim da década de 1960, problematiza-se a linguagem na teoria. No Pós-Estruturalismo, não há o predomínio do significado. Esta concepção tenta se opor à noção fixa do Estruturalismo. O que permanece do Estruturalismo é a crítica à concepção iluminista de sujeito moderno, racional, consciente e o entendimento que linguagem e cultura são construções humanas. O que o Pós-Estruturalismo inova é na produção de uma análise genealógica diacrônica, descontínua; o não entendimento da ciência como transformadora e progressista. O centro dos estudos passa a ser a constituição da realidade, do mundo social, do sujeito. Este sujeito não é mais fixo, tem múltiplas identidades. Feminismo e os Estudos Gays e Lésbicos e os Estudos Culturais começam a se formar como campo de pesquisas antes da consolidação do Pós-Estruturalismo enquanto teoria. Alguns segmentos destes campos têm como referência teórica o Pós-Estruturalismo, mas não são unânimes nem livres de embates teóricos. Derrida e Foucault foram pensadores do Pós-Estruturalismo. Destes dois autores, serão mais explicados posteriormente os conceitos mais relevantes para a Teoria Queer, primeiramente gostaria 14 de explicar o contexto em que se formam e principais questões de análise do Feminismo e Estudos Gays e Lésbicos e dos Estudos Culturais. Feminismo; Estudos Gays e Lésbicos Feminismo é tanto uma teoria que analisa as relações entre os sexos como um movimento social que luta para superar as desigualdades, com impactos na cultura e na política (MÉNDEZ, 2005). O Feminismo é um termo que se refere a todo um processo histórico que tem determinações e variantes que remetem até à Antigüidade. Desde a Grécia Antiga, a mulher tem ocupado um lugar social menor, desvalorizado com relação ao homem. Safo1 é a única intelectual que se tem registro, tendo fundado inclusive uma escola, em 625 a.C., para a formação intelectual da mulher. Na Roma Antiga, quem detinha poder sobre a mulher era o patterfamilias. Houve uma reivindicação das mulheres para poderem utilizar o transporte público, mas foram imediatamente caladas. O Direito constitui-se como um instrumento de perpetuação, legitimação do patriarcado. Apenas na Gália e na Germânia as mulheres tinham papéis sociais significantes, participavam de guerras, dos Conselhos etc. (ALVES; PITANGUY, 2007). No começo da Idade Média, as mulheres tinham alguns direitos, como à propriedade e à sucessão; podiam atuar em quase todas as profissões; houve mulheres que participavam de Assembléias, com direito a voto, participavam nas Corporações de Ofício, ainda que se concentrassem em profissões “femininas” (tecelagem, costura) e seus salários serem menores. Como os homens estavam sempre ausentes por causa das guerras constantes, as mulheres assumiam os negócios; algumas mulheres freqüentaram universidades. Christine de Pisan, escritora francesa, torna-se no século XIV a primeira mulher porta oficial da corte: seu discurso sobre os direitos da mulher podem considerá-la a primeira feminista. Reivindicava educação igualitária e escreveu “A Cidade das Mulheres”, “talvez o primeiro tratado feminista” (ALVES; PITANGUY, 2007, p.19), em que sustenta igualdade entre os sexos. Mesmo com significativa participação feminina na vida pública, a imagem de mulher que prevaleceu da Idade Média foi a da cavalaria: mulher frágil, dócil, à espera de seu cavaleiro. O final da Idade Média marca a “caça às 1 Safo foi uma poetisa, nascida na ilha de Lesbos em 625 a.C. (alves; pitanguy, 2007). Conforme Manuel Pulqueiro, “Safo representa um momento da poesia lírica grega que ficou assinalado como uma etapa decisiva da construção da poesia européia” (PULQUEIRO, 2001, p.156). 15 bruxas”. Todo um saber científico e teológico é desenvolvido, colocando o corpo da mulher como impuro, imoral, demoníaco. Atestava-se que o mal era inerente à mulher e quando se queimava uma bruxa, queimava-se a natureza feminina (ALVES; PITANGUY, 2007). O Renascimento configura um retrocesso. A retomada do Direito Romano reduz os direitos das mulheres. Elas não mais têm direito à herança e administração dos próprios bens; são proibidas às Corporações de Ofício, limitadas a certas profissões. É um período de valorização do trabalho, entretanto o trabalho feminino é depreciado. É época também de valorização do saber científico e do saber médico, que retira das parteiras o monopólio d conhecimento e exercício da profissão (ALVES; PITANGUY, 2007). O século XVII é assinalado pelos primórdios do capitalismo, tempo de idéias revolucionárias. Contudo, a idéia de igualdade entre os sexos era ainda intolerável. O século XVIII é o das revoluções, lutas pela liberdade que, conforme os princípios da época, constrói-se na política. Nos EUA, a igualdade é o princípio básico para a libertação: “todos os homens foram criados iguais” (ALVES; PITANGUY, 2007, p.30), preconiza a Constituição. Abigail Adams escreve a John Quincy Adams, seu marido, que as mulheres também sejam incluídas nos direitos, ou então se rebelarão; em resposta, ele afirma que os homens não serão tolos de abrir mão do sistema masculino. O ideal liberal de liberdade não se estendia às mulheres. Na França, as mulheres que participaram das revoluções, também não tinham as conquistas estendidas a elas: “é neste momento histórico que o feminismo adquire características de uma prática de ação política organizada”. (ALVES; PITANGUY, 2007, p.32). O movimento feminista na França reivindica mudanças na legislação, abarcamento das mulheres na esfera política e civil em igualdade com os homens. Neste período são publicadas várias brochuras sobre a situação da mulher. Olympe de Gouges se manifestou contra essa opressão com seu livro “Direitos da Mulher e da Cidadã” e foi guilhotinada em 1973. Em 1975, a Assembléia Nacional decretou que todas as mulheres, a partir de uma hora depois da publicação do decreto, deveriam retirar-se a seus domicílios: os grupos com mais de cinco mulheres que estivessem na rua seriam detidas. Este ato fechou formalmente o acesso à vida pública. Rousseau, principal teórico da Revolução, considerava o mundo público tipicamente masculino, e o privado, feminino e a mulher encontraria sua realização natural no serviço ao homem. Mary Wollstonecraft, na Inglaterra, critica as idéias de Rousseau com relação às mulheres e, com a publicação de “Defesa dos Direitos da Mulher”, em 1972, no qual contesta diferenças naturais na 16 inteligência de meninos e meninas afirmando que estas diferenças vêm de uma educação diferenciada, torna-se “uma das mais relevantes vozes da história do feminismo” (ALVES; PITANGUY, 2007, p.36). A consolidação do capitalismo no século XIX traz mudanças expressivas para a organização do trabalho. O desenvolvimento tecnológico e a introdução da maquinaria transferem para a fábrica trabalhos executados em casa. Além de cumprir longas jornadas de trabalho (assim como os homens), as mulheres recebiam até 50% menos que os homens. Esta diferença era baseada no fato de atribuir-se ao homem o “sustento do lar”, a renda da mulher é apenas suplementar (ALVES; PITANGUY, 2007). O trabalho feminino não era considerado natural, antes uma necessidade financeira (MÉNDEZ, 2005). A desvalorização do trabalho feminino significava um rebaixamento do nível de salário geral, por isso alguns movimentos operários eram contrários ao ingresso de mulheres no trabalho (ALVES; PITANGUY, 2007). A consolidação do capitalismo está associada ao desenvolvimento do feminismo. A demanda capitalista de instrução das mulheres para o trabalho possibilitou o acesso à leitura e à escrita (MÉNDEZ, 2005). Mulheres líderes operárias preconizavam que as mulheres deveriam se educar e organizar e fazer com que os homens compreendessem que sua luta era a mesma. Neste século também estrutura-se a teoria socialista. Nesta análise, entende-se a condição da mulher como parte das relações de exploração na sociedade de classes. Friedrich Engels, em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, associa a sujeição da mulher à garantia da propriedade privada. As lutas operárias não ficaram em silêncio e mulheres e homens lutaram juntos por melhores condições de trabalho. O dia 8 de março (hoje Dia Internacional da Mulher) faz parte desta luta: em 1857, em Nova York, operárias da indústria têxtil fizeram uma manifestação contra os salários e jornada de trabalho e foram presas e feridas pela polícia; em 1908 houve outra manifestação somando a exigência de proteção ao trabalho do menor e direito ao voto. Denúncia de exploração no trabalho e alienação política. Foi um século em que o movimento operário lutou principalmente por duas lutas: melhores condições de trabalho e direito de cidadania (voto, por exemplo) (ALVES; PITANGUY, 2007). O sufrágio universal foi um grande conquista dos homens no fim do século XIX, que, no entanto, não compreendia o sufrágio das mulheres. A luta pelo sufrágio feminino foi um dos maiores movimentos políticos de massa do século XIX, chegando a mobilizar em campanhas até 2 milhões de mulheres. Nos Estados Unidos, em 1848, a Convenção dos Direitos da Mulher escreveu uma alternativa à Constituição: “todos os homens e mulheres 17 foram criados iguais” (ALVES; PITANGUY, 2007, p.45) e também aprovou uma moção que declarava ser direito de todas as mulheres a luta pelo sufrágio universal. A partir daí, seguem-se petições, abaixo-assinados, Convenções pressionando o governo. Foi em 1920 que o voto feminino foi aprovado. O processo na Inglaterra foi semelhante: campanhas, passeatas, abaixo-assinados, atos públicos. Em 1913, uma parte mais radical, conhecidas como suffragettes, começa a realizar atos de dano a propriedades. Em 1928, o voto feminino foi garantido na Inglaterra (ALVES; PITANGUY, 2007). No Brasil, a luta começa em 1910. Não foi tanto um movimento de massa como nos outros países. Seus atos consistiam em pressão sobre o Congresso e divulgação para a imprensa, para mobilizar a opinião pública. Em 1927, o estado do Rio Grande do Norte permite o voto feminino. Quando, em 1932, Getúlio Vargas decreta o voto feminino, ele já acontecia em 10 estados. O movimento sufragista não é o feminismo, mas foi um movimento feminista (ALVES; PITANGUY, 2007). Os movimentos sufragista e da década de 1960 são diferentes em reivindicações e lutas. O ingresso no mundo do trabalho e a conquista de direitos civis não garantiram às mulheres igualdade social. Em 1949, Simone de Beauvoir lança “O Segundo Sexo”, em que verifica que mesmo tendo ingressado no trabalho, as mulheres se encontravam presas a um mundo feminino tradicional. Não era necessário garantir apenas direitos civis para que acabassem as diferenças, era preciso uma mudança na divisão sexual do trabalho doméstico, trabalho considerado “não-produtivo”, pois não produz mais-valia. Outra questão que Beauvoir levanta é que as mulheres não se percebiam enquanto sujeitos, não tinham uma identidade social por isso não viam as opressões advindas de seu sexo. Assim, fim de classes sociais não libertaria as mulheres, era preciso que se constituíssem enquanto “sujeito feminino” (MÉNDEZ, 2005, p.56) para identificar seus problemas. Com a Segunda Guerra Mundial, há um incentivo para que as mulheres ocupem o lugar dos homens no trabalho. Quando a Guerra acaba, no entanto, elas são chamadas a voltarem aos cuidados de seus lares (MÉNDEZ, 2005). Como um dos reflexos de maio de 1968, surge os Estudos da Mulher, caracterizando a “segunda onda” do movimento feminista. Tais estudos têm como objetivo mostrar a mulher como fazedora de historia, ciência, arte; questionam as atividades historicamente femininas. A criação de grupos de discussões origina “guetos feministas” (SABAT, 2003, p.75) que consolidaram o movimento. Comprometidos com lutas políticas e sociais, os Estudos abalam as noções de objetividade e neutralidade cientificas ao 18 trazerem para a academia como objetivo de pesquisa sexualidade, emoções, família, relações familiares, maternidade (SABAT, 2003). Ainda que contestassem a naturalidade da desigualdade entre mulheres e homens, que levava a uma diferenciação não apenas biológica, mas justificava diferenças políticas, econômicas, jurídicas, as pesquisas se baseavam em diferentes perspectivas, como marxismo, psicanálise etc. (SABAT, 2003). Na década de 1970, surge um novo conceito – gênero. Durante esta década, o conceito foi bastante relacionado com os estudos sobre a mulher, sem ter, contudo, uma ligação com alguma teoria. Não substituía sexo, delimitava a abrangência do termo. Muitas feministas aceitavam que havia diferenças sexuais nas sociedades, ou seja, a significação social estava na biologia. Nos anos de 1980, o feminismo também começa a voltar sua crítica para conceitos “universais: heterossexualidade masculina, os valores burgueses, a racionalidade iluminista” (SABAT, 2003, p.76). Nos anos 1970 e 1980, ao trazerem a público a discussão sobre sua sexualidade, as mulheres desfizeram as barreiras que contrapõem “público-masculino ao privado-feminino” (RAGO, 2001, p.64). O PósEstruturalismo serviu de base para algumas feministas para criticar isso, mas está longe de ser a única corrente teórica do movimento feminista. A parte do movimento que se apóia no Pós-Estruturalismo utiliza desta teoria idéias como concepção do conhecimento diferenciada; desconstrução de formas binárias, contestação de identidade única e o poder como ramificado nas relações (SABAT, 2003). A epistemologia feminista aponta para a necessidade de descentralizar o foco da atenção da masculinidade no pensamento e nas práticas sociais, o masculino deveria deixar de ser o único padrão para a humanidade, visto que este padrão forma uma compreensão parcial das práticas sociais. Politicamente, o feminismo questionou as bases liberais de liberdade e igualdade; denunciou que este contrato social, criado pela exclusão de muitos, assim a constituição de uma esfera pública autônoma só é possível pela perspectiva da diferença, não da igualdade (RAGO, 2001). O feminismo questionou a hierarquia da exclusão da política, formada pelo discurso médio masculino que preconizava cientificamente que as mulheres são incapazes física e moralmente para conduzir a política; denunciou com se dá a exclusão da mulher do público e sua desqualificação. Sua luta abrange o reconhecimento das mulheres enquanto sujeitos políticos, cidadãs e uma nova perspectiva de cidadania e prática política, uma prática que se manifesta na vida cotidiana. As críticas à exclusão pública foram formuladas no 19 movimento de formação da esfera pública. O feminismo estendeu sua crítica às formas de racionalização que orientam as práticas sociais e sexuais; às formas como a dominação se constituiu na cultura. Hoje, o feminismo se constitui de forma plural (RAGO, 2001). É um movimento que não pretende “destronar o ‘rei’ para colocar uma ‘rainha’, o feminismo propões a destruição da monarquia no pensamento e nas práticas sociais, inclusive dentro de si mesmo” (RAGO, 2001, p.65). Concomitantes aos Estudos da Mulher, surgem os Estudos Gays e Lésbicos. Eles surgiram com o intuito de criticar a polarização dos estudos feministas (e de Masculinidade, que começaram a contestar os papéis sociais atribuídos aos homens), pois estes últimos não tratavam a sexualidade em sua total complexidade. Desde a década de 1970, feministas lésbicas que, tal qual mulheres negras, não se viam representadas nos estudos feministas. Até o meio do século XX, o saber sobre a homossexualidade ainda era baseado no sentido médico-legal que a tratava no sentido de anormalidade, imoralidade, desvio. Os movimentos dos anos 1970 se preocupavam em questionar os estereótipos homossexuais, mas não o inatismo deste tipo de sujeito. A partir do fim desta década é que estes estudos começam a problematizar a noção de homossexualidade uma parte do desejo, que varia sócio, política e culturalmente. É uma questão de sexualidade, permeada por questões de raça, classe etc. Nos anos 1980, os estudos consideram a questão relacionada com experiências sociais e históricas, não determinantes biológicos. Nessa época, o movimento não é unificado. Foram os questionamentos sobre raça e sexo que permitiram os questionamentos sobre a identidade em si. Estudos Culturais Os Estudos Culturais têm sua origem institucional bem definida: 1964, com a fundação do Centre for Contemporary Cultural Studies (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos) na Universidade de Birmingham, na Inglaterra. O questionamento inicial era a compreensão que se tinha de cultura dominante na literatura inglesa. A concepção de cultura era elitista, tida como um privilégio de grupo, as chamadas grandes obras, alta cultura, numa distinção hierárquica entre a considerada baixa cultura, cultura de massa, cultura operária, cultura popular (SILVA, 2007; SABAT, 2003; COSTA et al.,2003). A luta dos Estudos é para que o termo cultura inclua coletivos que são excluídos quando a concepção é elitista: uma verdadeira cultura que denota harmonia e beleza em contraposição à barbárie popular (COSTA et al.,2003). 20 As primeiras produções vêm contestar estas concepções, considerando válidas todas as formas de cultura (SABAT, 2003). Para Raymond Williams, um dos pioneiros nos Estudos Culturais, a cultura deve ser entendida como o “modo de vida global de uma sociedade, experiência vivida de qualquer agrupamento humano” (SILVA, 2007, p.131) As primeiras produções vêm contestar estas concepções, considerando válidas todas as formas de cultura (SABAT, 2003). Inicialmente, os estudos se concentravam nas culturas urbanas, “subculturas” e também já mostravam uma preocupação com a mídia na formação dos sujeitos. A sociedade capitalista é desigual no que diz respeito a sexo, etnia, geração, classe – a cultura é o local de estabelecimento das diferenças e de contestação (COSTA et al., 2003). Os Estudos Culturais têm três pontos básicos: “contextualizar historicamente a cultura, analisar novos métodos de pesquisa e trabalhar o significado como questão central de suas produções” (SABAT, 2003, p.72). No começo os Estudos tinham influência marxista, preocupavam-se com a ideologia, a cultura ser lugar de imposição de ideologia da classe dominante. A partir dos anos 1970, a cultura começa a ser entendida como local de conflito e resistência entre as classes, com maior preocupação com a comunicação. Depois, somam-se as abordagens estruturalista e semiótica. Com o acréscimo das idéias de Althusser e Saussure, dirigem o foco para o texto, para o discurso, para os signos (SABAT, 2003). Nos anos 1980, o marxismo deixa de ser predominante e dá espaço para pósestruturalistas, como Foucault e Derrida (SILVA, 2007) e o centro da teoria é mudado para análise histórica, política e institucional (SABAT, 2003). Ainda hoje há duas vertentes em tensão nos Estudos Culturais, uma de “pesquisas de terreno” (SILVA, 2007, p.132), predominantemente etnografias e outra de interpretações textuais. Esta tensão é reflexo das origens dos Estudos Culturais: Sociologia e Estudos Literários (SILVA, 2007). O que perpassa qualquer perspectiva dos Estudos é o conceito de cultura em si. Não é uma abordagem estética ou humanista da cultura, mas política: implica consenso, hegemonia, história, resistência, poder. Para se compreender a cultura deve-se partir do entendimento que ela está ligada a classe, raça, sexualidade, geração; abrange relações de poder que produzem diferenças e é um “lugar de diferenças e lutas sociais” (SABAT, 2003, p.73). É um campo de produção, compartilhamento, disputas de significados. Os Estudos buscam a problematização da cultura, entendida de forma mais ampla. Acontece um cruzamento entre duas noções que podem ser perigosas: cultura e popular. Cultura está ligada à hierarquia, elitismos, mas também passa a abranger também as 21 multidões. Quando se trata como culturas, há diferentes possibilidades. Popular refere-se a breguice, gostos do povo; sentidos popular e minimalista. Os Estudos variam em cada país e também conforme influências teóricas. Notam-se também diferentes focos sociais, que se relacionam, influenciam: gênero, sexualidade, raça. A cultura é de certa forma autônoma socialmente, tem uma dinâmica relativamente independente de outras partes. Em contraposição à oposição marxista de infra-estrutura, super-estrutura, alguns teóricos restringem o social submetido ao cultural. A análise cultural busca assinalar o objeto como resultado de um processo social de construção e naturalização busca evidenciar os processos de relação de poder que o tornaram naturalizado. Os Estudos não têm pretensões de serem imparciais ou neutros. Pretendem, antes, intervir de forma política e social em relações em favor dos que estão em desvantagem. O conhecimento, por exemplo, não é revelação ou reflexo da realidade, da natureza, mas “resultado de um processo de criação e interpretação social” (SILVA, 2007, p.135). Michel Foucault Em sua obra, Foucault faz uma “história dos sem voz, a dos arquivos esquecidos e indivíduos silenciados” (MISKOLCI, 2006, p.31). Quando considera a história da loucura, por exemplo, não como a história da psiquiatria, ou seja, a loucura não ser o saber sobre ela, não uma história do saber científico reconhecido como verdade. Assim, sua metodologia consiste em trazer a tona genealogias, ou seja, um acoplamento do conhecimento erudito com conhecimentos sujeitados, conhecimento local, “das pessoas” (FOUCAULT, 2000, p.12), que não significa senso comum. A intenção de tal metodologia é analisar as razões porque alguns discursos são aceitos como verdade e outros não (FOUCAULT, 2005). Esta premissa supõe uma relação entre discurso, poder e verdade. Alguns discursos são tidos como verdade, pois possuem estatuto científico e fazem parte dos processos de subjetivação dos sujeitos. Os discursos sobre sexualidade se configuram assim. Segundo Judith Revel, para Foucault, na sexualidade fica mais evidente o discurso da verdade, “se exige aos homens dizerem a verdade a respeito de sua sexualidade para poder dizer a verdade sobre eles mesmos”(REVEL, 2005, p.80). O discurso produz sexualidade, não a reprime (MISKOLCI, 2008). Em “História da Sexualidade I”, Foucault se propõe a determinar o “regime de poder-saber-prazer que sustenta [...] o discurso sobre 22 a sexualidade” (FOUCAULT, 2006, p.17). Ele afirma que nossa sexualidade é “contida, muda, hipócrita” (FOUCAULT, 2006, p.9). Até o século XVII, não se tinha tanto pudor. A burguesia cala a sexualidade, que tem lugar apenas no “quarto do casal” e sua ilegitimidade fica restrita a lugares específicos, em que não incomodam. Nem mesmo a psicanálise liberta-se da repressão, ainda que possibilite falar contra o poder: prudência, precaução, segurança entre “divã e discurso” (FOUCAULT, 2006, p.11), com valor de mercado (FOUCAULT, 2006). Ao analisar a formação de saber sobre o sexo, propõe que haja uma outra teoria e concepção de poder. Para ele, o poder não deve ser entendido como aparelhos do Estado para a sujeição de cidadãos, nem regra, nem tampouco um sistema de dominação de um grupo sobre outro, perpassando todo o corpo social. A lei e a dominação são, antes, suas formas terminais. O poder deve ser compreendido como múltipla correlação de forças, onde se exercem e como se organizam. É o “jogo do poder”, que, por meio de lutas e afrontamentos ininterruptos, transforma, reforça e inverte as relações. É o apoio ou a defasagem que tais correlações encontram umas nas outras, formando cadeias ou as isolando entre si. São as estratégias que originam tais correlações e sua cristalização institucional ganha forma “nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (FOUCAULT, 2006, p.103). Desta forma, a sexualidade não deve ser entendida como rebeldia, indocilidade e submetida a um poder que tenta subjugá-la e muitas vezes fracassa. A sexualidade é como um denso ponto de passagem das relações de poder entre grupos binários (homem-mulher, pais-filhos, padres-leigos etc.). Não é um elemento rígido, antes o que apresenta maior instrumentalidade. Não existe uma única forma de dominá-lo, em todos os aspectos, mas, a partir do século XVIII, quatro “conjuntos estratégicos” (FOUCAULT, 2006, p.115) que desenvolvem saberes e poderes específicos para o sexo: histerização do corpo da mulher; pedagogização do corpo da criança; socialização das condutas de procriação; psiquiatrização do prazer perverso (FOUCAULT, 2006). Outra questão a que se dedica, mas que não se configura como desconectada às anteriores, é a construção da (a)normalidade. A constituição dos considerados anormais de deu por três vias: o monstro humano, o indivíduo a corrigir, o onanista. Cada vertente tem uma referência científica desenvolvida sobre si. O monstro humano tem referência na lei não só jurídica, mas também biológica: meio homem, meio bicho; individualidade múltipla; hermafrodita. O indivíduo a corrigir está relacionado às técnicas de disciplinar; 23 escapa ao disciplinamento do corpo nas instituições específicas. A criança como figura onanista surge por causa das novas relações familiares no século XVIII, o surgimento do corpo da criança. A educação é uma das lógicas de policiamento deste corpo. É ela a figura mais perigosa no século XX, representa uma anomalia diária. Jacques Derrida Em "Gramatologia", Derrida diz que o caráter científico da lingüística é atribuído à fonética. Entretanto, ele afirma a necessidade de consolidar-se a lingüística enquanto ciência, enquanto "gramatologia". Uma de suas preocupações é a relação escrita-fala. Para Rousseau, a escrita não passa de um “suplemento da fala” (DERRIDA 1973, p.9). Para Derrida, ou a escrita não é apenas suplemento ou deve-se constituir uma nova lógica de suplemento. Ao tratar do suplemento, Derrida analisa os textos de Jean-Jacques (e) Rousseau, pois em sua própria obra o tema da escrita se altera. “Quando a fala fracassa em proteger a presença, a escritura torna-se necessária” (DERRIDA 1973, p.177). É um recurso que busca tornar a fala presente quando ela está ausente; é um suplemento à fala. O suplemento é um acréscimo, um excesso, ele culmina na presença. Mas ele também supre, substitui, toma lugar, culmina no vazio. Estas duas concepções não se opõem. A presença é sempre natural e deveria bastar-se a si, entretanto, a natureza não se supre, por isso deve ser suprida. Seu suplemento não procede dela, lhe é inferior, externo, outro. O suplemento da natureza deve ser a cultura. A educação é um “sistema de suplência destinado a reconstruir o mais naturalmente o edifício da natureza” (DERRIDA 1973, p.179), é um mal necessário para suprir o que falta, substituir a natureza. A infância é a primeira manifestação de deficiência na natureza, que chama a suplência, sem ela (infância), não haveria necessidade de suplência. É a “oportunidade de humanidade e origem de sua perversão” (DERRIDA 1973, p.180). O conceito de suplementaridade está relacionado às relações fala-escrita, presençaausência, natureza-cultura. A fala, que é a presença e a natureza é suprida pela escrita, que é ausência (mas que está presente) e cultura. O suplemento é a cultura que supre a natureza, e que faz parecer que a natureza está ausente, quando está presente. A escrita contém em si a fala, por exemplo. Outra importante contribuição de Derrida foi sua metodologia de análise diferenciada: a desconstrução. “A desconstrução procura desmontar qualquer discurso que 24 se apresente como ‘construção’” (BORRADORI, 2004, p.147). Derrida se preocupa em desconstruir porque as construções filosóficas parecem se basear em oposições, “pares conceituais irredutíveis: espiritual e material, universal e particular, eterno e temporal, masculino e feminino” (BORRADORI, 2004, p.147). Estes agrupamentos originam dois problemas fundamentais. Primeiramente, aquilo que não se encaixa nas formas binárias opostas, tem tendência a ser marginalizado, suprimido. Em segundo lugar, estas relações entre opostos são hierarquizadas, o enaltecimento de um pólo em detrimento do outro. A metodologia da desconstrução consiste em primeiro definir a construção conceitual de um campo teórico que se utiliza de pares, seja religioso, metafísico, ético ou político. Segundo, evidenciar a ordem hierárquica a que estão submetidos. Terceiro, inverter a ordem para que os termos desvalorizados fiquem no topo da hierarquia. Ao passo que a inversão mostra que a hierarquia posta não é uma característica natural da relação, mas advém de escolhas ideológicas e estratégicas. A última etapa é a construção de um terceiro e novo termo para o par, que torna a relação irreconhecível (BORRADORI, 2004). 25 CAPÍTULO 2 A TEORIA QUEER: PRINCÍPIOS TEÓRICOS A Teoria Queer é recente. Este capítulo, longe de pretender ser um “estado da arte” em Teoria Queer, trata-se de uma pequena síntese do que alguns autores escrevem sobre a teoria. Por se tratar de uma teoria nova e pouco difundida no Brasil, os textos foram escolhidos conforme sua disponibilidade para leitura e análise. Primeiramente, apresento um histórico sobre a origem da teoria, em seguida seus pressupostos teóricos e suas relações com os movimentos delineados no capítulo anterior. A Teoria Queer está dentro das chamadas teorias subalternas2, que criticam o discurso hegemônico na cultura do Ocidente (MISKOLCI, 2008). Conforme Sabat (2003), de acordo com Siedman, estudioso da Teoria Queer, dentro do movimento gay e lésbico, há três fases de lutas políticas que deram bases para a Teoria Queer. A primeira é entre as décadas de 1960 e 1970, que se caracteriza por pouca produção artística voltada para o público gay, poucos(as) autores(as) identificavam-se como gays/lésbicas. As idéias sobre homossexualidade variavam entre considerá-la desordem moral ou um desejo natural; havia alguma manifestação para garantia de direitos civis. “Inspirado pela nova esquerda e pelo feminismo” (SABAT, 2003, p.84), o movimento começa a contestar o heterossexismo, nos EUA. O movimento não é único: alguns lutavam contra a cristalização de papéis; outros pela construção de uma nova cultura; outros por uma teoria separatista. Nos anos 1970, começa a consolidação de uma cultural intelectual gay e lésbica: produções artísticas voltadas para este público, teóricos(as) assumidamente gays/lésbicas. A segunda fase acontece entre metade dos anos 1970 e os anos 1980, em que acontece uma maturidade progressiva do movimento, marcada pela institucionalização do movimento, reconhecimento teórico, literário, artístico, midiático. Segundo Siedman, há a formação de uma “cultura nacional gay e lésbica” (SABAT, 2003, p.85). A homossexualidade passa a ser objeto de análise e pesquisas, nas perspectivas históricas e sociais; identidades e suas políticas passam a ser debatidas. A partir do meio dos 1980 até hoje, é a terceira fase do movimento gay e lésbico. Há uma consolidação acadêmica que se institucionaliza como área de pesquisa dos Estudos Gays e Estudos Lésbicos. É essa última fase que dá origem a Teoria Queer. Esta teoria 2 Conforme Miskolci (2008), estas teorias têm essa denominação em referência ao termo criado por Gramsci para designar os que não têm voz na sociedade capitalista. 26 surge na Inglaterra e nos Estados Unidos, como resultado de lutas políticas e agitações teóricas, de forma a levar ao limite o questionamento sobre a estabilidade de identidades e a heterossexualidade (SABAT, 2003). Conforme Milskolci (2008), a Teoria Queer, juntamente com os Estudos PósColoniais3, surge no seio dos Estudos Culturais. O “impulso criador” (MISKOLCI, 2008, p.9) da Teoria Queer foi a publicação, em 1985, de “Between Men”, de Eve Sedgwick. Neste livro, Sedgwick afirma que a ordem social é sexual, baseada na dicotomia hetero/homo, de forma a naturalizar o heterossexual, ao mesmo tempo em que o torna compulsório (MISKOLCI, 2008). Ou seja, a sociedade está baseada na heterossexualidade compulsória (obrigação de ser heterossexual) e na heteronormatividade (todas as relações amorosas/sexuais com referência no casal reprodutivo heterossexual) (PINO, 2007). O termo queer vem do inglês e expressa aquilo que é excêntrico, diferente, incomum, estranho. Este termo também é usado como xingamento para gays e lésbicas, aqueles com sexualidade incomum (SILVA, 2007; LOURO, 2004; MISKOLCI, 2005). O termo, segundo Annemarie Jagose, é parte do vocabulário para entender a homossexualidade desde o século XIX e agora tem significado político (PINO, 2007). Michael Werner sustenta que palavra queer está profundamente inserida na cultura angloamericana moderna, sua tradução é difícil. Enquanto termo político, ele remete a era de Bush, Tatcher e Mulroney. Período de conservadorismo e negação de direitos civis que produziram uma política que pretendia desestabilizar a construção aparentemente perfeita do normal e mostrar sua materialidade (BRITZMAN, 2002). Uma vertente do movimento homossexual apropria-se dessa expressão, da “arma do inimigo” (SABAT, 2003) como forma de contestação e oposição (LOURO, 2006), e declaração política (tal como a expressão cunhada pelo movimento negro “100% negro”) que a proposta é mesmo causar estranhamento aos padrões de normalidade e solidez da identidade sexual, e, ao fazê-lo, também põem em xeque as identidades cultural e social (SILVA, 2007), a compreensão das identidades, trata-se de uma reavaliação crítica das políticas de identidade. Queer designa tanto a teoria quanto a cultura sexual marginalizada, num processo de coalizão e identificação como queer (PINO, 2007), entretanto sua colocação é diferenciada. É um termo indefinido, elástico, abrangente. Refere-se a uma diferença que não pretende ser tolerada, sua ação é transgressiva (PINO, 2007). Conforme 3 Estudos Pós-Coloniais têm por objetivo analisar as relações de poder atualmente nas nações que foram colonizadas pela Europa, bem como consideram a expansão imperial européia do século XV (SILVA, 2007). 27 Britzman (2002) a Teoria Queer tem três princípios: transgressores, pois põem em dúvida as regulações binárias; perversas porque tratam o desvio como uma área de interesse; políticos porque querem desestabilizar as leis e práticas instituídas. Teóricos Queer problematizam a estabilidade das identidades de gênero e sexuais; criticam o binarismo heterossexual/homossexual. Consideram que não apenas discursos homófobos, mas também os “defensores” da homossexualidade mantêm o heterossexual como padrão e o homossexual como desviante (LOURO, 2006). A proposta do movimento homossexual dominante normalizava, estabilizava relações homossexuais. Os binarismos não foram rompidos. A proposta da teoria é perturbar os arranjos para que nenhuma fixidez seja possível (SABAT, 2003). A teoria pensa sujeitos e práticas sexuais para além da binaridade homem/mulher, hetero/homo, na medida em que assinalam subjetivações que não se encaixam no que Judith Butler denomina de “gêneros inteligíveis” (PINO, 2007, p.161), gêneros homogêneos, padrão. As sexualidades transgressoras não são o único foco, mas os processos que instituem e naturalizam identidades (PINO, 2007). Não é a simples afirmação da identidade homossexual, é ir contra qualquer forma de homogeneização, normatividade e normalização, homogeneizante, não apenas de sexualidade, mas de identidades. A teoria critica aos “múltiplos binarismos” que incluem raça, gênero, nacionalidade, religião relacionados com a sexualidade; questiona-se sobre os indivíduos fora da regra, aqueles que estão em “zonas de abjeção em que a própria humanidade é contestada” (PINO, 2007, p.162), porque não corresponde aos ideais de normalidade humana. Pretende politizar a abjeção para tornar legíveis as “vidas queer” (PINO, 2007). Somos definidos pela nossa identidade. Esta também define o que fazemos, ainda que de maneira menos fixa. A Teoria Queer vai além da construção fixa da identidade, ela trata da possibilidade de transitar entre os limites da padronização. “A identidade... tornase uma viagem entre fronteiras” (SILVA, 2007, p.107). Há aqui certo conflito entre alguns teóricos. Conforme Pino (2007), tentar tratar como um movimento unificado vai contra seus princípios. Louro sugere que o Queer é uma proposta pós-identitária (LOURO, 2006), ou seja, a superação das identidades. Para Miskolci, não se trata da superação da identidade como tal, mas de sua compreensão naturalizada (MISKOLCI, 2005), de toda a maneira em uma ou na outra vertente, trata-se de não se tomar as identidades como fixas, prontas, intransponíveis. A Teoria Queer se propõe a desvendar como conhecimentos e práticas que sexualizam corpos, desejos, instituições, identidades. Ela opõe a noção de formação de 28 identidade à multiplicidade dos eixos de diferenciação, que se cruzam e conectam, que atravessam o indivíduo (PINO, 2007). O discurso sobre identidade ultrapassa as velhas fórmulas de aceitação da experiência como algo revelador e transparente. A identidade é discutida como um efeito discursivo do social e como algo que se constitui mediante identificações. O “eu” deseja um “eu” e, portanto há necessidade de um âmbito social. É a identificação que permite o autoreconhecimento assim como a falta de reconhecimento. E é mediante esta identificação que se cria o desejo. Como a identificação é uma relação parcial, contraditória e ambivalente com os aspectos e dinâmicas de outras pessoas, pode-se considerar como um meio para criar e dirigir o desejo. Existem diferentes formas possíveis: a identificação de, a identificação com, a identificação em oposição a, o excesso de identificação etc. As relações de identificações não são simples, nelas existem tensões (BRITZMAN, 2002). No que se refere às influências de outras correntes no pensamento Queer, o Feminismo e os Estudos Gays e Lésbicos foram os primeiros a questionar as diferenciações e desigualdades sociais atribuídas à suposta diferença biológica, que fundamentavam a dominação masculina e heterossexual. Os Estudos Culturais foram os pioneiros na crítica às distinções de ordem hierárquica entre cultura erudita e popular, de forma a evidenciar os processos históricos que exploram, subalternizam certos grupos (MISKOLCI, 2008). Durante o século XX, pensadores como Michel Foucault problematizaram as noções clássicas de sujeito, de identidade, de identificação. Ele afirma que discursos acerca da sexualidade produzidos pelas instituições produzem classificações dos tipos de sexualidade de maneira a exercer controle, e ao mesmo tempo, produzir normalidades e sujeitos (LOURO, 2004). Quando faz a construção histórica de valores morais naturalizados, possibilita a crítica às práticas de controle e dominação (MISKOLCI, 2005). As influências de Jacques Derrida consistem em duas partes, primeiramente, o conceito de suplementaridade e, segundo, sua metodologia. A metodologia da desconstrução de Derrida permite conceber as construções binárias (como homem-mulher, heterossexual-homossexual) como construções sociais, históricas. É nesta forma de análise que o Queer se apóia, a desconstrução histórica de pressupostos sociais, tidos como naturais, apoiados na ciência (MISKOLCI, 2005) que criam e naturalizam as identidades e as relações de poder que a constituem. As identidades masculina/feminina não são biológicas, são construções sociais (SILVA, 2007). O conceito de suplementaridade 29 sustenta que, nos binarismos, o hegemônico só se estabelece em oposição a um inferior (MISKOLCI, 2007). Assim que se considera homem-mulher, homossexual-heterossexual. Estes dois opostos são dependentes: um não existe sem o outro. Definir uma identidade, definir o que é, implica marcar o que não é, o diferente, o “outro” (LOURO, 2006; SILVA, 2007), que é indispensável para garantir o padrão. Mesmo que seja associada a desejo e sexualidade, nos últimos anos houve uma intensificação da “articulação de múltiplas diferenças nas práticas sociais [...] Uma teoria que resiste à americanização branca hetero-gay colonial do mundo” (MISKOLCI, 2008, p.9). Ganhou força a compreensão do Queer sem referente fixo. Não há mais garantia que seja a sexualidade que molda as relações sociais, surge uma idéia de intersecção de diferenças. A ligação da Teoria com os Estudos Pós-Coloniais consiste na interdependência de seus objetos de análise: “racialização do sexo e sexualização da raça” (MISKOLCI, 2008,p.11), ou seja, a conexão raça-sexo no mesmo processo normalizador. O objetivo é focar nos processos normalizadores que produzem simultaneamente o homogêneo e o subalterno (MISKOLCI, 2008). A Teoria Queer é campo teórico perturbador. Ela pretende romper, questionar, contestar as formas como o conhecimento e a identidade mostram-se naturais e fixos. Ela representa “uma reviravolta epistemológica. A teoria queer quer nos fazer pensar queer (homossexual, mas também ‘diferente) e não straight (heterossexual, mas também ‘quadrado’). Ela nos obriga a pensar o impensável... é, neste sentido, perversa, subversiva, irreverente, profana, desrespeitosa” (SILVA, 2007, p.107). O Queer representa uma forma inovadora de se pensar a formação de identidades, de corpos, de sexualidade. Ela constitui-se numa interessante ferramenta de transgressão. 30 CAPÍTULO 3 TEÓRICOS QUEER: SÍNTESE DE PESQUISAS NA TEMÁTICA Este capítulo, dedica-se a tentar esboçar uma amostra de pesquisas e discussões de pensadores(as) Queer. Trata-se de uma pequena síntese do que se discute em tal teoria, baseada em algumas obras de pensadoras que têm destaque na área: Judith Butler e Eve Sedgwick e, no cenário brasileiro, Guacira Lopes Louro e Sandra Corazza. Segundo Miskolci, Sedwick e Butler são pioneiras no pensamento queer. Eve Kosofsky Sedwick é Distinguished Professor de Inglês no The Graduate Center, em Nova York. Conforme Miskolci, ela inovou com o livro “Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire” (publicado em 1985) em que, a partir da discussão da relação entre homens nas obras literárias do século XIX, analisa as questões de gênero e dominação (MISKOLCI, 2005). Segundo ela, as relações entre homens têm três princípios: homossexualidade, homossociabilidade e homofobia. Os dois últimos são formas de garantir que o primeiro não ocorra. A homossociabilidade refere-se às relações entre homens que os privilegia, mas estes vínculos a que se submetem põem em risco a normalidade pelo constante perigo da homossexualidade. É assim que a autora desconstrói a noção oposta hetero/homossexualidade, apontando que a sexualidade é produto de sua época e meio de manutenção de poder/dominação entre homens e mulheres. (MISKOLCI, 2005). Em “A Epistemologia do Armário”, Sedgwick (2007) analisa como o “armário” é um dispositivo de controle de gays. Ela discute a dicotomia privado/público em relação a gays que “saem do armário”. Ser gay dá-se no campo privado e o ato de deixar o armário o torna público, o que não é bem visto por algumas pessoas, ou pela Justiça dos EUA4. Em comparação com a história bíblica e a peça de Racine de Esther, rainha esposa de Assuero, Sedgwick relaciona a confissão sobre sua origem ao rei com o sair do armário. Esther era uma judia, casada com o rei Assuero; este pretendia eliminar os judeus. Ela é levada a confessar sua origem ao rei, e essa revelação terá grande influência na história: a posição política do rei contra seu povo poria fim ao amor pessoal dele por ela, ou vice-versa. Este impasse pode assemelhar-se a qualquer gay que tenha pretendido se assumir para seus pais. A confissão de Esther para o rei provoca neste uma desordem, quando ela diz: 4 Ela cita alguns casos de pessoas que perderam seus empregos e, ao recorrem na justiça, também perderam por terem “exposto” sua sexualidade, terem dito que eram homo ou bissexuais (SEDGWICK, 2007). 31 “Ouso clamar, tanto por minha própria vida Quanto pelos tristes dias de um povo infeliz Que condenaste a perecer comigo (1029-31)” (SEDGWICK, 2007, p.35). O rei responde "Perecer? Vós? Que povo? (1032)” (SEDGWICK, 2007, p.35). Esta fala revela seu desconhecimento e ignorância: ele presumiu sobre Esther e desconhecia a raça que estava prestes a exterminar. Em comparação com o “sair do armário”, este também pode acarretar a “revelação de um desconhecimento poderoso como um ato de desconhecer, não como o vácuo ou o vazio que ele finge ser, mas como um espaço epistemológico pesado, ocupado e conseqüente” (SEDGWICK, 2007). Na confissão particular, por amor do rei a ela, o coletivo é salvo. Poderia se pensar assim no que tange a gays: confissões particulares poderiam ajudar o coletivo a ser aceito. Contudo, a autora aponta sete pontos de diferença: a identidade de Esther enquanto judia não é contestada enquanto passageira ou falta de certeza, o que não ocorre com gays; Assuero fica totalmente surpreso com a revelação, mas quando se sai do armário, nem sempre as pessoas se surpreendem; não ocorre a Esther que a confissão possa ser destrutiva para Assuero, entretanto, ao pensarem em se confessar a seus pais, gays temem por eles; a relação deles não muda por causa da origem dela; não se cogita Assuero seu um judeu disfarçado, mas acontece de se descobrir que uma figura homofóbica em excesso possa ser um gay “no armário”; Esther tem um povo, uma cultura, gays não; a confissão se dá numa relação de gênero submissa, a identidade gay contesta o masculino e feminino (SEDGWICK, 2007). O conceito identidade tanto hetero quanto gay é inconsistente. Contudo, questionar a oposição entre elas não significa destruí-la: muitas pessoas sentem-se amparadas pelo termo homossexual e afins e políticas voltadas para a “sexualidade do mesmo sexo” (SEDGWICK, 2007) dependem da definição de uma população diferenciada. Durante o século XX, a barreira entre homossexuais e heterossexuais é reforçada de forma paranóica, principalmente homens contra homens. Este reforço faz com que homossexuais não sejam um grupo separado, mas “problemático” (SEDGWICK, 2007). As idéias desenvolvidas por Freud sobre pontencialidade da bissexualidade e multiformismo do desejo fundamentam na psicologia uma idéia contraposta. Contudo, estas idéias só ganham forças camufladas em discursos heterossexistas. Os homófobos são tidos como inseguros de sua masculinidade, assim só há uma forma segura de masculinidade, indiferente a homofobia e estável com relação a outros homens. O impasse 32 da definição de gênero cria um campo discursivo incoerente. É o estudo desse campo que Sedgwick julga mais promissor. Judith Butler é Maxine Elliot Professor no Departments of Rhetoric and Comparative Literature na University of California, Berkeley. Conforme Louro, para Butler, a heterossexualidade é compulsória, imposta. Contudo, sempre há aqueles que não se enquadram à norma. Para garantir a compulsividade, o discurso repete e reitera, reconhece a autoridade das normas que regulam a materialização do sexo. A produção destes corpos possibilita aqueles que escapam da norma, indispensáveis, pois mostram o limite, o diferente, o fora dos corpos normatizados. Butler afirma que a linguagem referente a corpos não apenas os descreve, mas os produz. Não é o sujeito que decide sobre si, ele se apropria das normas regulatórias (LOURO, 2006). Em “O Parentesco é Sempre Tido como Heterossexual?”, ela vai além do questionamento do binarismo heterossexual/homossexual. Ela, entre outras coisas, discute o caráter de legitimidade atribuído a certas relações. O casamento gay é um debate comum, há quem seja contra ou a favor. Para Butler, o casamento é uma forma de o Estado dizer quais relações são legítimas e quais não são. O casamento, segundo ela, é a forma legitimada de sexualidade, não apenas legitimada, mas é enquanto casamento que a sexualidade é pensada. É uma forma do desejo pessoal (anônimo) tornar-se como sexo público legítimo. Esta divisão cria hierarquias entre os tipos de relações, com o casamento gay, criase a possibilidade de relações entre gays possa ser legítima. Para ela, é mais interessante analisar os que estão entre a legitimidade e a ilegitimidade, que estão num espaço nãonominável, um campo externo. O binarismo da sexualidade inteligível cria zonas intermediárias, híbridas. São zonas com fronteiras variáveis, em que o que estranha a distinção entre legítimo e ilegítimo são práticas sexuais incoerentes dentro das possibilidades de legitimação. Não se deve apenas reduzir-se ao sim ou o não quanto ao casamento gay, isto é uma paralisia política diante do poder. Os direitos de aliança e mesmo adoção devem ser pensados fora do padrão casamento, este não deveria ser o campo exclusivo da vida sexual. Pensar a sexualidade de forma mais progressista e radical requer que não se permita que o parentesco seja reduzido à família ou o campo sexual seja medido pelo casamento. Sedgwick e Butler dedicam-se a estas e outras questões, de forma a contestar as formas fixas e institucionalizadas de sexualidade. No Brasil, estes trabalhos ganham força 33 teórica e aqui também se inicia um movimento em direção ao queer. Sandra Corazza e Guacira Louro são grandes exemplos de como se desenvolve o pensamento no país. Sandra Mara Corazza é filósofa e doutora em Educação. É professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa “Filosofias da Diferença e Educação”. Analisa infância contemporânea, currículo e pratica pesquisa educacional. Seu livro “Para uma Filosofia do Inferno na Educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins” (2002) traz uma proposta no mínimo curiosa: pensar infernalmente (a educação). Segundo Corazza, o Diabo/Diabólico é aquele que aparta, que rompe com verdades; é o múltiplo sem unidade, ambíguo; é oposição. É híbrido, é a diferença em si; incorpora o fora, mas origina-se dentro; é inumano, mas não é alheio à natureza humana, porque “não há individualidade primordial que lhe permita restituir a unidade humana” (CORAZZA, 2002, p.20). É perigoso para a identidade e normalidade do sujeito consciente. Não é parte do além, é deste mundo; instala-se no cotidiano e nos faz fugir, anormalizar. Quando se declarou a morte de Deus, o sujeito teve que contemplar sua finitude e seu desamparo. Se Deus morreu e o Diabo ainda vive, talvez seja ele que sustente, ainda que de modo negativo, a noção racional de sujeito, a problematização de nós enquanto sujeitos. Entretanto, ele pode ser exatamente a expropriação de noções fixas de identidades. Pensar diabolicamente pode ser pensar diferente, estranho, queer. É a isso que Louro se propõe. Guacira Lopes Louro é licenciada em História e mestre e doutora em Educação. É professora aposentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua como docente no Programa de Pós Graduação em Educação e no grupo de pesquisa que fundou “Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero” (GEERGE). Em “Um Corpo Estranho: Ensaios sobre Sexualidade e Teoria Queer” (2004) reúne alguns textos ao mesmo tempo não lineares e conectados. A aparência do corpo é definidora do lugar de pertencimento do sujeito, conforme regras e padrões. As marcas, consideradas biológicas, que definem masculino/feminino mudam conforme diferentes tempos, espaços, culturas. Na Idade Média, o corpo não tinha tanta importância. Antes do século XIX, ele ganha relevância e passa a delimitar as diferenças entre sexos/gêneros, sendo que a mulher é o sexo imperfeito, pois tem os órgãos 34 masculinos dentro do corpo. Com mudanças teóricas e políticas, os corpos masculino e feminino são tidos como originalmente diferentes. O corpo deixa de ser considerado parte de uma ordem maior e o sexo ganha centralidade. Assim acontece a construção de um corpo sexuado. Os estados organizados politicamente começam a se preocupar com a produtividade do corpo e voltam-se para a disciplina da família, da reprodução, das práticas sexuais. A autoridade da visão médica e moralista do fim do século XIX atribui diferenças nos corpos de homens e mulheres. A sexologia produz um discurso com autoridade científica, contra ou complementar aos da igreja, moral, lei. São estes discursos que constroem os corpos. Os corpos se formam no sentido de determinado sexo biológico indicar o gênero que induz a um desejo. Esta seqüência repete uma norma binária, o corpo de macho ou fêmea, gênero masculino ou feminino e o desejo heterossexual. Qualquer transformação que aconteça com o corpo tem que ser na direção da construção desta forma, como uma espécie de viagem, ao nascer com determinado sexo, tem-se o destino da construção do desejo já pré-determinado. Louro empresta os conceitos sobre viajantes para tratar daqueles que viajam pelas fronteiras da heteronormalidade. Para ela, é importante destacar que o sujeito que viaja é dividido, fragmentado; o interessante não é o destino, mas as mudanças que ocorrem no trajeto. Para ela, a metáfora da viagem (usualmente atribuída à distância) pode ser usada para pensar a distância cultural, a diferença, o diferente, o estranho, o outro. Viagem é movimento, encontros, desencontros, epifanias. Há algumas viagens que têm destinos pré-determinados. Quando nascemos, por exemplo, junto com a determinação de ser menino ou menina, vem a determinação do caminho que vamos trilhar na vida, a determinação sobre nosso corpo. O sexo é tido como anterior à cultura, imutável; logo, só podemos nos masculinizar ou feminizar dentro de normas, para sermos sujeitos legítimos. Como há regras a serem seguidas (a educação atua nesta área: marcar nos corpos a sexualidade legítima), esta delimitação também mostra em que é possível subverter, é há aqueles que se arriscam a transgredir. Estes, ao se afastarem do padrão, ficam mais marcados, mais presentes, pois, ao subverterem a norma, mostram como ela é feita e mantida. Os que viajam podem ter sua “travessia restringida, repudiada ou ampliada por usas marcas de classe, de raça” etc., pode ser um movimento livre ou um “exílio” (LOURO, 2006, p.19). De qualquer forma, saem do caminho planejado, ainda que nem sempre de 35 forma crítica. Há, ainda, aqueles que não cruzam fronteiras, ficam no meio de diferentes lugares (drag queens, por exemplo). As fronteiras são espaços de confluência de culturas: zona de transgressão, por um lado e de policiamento, por outro. Aqueles que desafiam a fronteira parodiam, misturam e confundem, combinam e distorcem, são ambíguos, “mais de uma identidade, mais de um gênero” (LOURO, 2006, p.20). São como nômades: território e identidades em constante movimento. Personagens transgressores não constituem um padrão que deve ser seguido por aqueles que não se conformam com a ordem. Eles mostram possibilidades de gêneros e sexualidades múltiplos. Podem ser entendidos como um impulso para o rompimento de regras. Estas obras apresentam diferenças entre si, mas um mesmo tipo de discussão se faz presente: questionamento de padrões e identidades, de forma a denunciar os processos sociais de naturalização, a imposição do “normal” como correto. 36 CAPÍTULO 4 TEORIA QUEER E EDUCAÇÃO: POSSIBILIDADES DE TRANSGRESSÃO Este capítulo trata de explicar como a escola constitui-se em espaço de produção de diferenças e de que maneira a Teoria Queer oferece possibilidades para que se transgrida os padrões determinados. Inicio este capítulo com a mesma inquietação de Louro (2004): como fazer um campo normatizador ser Queer? Corazza (2002), quando trata das questões educacionais em “Para uma Filosofia do Inferno na Educação”, aponta para o diabo na escola, assim como os perigos que oferece. Segundo ela, o “diabo do currículo” (CORAZZA, 2002, p.61) é duplo, fascinante e impuro. O currículo restringe religiosamente o diabo, mas é diferente da religião e da moral, são normas naturais. “O diabo fica associado a indivíduos especiais, como crianças, mulheres, negros; a estados excepcionais, como o nascimento, a menstruação, a puberdade, a deficiência; e a todas as coisas diferentes e assustadoras, como a não-aprendizagem, a loucura, os maus comportamentos, o erotismo, a doenças, a morte, com o seu poder de infecção e contágio” (CORAZZA, 2002, p. 63). Os “mortos do currículo” são os excluídos, os tabus, propriedade do diabo; podendo transformar-se nele, querem roubar a vida dos vivos. Na Pedagogia há um ser diabólico, o Infantil, Demônio-Infantil em oposição ao Deus-Adulto. O Infantil é intenso, criativo, livre e potente. É superior a todos os educados, dóceis, civilizados, domésticos, mansos. O Deus-Adulto só se considera ao considerar mau o Infantil, o negativo é sua origem e seu agir. É aquele que não age como o Infantil, o adulto sério, que fazer referência a toda ação a um “terceiro adulto-divino” (p.70): A Sociedade, A Democracia, O Sujeito, A Razão etc., cheios de finalidades. O Adulto quer educar, limitar, adultizar o Infantil, porque a infantilidade é fraqueza. O Infantil deve reter, conter sua força infantil, deve agir como adulto. É para isso que servem as práticas escolares. O anormal-infantil é o que não se normalizou. O Adulto age como não-infantil, reagindo à infância, porque é triunfante, superior, bom, educado, racional, consciente, sujeitado, moralizado (CORAZZA, 2002, p.72). A moral pedagógica é criada no impedimento do Infantil agir como tal, na negação, enfraquecimento, desaparecimento do Infantil. Uma moral mentirosa porque é invertida: na Pedagogia, os fracos são os educados, moralizados, pedagogizados, Adultos-Bons (CORAZZA, 2002). 37 A escola separa e institui os sujeitos, os que estão dentro e os que estão fora dela. Mas também divide, classifica, ordena, hierarquiza os que estão dentro. Separa adultos de criança, ricos e pobres, meninos e meninas. Ela delimita os espaços, dita o que cada um pode ou não, o lugar de cada um. Aponta modelos e permite o auto reconhecimento, ou o não reconhecimento (LOURO, 2003). Na sala, esquadrinhamentos são construídos que “separam, dividem, compartimentalizam, particularizam, mas com o objetivo de selecionar e homogeneizar” (ABRAMOWICZ, 1995, p.55). A escola procura homogeneizar tudo e repelir o diferente pela evasão, repetência, classes especiais (classe homogênea dos diferentes) (ABRAMOWICZ, 1995). Na escola, deve-se seguir o modelo “não se ensina no diverso. Homogeneidade, eis o que busca a escola” (ABRAMOWICZ, 1995, p.32). No que concerne a produção da mulher, a escola exige uma maneira de ser menina, de se cumprir um padrão. Nela, formam-se Penélopes: mulheres temerosas de aventuras, fadadas à permanência que passam os dias tecendo a mesma coisa no mesmo tecido (ABRAMOWICZ, 1995). As instituições e práticas ensinam e fazem interiorizar concepções, tornando-as naturais, mesmo que sejam culturais. Gestos movimentos e sentidos são produzidos no espaço da escola e incorporados, tornados parte do corpo de meninos e meninas. Atravessados pela diferença, eles a confirmam e produzem. Os indivíduos reagem, recusam ou assumem, não são passivos (LOURO, 2003). Os antigos manuais de educação determinavam inclusive a postura adequada de alunos(as), o que marcava a distinção dos corpos escolarizados, a escolarização inscrita nos corpos. Hoje, sob novas formas (cientificas, psicológicas etc.), a escola continua imprimindo suas marcas nos sujeitos. Nossos sentidos precisam ser afiados para que possamos ver, ouvir, sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos implicadas na concepção, na organização e no fazer cotidiano escolar (LOURO, 2003). A fabricação de sujeitos é sutil e para percebê-la é preciso atentar para, questionar, desconfiar das praticas cotidianas, rotineiras, comuns, banais, o que é tido como natural – por exemplo, meninos e meninas fazerem diferentes escolhas (LOURO, 2003). “Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, matérias didáticos, processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe – são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo, seus produtores” (LOURO, 2003, p.64). 38 Essas concepções de escola e currículo são corrompíveis. Segundo Louro (2003), a escola produz a diferença, mas deveria, conforme Abramowicz (1995), produzir o diferente. Para Corazza (2002), o diabo ajuda a imaginar um currículo sem excluídos, sem mortos, sem limite entre vida e morte. Para o currículo com Diabo, não há sujeito, o eu é fragmentado, desestruturado. Este currículo “abre todas as portas” (CORAZZA, 2002, p.65). Um currículo sem dogmas, sem certezas. É um processo, andamento em que todos podem viver (CORAZZA, 2002). Estas colocações apontam para uma Pedagogia Queer. Pedagogia e Currículo Queer não comportariam as diferenças como toleradas, exóticas, externas. Dedicar-se-ia a questionar os processos de produção de diferenças, a instabilidade e a precariedade das identidades (LOURO, 2004). Também não se limitaria a introduzir questões de sexualidade no currículo, que geralmente são tomadas com relação à biologia e à reprodução, ou materiais que combatam atitudes homofóbicas, não é estimular atitudes de respeito ou tolerância, ou o tratamento (no sentido terapêutico) de preconceito e discriminação. A abordagem de tolerância mantém intacta a definição histórica e social da identidade homo como anormal, é a afirmação da dicotomia heterossexual tolerante e homossexual tolerado. O tratamento transfere para o psicológico o que é social, cultural, histórico. Não se devem incluir informações corretas sobre sexualidade, mas questionar processos institucionais e discursivos, as estruturas de significação que definem o normal, o correto e o moral em detrimento de seus “opostos”. A sexualidade deve ser tomada no currículo como “questão legítima de conhecimento e identidades”. Não pretende ser informativa, mas metodologia de análise e compreensão do conhecimento e identidades sociais (SILVA, 2007). Quando se coloca em discussão as formas de constituição do “outro”, questionamse as relações do eu com o outro. A diferença deixa de estar fora, de ser alheia. Assim, ela é tida como indispensável para a existência do sujeito, integra e constitui o eu. Estando presente na escola, ela constrói sentidos, assombra, desestabiliza o sujeito. O currículo, ao se focar nos processos que produzem diferenças, não se trataria de admirar uma sociedade plural, mas atentar para disputas, negociações, conflitos advindos das posições, o jogo político. Desta forma aconteceria o questionamento da dicotomia homossexualheterossexual (não se limitando a este único binarismo), pois a análise da dependência mútua entre estes pólos põe em xeque a naturalização e superioridade do heterossexual (LOURO, 2004). 39 Uma Pedagogia que não se limite a denunciar “a negação e o submetimento de homossexuais” (LOURO, 2004, p.49), mas desconstruir os processos de normalização ou marginalização de sujeitos, bem como a constante reiteração das normas (que garantem a identidade legitimada). Problematizar como as estratégias de normalização ditam e restringem maneiras de ser e viver. É preciso “apreciar a transgressão” (LOURO, 2004, p.50). A escolha pela transgressão e não subversão acontece pelos significados atrelados aos termos. Remetendo-se ao dicionário (FERREIRA, 1999), quando se trata de subversão, a ordem das coisas é desestruturada, questionada, insubordinada. Entretanto, o termo não serve para pensar para além do instituído. O termo transgressão expressa melhor o intuito de romper com, ultrapassar, violar os limites impostos. É a possibilidade de a pedagogia resistir à submissão. Deborah Britzman propõe uma Pedagogia transgressora ao invés de subversiva. Segundo a autora, a educação é uma estrutura de autoridade. Com base em Freud, afirma que a educação é uma profissão impossível, pois “Al dar directrices a los jóvenes sobre la vida con [...] una orientación psicológica errónea, la educación se comporta como si les equipase para ir a una expedición polar con ropa de verano e y con mapas de los lagos italianos” (FREUD, s/d apud. BRITZMAN, 2002). A educação se nega a imaginar a possibilidade do “outro” porque a produção da alteridade como fora da normalidade é fundamental para o seu auto-reconhecimento. Esta aproximação como produção de binarismos pode ser relevante para conceitualizar e transformar a “educação da educação” (termo que entende a educação como efeito do saber-poder-prazer e baseado em aparatos históricos mais amplos do que a própria educação) (BRITZMAN, 2002, p.204). Nos processos educativos, a normalidade é o produto. Isto nos permite considerar tanto as relações que se dão entre aquelas e dentro daquelas pessoas que transgridem e descobrem o normal, como as relações entre e dentro daquelas pessoas que se esforçam para que as reconheças como normais. Quando a Pedagogia aponta para o Queer e se preocupa com sua própria estrutura de inteligibilidade (a educação da educação) e quando a pedagogia enfrenta a sua própria impertinência, o projeto do conhecimento e do sujeito que presumivelmente sabe se convertem em tarefas intermináveis apesar da pressão institucional para que se cumpra a ordem, a norma e a certeza (BRITZMAN, 2002). 40 Entretanto, para chegar ao lugar em que a diferença e não o parecido seja o espaço da Pedagogia, é necessário que se chegue a questão da identidade. A Pedagogia Queer supera oposições binárias tais como o tolerante e o tolerável e o opressor e o oprimido, mas mantém uma analise da diferença social que explica como funcionam as dinâmicas de subordinação e sujeição histórica, cultural, socialmente. Ela se põe a refletir sobre a tolerância da curiosidade por nossa própria alteridade, desejos, expectativas, negações. A desestabilizar o que se pensa sobre a normalidade e a diferença. As categorias identitárias não seriam úteis, pois a identidade depende da produção da uniformidade da alteridade baseada em formas de sujeição (BRITZMAN, 2002). O princípio de uma Pedagogia Queer é que resista às praticas normais e de normalidade, que se preocupe com as próprias práticas interpretativas e com a responsabilidade de tomar as relações sociais como mais que efeito da ordem dominante. Uma pedagogia que implique arriscar o Eu e tenha intenção de superar os casos de normalidade e desenvolver o interesse em alterar a lei instituída (BRITZMAN, 2002). Assim, a Pedagogia e o currículo Queer “‘falam’ a todos e não se dirigem apenas àqueles ou àquelas que se reconheçam nessa posição-de-sujeito, sujeitos queer. Uma tal pedagogia sugere o questionamento, a desnaturalização, a incerteza como estratégias fértei e criativas para pensar qualquer dimensão da existência.” (LOURO, 2004, p. 52). As estratégias contribuem com a formação de um determinado tipo de sujeito, mas uma Pedagogia Queer não pretende atingir um modelo ideal, ela é, assim como o sujeito, intencionalmente incompleta e inconclusa. Não tem proposições e objetivos, modos de agir, conduzir, transmitir definidos, determinados, adequados (LOURO, 2004). Uma Pedagogia que não se conforme em enquadrar as mentes e os corpos através de maneiras pré-determinadas, que transgrida as formas dadas de se pensar e agir. 41 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho pretende se juntar ao coro dos insatisfeitos com os caminhos em que a educação e a escola tomaram e, assim, visam ao enquadramento dos corpos e mentes dos que nelas estão inseridos. A matéria da Revista Nova Escola, citada no início, é um exemplo do enquadramento. A revista pretende abordar o tema de forma crítica, mas cai nas armadilhas e apenas propaga noções arraigadas de se ser homem ou mulher na sociedade, bem como impõe um modelo de sexualidade saudável, um padrão de ajustamento. A educação escolar moderna se configurou como justamente o espaço de normalizar crianças e jovens nos moldes da “vida correta”. Entretanto, podemos buscar uma prática diferenciada, ao perceber que estes moldes produzem não apenas normas, mas hierarquias de ser e agir. Podemos parar de produzir homogeneidade e buscar a heterogeneidade. Historicamente, grupos têm sido diminuídos, inferiorizados. Entretanto, os sujeitos inferiorizados sempre resistiram. As mulheres, por exemplo, desde a Antigüidade buscam espaços sociais, ainda que tenham sido rejeitadas, impedidas. O Feminismo e os Estudos Gays e Lésbicos, depois de muita luta por reconhecimento, conseguiram força acadêmica. Estas formas de pensamento explicitaram as maneiras pela quais as sexualidades são social, histórica e culturalmente produzidos, desvinculando as diferenças entre homens e mulheres da biologia, abalando seu caráter “natural”. Os Estudos Culturais são a consolidação de estudos que buscam compreender as diferenças entre os “tipos” de cultura, assim como sua hierarquização. A problematização da cultura se dá pelo viés político e ela é entendida como espaço de lutas, contradições, resistências. A cultura é tomada como resultado de um processo social de construção e naturalização, e os Estudos buscam evidenciar os processos de relação de poder que o tornaram naturalizado. Os Estudos não têm pretensões de serem imparciais ou neutros. Estes estudos possibilitaram pensar a produção de significados culturais, para além do sexo. Desde o fim do século XIX começa-se a contestar as idéias de sujeito. O PósEstruturalismo critica a concepção iluminista de sujeito moderno, racional, consciente e o entendimento que linguagem e cultura são construções humanas. Inova aos produzir um tipo de análise genealógica diacrônica, descontínua; o não entendimento da ciência como 42 transformadora e progressista, não há o predomínio do significado. Como influências deste pensamento, Jacques Derrida, com a suplementaridade e o método da desconstrução, e Michel Foucault, com as análises da produção de sujeitos normais, da sexualidade, apresentaram grande influência para a Teoria Queer. O termo queer, em inglês, além de ser usado como insulto a gays e lésbicas, referese ao que é estranho, excêntrico, diferente, incomum. A teoria que se apropria deste termo como forma de contestação surge em meados dos anos 1980, como parte dos Estudos Gays e Lésbicos de forma a levar ao limite o questionamento sobre a estabilidade de identidades e a heterossexualidade. A obra que marca este surgimento é de “Between Men”, de Eve Sedgwick. Neste livro, Sedgwick afirma que a sociedade está baseada na heterossexualidade compulsória (obrigação de ser heterossexual) e na heteronormatividade (todas as relações amorosas/sexuais com referência no casal reprodutivo heterossexual). No interior da teoria, há uma variedade de publicações. Em “A Epistemologia do Armário”, Sedgwick (2007) discute a dicotomia privado/público em relação a gays que “saem do armário”, o que torna público o fato, privado, de se ser gay. Em “O Parentesco é Sempre Tido como Heterossexual?”, Judith Butler ultrapassa o questionamento do binarismo heterossexual/homossexual, ela discute o caráter de legitimidade atribuído relações como o casamento, que é a forma legitimada de sexualidade, não apenas legitimada, mas é enquanto casamento que a sexualidade é pensada e é voltado para ele que as relações anormais se constroem. Sandra Corazza, em “Para uma Filosofia do Inferno na Educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins” (2002), propõe se pensar diabolicamente (a educação); o Diabo/Diabólico é aquele que aparta, que rompe com verdades, é oposição; é a diferença em si; é perigoso para a identidade e normalidade. Em “Ensaios Sobre Sexualidade: Ensaios sobre Sexualidade e Teoria Queer”, Guacira Lopes Louro discute em alguns textos a produção, as marcas dos corpos, os limites da sexualidade. São obras que contestam padrões e identidades, de forma a denunciar os processos sociais de naturalização, a imposição do “normal” como correto. Isto considerado, como fazer um campo normatizador como a educação ser Queer? A escola separa e institui os sujeitos. As práticas escolares servem para limitar, educar, tornar adulta a criança, pois esta é anormal. A escola limita qualquer probabilidade de ser diferente. Considerando-se a infância enquanto possibilidades de rupturas morais, a escola tem se configurado no espaço que molda a criança no Adulto-Bom, normalizado. A 43 atuação da escola é no sentido de disciplinar, produzir corpos dóceis, que se submetam à ordem social. Este princípio vem a tolher o que Nietzsche denomina de mais elevado grau do espírito humano: o espírito da criança. Este é o espírito criador e rebelde, que é capaz de subverter (PIINTO, 2001). Não são precisos muitos anos de escolarização para podar este espírito e enquadrar as crianças dentro de princípio disciplinar, como pude observar ao longo da graduação, nos estágios supervisionados. Os(as) alunos(as) da têm uma rotina bem marcada: têm hora para entrar e sair, hora para comer, fazer necessidades, hora para brincar. As crianças aprendem muito rápido que cada coisa tem sua hora, mas também que, como as atividades acontecem em espaços diferentes nas escola, aprendem que há a maneira certa de se chegar lá, as filas por ordem de tamanho, separadas entre meninos e meninas. As crianças aprendem a fazer todo dia a mesma coisa, uma trabalho repetitivo, monótono, fabril e com uma configuração espacial específica. Todo dia, uma atrás do outra, seja na sala de aula, seja na fila. Todas uniformizadas, padronizadas, escolarizadas, pedagogizadas. A Pedagogia tomada nesse sentido, retomo a minha pergunta logo acima: como este campo uniformizador poderia ser Queer? Acho que é por isso que se trata de uma pedagogia transgressora, uma pedagogia que saia dos seus limites, rompa com seus princípios e refaça-se a cada dia. Ao se pensar nesta Pedagogia, ela não comportaria as diferenças como toleradas, exóticas, externas, mas se fundamentaria no questionamento dos processos de produção de diferenças, a instabilidade e a precariedade das identidades. Ela se põe a refletir sobre a tolerância da curiosidade por nossa própria alteridade, desejos, expectativas, negações. Uma Pedagogia que não se conforme em enquadrar as mentes e os corpos através de maneiras pré-determinadas, que transgrida as formas dadas de se pensar e agir. Inicialmente, o trabalho seria pensar em, a infância se tratando de um espaço-tempo de transgressão moral, qual a possibilidade de uma educação que não as enquadrasse, possibilitasse o devir. A pergunta não deixou de ser inteiramente essa, pois essa, enquanto (futura) educadora é uma das minhas maiores preocupações. Talvez este trabalho tenha sido mais responder “o que é Teoria Queer”, mais acho que sua explicação é fundamental para que se perceba suas possibilidades. A transgressão não é uma tarefa fácil, nem tampouco a transgressão da pratica educativa. O que pretendo com este trabalho é, afinal, endossar o movimento contra uma visão hegemonista que tenta manter todos “dentro” da regra, e o faz ao acusar o que está “fora”. 44 Como Corazza ao dizer “sem limites precisos entre a vida e a morte” (CORAZZA, 2002, P.75), sem limites para ser ou não, estar ou não, pertencer ou não, poder ou não; abandonar esta lógica binária e reducionista. Uma escola/educação Queer? Uma escola/educação que não tente controlar a mente, o corpo; que não seja baseada em saberes instituídos de poder, que não limite como as crianças devem conduzir suas relações, suas sexualidades. É um terreno perigoso, já que não há controle, não há garantias. È um campo ainda em formação e nem é intuito desse trabalho ter uma proposição pontual, terminal. Consiste, antes, na especulação, indagação de maneiras não impositivas de se educar. Considero os questionamentos sobre a diferença e sua produção histórica, cultural, social de extrema importância. Se pretendemos que a escola não seja uma máquina de produzir corpos dóceis, suas bases precisam ser contestadas. A Teoria Queer dá base para se contestar qualquer forma bem comportada de se entender noções fixas de sujeitos, corpos, identidades. Acho necessária, mais que isso, urgente, uma educação que pare de tentar docilizar, controlar os corpos. As contribuições possíveis de praticas assim seriam inúmeras, já que o enquadramento impede as crianças de se expressar, expressar o seu devir. Não acho que seja simples ou fácil. Mas não quer dizer que seja necessariamente impossível. Considero estas questões importantes porque discordo de uma cultura tão descaradamente fascista, em que pessoas sejam submetidas o tempo todo em nome de uma normalidade superior. Considero que a anormalidade possa se configurar com expressão anti-hegemonista. Talvez seja uma visão inocente e/ou ideal, mas seguramente é honesta. 45 BIBLIOGRAFIA ABRAMOWICZ, A. A Menina Repetente. Campinas: Papirus, 1995. Coleção Magistério, Formação e Trabalho Pedagógico. BORRADORI, G. Filosofia em Tempos de Terror – Diálogos com Habermas e Derrida. Tadução: R. Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. BUTLER, J. “O Parentesco é Sempre Tido como Heterossexual?” Tradução: Valter Arcanjo da Ponte. Cadernos Pagu n.21. Campinas, 2003. BRITZMAN, D. “La Pedagogia Transgressora y sus Extrañas Técnicas”. In: JIMÉNEZ, R. M. M. (ed.). Sexualidades Transgressoras: una Antología de Estudios Queer. Barcelona: Içaria, 2002. pp.197-228. CORAZZA, S. M. Para uma Filosofia do Inferno na Educação: Nietzsche, Deleuze e Outros Malditos Afins. Belo Horizonte: Autêntico, 2002. COSTA, M. V.; SILVEIRA, R. H.; SOMMER, L. H. “Estudos Culturais, Educação e Pedagogia.” Revista Brasileira de Educação, n.23. Campinas, mai/ago. 2003, pp.36-61. DERRIDA, J. Gramatologia. 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