ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Sobrecarga em familiares de portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial* Family burden in relatives of psychiatric patients in Psychosocial Attention Centers Elaine Tomasi 1, Janaina Ongaratto Rodrigues 2, Gracyelle Pólvora Feijó 3, Luiz Augusto Facchini 4, Roberto Xavier Piccini 5, Elaine Thumé 6, Ricardo Azevedo da Silva 7, Helen Gonçalves 8 Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Comportamento da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). [email protected] RESUMO O adoecimento psíquico desorganiza o funcionamento familiar, gerando Acadêmica do curso de Psicologia da UCPEL. [email protected] e investigar fatores associados, a Zarit Burden Interview e o questionário SRQ-20 1 2 Acadêmica do curso de Psicologia da UCPEL. [email protected] 3 uma sobrecarga importante. Com o objetivo de aferir níveis de sobrecarga em cuidadores de pacientes dos Centros de Apoio Psicossocial (Caps) de Pelotas (RS), foram aplicados a 874 cuidadores, em entrevistas domiciliares, após consentimento assinado. A pontuação média na escala de sobrecarga foi de 23,4 (desvio padrão = 15,6), significativamente maior entre as mulheres, entre cuidadores mais velhos com níveis mais baixos de escolaridade, mães que cuidam diariamente de usuários que Docente do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). [email protected] apresentavam grande dependência e distúrbios mais severos. A presença de transtornos Docente do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). [email protected] apoio aos familiares com vistas a minimizar seu sofrimento. 4 5 Docente da Escola de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da UFPEL. [email protected] mentais comuns foi de 41% e os classificados como possíveis casos tiveram maior média na sobrecarga do que os demais. Os serviços devem construir mecanismos de PALAVRAS-CHAVE: Sobrecarga familiar; Sofrimento psíquico; Reforma psiquiátrica. 6 ABSTRACT The psychic illness disorganizes the family function, creating an important family burden. In order to compare the burden levels in patient caregivers from the Psychosocial Support Centers (Caps, acronym in Portuguese) of Pelotas (RS), Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Comportamento da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). [email protected] and to investigate the associated factors, the Zarit Burden Interview and the SRQ- Docente do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). [email protected] = 15,6), significantly larger between women, older caregivers with lower education 7 8 2O questionnaire were applied to 874 caregivers, in home-made interviews, after signed consent. The average score in the burden scale was 23,4 (standard deviation levels, mothers who take care of highly dependent users, with more severe disorders. The presence of common mental disorders was of 41% and the ones classified as possible cases had a higher average of burden than the rest. The services must construct ways of support to the families with the goal of cutting their pain to the minimum. KEYWORDS: Family burden; Stress, Psychological; Psychiatric reform. * O estudo foi financiado pelo Edital MCT-CNPq/MS-SCTIE-DECIT/CT-Saúde 07/2005 – processo 554554/2005-4. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 159 160 Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial I N T R O D U ç ão Sobrecarga em familiares de de um paciente psiquiátrico pode gerar sobrecarga física e mental, pois se pressupõe que pessoas adultas possam ser independentes em vários sentidos (Tessler; Gamache, A reforma psiquiátrica se desenvolveu no Brasil a 2000 apud Bandeira; Calzavara; Varella, 2005). partir do final da década de 1970, priorizando a mudança A sobrecarga do(s) cuidador(es) está relacionada à do modelo assistencial. Em abril de 2001 foi aprovada a presença de problemas, dificuldades ou eventos adversos Lei da Reforma Psiquiátrica no Brasil, de número 10.216, que afetam a vida cotidiana dos familiares. Apesar de os que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas por- transtornos mentais se constituírem em agravos crônicos, tadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo de com frequência eles se agudizam de forma imprevista, atenção, que visa à reabilitação e à reintegração psicosso- impactando e produzindo alterações na organização cial do indivíduo adoecido mentalmente. familiar (Cohen, 1993 apud Rosa, 2003) A “sobrecarga As novas estratégias assistenciais incluem os Cen- da família” tem sido definida conforme dois aspectos: ob- tros de Atendimento Psicossocial (Caps) e os Núcleos de jetivo e subjetivo (Hoenig; Hamilton, 1966; Maurin; Atendimento Psicossocial (Naps). Esses serviços têm por Boyd, 1990; Martens; Addington, 2001; Lauber et objetivo oferecer atendimento à população de sua área al., 2003 apud Bandeira; Barroso, 2005). de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e A sobrecarga objetiva da família está associada às a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, consequências negativas, concretas e observáveis resultan- lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos tes da presença da doença mental. Como por exemplo, laços familiares e comunitários. As famílias são chamadas perturbações na rotina doméstica, na vida social e pro- a se envolver com o tratamento, conhecer o trabalho dos fissional dos familiares. É comum também haver perdas Caps, participar das reuniões e assembleias, levar dúvidas financeiras e aumento das tarefas diárias (relativas a hi- e sugestões, apoiar e participar de forma ativa no projeto giene, transporte, medicação, alimentação, lazer do PSP), terapêutico (Ministério da Saúde, 2004). perturbações nas relações familiares e maiores cuidados As consequências da nova política de atenção psicos- com comportamentos embaraçosos, agressões físicas e social vêm refletindo de forma direta sobre a família do verbais, condutas sexuais dos PSPs (Maurin; Boyd, 1990; portador de sofrimento psíquico (PSP), principalmente Tessler; Ganache, 2000; Bandeira; Barroso, 2005). os cuidadores. Em geral a família não possui as condições O aspecto subjetivo da sobrecarga da família se necessárias para apoiar as propostas de ressocialização/ refere à percepção ou avaliação pessoal do familiar cuida- reabilitação que esse novo modelo de atenção preconiza, dor sobre a situação, considerando sua reação emocional o que pode levar a um impacto negativo sobre si mesma. frente à demanda de ter se tornado o responsável maior É no âmbito familiar que se dá o embate com a realidade pelo PSP. (Maurin; Boyd, 1990; Onge; Lavoie, 1997 cotidiana do cuidado ao PSP. A experiência dos familiares apud Bandeira; Barroso, 2005). que cuidam de pacientes psiquiátricos vem sendo estudada No Brasil, ainda são escassos os estudos que avaliam em todo o mundo, notadamente a partir de 1970. Mau- quantitativamente a sobrecarga familiar (Koga; Fure- rin e Boyd (1990), Rose (1996) e Loukissa (1995) apud gato, 2002; Scazufca et al., 2002). Garrido e Menezes Bandeira, Calzavara e Varella (2005) vêm relatando que os (2004), por exemplo, avaliaram a sobrecarga subjetiva familiares que cuidam de pessoas com algum transtorno dos cuidadores de idosos com diagnóstico de demência. psíquico se sentem sobrecarregados. Tornar-se cuidador Os resultados mostraram que os cuidadores residiam com Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • Sobrecarga em familiares de portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial seus familiares e eram predominantemente mulheres, Todos os 1.151 usuários que estavam frequentando os CAPS filhas ou esposas. A média de pontuação na escala foi de foram incluídos no estudo, dos quais 1.013 foram entrevis- 32,4 (desvio padrão = 16,7) e as variáveis estatisticamente tados (88%). Nem todos os usuários tinham um cuidador associadas à sobrecarga subjetiva foram o grau de paren- responsável, e neste trabalho estudou-se uma amostra de 874 tesco do cuidador com o idoso (p = 0,011), sintomas cuidadores. Considerou-se cuidador aquela pessoa, familiar psiquiátricos do cuidador (p < 0,001) e o tempo em que ou não, que o usuário referia como responsável. o cuidador exercia o papel de cuidar (p = 0,001). Os dados foram coletados em entrevistas domici- Os instrumentos de medida validados e adaptados liares, de julho a outubro de 2006 por uma equipe de ao contexto brasileiro para a aferição da sobrecarga que 15 entrevistadores, acadêmicos de Psicologia, Serviço possam garantir a confiabilidade dos resultados e a com- Social (UCPEL) e Enfermagem (UFPEL), selecionados parabilidade com outros estudos também são exíguos. e capacitados para esse fim, após estudo piloto. A escala Zarit Burden Interview (ZBI), desenvolvida por A sobrecarga do cuidador, variável dependente, Zarit e Zarit (1987), com versão brasileira de Scazufca foi aferida através da versão brasileira da escala ZBI. O (2002), avalia a sobrecarga em cuidadores informais de instrumento possui 22 afirmativas que refletem como indivíduos com transtornos mentais ou com doenças as pessoas algumas vezes se sentem quando cuidam de físicas. Essa escala mede o quanto as atividades do cui- outra pessoa, correspondendo a áreas como saúde, vida dado têm impacto sobre a vida social, o bem-estar físico social e pessoal, situação financeira, bem estar emocional e emocional, e nas finanças do cuidador. O estudo de e relacionamento interpessoal, englobando aspectos Taub, Andreoli e Bertolucci (2004) avaliou a sobrecarga objetivos e subjetivos. Os limites de pontuação possíveis de cuidadores de indivíduos com demência, e reafirmou a para a ZBI são de 0 a 88 pontos. confiabilidade da versão brasileira do ZBI para a aferição da medida de sobrecarga em cuidadores informais. Além disso, também se analisou a sobrecarga do familiar através do Self-Report Questionnaire (SRQ-20). Diante dessas considerações, conhecer os níveis de Desenvolvido por Harding, Arango, e Baltazar (1980) e sobrecarga de cuidadores de PSPs que frequentam os validado no Brasil por Mari e Williams (1986), o instru- CAPS, através do ZBI, e identificar os principais fatores mento é constituído de 20 perguntas e permite fazer o ras- associados foram os objetivos deste estudo. Acredita-se treamento de distúrbios psiquiátricos menores (depressão, que os resultados possam ser úteis às equipes dos serviços ansiedade, distúrbios somatoformes e neurastenia). de saúde e aos gestores para a adequação de programas Foram consideradas como variáveis independentes e atividades que envolvam os cuidadores, em prol da o sexo (masculino/feminino), a idade em anos completos melhoria da qualidade da atenção. (14 a 24; 25 a 49; 50 a 64; 65 a 89), a situação conjugal (com companheiro(a)/sem companheiro(a), a renda familiar per capita em salários mínimos (menos de 0,5; Métodos 0,5 a 0,9; 1 a 1,99; 2 ou mais), a escolaridade (nenhum; 1 a 3; 4 a 7; 8 a 10; 11 e mais), o tipo de relação do cuidador com o usuário (familiar/não familiar), o pa- O estudo foi do tipo analítico transversal, de base insti- rentesco (mãe; irmão(ã); cônjuge; filho(a); outros), o tucional. Dos registros dos CAPS foi obtido o endereço dos tempo de convivência (sempre/nem sempre), cuidados usuários, ponto de partida para as entrevistas domiciliares. diários, grau de dependência (nenhuma; leve; severa), as Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 161 162 Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial Sobrecarga em familiares de internações psiquiátricas do usuário (nunca; só antes do eram analfabetos e apenas 22% ingressaram no Ensino CAPS; só depois do CAPS; antes e depois) e o tipo de Médio. Um terço dos cuidadores referiu estar trabalhan- sofrimento psíquico (transtornos orgânicos; do humor; do – 13% com emprego formal. Quase todos (96%) de personalidade; abuso de substâncias; esquizofrenia; eram familiares dos PSPs, com destaque para cônjuges neuroses; retardo mental; não-especificado). (32%), mães (26%) e filhos (19%). O questionário foi respondido pelo familiar/ O hábito de fumar foi citado por 27% dos en- cuidador após assinatura do termo de consentimento trevistados e 22% afirmou ser ex-fumante. Um quinto livre e esclarecido, com justificativa, objetivos e procedi- afirmou ter ingerido bebida alcoólica nos últimos 30 mentos utilizados na pesquisa, além da garantia de sigilo dias, dos quais 15% foram classificados como depen- dos participantes. O projeto de pesquisa foi aprovado dentes pelo teste CAGE. Um quarto (26%) afirmou ter pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade “problemas de nervos” e outros 14% já os tiveram, totali- Católica de Pelotas. zando 40%. Quase a metade referiu outros problemas de Os questionários foram codificados, tabulados e saúde (46%), os com maior prevalência são: hipertensão revisados. Duas digitações independentes foram reali- (29%), outros problemas do aparelho cardiocirculatório zadas no Programa EPI-INFO 6.04, cuja estrutura foi (14%) e problemas osteomusculares (13%). preparada para verificação de amplitude e consistência. Em média os domicílios eram constituídos por Após a edição final do banco de dados, este foi conver- 2,6 pessoas, sendo que 23% possuíam quatro ou mais tido para o pacote estatístico SPSS 13.0, no qual foram moradores. Uma renda mensal per capita de até meio feitas as análises. Para as análises da escala de sobrecar- salário mínimo foi informada por 31% das famílias. ga como variável dependente (quantitativa discreta), Aproximadamente 30% afirmou que se ocupa muito procedeu-se à comparação entre médias de acordo com do usuário do CAPS, fora os períodos de crise, e um as categorias das variáveis independentes, utilizando-se terço (34%) acredita que o sofrimento psíquico de seu o teste t para variáveis dicotômicas e ANOVA para va- familiar lhe trouxe algum problema de saúde. riáveis politômicas. Para as análises do SRQ-20 como A pontuação média na escala de sobrecarga foi de variável dependente (nominal dicotômica), procedeu-se 23,4 (desvio padrão = 15,6). Esta foi significativamente à comparação entre proporções, utilizando-se o teste do maior entre as mulheres (p = 0,000), os cuidadores com qui-quadrado. Na presença de variáveis independente maior idade (p = 0,005) e os com menor escolaridade (p ordinais, foi testada a tendência linear, e para todos os = 0,000). Não houve diferença na pontuação da escala testes o nível de significância considerado foi de 5%. de acordo com a situação conjugal e a renda familiar, mas houve uma tendência maior de sobrecarga nos entrevistados com menor poder aquisitivo (Tabela 1). Resultados De acordo com os dados demonstrados na Tabela 2, observam-se maiores níveis de sobrecarga com significância estatística para familiares (p = 0,001). Especifi- Do total de 874 entrevistados responsáveis pelos cando os cuidadores a sobrecarga maior é entre mães usuários, mais de dois terços eram mulheres (69%), a (p = 0,000), aqueles que referiram ter que cuidar do(a) média de idade foi de 48 anos (desvio padrão = 16,4) usuário(a) todos os dias (p = 0,000) e os responsáveis e metade destes tinha mais de 50 anos. Doze por cento cujos usuários apresentavam alto grau de dependência Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • Sobrecarga em familiares de portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial Tabela 1 – Distribuição dos familiares de usuários dos Caps e pontuação na escala de sobrecarga de acordo com características sociodemográficas. Pelotas (RS), 2006 n % Média na escala de sobrecarga (desvio padrão) Masculino 273 31,2 20,2 (14,5) Feminino 602 68,8 24,8 (15,9) 14 a 24 99 11,4 20,1 (13,7) 25 a 49 330 37,8 22,1 (14,0) 50 a 64 295 33,8 25,6 (16,2) 65 a 89 148 17 24,1 (18,4) Com companheiro(a) 549 62,8 22,9 (14,9) Sem companheiro(a) 325 37,2 24,3 (16,8) Menos de 0,5 262 31,3 24,6 (15,9) De 0,5 a 0,9 230 27,5 23,6 (14,8) De 1 a 1,99 208 25 23,8 (16,3) 2 ou mais 137 16,4 21,3 (15,8) Nenhum 117 13,8 29,5 (19,2) 1a3 137 16,1 22,3 (14,7) 4a7 324 38,2 24,6 (15,9) 8 a 10 160 18,8 20,7 (12,9) 11 e mais 111 13,1 20,0 (13,8) 875 100 23,4 (15,6) Variável Valor de p Sexo 0,000 Idade (anos completos) 0,005* Situação conjugal 0,189 Renda per capita (salários mínimos) 0,079* Escolaridade (anos completos) Total 0,000* -- * Valor de p para tendência linear. Obs: Informações ignoradas: idade (3), situação conjugal (1), renda (38) e escolaridade (26). (p = 0,000). O fato de ter residido sempre com o usu- usuário nunca havia internado, aumentando à medida ário implicou para esses cuidadores em um excesso de que as internações eram mais próximas (Figura 1). sobrecarga, embora a diferença entre os níveis seja um pouco maior do que 0,05. A presença de transtornos mentais comuns (SRQ20) foi de 41% e os 354 cuidadores classificados como Ao analisar a sobrecarga dos cuidadores de acordo possíveis casos pelo teste tiveram maior média na pontu- com o histórico de internações psiquiátricas, observou-se ação de sobrecarga (31,6; desvio padrão = 16,9) do que que a menor sobrecarga foi registrada para familiares cujo os cuidadores que não foram classificados como possíveis Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 163 164 Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial Sobrecarga em familiares de Tabela 2 – Distribuição dos familiares de usuários dos Caps e pontuação na escala de sobrecarga de acordo com características dos cuidados. Pelotas (RS), 2006 n % Média na escala de sobrecarga (desvio padrão) 840 96,2 23,7 (15,7) 33 3,8 14,1 (8,6) Mãe 215 25,5 28,4 (18,2) Irmão(ã) 112 13,3 22,3 (12,6) Cônjuge 272 32,3 22,6 (14,9) Filho(a) 157 18,6 20,2 (12,8) Outros 86 10,2 23,9 (17,9) Sim 492 56,4 24,2 (15,9) Não 381 43,6 22,3 (15,1) Sim 509 58,2 26,4 (16,1) Não 365 41,8 19,2 (13,9) Nenhuma 311 35,5 17,5 (13,4) Leve 284 32,5 24,0 (15,7) Severa 280 32 29,4 (15,4) Total 875 100 23,4 (15,6) Variável Valor de p Tipos de relação Familiar Não familiar 0,001 Tipo de parentesco 0,000 Sempre morou com o usuário 0,078 Todos os dias têm que cuidar do usuário 0,000 Dependência do usuário 0,000* -- * Valor de p para tendência linear. casos (17,8; desvio padrão = 11,7) (Figura 3). A dife- não referiram cuidadores, o que pode estar associado rença entre essas médias foi estatisticamente significativa à menor severidade da doença e, consequente, maior (13,8 pontos; IC95% = 11,7-15,9; p = 0,000). autonomia do usuário. Essa situação tenderia a superestimar a sobrecarga, pois apenas os mais graves estariam sendo cuidados. Entretanto, comparando-se os níveis de Discussão sobrecarga de acordo com a modalidade do atendimento (intensivo, semi-intensivo e não-intensivo), não foram observadas diferenças significativas. Uma vez identificado um cuidador para o usuário, Nessa amostra, com cuidadores de PSPs frequentado- obteve-se uma excelente taxa de sucesso dado o reduzido res de CAPS, predominaram os da própria família e do sexo número de recusas (0,6%). Entretanto, 139 usuários feminino, similar a outros estudos, como os com cuidadores Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • Sobrecarga em familiares de portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial Figura 1 – Sobrecarga dos familiares de acordo com o tipo de transtorno. Pelotas (RS), 2006. Esquizofrenia 26,2 Retardo mental 26,0 Não especificado 25,2 Abuso de susbstâncias 24,8 Personalidade 24,4 Todos 23,4 Neuroses 21,6 Humor 20,7 0 5 10 15 20 25 30 Figura 2 – Proporção de usuários com internação e sobrecarga familiar de acordo com o período de internação em relação ao Caps. Pelotas (RS), 2006. 60,0% 30 50,0% 25 40,0% 20 30,0% 15 20,0% 10 10,0% 5 0,0% Nunca Só antes Internação Só depois Antes e depois 0 Sobrecarga (média) de pacientes com Alzheimer (Lemos et al., 2006). O fato de Stein, 2004), maior prevalência de tabagismo (Szwar- que a maioria dos entrevistados tinha baixa escolaridade e cwald et al., 2004; Ministério da Saúde, 2004), e maior renda familiar pode ser explicado pela vinculação dos CAPS prevalência de transtornos mentais comuns (Lima et al., ao Sistema Único de Saúde, o que denota que o preceito 1999; Dias da Costa et al., 2002). da equidade está sendo contemplado. Comparados com Um dos principais resultados do estudo diz respeito a população geral, quem cuida de PSPs apresentava maior aos altos níveis de sobrecarga, com importantes variações dependência de bebida alcoólica (Almeida; Coutinho, de acordo com características sociodemográficas, com o 1993; Moreira et al., 1996; Nunes et al., 1998; Primo; tipo de transtorno e com aspectos do cuidado. As mães, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 165 Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial Sobrecarga em familiares de Figura 3 – Médias (desvio padrão) na escala de sobrecarga de acordo com a presença de transtornos mentais comuns (SRQ-20) entre cuidadores de usuários de Caps. Pelotas (RS), 2006. Média +- 2 desvios padrão - Soma do escore de sobrecarga 166 60 40 31,6 17,85 20 0 Negativo Positivo SRQ agrupado - Familiar a intensidade do cuidado, a grande dependência em psiquiátrica à “devolução” às famílias, como se estas atividades da vida diária, a co-habitação e o histórico fossem, indistintamente, capazes de resolver a problemá- de internações psiquiátricas foram os principais fatores tica da vida cotidiana acrescida das dificuldades geradas associados aos maiores níveis de sobrecarga. Esses acha- pela convivência, manutenção e cuidado com os PSPs dos são consistentes com os de Barroso et al., (2007), (Gonçalves; Sena, 2000). que investigaram sobrecarga em uma população similar à deste estudo. Frente a essa complexidade, as equipes de saúde mental precisam estar atentas e comprometidas, bus- Nessa amostra, a aferição da sobrecarga, através cando construir dispositivos de apoio e mecanismos da ZBI, foi corroborada com a aferição dos transtornos que facilitem a participação e a integração da família. mentais comuns, através do SRQ-20, com alto grau de Acredita-se que essas reflexões possam subsidiar a correlação, ou seja, ambos os instrumentos revelaram-se reorientação das políticas de atenção a quem assume, fidedignos ao detectar sintomatologia de transtornos juntamente com os CAPS, a responsabilidade pelos em pessoas com maior sobrecarga e captar maiores cuidados cotidianos desses usuários. níveis de sobrecarga em entrevistados com transtornos mentais comuns. Observa-se que, no âmbito familiar, os cuidados R eferências aos usuários estão sendo realizados sem o devido conhecimento das reais necessidades e condições da família, em termos materiais, psicossociais, de saúde e qualidade de vida, aspectos estes profundamente interligados. Se não é mais aceitável estigmatizar, excluir e recluir os PSPs, também não se pode reduzir a reforma Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 159-167, jan./mar. 2010 Almeida, L.M.; Coutinho, E. da S.F. Prevalence of the consumption of alcoholic beverages and of alcoholism in an urban region of Brazil. Revista de Saúde Pública, v. 27, n. 1, p. 23-29, 1993. Tomasi, E.; Rodrigues, J.O.; Feijó, G.P.; Facchini, L.A.; Piccini, R.X.; Thumé, E.; Silva, R.A.; Gonçalves, H. • Sobrecarga em familiares de portadores de sofrimento psíquico que frequentam Centros de Atenção Psicossocial Amarante, P. Novos sujeitos, novos direitos: O debate sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública. 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