%HermesFileInfo:A-30:20050918: A30 VIDA& DOMINGO, 18 DE SETEMBRO DE 2005 ● O ESTADO DE S.PAULO RNA entra para a elite da genética Cientistas exploram versatilidade da molécula para interferir na expressão de genes, com aplicação em áreas como a biomedicina BIOTECNOLOGIA HertonEscobar Cansado de ser tratado apenas como um garoto de recados do DNA, o RNA está rapidamente reivindicando uma posição de destaqueentreaselitesdagenética moderna. De maneira que promete, literalmente, calar a boca do seu primo mais famoso. Com o respaldo de um número cada vez maior de trabalhos científicos, publicados ao longo dos últimos anos, o RNA vem se mostrando uma molécula muito mais versátil do que se imagina, crucial para a regulação do funcionamento do genoma. Em meio a isso, os cientistas descobriram uma tecnologia revolucionária, que permite silenciar ofuncionamento dos genes sem criar problemas com o DNA. A técnica é conhecida como RNA de interferência, ou RNAi, e já está sendo utilizada largamente na pesquisa de doenças em plantas e animais. Descobertaemcélulasdemamíferoshá apenas quatro anos, ela vem conquistando adeptos pelo mundo todo, inclusive no Brasil. Como o próprio nome diz, a estratégia é baseada em pequenas moléculas de RNA, sintetizadaspeloscientistas,queinterferem com as mensagens do RNA mensageiro (ou mRNA), enviadas pelos genes para comandar a síntese de proteínas no citoplasma das células. Comonumtrabalhodeespionagem molecular, as instruções enviadas pelo DNA são interceptadas e destruídas antes de chegarem aos ribossomos, as organelas responsáveis pela fabricação das proteínas – mecanismobiológicobásicode funcionamento dos seres vivos. Ou seja, o gene continua a funcionar, mas suas mensagens deixamser recebidas pelacélula. É como se o fio do telefone fosse cortado: o gene continua a falar de dentro do núcleo, mas a pessoa do outro lado da linha (o ribossomo) não escuta nada. Não se trata de uma invenção dos cientistas, mas da replicação de um processo que ocorre naturalmente no organismo. Em plantas, o RNAi é usado como sistema de defesa contra o ataque de vírus – organismos que, como regra geral, precisam introduzir seu RNA nas células do hospedeiro para se reproduzir. Em animais, incluindo seres humanos, estudos indicamqueainterferênciadeRNA é usada para regular a expressão dos genes, principalmente durante o desenvolvimento. “É um processo biológico básico, que estava na nossa cara, mas até agora ninguém tinha se dadoconta”,dizopesquisadorbrasileiro Guido Lenz, do Departamento de Biofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As possibilidades de aplicaçãocientíficasãoinúmeras,tanto na biomedicina quanto na agricultura. Especialmente como uma ferramenta de pesquisa básica no laboratório, mas tambémcomperspectivasfuturas de aplicação terapêutica. A melhor maneira de descobrir a funçãodeumgene,ironicamente,édesligá-loouretirá-lodogenoma, e ver o que acontece depoiscomoorganismoem conseqüência disso. A vantagem é que as técnicas de RNAi permitem fazer o silenciamento de forma muito maissimplesdoquenumaintervenção direta sobre o genoma. Tambémpoderia seruma alternativa mais prática – e menos perigosa – à terapia gênica: em vezde desligar ou substituir um gene defeituoso, você poderia simplesmente silenciá-lo. Basta saber a seqüência. “É uma técnica simples, que leva a resultados rápidos e não requer investimentos muito grandes; o que, para o nosso País, é essencial”, diz a cientista IsciaLopesCendes, que pesquisa RNAi há três anos no Departamento de Genética Médica da UniversidadeEstadualdeCampinas (Unicamp). O primeiro projeto foi com camundongos infectados pelo verme da esquistossomose, o Schistosoma mansoni. A equipe desenvolveu umamoléculadeRNAiespecífica para interferir com o mRNA deum gene essencialpara ome- ENTENDA A CIÊNCIA Rede de comunicação genética A síntese de proteínas é a função biológica mais importante dos seres vivos: são elas que executam os comandos dos genes, compondo e controlando todo o funcionamento do organismo Do DNA às proteínas Como o genoma controla a síntese de proteínas e, conseqüentemente, o funcionamento do organismo CÉLULA CROMOSSOMO GENE A DNA T DNA T T G C C A G C G A A C G G T C G C 2 Ele é composto por uma seqüência de pares de bases A, T, C e G. Os genes são pequenas seqüências dentro do genoma que guardam as instruções para a síntese de proteínas G RNA POLIMERASE NÚCLEO 1 O genoma é o conjunto de todo o DNA de um organismo, que fica empacotado na forma de cromossomos dentro do núcleo de cada célula do corpo PROTEÍNA RIBOSSOMO RNA MENSAGEIRO 3 As instruções dos genes são transcritas pela enzima RNA polimerase e enviadas para fora do núcleo na forma de RNA mensageiro (mRNA). No RNA, o T é substituído por um U C A A G C C U U G CA A G C C U RNA MENSAGEIRO 4 No citoplasma, a mensagem contida no RNA mensageiro é lida por uma organela chamada ribossomo, que transforma as instruções dos genes em proteínas A interferência Como funciona a estratégia de interferência de RNA, ou RNAi RISC RNAi C C U U G A A G C C A U G A C G G U A C A C G G U A C G G U G U G C A U G C C A G C C U G A G U U A C U C A GC C RNA MENSAGEIRO 1 Pequenas moléculas de RNA de dupla fita são introduzidas na célula. Elas são projetadas com uma seqüência específica, complementar ao RNA mensageiro que se deseja destruir 2 As moléculas de RNAi se acoplam a um complexo de enzimas chamado RISC, que joga uma das fitas fora e utiliza a outra para rastrear o mRNA que precisa ser interceptado 3 Localizado o alvo, a molécula de RNAi se acopla ao RNA mensageiro, que é cortado ao meio pelo RISC. Uma vez danificado, o resto do mRNA é automaticamente destruído pela célula CONCLUSÃO A mensagem enviada pelo gene é destruída antes de chegar ao ribossomo. Portanto, não há síntese de proteína e o gene deixa de ter efeito sobre o organismo ARTESTADO Y.HAYASHIZAKI e K. TSUKIMOTO/DIVULGAÇÃO Nos EUA, catálogo de RNAi para nós e os camundongos BIBLIOTECAS: Ninguémsabe ainda quantosgenes estãoinscritosno genomahumano.Aúltimaestimativagiraemtornode25 mil. Dequalquerforma,com aseqüênciacompletaemmãos, é possívelconstruir umamolécula específicadeRNAi contraqualquergenehumano. O mesmovalepara o camundongo,o principalmodelodepesquisamédicae genética de laboratório–que tambémjáteve seu genomacompletamenteseqüenciado. Pelomenosdoisgrandeslaboratóriosamericanosestão desenvolvendobibliotecas deRNAi para todosos genesconhecidos do homeme do camundongo.Um deles, oColdSpring Harbor Laboratory, doEstadodeNovaYork,játemquase60milseqüências deRNAi para sereshumanos e maisde17 mil paracamundongos. JáoBROAD Institute,deBoston, tem65mil seqüências,divididas entreas duas espécies. Issonãosignifica umamolécula deRNAi para cadagene.Como regra,sãocriadas váriasopções de interferência(ou clones)para cada gene.“Cadaclonetemumaseqüênciadiferente,projetadapara uma partediferente doRNA mensageiroque se desejaatingir”,explica DavidRoot,gerentedo Consórcio deRNAi do BROAD.É uma forma deaumentar aschances desucesso,casoalguma das seqüências nãofuncione ou nãoseja específica paraamolécula-alvo. Adiferença é queoRNAmensageiroé umamolécula muita longa, comatéalguns milhares debases. Jáasmoléculasde RNAi sãoextremamentepequenas,comalgo entre20 e 30paresde bases. ● H.E. ESPIONAGEM – Ilustração mostra o DNA transcrito no núcleo da célula e o RNA interceptado do lado de fora tabolismo do parasita. Injetada na corrente sanguínea dos camundongos, ela produziu uma reduçãomédiade27%nonúmero de vermes nos animais. No experimento atual, Iscia pretende silenciar genes dos próprios camundongos relacionadosadoençasdo sistemanervoso central, como a epilepsia. “Sou muito otimista quanto ao futuro dessa tecnologia, porque nas nossas mãos ela tem funcionadodemaneiraextraordinária”, conta. “Em alguns anos, não vai dar para imaginar um laboratório que não trabalhecomRNAi.”Quantoàaplicação em seres humanos, ela diz que não há estudos clínicos publicados – por enquanto. “Há questões de segurança que ainda estão longe se serem respondidas”, diz a cientista. “Aindahá um longo caminho até que isso possa ser aplicado emumpaciente”,concorda Gui- do Lenz, da UFRGS. Mas alguém precisa dar os primeiros passos. Recém-chegado de um pós-doutorado no Massachusetts General Hospital de Harvard, em Boston, ele já conseguiu silenciar em linhagens de células in vitro um gene que é essencial para o processo de divisãocelular.Agora, querinter- TécnicasdeRNAi são alternativamaisprática emenosperigosa àterapiagênica ferir com três genes relacionados a tumores que, quando expressos de maneira excessiva, impedem as células cancerosas de cometer suicídio (um mecanismo de defesa natural conhecido como ). A idéia é cortar a comunicação desses genes, de modoquenãoexerçamtantodomínio sobre as células. “Talvez não consigamos destruir o tumor, mas podemos torná-lo mais vulnerável.” PLANTAS A tecnologia também avança no estudo de plantas, área em que foi inicialmente descoberta. Como nos ensaios biomédicos,a idéiaéusar osilenciamento do RNA mensageiro para estudarafunçãodegenesespecíficos, relacionados, por exemplo, ao desenvolvimento vegetal ou vulnerabilidade a doenças. Uma das aplicações seria na produção de plantas transgênicas capazes de sintetizar suas próprias moléculas de RNAi contra alvos específicos. No caso do cacau brasileiro, os pesquisadores sabem que o fungo da vassoura-de-bruxa (principalpraga da cultura) utilizaumconjunto molecularcha- Em testes aqui, genes problemáticos são silenciados mado NESC para infectar a planta. “É um alvo claro”, diz o pesquisador Gonçalo Guimarães Pereira, chefe do Departamento de Genética e Evolução do Instituto de Biologia da Unicamp. “Sabendo a via metabólica desse composto, podemos usar a RNAi para nocautear essa via e tornar a planta menos sensível ao fungo”, explica. Os experimentosaindaestãonoestágioinicial, mas Pereira, assim comoseuscolegasdabiomedicina,consideraatecnologiaextremamente promissora. “Com todos os genomas de plantas que já temos no Brasil – como cana-de-açúcar e café – e com a técnica de RNAi, podemos fazer genômica funcional emlargaescala”,dizoengenheiro agrônomo Ivan de Godoy Maia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu. “Não é uma mágica, mas facilita muito.” ● No Instituto Ludwig de PesquisadoCâncer,emSãoPaulo, a cientista Anamaria Camargo está utilizando RNAi na pesquisa de um gene chamado Adam 23. Em um estudoinédito,aindanão publicado, ela mostrou que esse gene, quando desligado, está fortemente associado a um maior risco de metástase no câncer de mama. A análise foi feita com mais de cem amostras de tumor mamário, e os resultados apontam para o Adam 23 como um importante marcador genético de agressividade da doença. Normalmente, quando o tumor de mama é detectado precocemente, ainda pequeno, é possível removê-lo cirurgicamente, sem necessidade de quimio ou radioterapia.Em30%dessescasos,entretanto, o tumor entra em metástase, mesmo quando não parece agressivo. A culpa pode ser do Adam 23 – algoque,seconfirmado,permitiria um diagnóstico mais preciso da doença. A hipótese, segundo Anamaria, é que a forma desativada do gene favorece a ativação de uma proteína de adesão chamada integrina, o quepermitequeascélulastumorais que caem na corrente sanguínea consigam se fixar em outros tecidos com maior facilidade. Nessecaso,aRNAinãoteria aplicação terapêutica, pois o gene problemático já está desligado e não há mensagem para ser interceptada. Mas a tecnologia tem se mostrado importantíssima para a compreensão dos mecanismos biológicos envolvidos na doença. Anamaria produziu duas linhagens de células tumorais, uma delas “normal” e outra com o Adam 23 silenciado por meio de RNAi. Ambas foram injetadas em dois grupos de camundongos, que agora estão sob observação. “Vamos saber em alguns dias se os que receberam as células silenciadas sofrem maismetástase ou não”,conta a pesquisadora. “É uma técnicaqueéfácildemanipular e muito versátil. Está funcionando muito bem”, disse, sobre a RNAi. Um estudo maior, com mais de 400 amostras de tumor de mama, já está em andamento. CORAÇÃO Outro projeto brasileiro que está tirando proveito da interferênciadeRNAéodomédicoKleberFranchini,doDepartamento de Clínica Médica da Unicamp. Iniciado há cerca de um ano, ele busca combatera insuficiênciacardíaca, uma condição que é causada principalmente pelahipertensão arterial eatinge cerca de 500 mil pessoas por ano no País. Em camundongos, o silenciamento de genes relacionado à doença por meio de RNAi impediu o desenvolvimento da hipertrofia (coração grande) e da falênciacardíaca, características do problema. “A RNAi caiu como uma luva para nós”, comemora Franchini,queestudaadoença há sete anos. Antes, para fazer um estudo desse tipo, era preciso desenvolver animaistransgênicosou“nocautes”, com um ou mais genes desligados.Agora,oscientistas podem injetar as moléculas de RNAi diretamente na correntesanguínea,eomaterial é incorporado naturalmente pelas células. Uma das preocupações dos cientistas nesse tipo de aplicação é a da especificidade. Ou seja, garantir que as moléculas de RNAi só atuarão nas células de interesse terapêutico, sem interferir sobre outros tecidos. ● H.E.