Análise de obras literárias
são bernardo
graciliano ramos
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SumÁrio
1.Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7
2.Estilo literário da época............................................................ 9
3.O AUTOR.................................................................................................. 12
4.
A OBRA..................................................................................................... 15
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5.Exercícios............................................................................................ 38
são bernardo
graciliano ramos
São Bernardo
1. Contexto social e HISTÓRICO
Na história do Brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 e
1930, aproximadamente, é chamado de República Velha, “a política do café com
leite”, porque ocupava a Presidência da República ora um governo mineiro,
ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à
pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre
a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao
Estado o papel de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das
oscilações do mercado. Exemplo típico dessa política foi o chamado Acordo de
Taubaté, em 1906, segundo o qual São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais se
comprometiam a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para
garantir o nível dos preços.
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A sociedade brasileira, no início do século XX, sofreu transformações graças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região
Centro-Sul do país. Entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de
industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos
foi marginalizada, deslocando-se para a periferia e para os morros; a cultura
canavieira do Nordeste entrou em declínio, pois ela não tinha como competir
com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.
No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam
no Brasil: de um lado, a urbanização da região Centro-Sul, com sua consequente industrialização, e, de outro, o atraso das regiões Norte e Nordeste. E
um terceiro fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias
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Graciliano Ramos
rurais, com seus arranjos políticos, não representavam os novos estratos
socioeconômicos. O resultado disso foi o surgimento de um quadro caótico,
que teve seu término com a chamada Revolução de 1930 e o Estado Novo,
de Getúlio Vargas.
Na Bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no
Ceará, o fenômeno do jagunço e a política do padre Cícero; os movimentos
operários, em São Paulo; a criação do Partido Comunista; o tenentismo,
que teve seu ápice na Coluna Prestes, combatida por Arthur Bernardes e
Washington Luís. É claro que esses conflitos ocorreram em tempos e locais
diversos, entre 1894 e 1930, parecendo exprimir, às vezes, problemas bem
localizados. Entretanto, no conjunto, revelavam a realidade de um país que
se desenvolvia à custa de graves desequilíbrios. A queda da Bolsa de Nova
York em 1929 e o movimento tenentista colocaram fim à República Velha,
com a vitória na chamada Revolução de 1930, dando início ao chamado
Estado Novo ou Era Vargas.
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São Bernardo
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2.Estilo literário da época
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Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a todas
essas transformações sociais e históricas listadas anteriormente, porque, somados a elas, eventos importantes na esfera artística vinham acontecendo, como a
publicação de Os sertões, de Euclides da Cunha, Triste fim de Policarpo Quaresma,
de Lima Barreto, e Canaã, de Graça Aranha, os quais chamaram a atenção para
aspectos da realidade do país, até então não tematizados pela literatura brasileira, ao menos da forma como o fizeram seus autores nessas três publicações.
Vivia-se também, na Europa, a ebulição artística internacional provocada pelos
movimentos vanguardistas, que consolidaram em sua esteira as teorias futurista,
surrealista, cubista e dadaísta. No âmbito da língua portuguesa, surgia oficialmente o Modernismo português em 1915. Dois anos depois, no Brasil, Anita
Malfatti realizava sua famosa exposição de telas inspiradas no expressionismo
alemão, o que provocou a irada reação de Monteiro Lobato no seu famoso artigo
Paranoia ou mistificação?
A soma de todos esses fatos – sociais e históricos – acabou por gerar determinadas reações e condições no seio da incipiente intelectualidade brasileira, no
sentido de que, a partir daí, era necessário que fossem dados alguns passos para
qualquer direção, desde que essa direção mudasse os rumos seguidos até então,
tanto pelo pensamento sociológico nacional quanto pela arte brasileira.
Essas reações aconteceram de tal forma que o Modernismo brasileiro, independentemente do rótulo pelo qual viesse a ser nomeado, estava fadado a ser
aquilo em que se transformou naturalmente: maturidade e emancipação da arte
brasileira. Isso se deu principalmente por ter sido o Modernismo um olhar novo
e perscrutador sobre a realidade social do país, a qual começou a ser artística e
detidamente observada, seja com benevolência por alguns, seja com rigor crítico
por outros. Essa realidade passou, então, a ser considerada com a importância
que de fato tem: essência do país.
Foi esse olhar, essa análise que gerou a rebeldia contra os padrões da
arte europeia, a qual, em alta porcentagem, ainda tinha seus traços facilmente
identificáveis na arte brasileira. Esse olhar fez com que os modernistas da primeira hora tentassem identificar a verdadeira cultura nacional, para fazer dela a
autêntica matéria-prima da sociologia e da arte nacionais, e, no passo seguinte,
propusessem e praticassem uma arte de ruptura com os modelos anteriores.
Foi esse novo olhar que nos apresentou o homem sertanejo da caatinga
e do norte de Minas com sua particular visão de mundo; o dos canaviais e dos
engenhos; o da briga pelo cacau; o caboclo dos cafezais e o das “rocinhas” do
interior paulista; os imigrantes italianos de São Paulo; o vivente dos pampas,
no seu trabalho de campeador ou às voltas com as lutas fronteiriças; o homem
da periferia das grandes cidades. Além disso, mostrou-nos, ainda que ficcionalmente, nossas lutas históricas regionais, o sentimento nacionalista e, sobretudo,
o jeito de ser brasileiro de cada um, na fala peculiar, nas tradições e nas práticas
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cotidianas que chamamos de regionalismo. E esse novo olhar nos revelou, entranhados nas frinchas e poros desses temas, a nossa sensibilidade e os nossos
sentimentos, seja como indivíduos, seja como coletividade.
É esse vastíssimo painel que resultou da renovação da arte brasileira,
painel que se constitui no grande legado modernista ao país, a ponto de esse
movimento ser considerado, legitimamente, como a independência da arte
do Brasil.
2ª GERAÇÃO DO MODERNISMO (1930-1945)
Na literatura, o período entre 1930 e 1945 caracteriza-se pela tendência
do posicionamento ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros.
A rebeldia estética da primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida, sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. A
Revolução de 1930, o declínio e a dissolução das estruturas sociais e econômicas do Nordeste e a imigração nas estradas do Sul apareciam nos novos
estilos de ficção, caracterizada pela observação real e direta dos fatos. Euclides
da Cunha e Lima Barreto, do Pré-Modernismo, não eram mais exceções, mas
sim os primeiros a abordar o elemento regional/social e, como tal, ganharam
sucessores. As elites urbanas e seus intelectuais analisavam e procuravam
compreender o país nos seus novos aspectos. O campo de visão em que o
artista atuaria se ampliava extremamente e passava a lhe oferecer uma gama
jamais vista quanto à variedade temática, atitude filosófica, política, formal
e psicológica, sejam individuais ou coletivas, resultando ensaio, teatro, prosa
e poesia em quantidade e variedade.
Diante de tal complexidade, a prosa passou a ser o gênero mais cultivado, principalmente na vertente regionalista, com produções de Graciliano
Ramos, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Américo de
Almeida e José Lins do Rego.
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Além do aspecto regional, usava-se o texto também para analisar ou
denunciar injustiças sociais, dificuldades com o trabalho, com o meio, com
o abandono do cidadão por parte do Estado, resumindo tudo na falta de
perspectiva de uma vida minimamente decente para o cidadão anônimo,
modelo, aliás, ao qual se enquadra a temática de Graciliano Ramos, autor de
São Bernardo.
A preocupação com essas realidades foi tão intensa nesses autores que
a linguagem literária evoluiu muito pouco, principalmente se considerarmos as propostas inovadoras da geração modernista de 1922, isso porque
preocupações com a linguagem foram relegadas a segundo plano, haja vista
que a essência do projeto artístico desses autores centrava-se nos planos
social e histórico.
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Graciliano Ramos
3.O AUTOR
Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, interior de Alagoas, em 27 de outubro de 1892. O mais velho dos 16 filhos de Sebastião Ramos e Maria Amélia Ramos,
passou a infância nas cidades alagoanas de Buíque, Viçosa e Palmeira dos Índios.
Assim como o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999),
Graciliano Ramos não possuía diploma universitário. Concluiu os seus estudos
secundários em Maceió, mudando-se, logo em seguida, para o Rio de Janeiro,
onde trabalhou em algumas redações de jornais, para depois voltar a Alagoas,
fixando residência em Palmeira dos Índios, onde trabalhou no comércio do pai.
Eleito prefeito da pequena cidade, cumpriu por dois anos o mandato, renunciando
a ele por incompatibilidade política com o governo estadual.
Casou-se com Maria Augusta Ramos, com quem teve quatro filhos.
Ao enviuvar, após sete anos de casamento, contraiu segundas núpcias com
Heloísa de Medeiros.
De volta a Maceió, foi perseguido, preso e levado para Ilha Grande, no
Rio de Janeiro. Acusação: comunista. Nem ao menos filiado a algum partido de
esquerda ele era. Dentro do presídio, demonstrou toda a sua revolta contra a
ditadura do governo de Getúlio Vargas, escrevendo o romance autobiográfico
Memórias do cárcere, interpretado no cinema pelo ator Carlos Vereza. Libertado,
filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro.
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São Bernardo
Foi eleito, em 1951, presidente da Associação Brasileira de Escritores, sendo
reeleito no ano seguinte.
Interessante foi a sua inclusão na literatura: descoberto pelo poeta e editor
Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), que lera os relatórios (nada convencionais) que Graciliano enviava ao governo de Alagoas quando prefeito de Palmeira
dos Índios, não teve dúvidas de que ali estaria escondido um grande escritor.
Indagado por Schmidt se não havia nada realmente literário engavetado, Graciliano mostrou-lhe o romance Caetés, obra de nítida concepção introspectiva.
Surgia assim ao público um dos maiores prosadores da literatura brasileira.
Certa vez, o seu amigo José Lins do Rego (1901-1957) descreveu o primeiro encontro: O tabelião de Mata Grande nos havia dito: os senhores vão encontrar
em Palmeira dos Índios o homem que sabe mais mitologia em todo o sertão. O homem
que sabia mitologia entendia também de Balzac, de Flaubert, de literatura, como se
vivesse disto, sabia francês, inglês, falava italiano (O Estado de S. Paulo, Dimensão
de Graciliano, 24/4/05).
Apesar de viver em precárias condições financeiras (foi inspetor federal
de ensino), viajou pelo exterior, conhecendo os países comunistas, resultando
na obra Viagem.
Segundo Jorge Amado (1912-2001), ainda no artigo do Estadão, Graciliano
Ramos “parecia seco e difícil, diziam-no pessimista; era terno e solidário, acreditava no homem e no futuro”.
Fumante inveterado, morreu vitimado pelo câncer em 20 de março de 1953,
na cidade do Rio de Janeiro.
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cronologia daS Obras
1933 – Caetés (romance)
1934 – São Bernardo (romance)
1936 – Angústia (romance)
1938 – Vidas secas (novela)
1944 – Dois dedos (literatura infantil)
1944 – Histórias incompletas (literatura infantil)
1945 – Infância (memórias)
1947 – Insônia (contos)
1953 – Memórias do cárcere (memórias)
1954 – Viagem (relatos)
1962 – Alexandre e outros heróis (contos, contendo histórias de Alexandre;
A Terra dos meninos pelados e Pequena história da República)
1962 – Linhas tortas (crônicas)
1962 – Viventes das Alagoas (memórias)
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Graciliano Ramos
Podemos encontrar, basicamente, no universo literário de Graciliano
Ramos três tipos de narrativas em prosa: a de cunho sociopolítico (Vidas secas),
a de cunho memorialístico (Memórias do cárcere; Infância e Viventes das Alagoas)
e a de cunho psicológico (Caetés; São Bernardo e Angústia).
Quanto a esses três últimos romances (em que a preocupação sociopolítica também se faz presente), escritos antes de sua obra mais popular, Vidas
secas, Graciliano Ramos adotou o foco narrativo em 1ª pessoa, excluindo-se,
dessa forma, da responsabilidade sobre os seus personagens-narradores (João
Valério, Paulo Honório e Luís da Silva, respectivamente), conferindo a eles um
caráter introspectivo intenso, cuja técnica é a mesma adotada por Machado de
Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.
E sobre essa questão de se explorar a consciência humana, escreveu Graciliano Ramos na crônica Os amigos de Machado de Assis, em seu livro Linhas tortas,
o seguinte: Não é razoável, porém, esperarmos que o leitor comum, que se agita com
excessos literários de meado do século XIX, entenda e sinta Machado de Assis, homem
frio, medido, explorador de consciências. Em geral não gostamos de que nos explorem
a consciência – e, ainda quando sabemos que a exploração é bem feita, necessitamos
algum esforço para nos habituarmos a ela.
Quanto à linguagem empregada por Graciliano Ramos, encontramos
um autor conciso, direto, seco e de poucos adjetivos, não dando espaço para o
sentimentalismo (daí a admiração que João Cabral de Melo Neto nutria por ele),
característica esta muito comum, por exemplo, em Jorge Amado (que acabou
confessando: sou apenas um baiano romântico e sensual).
Pertencente à geração de 1930 do Modernismo brasileiro, em que,
com exceção dos gaúchos Érico Veríssimo (1905-1975) e Dyonélio Machado
(1894-1984), destacaram-se os nordestinos que se compromissaram com uma
literatura regional, porém unida às questões universais, como é exemplo o
romance São Bernardo.
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São Bernardo
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4.A OBRA
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Graciliano Ramos
São Bernardo segue a linha introspectiva iniciada no Brasil por Machado
de Assis. Dos romances machadianos, Dom Casmurro é o que mais se parece
com a obra de Graciliano Ramos, ou melhor, é a obra do autor alagoano que se
aproxima da de Machado de Assis. Mesmo que em Dom Casmurro o possível
adultério seja algo irrelevante, não podemos deixar de citá-lo. Assim como Bentinho, Paulo Honório escreve uma autobiografia (uma espécie de confissão ou
de uma autoanálise) para tentar compreender a sua existência e a conturbada
relação com sua mulher, Madalena, que, por vezes, lembra a própria Capitu,
mulher de Bentinho.
Enquanto Bentinho tem a certeza de que foi traído pela sua mulher e
pelo seu melhor amigo, Escobar, Paulo Honório desconfia da infidelidade de
Madalena, e não apenas com um, mas com todos que o rodeiam: o jornalista, o
advogado, o juiz, o mestre-escola, até mesmo com o padre (“já que burro amarrado também pasta”) e com os caboclos da fazenda São Bernardo. Não podemos
confirmar o adultério dessas duas mulheres, pois os seus respectivos maridos
são homens obcecados pela traição, e mais, procuram fazer delas a sua posse
e não conseguem. Até mesmo com relação aos filhos, Ezequiel (de Capitu) e o
menino feio como os pecados (de Madalena), a dúvida da paternidade atormenta
Bentinho e Paulo Honório.
Para Paulo Honório, escrever era uma forma de confissão; confessar que não
sonhava em ser o explorador feroz em que me transformei ou que estraguei a minha vida,
estraguei-a estupidamente ou ainda que a culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta
vida agreste, que meu deu uma alma agreste.
Sabemos também que tanto Bentinho quanto Paulo Honório não eram
escritores, por isso não tinham nenhuma intimidade com o processo narrativo,
mas ambos (claro, levados pelas mãos hábeis de dois mestres de nossa literatura)
realizam uma proeza e tanto: constroem histórias de dar inveja a qualquer escritor
experiente. Mas há uma grande diferença entre eles, Bentinho e Paulo Honório:
a educação recebida. Bentinho era filho da rica burguesia carioca, educado nos
melhores colégios, ex-seminarista, formado em direito, portanto apto a escrever
de uma maneira correta. Já Paulo Honório, sem conhecer pai e mãe, cresceu como
guia de cego e vendia cocadas em ruas de vilas e lugarejos nordestinos; aprendeu
a ler somente aos dezoito anos e dentro da cadeia, onde permanecera por mais
de três anos. Como, então, um homem sem nenhuma escolaridade que seja,
bruto e, como ele próprio afirmou, de alma agreste, poderia escrever de maneira
tão brilhante quanto à que aparece em São Bernardo? Claro que todos sabemos
que foi Graciliano Ramos quem o escreveu, no entanto tal nível de linguagem é
incoerente com o narrador.
Nem mesmo José de Alencar, um dos expoentes do Romantismo, teve tanta
preocupação com a linguagem quanto o “escritor” e fazendeiro Paulo Honório.
Não podemos nos esquecer de que, quando surgem personagens que de
uma hora para outra viram escritores (Brás Cubas, Bentinho, Paulo Honório), as
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São Bernardo
referências que fazem sobre a própria história são comuns, além de uma “conversa” entre autor e leitor. A isso damos o nome de metalinguagem. Observe a
seguir abaixo um pouco do conhecimento gramatical de Paulo Honório:
– Muito prazer. Eu já conhecia a senhora de nome. E de vista. Mas não sabia que
era um pessoa só. Encontramo-nos há dias.
– Não há pressa. Talvez daqui a um ano... Eu preciso preparar-me.
– Ofereci-lhe um quarto no lado esquerdo da casa, por detrás do escritório, com
janela para o muro da igreja, vermelho.
Se eu tivesse uma prova de que Madalena era inocente, dar-lhe-ia uma vida como
ela nem imaginava. Comprar-lhe-ia vestidos que nunca mais se acabariam, chapéus caros,
dúzias de meias de seda.
Após casar-se com a professora Madalena, mulher instruída, Paulo Honório
tem a preocupação em afinar a minha sintaxe pela dela, mas não consegui evitar numerosos solecismos. Solecismos são erros gramaticais, coisa que não encontramos
muito na narrativa de Paulo Honório.
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ENREDO
Paulo Honório, homem rude e insensível, resolve contar em livro a sua
história desde menino, guia de cego, até se tornar o “poderoso” proprietário
da fazenda São Bernardo. Sem sentir remorso por conquistar tudo de maneira
inescrupulosa, Paulo Honório tem como único sentimento a propriedade. Às
vezes escapa-lhe um certo sentimento de gratidão pela velha Margarida, que o
havia criado, e pelo seu “fiel cão”, Casimiro Lopes, espécie de capataz em São
Bernardo. Não tem medo de nada, mas dormia com um olho fechado e outro
aberto, sempre desconfiado de uma possível emboscada. Um dia resolve se casar,
precisava de um filho para herdar sua fazenda. Conhece Madalena, professora
primária, criada pela tia Glória, que viveu a trabalhar para sustentar a sobrinha
e dar-lhe estudo.
Paulo Honório convence Madalena de que ambos estavam fazendo bom
negócio. Casam-se. Madalena, mulher instruída, não aceita a submissão que o
marido tenta impor-lhe. Revolta-se com o tratamento tirânico que o marido dispensa aos seus empregados; tem, segundo o marido, idéias comunistas, fazendo
com que o casal viva em constante conflito. Nasce-lhes o filho. Mas o menino
não tem a simpatia de ninguém, a não ser de Casimiro Lopes, que cuidava dele
com toda dedicação. Paulo Honório passa a duvidar da fidelidade da mulher,
desconfiando de todos: do advogado, do jornalista, do mestre-escola, do juiz
de direito, até mesmo do padre e dos caboclos empregados de São Bernardo.
Chega a duvidar também da sua paternidade em relação ao menino. A situação
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Graciliano Ramos
fica de tal maneira insuportável que Madalena toma a pior saída: o suicídio.
Dois anos depois de sua morte, Paulo Honório, solitário e decadente (tanto no
aspecto econômico quanto no pessoal), resolve escrever um livro como forma de
confessar o que fez e quem foi ele. Dessa forma, decide passar a sua vida a limpo,
escrevendo, em conjunto com alguns de seus conhecidos, um livro:
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte
moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe;
prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei
Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano,
introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria
o meu nome na capa.
Não dando certo a feitura do livro em equipe, já que não se entendem
(João Nogueira queria o romance na língua de Camões, repleta de hipérbatos;
padre Silvestre envolveu-se na revolução comunista; a linguagem acadêmica
de Azevedo Gondim também não o agradou), Paulo Honório resolve assumir
sozinho a empreitada, mesmo não tendo nenhuma experiência com a arte da
narrativa, muito menos com as palavras, visto que aprendera a ler somente aos
dezoito anos de idade.
No terceiro capítulo inicia propriamente a sua autobiografia. Sem conhecer
pai nem mãe, tampouco a sua verdadeira idade, não se sente totalmente frustrado
por não possuir parentes:
Sou, pois, o iniciador de uma família, o que, se por um lado me causa alguma
decepção, por outro lado me livra da maçada de suportar parentes pobres, indivíduos
que de ordinário escorregam com uma sem-vergonheza da peste na intimidade dos que
vão trepando.
Em menino, guarda a lembrança de duas pessoas: do cego de quem era
o guia e que lhe puxava a orelha e da velha doceira Margarida, que o criara.
Daquele não tem mais notícias; mas Margarida vive em São Bernardo, sob a
sua proteção.
Aos dezoito anos, o primeiro delito de Paulo Honório: engraça-se com uma
“cabritinha sarará” de nome Germana, que, por sua vez, se assanha para o lado
de João Fagundes. Resultado: Paulo Honório dá uns cocorotes nela e esfaqueia o
rival. É levado para a cadeia, onde apanha com cipó de boi, e por lá permanece
por três anos, nove meses e quinze dias. E é na cadeia que aprende a ler com o
João Sapateiro, que tinha uma bíblia, dos protestantes.
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Livre, esquece a Germana e passa a pensar em só ganhar dinheiro. Tira título
de eleitor, pede dinheiro emprestado ao Pereira, agiota e chefe político, quita a dívida, pede novo empréstimo (com juros mais baixos), estuda aritmética para não ser
roubado além da conveniência, ao contrário de Fabiano (personagem de Vidas secas),
que sabia contar só até cinco e tinha a certeza absoluta de que todos o enganavam.
Já Paulo Honório é impiedoso com quem tenta “passá-lo para trás”:
– Que justiça! Não há justiça nem há religião. O que há é que o senhor vai espichar aqui trinta contos e mais os juros de seis meses. Ou paga ou eu mando sangrá-lo
devagarinho.
Estabelece-se em Viçosa (cidade alagoana onde Graciliano Ramos passou
parte de sua infância), planejando ser o proprietário da fazenda São Bernardo.
Dela fora empregado na época em que era dono o velho Salustiano Padilha,
que gastara todo o dinheiro para ver o filho doutor. Morreu sem ver na família o título que ambicionava. O filho, Luís Padilha, leva uma vida desregrada.
Paulo Honório, percebendo a fragilidade do moço, incentiva-o a plantar em
São Bernardo, emprestando-lhe dinheiro para a compra das máquinas, já sabendo que Luís Padilha não teria como quitar a dívida. Luís Padilha, ao invés
de plantar, compra uma tipografia e funda o Correio de Viçosa, extinto em seu
quarto número.
Endividado, Padilha passa a evitar Paulo Honório. Com o vencimento da
última letra (nota promissória), Paulo Honório o intima a vender-lhe São Bernardo. Padilha ainda tenta entregar-lhe a tipografia como pagamento da letra
vencida. Paulo Honório não aceita e, após duas horas discutindo o valor que
pagaria pelas terras da fazenda, finalmente, por 45 cinco contos de réis, torna-se
proprietário de São Bernardo:
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Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite.
No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida,
os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos e quinhentos e cinquenta mil-réis.
Não tive remorsos.
Nova batalha de Paulo Honório: recuperar as terras que o fazendeiro de
Bom-Sucesso, Mendonça, usurpara esticando as suas cercas na época em que
o proprietário de S. Bernardo era o velho Salustiano Padilha. Para não arriscar,
já que Mendonça era homem reimoso, passa a tratá-lo com falsas amabilidades.
Casimiro Lopes, seu fiel “cão de guarda”, alerta-o de uma possível emboscada
a ser preparada pelo Mendonça. Na fazenda também há o cão de nome Tubarão
(mas este não tem a humanização que encontramos em Baleia, de Vidas secas).
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Graciliano Ramos
Depois de dois anos, as dificuldades de Paulo Honório como fazendeiro
são muitas:
Trabalhava danadamente, dormindo pouco, levantando-me às quatro da manhã,
passando dias ao sol, à chuva, de facão, pistola e cartucheira, comendo nas horas de descanso um pedaço de bacalhau assado e um punhado de farinha. À noite, na rede, explicava
pormenores do serviço a Casimiro Lopes. Ele acocorava-se na esteira e, apesar da fadiga,
ouvia atento. Às vezes Tubarão ladrava lá fora e nós aguçávamos o ouvido.
Paulo Honório e Mendonça continuam a trocar falsas amabilidades, num
jogo insinuante ao ponto de, em determinado momento, não saber se estava sendo
convincente ou convencido pelo Mendonça, cada um de nós mentiu estupidamente.
Assim, Paulo Honório tentava recuperar suas terras “garfadas” e Mendonça
contendo-se para não avançar mais. Discórdia de verdade, só uma:
... um moleque de S. Bernardo fizera mal à filha do mestre de açúcar de Mendonça,
e Mendonça, em consequência, metera o alicate no arame; mas eu havia consertado a cerca
e arranjado o casamento do moleque com a cabrochinha.
Paulo Honório não se conforma em perder terras para o fazendeiro de
Bom-Sucesso. Notem a ironia de Paulo Honório neste trecho:
Mais tiros na pedreira, os últimos. Pensei no Mendonça. Canalha. Do lado
de cá da cerca o algodão pintava, a mamona crescia nos aceiros da roça; do lado de
lá, sapé e espinho. Quantas braçadas de terra aquele malandro tinha furtado! Felizmente estávamos em paz. Aparentemente. De qualquer forma era-me necessário
caminhar depressa.
Desci a ladeira e fui jantar. Enquanto jantava, falei em voz baixa a Casimiro
Lopes, a princípio com panos mornos, depois delineando um projeto. Casimiro Lopes
desviou-se dos panos mornos e colaborou no projeto.
No domingo, na volta da eleição, Mendonça, numa emboscada já perto de
sua fazenda, leva um tiro e cai morto. Segundo Paulo Honório, no dia do crime
estava conversando com o vigário a respeito de uma igreja que levantaria em
São Bernardo.
– Que horror! exclamou padre Silvestre quando chegou a notícia. Ele tinha inimigos?
– Se tinha! Ora se tinha! Inimigo como carrapato. Vamos ao resto, padre Silvestre.
Quanto custa um sino?
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São Bernardo
Necessitando de um guarda-livros (contador), Paulo Honório contrata
seu Ribeiro, um velho major de setenta anos, uma espécie de seu Tomás da
bolandeira de Vidas secas, que também vivia debruçado sobre os livros. Onde
vivera era respeitado por todos: lia as cartas que o povo recebia; sabia de todos
os seus segredos; apadrinhava os recém-nascidos; apaziguava as contendas,
fazendo as vezes do delegado, do promotor e do juiz; sua mulher rezava o terço
e contava histórias sacras às crianças. Seu Ribeiro era o sujeito mais respeitado
do lugarejo. Entretanto:
O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe
político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia.
Trouxeram máquinas – e a bolandeira do major parou.
Veio o vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita. As histórias
dos santos morreram na memória das crianças.
Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro entristeceu, emagreceu e finou-se.
O advogado abriu consultório, a sabedoria do major encolheu-se – e surgiram
no foro numerosas questões.
(...)
Como havia agora liberdade excessiva, a autoridade dele foi minguando, até
desaparecer.
(...)
Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de indigentes, dormiu
nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loterias, tornou-se bicheiro e agente de
sociedades ratoeiras. Ao cabo de dez anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com
cento e cinquenta mil-réis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.
Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:
– Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel,
seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo.
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Um caboclo mal-encarado que Paulo Honório havia encontrado em casa
do Mendonça também é morto em uma emboscada.
Concluída a construção da nova casa, Paulo Honório compra móveis
novos (alguns deles nem ao menos sabia para que serviam), abandona a rede
de dormir. Agora estava bem instalado.
Passados cinco anos, Paulo Honório faz um balanço interessante de sua vida,
concluindo que foram legítimas as ações que o levaram a conquistar São Bernardo:
Ninguém imaginará que topando os obstáculos mencionados, eu haja procedido
invariavelmente com segurança e percorrido, sem me deter, caminhos certos. Não
senhor, não procedi nem percorri. Tive abatimentos, desejo de recuar; contornei dificuldades: muitas curvas. Acham que andei mal? A verdade é que nunca soube quais
foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram
prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro.
21
Graciliano Ramos
Depois da morte de Mendonça, não só recupera as suas terras, como
estica-as um pouco mais, apesar dos protestos de alguns. Paulo Honório só não
toma terras do dr. Magalhães, o juiz de direito. Mas também não fica livre de
uma emboscada, levando um tiro no ombro.
Exemplo de fazenda, São Bernardo é visitada pelo governador do Estado,
que só reclama da falta de uma escola. Reparem que tudo o que Paulo Honório
faz é pensando em interesse próprio: a escola era um capital, a igreja também.
Sua excelência tornou a falar na escola. Tive vontade de dar uns apartes, mas
contive-me.
Escola! Que me importava que os outros soubessem ler ou que fossem analfabetos?
– Esses homens do governo têm um parafuso frouxo. Metam pessoal letrado na
apanha da mamona. Hão de ver a colheita.
(...)
De repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do governador para
certos favores que eu tencionava solicitar.
No capítulo 9, Paulo Honório encontra João Nogueira, Padilha e Azevedo
Gondim conversando sobre os “atributos” da professora Madalena, que Paulo
Honório ainda não conhecia. Após discutirem sobre a idade da moça, um dizendo 20, outro 30 anos, Paulo Honório conclui que deveria ter, então, 25, para
liquidar a questão. No jantar, convida Padilha para ser o professor da escola.
Nesse mesmo jantar, Azevedo Gondim diz a Paulo Honório que descobriu por
onde andava a velha Margarida. Notem como Paulo Honório se refere à velha
como se fosse um objeto (mas para ele valioso):
– Ó Gondim, já que tomou a empreitada, peça ao vigário que escreva ao padre
Soares sobre a remessa da negra. Acho que acompanho vocês, vou falar a padre Silvestre.
É conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para não estragar na viagem. E
quando ela chegar, pode encomendar as miçangas, Gondim. Como se chamam?
Em vários momentos, os homens se reúnem para discutir sobre política,
uma das poucas coisas que Paulo Honório não consegue dominar: Retraí-me
indeciso, porque não tinha ideias seguras a respeito dessas coisas.
Chega à fazenda São Bernardo a velha Margarida, por quem Paulo Honório
nutre sentimento de gratidão. E é só ela que consegue amolecer o coração de
pedra do fazendeiro:
Pecados! Antigamente era uma santa. E agora, miudinha, encolhidinha, com pouco
movimento e pouco pensamento, que pecados poderia ter? Como estava com a vista curta,
falou sem levantar a cabeça, repetindo os conselhos que me dava quando eu era menino.
Uma fraqueza apertou-me o coração, aproximei-me, sentei-me na esteira, junto dela.
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São Bernardo
Amanheci um dia pensando em casar. Assim começa o décimo-primeiro capítulo. A intenção de Paulo Honório é única e exclusivamente ter um herdeiro, já que
Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho
esquisito, difícil de governar. Por isso, tenta imaginar como seria sua mulher: alta,
saudável, 30 anos, cabelos pretos, justamente o contrário da loirinha Madalena.
Nesse dia, Paulo Honório surpreende Luís Padilha discursando para Casimiro Lopes e Marciano, incitando-os, com suas ideias “subversivas”, contra
Paulo Honório. Casimiro Lopes não se deixa levar pelas palavras de Padilha, o
mesmo não acontece com Marciano. Por isso, Paulo Honório, depois de humilhar
(como tantas vezes faz) Luís Padilha, está disposto a despedir os dois, mas acaba
perdoando-os, depois de passar-lhes um sermão.
Uma das coisas que irritam Paulo Honório é a imprensa. Em Viçosa havia
dois jornais rivais, O cruzeiro (da situação) e A Gazeta (da oposição), cujo colaborador deste, o jornalista Brito, atacava-o impiedosamente.
Em casa do dr. Magalhães acontece o primeiro encontro entre Paulo Honório
e Madalena, entretanto não são apresentados formalmente. Mas Paulo Honório
repara na moça:
D. Marcela estava quase acertando com o enredo do romance de aventuras. D.
Glória escutava. A loura tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas cruzadas, lindas
mãos, linda cabeça.
A partir daí, Paulo Honório passa a interessar-se por Madalena, mas também preocupa-se com o seu físico franzino, pois, como vimos, Paulo Honório
queria uma mulher para lhe dar um herdeiro:
De repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário
da mulher que eu andava imaginando – mas agradava-me, com os diabos. Miudinha,
fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma peitaria, um pé de rabo, toitiço!
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O segundo encontro de Paulo Honório com Madalena dá-se quando retornava da capital para resolver uma pendenga com Costa Brito, que o havia
difamado na Gazeta. Depois de dar-lhe uma surra que o fez parar na delegacia,
encontra D. Glória, tia de Madalena, no vagão de trem, onde tem informações
sobre ela. Ao chegarem na estação de Viçosa, onde Madalena esperava pela tia,
Paulo Honório, finalmente, é apresentado à professora. Porém, desanima ao
descobrir, numa conversa com Azevedo Gondim, que a moça escrevia para o
jornal. Mais uma vez, notamos toda sua brutalidade e preconceito:
Azevedo Gondim encetou a quarta garrafa de cerveja e desmanchou-se em elogios.
– Mulher superior. Só os artigos que publica no Cruzeiro!
Desanimei:
– Ah! Faz artigos!
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Graciliano Ramos
– Sim, muito instruída. Que negócio tem o senhor com ela?
– Eu sei lá! Tinha um projeto, mas a colaboração no Cruzeiro me esfriou. Julguei
que fosse uma criatura sensata.
– Essa agora! Bradou Gondim picado. O senhor tem cada uma!
– Está bem.
Paulo Honório pede a Azevedo Gondim que sonde Madalena para ele.
Paulo Honório trava um diálogo com D. Glória sobre casamento. Eis o que Paulo
Honório pensa disso:
– Por que é que sua sobrinha não procura marido?
Melindrou-se:
– Nem eu digo isso, minha senhora. Deus me livre. É um conselho de amigo.
garantir o futuro...
D. Glória empinou a coluna vertebral, e o peito cavado se achatou. Esse movimento
de dignidade repentina fazia-lhe o vestido preto, já gasto, ficar esticado na barriga e frouxo
nas costas. Resmungou palavras imperceptíveis. Pouco a pouco voltou à posição normal, a
omoplata adaptou-se novamente ao pano coçado e o gargarejo tornou-se compreensível:
– Está visto que o casamento para as mulheres é uma situação...
– Razoável, d. Glória. E até é bom para a saúde.
– Mas há tantos casamentos desastrados... Demais isso não é coisa que se imponha.
– Não, infelizmente. É preciso propor. Tudo mal organizado, d. Glória. Há lá ninguém que saiba com quem deve casar?
– Quanto a mim, acho que em questões de sentimento é indispensável haver reciprocidade.
– Qual reciprocidade! Pieguice. Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for
ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu
manual de zootecnia.
Paulo Honório propõe casamento à Madalena. Reparem que tratam do
assunto como se estivessem negociando:
– O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira, estou agradecida
ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Job, entende?
– Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer
que lhe diga? Se chegarmos a acordo, quem faz um negócio supimpa sou eu.
Casam-se, Paulo Honório e Madalena, na capela de São Bernardo. Uma
das primeiras coisas que Paulo Honório procura fazer, logo depois de casado,
é tentar falar de maneira correta, mas Madalena não se importa com isso. Já no
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São Bernardo
segundo dia de casamento, Madalena vai à lavoura, interessada em conhecer as
condições de trabalho dos empregados. Preocupa-se com a saúde precária de
mestre Caetano, mas esbarra na indiferença do marido.
Madalena nutre simpatia por seu Ribeiro e este reconhece que Madalena
entende de contabilidade. Madalena não acha justo o salário de seu Ribeiro, fazendo enfurecer Paulo Honório. Era o primeiro grande conflito entre eles, isso
oito dias após o casamento.
Paulo Honório, no capítulo 19, faz uma revelação importante sobre Madalena, sobre si próprio e sobre o ato de escrever:
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela
se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes,
a culpa foi desta vida agreste, que me deu alma agreste.
E falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o
retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou
forçado a escrever.
Madalena passa a trabalhar no escritório da fazenda, recebendo um ordenado. Porém, não deixa de percorrer a fazenda, verificar a lavoura, a escola (e
não concorda com os métodos de ensino de Padilha) e os empregados, sempre
acompanhada pelos garotos empalamados e beiçudos agarrados às saias dela. Madalena se revolta ao presenciar a cena em que Paulo Honório surra Marciano
por este estar de conversa com o Padilha e, principalmente, revolta-se com a
indiferença e frieza do marido:
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– É horrível! Bradou Madalena.
– Como?
– Horrível! insistiu.
– Que é?
– O seu procedimento. Que barbaridade! Despropósito.
– Que diabo de história...
Estaria tresvariando? Não: estava bem acordada, com os beiços contraídos, uma
ruga entre as sobrancelhas.
– Não entendo. Explique-se.
Indignada, a voz trêmula:
– Como tem coragem de espancar uma criatura daquela forma?
– Ah! sim! por causa do Marciano. Pensei que fosse coisa séria. Assustou-me.
Começam as desconfianças com relação à infidelidade da mulher:
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Graciliano Ramos
Perdi os estribos:
– Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo. E não estou habituado a justificarme, está ouvindo? Era o que faltava. Grande acontecimento, três ou quatro muxicões num
cabra. Que diabo tem você com o Marciano para estar tão parida por ele?
Paulo Honório não suporta a presença de D. Glória em sua casa, por isso
discutem a todo momento. Madalena engravida e, para não deixá-la nervosa,
evita as discussões. Entretanto, devido à sua alma agreste, não consegue. Paulo
Honório e Madalena conversam sobre as suas origens pobres: Madalena criada
por D. Glória, que se desdobrava para educá-la; Paulo Honório como guia de cego
e vendedor de cocadas da velha Margarida. Madalena não consegue convencer
o marido da bondade de D. Glória: Pode ser que você tenha razão. Eu discordo. Mas
enfim cada qual tem lá o seu modo de matar pulgas.
Paulo Honório não se conforma com as atitudes de Madalena, preocupada
com os empregados de São Bernardo. Ele prefere que a mulher jogue fora o que
está estragado a dar aos pobres, como podemos notar no caso do vestido de seda
que Madalena dera à Rosa:
– Deitasse fora, foi o que eu disse a Madalena. Se estava estragado, era deitar fora.
Não é pelo prejuízo, é pelo desarranjo que traz a esse povinho um vestido de seda.
Paulo Honório sente inveja de um casal de papa-capins. Quer ser como eles:
Demorei-me um instante vendo um casal de papa-capins namorando escandalosamente. Uma galinhagem desgraçada. Dentro de alguns dias aquilo se descasava, cada
qual tomava seu rumo, sem dar explicações a ninguém. Que sorte.
Nasce o filho de Paulo Honório e Madalena.
Nova desconfiança, agora com Luís Padilha, que fora pego no jardim arrancando flores a pedido de Madalena. Discussão sobre o posicionamento político
do padre Silvestre e as suas ideias “revolucionárias”. Madalena participa da
conversa. Paulo Honório conclui que ela também era comunista:
Sim senhor! Conluiada com o Padilha e tentando afastar os empregados sérios do
bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando.
Levantamo-nos e fomos tomar café no salão.
– Sim senhor, comunista!
– É a corrupção, a dissolução da família, teimava padre Silvestre.
Ninguém respondeu.
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São Bernardo
Paulo Honório desconfia também de João Nogueira. Sente-se feio com
relação a este. E admite sentir ciúmes de Madalena:
Procurei Madalena e avistei-a derretendo-se e sorrindo para o Nogueira, num vão
da janela.
Confio em mim. Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a roupa bem feita, a voz
insinuante. Pensei nos meus oitenta e nove quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas
espessas. Cruzei descontente as mãos enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos
de lavoura. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena – e comecei a
sentir ciúmes.
Paulo Honório tem uma radical posição com relação às mulheres ditas
intelectuais. E no rol das desconfianças também consta o nome do jornalista
Azevedo Gondim:
Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. Tenho visto
algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e conduzem um marido ou coisa
que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente, com as cortinas cerradas, dizem:
– Me auxilia, meu bem.
(...)
Depois a colaboração no jornal do Gondim. Continuava a colaborar. Pouco, mas
continuava. O Gondim e ela tinham sido unha com carne. Lembram-se da tarde em
que ele me deu parabéns, estupidamente? Familiaridade. E discutiam as pernas e os
peitos dela!
Paulo Honório não nutre pelo seu filho a menor simpatia. Em certo momento, duvida até mesmo de sua paternidade:
Afastava-me, lento, ia ver o pequeno, que engatinhava pelos quartos, às quedas,
abandonado. Acocorava-me e examinava-o. Era magro. Tinha os cabelos louros, como
os da mãe, olhos agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as crianças
têm o nariz chato.
Interrompia o exame, indeciso: não havia sinais meus; também não havia os de
outro homem.
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A verdade é que ninguém se interessa pelo menino – que se arrasta pelo
chão, caindo, chorando, feio como os pecados – a não ser Casimiro Lopes, que o
tem como único amigo.
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Graciliano Ramos
Outro que não escapa da desconfiança de Paulo Honório é o velho juiz de
direito, dr. Magalhães, sempre amável, cheio de olhares e sorrisos. E novamente
Paulo Honório contrasta a sua aparência, agora com a do juiz:
Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que também eu era um homem
idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte, a culpa era minha: não me tratava. Ocupado
com o diabo da lavoura, ficava três, quatro dias sem raspar a cara. E quando voltava do
serviço, trazia lama até nos olhos: deem por visto um porco. Metia-me em água quente,
mas não havia esfregação que tirasse aquilo tudo.
Que mãos enormes! As palmas era enormes, gretadas, calosas, duras como casco
de cavalos. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com
semelhantes mãos.
As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelica, e as unhas, bem
aparadas, certamente não arranhavam. Se ele só pegava em autos!
Notem, no trecho acima, a semelhança física que há entre Paulo Honório
e Fabiano, de Vidas secas.
A situação entre Paulo Honório e Madalena se torna insustentável quando
ele a pega escrevendo uma carta, endereçada a Azevedo Gondim. Não consegue
tirá-la de Madalena, que a rasga em pedacinhos, atirando-os pela janela. Nessa
ocasião, fica o destaque para as ofensas mútuas, mas é Paulo Honório quem
mais se incomoda ao ser chamado de assassino. E chega a mais uma de suas
conclusões: Mais vale uma boa amigação que certos casamentos!
Por vezes, Paulo Honório tenta se convencer de que tudo não passa de
fantasias de sua perturbada mente e que Madalena é honesta, claro. Não mostrara
o papel para não dar o braço a torcer, por dignidade, claríssimo. Ciúme idiota.
Paulo Honório demite Luís Padilha de seu cargo de mestre-escola, com a
desculpa de que ele faz intrigas e fuxicos. Este, por sua vez, atribui a culpa de
sua demissão à Madalena, que vive pedindo favores a ele.
Paulo Honório atribui o xingamento de assassino desferido por Madalena
ao fato de correr pela região a notícia de que ele teria matado o Mendonça em
uma emboscada.
Uma frase, dita pelo Padilha, atormenta Paulo Honório: O senhor conhece a
mulher que possui. A verdade é que Paulo Honório não a conhece e por esse motivo
imagina como seria o seu casamento caso tivesse a certeza de sua fidelidade ou
a certeza de que era infiel:
Se eu tivesse uma prova de que Madalena era inocente, dar-lhe-ia uma vida como
ela nem imaginava. Comprar-lhe-ia vestidos que nunca mais se acabariam, chapéus
caros, dúzias de meias de seda. Seria atencioso, muito atencioso, e chamaria os melhores
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São Bernardo
médicos da capital para curar-lhe a palidez e a magrém. Consentiria que ela oferecesse
roupa às mulheres dos trabalhadores.
E se eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía, matava-a,
abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr um dia inteiro.
Paulo Honório desconfia da infidelidade da mulher até mesmo com o padre
Silvestre (e se justifica pela desconfiança) e os caboclos da fazenda:
Padre Silvestre passou por S. Bernardo – e eu fiquei de orelha em pé, desconfiado.
Deus me perdoe, desconfiei. Cavalo amarrado também come.
(...)
Realmente, um criatura branca, bem lavada, bem vestida, bem engomada, bem
aprendida, não ia encostar-se àqueles brutos escuros, sujos, fedorentos a pituim. Os meus
olhos me enganavam. Mas se os olhos me enganavam, em que me havia de fiar então? Se
eu via um trabalhador de enxada fazer acena a ela!
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Depois de concluir que Mulher não vai com carrapato porque não sabe qual é
o macho, Paulo Honório chega a supor que a velha Margarida também estivesse
mancomunada com Madalena, portando alguma carta comprometedora. Paulo
Honório parece enlouquecer de tanta desconfiança, por isso não dorme direito,
ouve barulhos de pessoas rondando a casa, o jardim, à espera de um encontro
com Madalena.
Paulo Honório encontra outra carta escrita por Madalena, mas não consegue
compreender o seu sentido, porém tem a certeza absoluta de que é endereçada
a algum homem. Encontram-se na sacristia da igreja. Paulo Honório não obtém
respostas às suas indagações sobre a carta. Depois de horas na sacristia, Madalena parece se despedir de Paulo Honório e da vida como quem faz seus últimos
pedidos e, logo após, o seu testamento (é o prenúncio de seu suicídio):
– Sê amigo de minha tia, Paulo. Quando desaparecer essa quizília, você reconhecerá
que ela é boa pessoa.
Eu era tão bruto com a pobre da velha!
– Consequência desse mal entendido. Ela também tem culpa. Um bocado ranzinza.
–Seu Ribeiro é trabalhador e honesto, você não acha?
– Acho. Antigamente deu cartas e jogou de mão. Hoje é refugo. Um sujeito decente,
coitado.
– E o Padilha...
– Ah! não! Um enredeiro. Nem está direito você torcer por ele. Safadíssimo.
– Paciência! O Marciano... Você é rigoroso com Marciano, Paulo.
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Graciliano Ramos
– Ora essa! exclamei enfadado. Que rosário!
– Não se zangue, disse Madalena sem erguer a voz.
(...)
– Ofereça os meus vestidos à família de mestre Caetano e à Rosa. Distribua os
livros com seu Ribeiro, o Padilha e o Gondim.
Levantei-me, impaciente:
– Que conversa sem jeito!
E agarrei-me a um assunto agradável para afugentar aquelas ideias tristes:
– Estou com vontade de viajar.
Após o inusitado diálogo na sacristia, Madalena se levanta para ir embora, despedindo-se de Paulo Honório: Adeus, Paulo. Vou descansar. No outro dia,
pela manhã, Paulo Honório encontra sua mulher morta na cama, branca, de olhos
vidrados, espuma nos cantos da boca. Em vão, Paulo Honório tenta ressuscitá-la,
dizendo: A Deus nada é impossível, frase que ouvira no campo, dias antes. A carta
que Paulo Honório encontrara e não compreendia o seu conteúdo era apenas
uma parte da carta em que Madalena se despede da vida.
Enterrou-se debaixo do mosaico da capela-mor.
Vesti-me de preto; encomendei uma lápide; o dr. Magalhães, padre Silvestre, João
Nogueira, Azevedo Gondim, os proprietários vizinhos vieram trazer-me pêsames. Deixei a cama de casal e mudei-me para um quarto pequeno que tinha, à beira do telhado,
um ninho de carriças. Pela manhã as carriças pipilavam desesperadamente. Na mesa da
cabeceira amontoavam-se telegramas e envelopes tarjados.
Como necessitava distração, dediquei-me nervosamente a uma derrubada de madeira na mata. Depois mandei consertar o paredão do açude, que vazava.
Mas o entusiasmo esfriou depressa. Aquilo era meio de vida, não era meio de morte.
Após a morte de Madalena, Paulo Honório sente-se ainda mais perdido.
Dona Glória resolve deixar a fazenda. Não deseja nada de Paulo Honório, que,
com medo de pensarem que ela fora expulsa, convence-a a aceitar uma ajuda.
Seu Ribeiro também deixa a fazenda, demitindo-se do cargo de guarda-livros,
sob protestos do patrão:
Assim o excelente seu Ribeiro, que esperava enterrar em S. Bernardo, foi terminar
nos cafés e nos bancos dos jardins a sua velhice e as suas lembranças.
O prazo dado ao Padilha para deixar a fazenda havia se esgotado. Paulo
Honório deixa-o ficar, sempre era uma companhia.
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São Bernardo
Estoura a revolução comunista, Padilha e padre Silvestre incorporam-se
às tropas revolucionárias. Há discussões entre Paulo Honório, João Nogueira
e Azevedo Gondim sobre os acontecimentos revolucionários. São Bernardo é
visto como um reduto de reacionários. A situação econômica do país chega a
São Bernardo. Paulo Honório é boicotado pelos bancos. Recebe a notícia de que
os fazendeiros vizinhos iriam remexer nas questões dos limites de terras e cruza
os braços.
Nos dois anos de morte de Madalena, Paulo Honório resolve escrever o
seu livro, como vimos no início da obra. Neste momento final, interessante é a
confissão de Paulo Honório:
O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um
arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira
sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo
todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os
filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir
o diabo e levar tudo?
Para Paulo Honório todos são bichos, uns domésticos como o Padilha, outros do mato como Casimiro. Imagina que, se não tivesse ferido o João Fagundes,
teria se casado com a Germana e viveria de maneira simples num pequeno sítio.
E não seria aquele explorador feroz em que se transformara. Tem a consciência de
que estragou a sua vida e a vida dos outros, nem mesmo consegue conquistar a
amizade do filho. Mas também tem a consciência de que, se tivesse outra chance
com Madalena, faria tudo novamente.
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos
e os propósitos se esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades
tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda parte!
A desconfiança é também consequência da profissão.
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Diante de tudo isso, solitário em sua decadência moral e econômica, resolve
contar tudo em um livro.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração
miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz
enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
31
Graciliano Ramos
Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades
monstruosas.
A vela está quase a extinguir-se.
Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por
uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.
Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!
Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes!
E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga,
encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.
Segundo João Luís Lafetá, com estas palavras o romance se fecha, mostrando a
vitória da reificação (aquilo que é transformado em coisa, coisificação) e a derrota
total do herói, que é capaz de mexer-se, modificar-se.
PERSONAGENS
Paulo Honório
Proprietário da fazenda São Bernardo. Oitenta e nove quilos, rosto vermelho,
sobrancelhas espessas, a barba sempre por fazer, as mãos enormes! As palmas eram
enormes, gretadas, calosas, duras como o casco de cavalo. E os dedos eram também enormes,
curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos!. Notem que esta caracterização física tem algo em comum com a que o narrador de Vidas secas faz de Fabiano:
As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu
a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira
tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como
cascos, gretavam-se e sangravam.
Homem bruto, ambicioso, egoísta, insensível e machista, Era o que me atormentava. Mulheres, criaturas sensíveis, não devem meter-se em negócios de homens.
O único sentimento de Paulo Honório é o da aquisição, da compra, da posse. Por
isso, não respeita ninguém e “destrói” aqueles que não rezam em sua cartilha.
Madalena
Professora primária, sobrinha de D. Glória e mulher de Paulo Honório.
Bonita loira de 27 anos, franzina e delicada. Instruída, escreve artigos para o
jornal, o que, no primeiro momento, desagrada Paulo Honório. Casados, Madalena preocupa-se com a saúde e as condições de trabalho dos empregados da
32
São Bernardo
fazenda. Suas ideias não combinam com as de seu marido, tampouco concorda
com as atitudes dele, por isso são frequentes as discussões entre eles. Segundo
Paulo Honório, Madalena tinha ideias comunistas. O seu comportamento é alvo
das desconfianças do marido. Esbarrando-se no ciúme, na desconfiança, no preconceito e na brutalidade do marido, suicida-se.
Mulher de escola normal! O Silveira me tinha prevenido, indiretamente. Agora
era aguentar as consequências da topada, para não ser besta.
Aguentar! Ora aguentar! Eu ia lá continuar a aguentar semelhante desgraça? O
que me faltava era uma prova: entrar no quarto de supetão e vê-la na cama com outro.
Casimiro Lopes
O fiel empregado de Paulo Honório. Cabelos emaranhados, testa estreita,
maçãs enormes no rosto e beiços grossos. Casimiro Lopes, que não bebia água na
ribeira do Navio, acompanhou-me. Gosto dele. É corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e
fidelidade de cão. Era o único que demonstrava carinho pelo filho de Paulo Honório
e Madalena. Sobre isso, comentou Paulo Honório: Boa alma, Casimiro Lopes. Nunca
vi ninguém mais simples. Estou convencido de que não guarda a lembrança do mal que
pratica. Toda a gente o julga uma fera. Exagero. A ferocidade aparece nele raramente. Não
compreende nada, exprime-se mal e é crédulo como um selvagem. O seu vocabulário é
tão minguado quanto o de Fabiano, de Vidas secas.
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Seu Ribeiro
O guarda-livros (contador) de Paulo Honório. Velho, alto, magro, curvado,
amarelo, de suíças. Paulo Honório encontrou-o trabalhando na Gazeta. Convidou-o
para trabalhar em São Bernardo. Enquanto foi proprietário de suas terras, era o
major Ribeiro, fazia o papel de juiz, delegado, promotor, lia as cartas que o povo
recebia, sabia de todos os segredos, protegia os moradores, solucionava casos de
gravidez e tantos outros, era tão respeitado que, quando o major decidia, ninguém
apelava. Culto, debruçava-se sobre os livros, lembrando seu Tomás da bolandeira,
personagem de Vidas secas. Mas o progresso chegou em seu lugarejo, que logo
virou vila, que rapidamente virou cidade e o major, segundo Paulo Honório, deixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. Porque não andou mais depressa?
É o diabo. Sem o contato com os filhos, mudou-se para a capital, dormiu em bancos
de praças, vendeu bilhetes de loterias, conheceu enfermarias.
Dona Glória
Tia de Madalena e responsável por sua criação e educação. Trabalhou a
vida inteira em pequenas e mal pagas ocupações para dar estudos à sobrinha,
que a tinha como mãe. Entretanto, é odiada por Paulo Honório: Dormia, almoçava,
jantava, ceava, lia romances à sombra das laranjeiras e atenazava Maria das Dores, que
33
Graciliano Ramos
endoidecia com a colaboração dela. Queixava-se de tudo: dos ratos, dos sapos, das cobras,
da escuridão. Afetava na minha presença uma atitude de vítima. Não se cansava de gabar
a cidade, fora de propósito. Passava parte dos dias no escritório.
João Nogueira
Advogado de Paulo Honório. Assim ele é descrito pelo fazendeiro: Bacharel,
mais de quarenta anos, uma calvície respeitável. Às vezes metia-se em badernas. Mas com
os clientes só negócios. E a mim, que lhe dava quatro contos e oitocentos por ano para
ajudar-me com leis a melhorar S. Bernardo, exibia ideias corretas e algum pedantismo.
Eu tratava-o por doutor: não poderia tratá-lo com familiaridade. Julgava-me superior a
ele, embora possuindo menos ciência e menos manha. Até certo ponto parecia-me que as
habilidades dele mereciam desprezo. Mas eram úteis – e havia entre nós muita consideração. Além de advogado era poeta, literato e leitor de romances. Caberia a ele
ajudar Paulo Honório a escrever o livro, corrigindo a pontuação, a ortografia e a
sintaxe. Mas como queria a linguagem na língua de Camões, isto é, rebuscada,
com seus frequentes hipérbatos, abandona o projeto.
Salustiano Padilha
Antigo proprietário da fazenda São Bernardo, onde Paulo Honório fora
empregado de eito com salário de cinco tostões. O velho Padilha gastara todo
o seu dinheiro tentando realizar um sonho: ver o seu filho, Luís Padilha, doutor. Salustiano acabara morrendo do estômago e de fome sem ver na família o título
que ambicionava.
Luís Padilha
Recebe do pai a fazenda São Bernardo. Como a fazenda é improdutiva,
Paulo Honório, interessado em adquiri-la, incentiva Padilha a plantar, emprestando dinheiro para a compra das máquinas. Padilha, inconsequente, gasta o
empréstimo comprando uma tipografia e funda o Correio de Viçosa, jornal que
teve apenas quatro números. Endividado, passa a evitar Paulo Honório. Com o
vencimento da última letra, Padilha reluta, mas é forçado a entregar a fazenda
para quitar a dívida com Paulo Honório: S. Bernardo era para ele uma coisa inútil,
mas de estimação: ali escondia a amargura e quebradeira, matava passarinhos, tomava
banho no riacho e dormia. Dormia demais, porque receava encontrar o Mendonça.
Luís Padilha é o personagem mais humilhado por Paulo Honório. Professor
da escola criada em São Bernardo, era um Coitado! Tão miúdo, tão chato, parecia
um percevejo. Padilha tem ideias “comunistas” e as divulga entre os empregados
de São Bernardo, fazendo com que Paulo Honório sinta ainda mais ódio dele e
cada vez mais prazer em humilhá-lo: Padilha mastigava com os dentes estragados
o sorriso servil.
34
São Bernardo
Padre Silvestre
De cabeça grisalha e testa estreita. Politizado, tem ideias revolucionárias,
tanto que, ao estourar a revolução, incorpora-se às tropas comunistas. Segundo
Paulo Honório, Um desastre. Bom homem. É pouco. Muito ingênuo, emprenha pelos
ouvidos, inteligência de peru novo, besta como aruá. No plano de escrever o livro em
conjunto, o padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas. Mas
depois da revolução de outubro, tornou-se uma fera, exige devassas rigorosas e castigos
para os que não usaram lenços vermelhos. Torceu-me a cara. E éramos amigos. Patriota.
Está direito: cada qual tem suas manias.
Velha Margarida
Assim como Casimiro Lopes, a velha Margarida é a única pessoa por
quem Paulo Honório nutre alguma espécie de sentimento. Quando menino, fora
criado por ela e vendia as cocadas que ela fazia em seu tacho. Por intermédio
de Azevedo Gondim, Margarida é encontrada e passa a viver em São Bernardo.
Sobre ela, escreve Paulo Honório: Pecados! Antigamente era uma santa. E agora,
miudinha, encolhidinha, com pouco movimento e pouco pensamento, que pecados poderia
ter? Como estava com a vista curta, falou sem levantar a cabeça, repetindo os conselhos
que me dava quando eu era menino. Uma fraqueza apertou-me o coração, aproximei-me,
sentei-me na esteira, junto dela.
Dr. Magalhães
Juiz de direito. O único que não tem suas terras “furtadas” por Paulo
Honório. Segundo o próprio Paulo Honório, O dr. Magalhães é pequenino, tem um
nariz grande, um pince-nez e por detrás do pince-nez uns olhinhos risonhos. Os beiços,
delgados, apertam-se. Só se descolam para o dr. Magalhães falar a respeito da sua pessoa.
Também quando entra neste assunto, não para.
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Dona Marcela
Filha do dr. Magalhães. Pela descrição física que Paulo Honório faz dela,
percebemos que é o oposto de Madalena: D. Marcela era um pancadão. Cada olho!
O que tinha de ruim era usar muita tinta no rosto e muitos ss na conversa. Paciência.
Perfeito só Deus.
Lúcio Gomes de Azevedo Gondim
Jornalista (redator e diretor) do Cruzeiro, um de venta chata, contentava-se
em viver do pequeno salário que o jornal lhe pagava e, por isso, devia para muita
gente. Segundo Paulo Honório, o que deseja é ver a gazeta de mangas arregaçadas,
espumando, e no bilhar do Sousa, quando a carambola falha, insultar os políticos, umas
toupeiras. Quando Paulo Honório planejara escrever o livro, caberia ao Azevedo
Gondim a composição literária. Mas como Paulo Honório exigisse uma linguagem
coloquial, Azevedo Gondim também é dispensado da missão: – É o diabo, Gondim.
O mingau virou água. Três tentativas falhadas num mês! Beba conhaque, Gondim.
35
Graciliano Ramos
Mendonça
Fazendeiro de Bom-Sucesso, disputava com Paulo Honório questões de
limites de terras, o que, anteriormente, era feito com o velho Salustiano Padilha
(daí o receio de Luís Padilha quando dono de S. Bernardo encontrar-se com Mendonça). No início, para não arriscar e saber melhor com quem estava lidando,
troca falsas amabilidades com Mendonça, oferecendo-lhe ajuda e resolvendo
algumas pendengas. Mas, num domingo de eleição, Mendonça é morto em uma
emboscada já perto de sua fazenda. Paulo Honório tem um álibi, o padre Silvestre:
Na hora do crime eu estava na cidade, conversando com o vigário a respeito da igreja que
pretendia levantar em S. Bernardo. Para o futuro, se os negócios corressem bem.
Costa Brito
Jornalista do jornal oposicionista A Gazeta, que ameaça Paulo Honório
com chantagens, tentando extorqui-lo e, não conseguindo, difama-o em artigos,
chamando-o de assassino. Inconformado, Paulo Honório prega-lhe uma surra
em praça pública, o que lhe valeu algumas horas na delegacia: Embarquei vinte
e quatro horas depois, levando nos ouvidos um sermão do secretário do interior, que me
seringou liberdade de imprensa e outros disparates.
Rosa
Mulher de Marciano, Rosa fora amante de Paulo Honório: O Marciano
conheceria as minhas relações com a Rosa? Não conhecia. Tive sempre o cuidado de
mandá-lo à cidade, a compras, oportunamente. E talvez não quisesse conhecer. Também
se podia admitir que fosse dotado de pouca penetração.
Marciano
Empregado da fazenda São Bernardo. Marido de Rosa. Marciano, assim
como Luís Padilha, é frequentemente humilhado por Paulo Honório. Após dar
uma surra em Marciano, que deixa Madalena chocada, Paulo Honório justifica:
Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda,
mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem.
O filho de Paulo Honório e Madalena
Como vimos, o menino só tinha um amigo: Casimiro Lopes. Era magro, os
cabelos loiros iguais aos da mãe, o nariz chato: E o pequeno continuava a arrastar-se,
caindo, chorando, feio como os pecados. As perninhas e os bracinhos eram finos que faziam
dó. Gritava dia e noite, gritava como um condenado, e a ama vivia meio doida de sono.
Às vezes ficava roxo de berrar, e receei que estivesse morrendo quando padre Silvestre
lhe molhou a cabeça na pia. Com a dentição encheu-se de tumores, cobriram-no de esparadrapos: direitinha uma rês casteada. Ninguém se interessava por ele.
36
São Bernardo
Ainda há os seguintes personagens na obra São Bernardo:
Maria das Dores (empregada da casa de Paulo Honório); Germana (antiga
amante de Paulo Honório que se engraçou com o João Fagundes); João Sapateiro (responsável por ensinar Paulo Honório a ler quando esteve preso por ter
esfaqueado João Fagundes); Pereira (agiota e chefe político que emprestou o primeiro dinheiro a Paulo Honório); Mestre Caetano (empregado de São Bernardo
e entrevado em sua cama, recebe a comiseração de Madalena e a indiferença de
Paulo Honório); Arquimedes (a quem Paulo Honório promete a tipografia por
ocasião da construção do livro em conjunto).
foco narrativo
A obra é narrada em 1ª pessoa, ou seja, narrador personagem: Paulo Honório. A verdade é que Graciliano Ramos, adotando a técnica do narrador personagem, exclui-se de qualquer tipo de responsabilidade sobre Paulo Honório,
largando-o à mercê de sua própria sorte. Já isso não acontece, por exemplo, em
Vidas secas, cujo narrador em 3a pessoa, onisciente, está intimamente ligado aos
seus personagens.
Construindo um romance digressivo, com seu frequente vai e vem, Graciliano Ramos valorizou, dessa forma, mais a análise psicológica do personagem
do que propriamente o enredo (esse quase inexistente).
Essa descrição, porém, só seria aqui embutida por motivos de ordem técnica. E não
tenho o intuito de escrever em conformidade com as regras. Tanto que vou cometer um
erro. Presumo que é um erro, vou dividir um capítulo em dois. Realmente o que se segue
podia encaixar-se no que procurei expor antes desta digressão. Mas não tem dúvida, faço
um capítulo especial por causa da Madalena.
espaço
Fazenda São Bernardo, situada no município de Viçosa, interior de Alagoas.
Nesta cidade, o próprio Graciliano Ramos passou dez anos de sua vida, de 1900 a
1910. Mas, como observou o crítico literário Álvaro Lins no posfácio de Vidas secas:
O romance São Bernardo desenvolve-se todo dentro de uma fazenda; Paulo Honório coloca a
sua ambição no domínio da terra. Contudo, a fazenda e a terra não são as realidades fundamentais de São Bernardo. A realidade fundamental do romance é a figura de Paulo Honório
com o seu egoísmo, com a sua maldade, com o seu ciúme, com a sua desumanidade.
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tempo
Há dois tempos no romance: o cronológico e o psicológico. Quanto ao
primeiro, as ações se passam durante a década de 30 do século XX. Quanto ao
segundo, comum em romances narrados em 1a pessoa, os fatos, de certa forma
desordenados, vêm à tona e transbordam da mente do narrador personagem,
num processo que chamamos de flash-back.
37
Graciliano Ramos
temas
Podemos elencar como temas centrais de São Bernardo:
– A relação entre o ser e o ter, em que este se sobrepõe àquele. Paulo Honório não mede esforços para “subir” na vida (o seu único objetivo era ganhar
dinheiro), por isso não sente remorso algum ao passar por cima das pessoas
que são tratadas por ele como coisas ou animais. Segundo João Luís Lafetá, no
posfácio de São Bernardo (O Mundo à revelia), Madalena merece destaque especial, pois
se transformou no objetivo de Paulo Honório. Assim como procedeu para apropriar-se de
São Bernardo, caminhando em linha reta, assim ele procederá agora.
– A relação entre o opressor e o oprimido. Esse tipo de relação, muito comum
nas fazendas do interior nordestino, em que a figura dominadora e autoritária
do coronel (protetor, padrinho, chefe político) se sobrepõe à do sertanejo acuado,
oprimido e submisso. Esses tipos de personagens estão presentes também em
obras de José Lins do Rego, como o cel. José Paulino, de Menino de engenho, e cel.
Lula de Holanda Chacon, de Fogo morto; e de Jorge Amado, como o cel. Ramiro
Bastos, de Gabriela cravo e canela, e o cel. Horácio, de Terras do sem-fim.
– A relação conjugal destituída de qualquer sentimento, provocando desconfianças, dúvidas, brigas e ofensas mútuas.
– A relação entre o marido preconceituoso e a mulher insubmissa, provocando a discórdia conjugal.
– A relação política entre situação e oposição. As ideias socialistas que
culminam com as revoltas na década de 1930.
– Em suma, segundo João Luís Lafetá, no posfácio, A citação longa dispensa
maiores comentários: comunismo, corrupção, dissolução da família, ausência de religião,
monstruosidade, materialismo – todos são temas que estamos acostumados a ver (aqui e
agora e sempre) ligados ao tema dominante da propriedade.
5.Exercícios
1. Mackenzie-SP
Pela manhã Madalena trabalhava no escritório,
mas à tarde saía a passear, percorria as casas dos moradores. Garotos empalamados e beiçudos agarravam-se
à saia dela.
Foi à escola, criticou o método de ensino do
Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo,
mapas, outros arreios que não menciono porque não
quero tomar o incômodo de examinar ali o arquivo. Um dia, distraidamente, ordenei a
encomenda. Quando a fatura chegou, tremi. Um buraco: seis contos de réis. Calculem.
38
São Bernardo
Contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque
imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em
todo o caso era despesa supérflua.
Graciliano Ramos, São Bernardo.
No fragmento anterior, o narrador:
a) lembra episódios que o fizeram reconhecer em Madalena a eficiência que
buscara ao procurar uma mulher para ser mãe de seus herdeiros e uma professora humanitária na fazenda.
b) afirma seu desejo de viver bem com a mulher, por reconhecer a necessidade
dos gastos e a sensatez com que ela analisava a vida na fazenda.
c) descreve o dia a dia na fazenda, valorizando a intensa e cuidadosa atividade
da mulher junto às crianças, mas criticando o seu excesso de gastos nas compras necessárias.
d) cita a ocorrência em que a aplicação de Madalena no controle da escola não impediu
a adulteração de documentos, geradora dos principais incidentes narrados.
e) cita fatos que evidenciam a desigualdade entre duas maneiras de ver os desprotegidos, cujo desenvolvimento constitui aspecto importante do drama da obra.
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2. Fuvest-SP
Quando o velho acabou de escrever a sua narrativa exclamei:
– Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas embaixo de um automóvel,
Seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo.
A correta contextualização da passagem acima do romance São Bernardo, de
Graciliano Ramos, permite afirmar que:
a) a brutalidade de Paulo Honório não exclui a modernização e a técnica de que
também se vale para triunfar sobre um mundo em que Seu Ribeiro já tivera
prestígio.
b)Seu Ribeiro buscara inutilmente acompanhar o ritmo do progresso, já que lhe
faltava o instinto empreendedor capaz de realizar sua aspiração de ser um
grande proprietário.
c) as lamúrias do velho coronel prendem-se a um mundo mais autoritário,
vencido pelas ideias modernas que deram origem e sustentação ao poder de
Paulo Honório.
d)o oportunismo de Paulo Honório leva-o a preterir os serviços do antigo agregado em favor da jovem Madalena, a quem incumbe de equipar e modernizar
a velha escola.
e) o universo de valores do velho major desorganizou-se em função da velocidade
do mundo moderno, ao qual tampouco se adapta o primitivismo de Paulo
Honório.
39
Graciliano Ramos
3. PUC-SP
Leia abaixo alguns trechos do capítulo 36, da obra São Bernardo, de Graciliano
Ramos, e responda à questão:
Foi aí que me surgiu a ideia esquisita de, com auxílio de pessoas mais entendidas
que eu, compor esta história. A ideia gorou, o que já declarei. Há cerca de quatro meses,
porém, enquanto escrevia a certo sujeito de Minas, recusando um negócio confuso de
porcos e gado zebu, ouvi um grito de coruja e sobressaltei-me.
(...)
De repente voltou-me a ideia de construir o livro. Assinei a carta ao homem dos porcos
e, depois de vacilar um instante, porque nem sabia começar a tarefa, redigi um capítulo.
Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando
cachimbo e bebendo café, à hora em que os grilos cantam e a folhagem das laranjeiras se
tinge de preto.
(...)
Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde canalizar
para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu
foi um grande desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muitas coisas que sinto.
Considerando, ainda, os trechos e utilizando informações de que você dispõe
sobre o romance São Bernardo, assinale a alternativa incorreta.
a)Nota-se que os trechos se referem ao tempo de solidão, quando Paulo Honório,
buscando a compreensão de si, escreve o romance.
b)Entende-se que o pio da coruja está associado à lembrança de Madalena.
c)Depreende-se que o narrador, ao empreitar escrever um livro, rememora o
passado que o oprime.
d)Verifica-se que o descascar fatos concretiza-se, no romance, de modo a embaralhar passado e presente.
e) Observa-se que as dificuldades encontradas para a escritura do livro contribuem para a visão desordenada das coisas, impossibilitando Paulo Honório
de perceber os erros cometidos.
4.
Leia o seguinte trecho de São Bernardo:
João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de
trás para diante. Calculem.
A que figura de linguagem se refere Paulo Honório em períodos formados
de trás para diante?
40
São Bernardo
5. Unicamp-SP
– Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos.
Essa visão das pessoas é expressa por Paulo Honório, narrador e personagem central de São Bernardo, de Graciliano Ramos.
a)Indique de que lugar social fala Paulo Honório.
b)Explique por que, na posição de Paulo Honório, as pessoas podem ser vistas
como bichos.
c)Mencione dois episódios que ilustrem essa forma de tratamento por parte de
Paulo Honório.
6.
Com relação à obra São Bernardo, assinale a alternativa incorreta.
a)Paulo Honório, narrador personagem, procura tratar todos como se fossem
também sua propriedade, assim como a fazenda São Bernardo.
b) As únicas pessoas por quem Paulo Honório nutre algum tipo de sentimento
são a velha Margarida e o capataz Casimiro Lopes.
c)Paulo Honório, assim como Bentinho, tem a certeza absoluta de que foi traído
pela sua mulher.
d)Paulo Honório tornou-se proprietário da fazenda São Bernardo de maneira
ilícita, porém ele não concorda com isso.
e)Madalena não se deixa submeter aos caprichos do marido, por isso, suicida-se.
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7.
A única obra abaixo, de Graciliano Ramos, que não é narrada em 1a pessoa é:
a) São Bernardo.
b) Caetés.
c) Angústia.
d)Memórias do cárcere.
e) Vidas secas.
8.
Dos fatos a seguir, um não ocorreu com Paulo Honório, narrador personagem
da obra São Bernardo. Assinale-o.
a)Paulo Honório aprendeu a ler na prisão, onde conheceu Joaquim Sapateiro,
que tinha uma bíblia miúda, dos protestantes.
b) Fica provado que Paulo Honório armou uma emboscada para matar Mendonça, proprietário da fazenda Bom-Sucesso.
41
Graciliano Ramos
c)Paulo Honório não nutria nenhum sentimento por Madalena, Rosa ou Germana. O seu negócio era ganhar dinheiro.
d)As duas pessoas mais humilhadas por Paulo Honório foram Luís Padilha,
ex-proprietário de S. Bernardo, e Marciano, marido de Rosa.
e)Paulo Honório confessa que levou uma vida estúpida, mas se tivesse nova
chance faria tudo de novo.
9.
Com relação à linguagem empregada em São Bernardo e o seu autor-personagem
há uma contradição. Qual?
10.
Um dos personagens abaixo, de São Bernardo, não está corretamente caracterizado.
Assinale a alternativa correta.
a)Luís Padilha: ex-proprietário da fazenda São Bernardo, viciado em jogo e com
ideias subversivas.
b) João Nogueira: advogado, literato, que é dispensado por Paulo Honório do
projeto do livro por exigir que esse fosse escrito na “língua de Camões”.
c)Seu Ribeiro: guarda-livros de Paulo Honório. Apesar de trabalhar para o
fazendeiro, não nutre nenhuma simpatia por ele.
d)Padre Silvestre: político, tinha ideias socialistas e vai lutar ao lado das tropas
revolucionárias.
e)Madalena: professora primária que, apesar de saber que não era amada por
Paulo Honório, casa-se com ele por amor.
GABARITO
1.E
2. A
3.E
4. Hipérbato, figura de inversão muito usada
por Camões em sua obra maior, Os lusíadas.
5.
a)Paulo Honório se transforma em um “coronel de fazenda”, autoritário e dominador,
procurando fazer das pessoas também a
sua posse.
b) Porque Paulo Honório figura como opressor e os seus empregados oprimidos, como
cães fiéis.
c)O domínio de Paulo Honório sobre seu
empregado Casimiro Lopes; as frequentes
humilhações que Padilha e Marciano recebiam; a falta de sentimento com relação à
Madalena e ao seu filho pequeno.
6.C
7.E
8.C
9.Paulo Honório, autor dos relatos, não teria
condições intelectuais para escrever da maneira que escreve, isto é, um homem rude,
que aprendeu a ler na prisão aos 18 anos, sem
nenhuma ligação com os livros, jamais teria
como conhecer regras gramaticais para criar
uma boa narrativa como é a sua história.
10.E
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são bernardo - COC Educação