III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE REPRESENTAÇÕES DA LÍNGUA INGLESA E O DISCURSO NEOLIBERAL EM UM MATERIAL DIDÁTICO DIGITAL DE ENSINO DE INGLÊS PARA NEGÓCIOS: IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO E A FORMAÇÃO DO SUJEITO Maria Inês de Oliveira Hernandez1 Introdução Alguns acadêmicos têm apontado para o fato de que o livro didático é, geralmente, entendido como lugar onde se apresenta um conhecimento de maneira imparcial e neutra. Este efeito é construído por meio do trabalho do discurso da ciência aliado ao discurso didático-pedagógico (cf. Coracini, 1999; 2003), em que se busca levar a verdade ao aluno a fim de que, ao entrar em contato com o conhecimento puro, resultado de uma racionalização, liberte-se da opressão e da ignorância e consiga progredir, segundo os preceitos do Iluminismo que alicerça a instituição escolar (cf. Usher & Edwards, 1994). Para que possamos discutir o discurso presente no material didático analisado, primeiro teceremos algumas considerações sobre a natureza do discurso. A partir de uma perspectiva discursiva da linguagem, entendemos o discurso como processo em movimento, que se dá na relação entre língua (sistema) e seu exterior, em outras palavras, as condições históricas e sociais. Nesta perspectiva discursiva as palavras adquirem seus sentidos a partir do posicionamento subjetivo ocupado pelos indivíduos ao empregá-las em contextos específicos. Também é importante a constatação de que não há discurso sem sujeito e este se forma pelo trabalho da interpelação ideológica, afetado por suas condições históricas e sociais. Conclui-se, portanto, que todo discurso é ideológico. Não há dizer neutro, livre de valores e posicionamentos (cf. Orlandi, 2000). Na visão discursiva também entendemos que os discursos são sempre constitutivamente heterogêneos, em que em um dizer várias vozes podem ser ouvidas, vozes que se aliam, se contradizem, concorrem entre si. Isto porque não estamos na origem da linguagem. Quando tomamos a palavra, nossas palavras já significaram antes em outros lugares e outros sentidos podem ser conferidos ao nosso dizer, mesmo que 1 Doutoranda na Universidade de São Paulo. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE procuremos controlar os sentidos a partir de artifícios que criam o efeito de que controlamos a língua e seus sentidos (cf. Brandão, 1996). Desse modo, apoiando-nos no postulado da perspectiva discursiva de que todo discurso é ideológico e heterogêneo, entendemos que outros discursos se fazem presentes no material didático, além do discurso didático-pedagógico e do discurso da ciência, que confere ao material didático o efeito de objetividade e imparcialidade. Assim, neste artigo investigaremos que outros discursos estão imbricados no material didático analisado, que representações são construídas da língua inglesa e do sujeito implicado. Condições de produção Partindo da constatação de como meus alunos se interessam em interagir com a língua inglesa por meio de materiais digitais, voltei-me para a análise do CD-ROM que acompanha o livro didático de inglês como língua estrangeira adotado na instituição de ensino superior em que trabalho. Esta instituição é pública e voltada para a formação tecnológica. Este material digital destina-se ao auto-estudo. Espera-se, desse modo, que o aluno interaja com esta mídia de maneira autônoma e fora da sala de aula (não há referência no livro do professor e no livro do aluno de que se deva usar o material digital em sala de aula). O livro em questão, Business Result Pre-intermediate (Grant & Hudson, 2009), como o nome já indica, enfoca o ensino de inglês no âmbito comercial. Para cada uma das 16 unidades do livro há uma unidade correspondente no CD-ROM. Este apresenta as seguintes seções: exercises and tests (exercícios de estrutura e vocabulário), emails (apresentação de modelos de emails e exercícios de estrutura e vocabulário), phrasebank (listas de mini trocas verbais que podem ser ouvidas também), phrasebook (trocas verbais que o aluno importa do phrasebank), áudio (apresentação de todas as atividades de compreensão auditiva do livro do aluno com suas transcrições) e glossary (listas de palavras com suas pronúncias). Uma característica deste CD-ROM é não apresentar vídeos, fotos ou figuras. 2 2 Embora a questão imagética não seja objeto deste artigo, um CD-ROM apresenta inúmeros recursos de imagem, som e movimento, mas estes são subutilizados no CD-ROM Business Result Pre-intermediate Interactive Workbook. Ele se apresenta como se estivesse impresso. Aliás, o material se auto-intitula “workbook”, mas em vez de se apresentar em forma de livro, apresentase em um CD-ROM. Pensamos que isto se deva a duas razões. Primeiro, por questão financeira: é mais barato confeccionar um CD do que um livro. Segundo, a editora atende às expectativas dos usuários que esperam um material digital, pois cria o efeito de atual e moderno. Ademais, muitas instituições não adotam livros que não venham com materiais digitais, como é o caso do MEC que III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Ao se considerar o contexto em que este material didático foi elaborado, devemos levar em conta o fato de que o Business Result Pre-intermediate é produzido por uma editora inglesa (percebida como autoridade legitimada sobre a língua e os povos de língua inglesa), cuja proposta é ensinar inglês para estrangeiros a partir de situações de negócios. Também é constitutivo das condições de produção deste material didático o fato dos autores e da editora estarem localizados em uma nação européia desenvolvida e rica. É relevante também o status que a língua inglesa desfruta na atualidade. Língua, ideologia e poder Pennycook (2001) faz um apanhado sobre as diferentes posições de linguistas a respeito da presença dominante da língua inglesa ao redor do mundo, constituindo-se como a língua franca da atualidade. O autor discorre sobre a opinião tanto dos linguistas conservadores e liberais como a dos mais críticos, que entendem o fenômeno como um imperialismo linguístico atrelado às forças globalizadoras das potências econômicas e culturais anglo-americanas, especialmente dos Estados Unidos. No pensamento dos linguistas críticos o que prevalece é a constatação de que não se pode separar a língua de questões de saber, poder e ideologia. Isto se refere às várias esferas em que os sujeitos utilizam a língua inglesa, aplicando-se desde às questões de sobrevivência no cotidiano dos imigrantes em países de língua inglesa na busca por trabalho, serviços de educação e saúde, como até ao fato da maioria das publicações científicas em vários países ocorrer em inglês. Ao aprender uma língua, aprendemos também as culturas dos povos que falam aquela língua. Contudo, Rajagopalan (2005) aponta para uma atitude menos determinista e reprodutivista sobre a questão. Ao se dominar o inglês, o sujeito não só reproduzirá esta língua com suas colorações ideológicas, mas também se apropriará desta e a tornará sua, marcando-a com características de sua língua materna e de sua bagagem cultural, promovendo uma hibridização da língua estrangeira por meio de sua apropriação. Acrescentaríamos, contudo, que a educação deve ter um papel preponderante na formação de novos falantes do inglês como língua estrangeira, encorajando no aluno uma atitude mais crítica em relação ao seu aprendizado a fim de que, ao dominar a língua inglesa, não seja “dominado” por ela. só recomenda a adoção de livros de inglês como língua estrangeira para as escolas públicas se estiverem acompanhados de materiais digitais. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE A partir destas reflexões acerca da natureza da língua inglesa como língua da comunicação global em nosso momento contemporâneo, poderemos comentar alguns aspectos observados neste material digital. Em primeiro lugar, o que se constata é uma tentativa de apagamento de qualquer traço ligando a língua inglesa ao povo inglês, americano ou qualquer outra nação onde o inglês seja a língua oficial ou nacional. Provoca-se o efeito de que a língua inglesa não tem “dono”, e por ser de todos, é neutra. Se dizemos “tentativa de apagamento” é porque, na verdade, a relação entre a língua e os países se fez presente por outros modos. Por mais que procuremos controlar a linguagem, esta sempre apresenta fissuras em que sentidos imprevistos se formam. Neste caso, o traço de união entre a língua inglesa e os países anglo-americanos se mostrou pela ideologia do capitalismo neoliberal. Como poderemos constatar nas próximas seções, no discurso pedagógico deste material digital encontram-se fortemente imbricados enunciados 3 do discurso neoliberal, que é um discurso fundador das economias anglo-americanas e que impulsionaram o fenômeno da globalização nas últimas décadas. Inglês : passaporte para o sucesso Ao estudar as representações da língua inglesa na mídia, Grigoletto (2007:215) aponta para a estreita relação entre a língua inglesa, o mundo globalizado e o mercado de trabalho. Constrói-se na mídia a representação de que o domínio da língua inglesa seria como um passaporte para o sucesso no mercado de trabalho, possibilitando ao indivíduo ocupar o lugar de sujeito privilegiado da contemporaneidade, isto é, o lugar daquele que tem o poder de mover-se sem fronteiras, de poder consumir à vontade, além de poder escolher diferentes subjetividades. No CD-ROM Business Result Pre-intermediate Interactive Workbook 4 é recorrente comentar sobre as grandes empresas multinacionais: 3 Utilizamos a noção de enunciado como elaborada por M. Foucault (1997) não para designar uma formulação, mas como uma modalidade repetível, que circula por diferentes redes de significados e se modifica; “modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível” (op. cit., 123, 124). 4 Todas as sequências (doravante S) aqui apresentadas foram retiradas da seção “Exercises and Tests”. Esta seção é subdividida em: working with words 1, working with words 2, business communication 1, business communication 2, language at work 1, language at work 2 e test. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE [S.1] Microsoft specializes in computer software. (Unit 1 - working with words 1) [S.2] Microsoft’s main competitor is Apple, who has a growing share of the market. (Unit 1 - working with words 1) [S. 3] Unilever operates in over 150 countries around the world. (Unit 1 - working with words 1) [S. 4] Siemens has 400,000 people on its staff. (Unit 2 - working with words 2) [S. 5] Shell does not make as much money as Exxon. (Unit 6 – test) [S. 6] I work for a large multinational company. (Unit 2 - working with words 1) [S. 7] Yesterday I went for a job interview at Siemens. I haven’t heard from them yet. But I have already decided that I would like the job.(Unit 5 – language at work 2) É interessante notar como o discurso da propaganda imbrica-se no discurso didático ao se mencionar nomes de grandes empresas multinacionais neste CD-ROM. Cria-se, desse modo, um efeito de que se pretende familiarizar o aluno com estas empresas uma vez que estas representam o lugar em que poderia trabalhar, desde que tenha o domínio da língua inglesa. Em S7 observamos o enunciador “I” explicitando seu desejo de trabalhar numa multinacional, ecoando o desejo de muitos outros em nosso momento contemporâneo. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE O CD-ROM Business Result Pre-intermediate Interactive Workbook parece construir uma promessa velada bastante ambiciosa ao sujeito que dominar a língua inglesa: não só ocupará um lugar em uma corporação multinacional, mas ocupará altos cargos, como notamos nas sequências abaixo: [S. 8] (...) B: I’m from Berlim, what about you? A: From Vancouver. What do you do? B: I’m a marketing manager. I work for a company in Canada. (Unit 1 - Business Communication 1) [S. 9] What do you do? – I’m a sales manager. (Unit 1 -Business Communication 2) [S. 10] What do you do? – I’m a sales manager. (Unit 2 -test) [S. 11] The new director wears very stylish clothes. She likes things that are fashionable. (Unit 4 – test) [S. 12] Becoming the CEO of the company is my long-term ambition. (Unit 16 – test) Quem fala neste material e de quem se fala é, geralmente, gerente, diretor, presidente, CEO (Chief Executive Officer) e a língua usada por eles ou para falar deles no contexto de negócios é o inglês: língua franca do mundo dos negócios. Instaura-se, desse modo, a necessidade de se dominar a língua inglesa àqueles que almejam sucesso no mundo corporativo. Aliás, a constante presença dos nomes das grandes multinacionais no livro e a ausência de pequenas empresas locais provocam o efeito de que estas não são merecedoras do investimento pessoal de profissionais falantes da língua inglesa. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Prêmio pelo sucesso: poder de mobilidade Ao discorrer sobre as conseqüências da globalização, Bauman (1999) explica que enquanto as classes menos favorecidas viram-se fincadas em suas localidades, enfrentando as conseqüências locais do movimento capitalista neoliberal, as classes abastadas ganharam grande mobilidade (física e virtual), propiciando-lhes cruzar fronteiras à vontade, sem restrições. Corroborando a visão de Bauman (op. cit.), constatamos que o executivo de sucesso representado no material didático aqui analisado tem grande mobilidade global: [S. 13] John usually stays at the Hilton Hotel. (Unit 2 – language at work 1) [S. 14] Where are you staying? – In the Four Seasons Hotel. (Unit 2 – test) [S. 15] Have you booked our accommodation for the conferece in Madrid? (Unit 16 – test) [S. 16] Is this your first time in Madrid? (Unit 7 – test) [S. 17] The weather was awful during our business trip to the USA. (Unit 12 – language at work 1) Constatamos, assim, o poder de mobilidade do executivo de sucesso ao mesmo tempo em que esta mobilidade apresenta-se com atributos positivos, como se hospedar em hotéis luxuosos (“The Hilton Hotel”, “The Four Seasons Hotel”). Não se fala dos atrasos e cancelamentos dos voos ou dos trens, dos desconfortos de se viajar longas distâncias, nem dos efeitos provocados pela distância da família e dos amigos. A III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE mobilidade é apresentada como um prêmio sem defeitos. Ao falar sobre o modo de existência da atualidade, Bauman (1999:129) explica como este se constitui na “hierarquia do global e do local, com a liberdade global de movimentos indicando promoção social, progresso e sucesso, e a imobilidade exalando o odor repugnante da derrota, da vida fracassada e do atraso”. Preço pelo sucesso: o tempo O cobiçado prêmio da mobilidade vem acompanhado do preço a ser pago pelo sucesso: mais tempo da vida do sujeito deve ser dedicado ao trabalho, como podemos verificar nos segmentos abaixo: [S. 18] Do any of the employees in your company work at weekends? (Unit 1 – Test) [S. 19] Are you working this Saturday? (Unit 2 – language at work 1) [S. 20] Do you work on Saturdays? (Unit 2 – language at work 1) [S. 21] Do you work at weekends? (Unit 2 – test) [S. 22] We don’t need to do overtime, but many people do. (Unit 9 – test) Pela recorrência das perguntas sobre se o interlocutor trabalha nos finais de semana e pela afirmação de que muitas pessoas trabalham nos finais de semana, provoca-se o efeito de que isso é algo natural. Assim, notamos o efeito do trabalho do discurso neoliberal neste material didático que gera o sentido de que esta prática, por ser freqüente, é natural e que, portanto, o aluno de inglês/futuro executivo de sucesso deve acatá-la com naturalidade. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Segundo Saviani (2008: 427 e 428) o neoliberalismo caracteriza-se pelo combate ao Estado regulador, pregando reformas trabalhistas e previdenciárias que diminuem os direitos dos trabalhadores. Também promove a privatização dos serviços públicos, a desregulamentação dos mercados financeiros, bem como incentiva a abertura das economias nacionais ao mercado internacional. Têm-se, portanto, criado condições legais para as empresas poderem trocar seu quadro de empregados com menos custos, diferentemente da situação de até meados dos anos setenta do século XX quando era comum um funcionário trabalhar na mesma empresa por décadas. Ademais, criaram-se novas formas de se contratar mão de obra que não oneram a empresa, como por exemplo terceirizando-se alguns serviços. A formulação abaixo ilustra esta prática: [S. 23] We are using a subcontractor to do some of the work for us. (Unit 2 – tests) Uma das conseqüências das reformas trabalhistas que flexibilizam e facilitam a demissão e contratação de funcionários a partir dos anos 80 é o sentimento de insegurança gerado pela possibilidade de desemprego, aliás, este é tema recorrente no material digital Business Result Pre-intermediate Interactive Workbook: [S. 24] The company has to lose six employees. How do you feel about that? (Unit 6 – test) [S. 25] Jan has been unemployed since she left IBM last year. (Unit 12 – language at work 1) [S. 26] The number of unemployed rose from 1.2 million to 1.75 million. (Unit 12 – test) III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE [S. 27] The boss says I have to finish this by Monday, or there will be trouble! (Unit 9 –language at work 1) Como conseqüência da sensação constante de insegurança e instabilidade, gerase uma competição frenética entre os indivíduos nos ambientes de trabalho, como bem coloca Zygmunt Bauman (2005: 40 e 41): (...) Muitos pisos de fábrica e corredores de escritórios se tornaram palco de uma competição acirrada entre indivíduos lutando para que os chefes os percebam e os contemplem com um aceno de aprovação – em vez de serem, como no passado, estufas de solidariedade proletária na luta por uma sociedade melhor. Como descobriu Daniel Cohen, economista da Sorbonne, agora é a vez de cada empregado mostrar, por iniciativa própria, que é melhor do que a pessoa mais próxima, que está trazendo mais lucro para os acionistas da companhia, de modo que valeria a pena mantê-lo quando viesse, como deveria vir, uma nova rodada de “racionalização” (leia-se: mais demissões por excesso de pessoal). Ao mesmo tempo em que notamos a presença de enunciados do discurso neoliberal neste material didático, podemos também escutar vozes do discurso desenvolvimentista, do self-made man, de séculos anteriores, que prometia progresso ao trabalhador incansável, o que não é necessariamente verdadeiro e pode gerar conseqüências perversas: [S. 28] My boss says that the harder you work, the richer you get. (Unit 6 – test) Em S28 responsabiliza-se somente o trabalhador pelo seu sucesso ou fracasso financeiro, sugerindo a ideia de que se este não consegue se manter é incompetente ou preguiçoso, ignorando, desse modo, os aspectos sociais envolvidos na questão. Preço pelo sucesso: a vida familiar e a vida acadêmica Como o sujeito de sucesso na contemporaneidade precisa dedicar grande parte de seu tempo à sua vida profissional devido à grande instabilidade de seu posto de trabalho, sua vida familiar e sua vida acadêmica acabam sendo afetadas. Observe as sequências abaixo: III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE [S. 29] Every Sunday the CEO calls his family in the US. (Unit 2 – language at work 1) [S. 30] Hurbert is looking forward to his holiday next week. He is going to visit his family in Australia. (Unit 8 – test) Em S29 o sujeito não convive com sua família, podendo apenas telefonar uma vez por semana. Em S30 o mesmo se repete: não há convívio familiar. Visita-se a família apenas nas férias. Este é um sujeito interdito, sem direito à vida familiar. No passado a família ocupava posição central na vida dos indivíduos, mas com o quadro atual de instabilidade e com a preponderância de um novo paradigma de valores (valorização do consumo e da mobilidade) cria-se a necessidade de se dedicar mais à vida profissional a fim de manter uma posição no mercado de trabalho ou, quem sabe, alcançar postos mais altos. Não só a vida familiar é cerceada, mas a vida acadêmica também. Em geral, neste material digital e em outros analisados 5, não se fala de escola, faculdade ou cursos em geral. O que se constata é a presença de treinamentos voltados para as necessidades das corporações, como notamos nas formulações a seguir: [S. 31] A: Have you been on that time management course? B: Yes, I have. I thought it might improve my promotion prospects. A: Was it any good? B: Yes, it taught me to take a step back and look at the bigger picture. A: Does it help with managing stress? B: Yes, and with setting goals. A: Great. I am going on a communication skills course next week. 5 Nos CD-ROMs que acompanham os livros didáticos Market Leader (Cotton, Falvey & Kent, 2007) e Business Start Up1 (Ibbotson & Stephens, 2006) constatamos que há um apagamento da vida acadêmica e familiar do sujeito de sucesso. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE B: That sounds interesting. (Unit 15 – working with words 2) [S. 32] I am going on a time management course next week. (Unit 15 – test) [S. 33] This course is designed to help you manage stress. (Unit 15 – test) [S. 34] These courses will help you to improve your promotion prospects. (Unit 15 – test) A empresa realiza os treinamentos necessários objetivando a solução de seus problemas, como por exemplo, treinamentos para coesão de equipe, para aprimorar a comunicação na empresa, para gerenciar melhor o tempo e o stress. Os funcionários precisam aprender a conviver com a tensão, com metas ambiciosas, com as grandes demandas e com os limites do tempo se quiserem manter seus cargos ou serem promovidos. Na constante luta pelo aumento da produtividade, alimentada pela competição acirrada entre as empresas, não há a possibilidade de eliminar as tensões e as demandas, o que se pode tentar fazer é ensinar os indivíduos a conviver com elas. Práticas do neoliberalismo: redução de custos e a mobilidade das empresas Com a globalização, verificamos o deslocamento de empresas e fábricas para locais onde os custos de produção e de mão de obra são mais baixos. As empresas e fábricas costumam deslocar-se para regiões onde os governos oferecem descontos nos impostos e leis trabalhistas mais flexíveis. São deixados para trás fornecedores e empregados que por várias razões se encontram presos às suas localidades. Os acionistas, donos das empresas, são os menos afetados pela localização das mesmas, uma vez que podem negociar suas ações em qualquer bolsa de valores: III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Cabe a eles [acionistas] portanto mover a companhia para onde quer que percebam ou prevejam uma chance de dividendos mais elevados, deixando a todos os demais – presos como são à localidade – a tarefa de lamber as feridas, de consertar o dano e se livrar do lixo. A companhia é livre para se mudar, mas as conseqüências da mudança estão fadadas a permanecer. (Bauman, 1999:15 e 16). Veja como esta prática se fez presente no CD-ROM Business Result Preintermediate Interactive Workbook: [S. 35] Our production costs dropped in 2005 when we moved to India. (Unit 12 – test) Pela ocorrência e recorrência do enunciado de que é comum e natural que as empresas não se finquem em uma localidade específica, mas que se mudem para um outro lugar onde os donos alcancem mais lucros prepara-se o aluno de inglês/atual ou futuro funcionário para esta eventualidade. (Velhas) práticas do neoliberalismo: pressão e avaliação Em S36 cristalizam-se práticas do capitalismo neoliberal em nosso momento contemporâneo marcado pela alta competitividade entre as corporações. Estas pressionam seus funcionários a produzirem mais em um período de tempo menor, utilizando a técnica de avaliações frequentes a fim de verificar quem não se “encaixa no perfil da companhia”, ou seja, quem não consegue cumprir as metas estabelecidas por seus superiores. [S. 36] 1.The company is always asking staff to improve their performance. 2. We have to set new goals every month. 3. And then we are asked to achieve those goals. 4. You have a meeting with your manager who gives you feedback. 5. You also look at ways to develop your skills. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE 6. They say this is the best way to motivate the team. (Unit 15 – working with words 1) Repare como se procura envolver o funcionário no processo, responsabilizando-o por eventuais futuros fracassos ao não conseguir desenvolver suas habilidades (“You also look at ways to develop your skills”). Note como em “They say this is the best way to motivate the team” o enunciador/funcionário exime-se da responsabilidade desta asserção ao enunciar “they say” em vez de “I think” ou “In my opinion this...”, deixando entrever que talvez haja opiniões antagônicas a esta. O mesmo enunciado atualizou-se em outras formulações, como nas que se seguem: [S. 37] We have asked our staff to improve their performance by 5% next year. (Unit 15 – test) [S. 38] It is important to achieve the goals that your managers sets you. (Unit 15 – test) [S. 39] We’re asked to set new goals every three months. (Unit 15 – test) [S. 40] Every year the management gives us feedback on our performance. (Unit 15 – test) A constante avaliação da atuação dos funcionários traz em si a possibilidade de os mesmos serem demitidos, o que causa competitividade entre os funcionários, além dos sentimentos de insegurança e ansiedade. As técnicas de pressão e avaliação remetemnos às tecnologias do poder disciplinar utilizadas desde o século XVIII por instituições como a escola, a prisão, o quartel, o hospital e são descritas por Foucault em Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Estas tecnologias procuram tornar os corpos mais dóceis e produtivos por meio da vigilância externa, da internalização do olhar do outro e III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE também pelo exame (neste caso o “feedback”). O efeito esperado é o combate à preguiça e a melhoria da produtividade. Embora ocorram incorporações e adaptações das tecnologias de “adestramento” das instituições da modernidade no modo como as empresas buscam fazer com que os indivíduos produzam mais na contemporaneidade, há aspectos bastante diferentes entre os dois contextos. Já não há mais um sentimento de classe entre os membros daquele grupo. Agora é cada um por si. Cada um tentando sobreviver da melhor maneira possível sem as redes de bem-estar social do Estado para garantir apoio na doença, na velhice ou no desemprego. Conforme Bauman (1999), em nosso momento líquido-moderno, a função do Estado é garantir a ordem policial a fim de que o privado seja protegido e as corporações possam progredir. O Estado deve recolher e manter à parte os excluídos, aqueles que não conseguem consumir e garantir por seus próprios meios sua sobrevivência. Como conseqüência, não se tem mais um sentimento de luta pela classe, pela melhoria da sociedade de modo geral, mas sim da luta individual, da competição entre pares próximos. Novamente, pelo processo de repetição de um enunciado do discurso neoliberal (é preciso trabalhar mais para atingir as metas e, assim, manter-se empregado), naturaliza-se este pensamento tornando-o algo comum e frequente. Desse modo, o aluno de inglês/futuro ou atual funcionário de uma empresa acostuma-se com a noção de que faz parte de seu cotidiano ser avaliado e atingir as demandas, cada vez mais ambiciosas, que lhe são impostas por seus superiores. Para isto, deve dedicar-se de corpo e alma ao trabalho, abdicando de setores de sua vida, e competindo acirradamente com seus colegas a fim de provar que é mais necessário à empresa de que seu colega. As vozes que falam no CD-ROM Business Result Pre-intermediate Interactive Workbook partiram não só dos autores, mas dos editores e da editora também. Estes se encontram localizados e afetados por uma cultura européia, em um país desenvolvido cuja economia se orienta por práticas neoliberais iniciadas ainda no governo de Margareth Thatcher, onde são falantes do inglês cuja representação na atualidade é de língua internacional, especialmente do mundo dos negócios. Enfatizamos também o fato desta série voltar-se para o ensino de inglês por meio de situações de negócios. É inevitável, portanto, que o meio corporativo seja trazido à tona por meio de práticas empresariais e representações de executivos, chefes e funcionários que favorecem uma visão anglo-americana e neoliberal. Considerações Finais III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Este material didático digital ensina não apenas a língua inglesa, como também veicula valores e posicionamentos ideológicos das economias neoliberais anglo- americanas, promovendo uma representação de chefe, executivo, funcionário de uma empresa como aquele que não deve medir esforços para atender às necessidades da companhia em que trabalha. Assim, naturalizam-se práticas como trabalhar nos finais de semana e não ter vida familiar ou acadêmica. A flexibilização do trabalho é retratada como recorrente e inevitável por meio da presença de dizeres sobre a terceirização, o uso de outsourcing, subcontractors e consultants. Avulta-se, contudo, o lado perverso desta flexibilização, que é o desemprego, a insegurança, a ansiedade, a constante pressão e a competição no nível individual. No rol da flexibilização, acrescentamos também a falta de comprometimento das corporações com as comunidades locais que se sentem à vontade para transferir suas fábricas e escritórios para países e regiões que ofereçam a possibilidade dos acionistas lucrarem mais. No CD-ROM Business Result Pre-intermediate Intercative Workbook constrói-se uma representação da língua inglesa como a língua franca usada por todos os povos para tratar de negócios. É construída também uma promessa bastante ambiciosa: aquele que domina a língua inglesa conquistará não só um lugar numa empresa multinacional, mas ocupará um alto posto, como o de gerente, diretor ou até mesmo CEO (Chief Executive Officer). Ainda sobre as representações da língua inglesa, busca-se apagar as relações desta língua com as culturas anglo-americanas por meio da ausência total de referências a estes povos. Parece haver um interesse em representá-la como a língua falada por todos, que não pertence a nenhum povo em especial e que, portanto, é neutra e não tem conotações ideológicas e culturais. Nosso argumento é o de que, apesar deste processo cuidadoso de apagamento da ligação entre língua e cultura, pela análise das condições de produção deste material didático digital, delineia-se a ligação entre estas partes pela presença constante da ideologia neoliberal, que é fundadora das economias angloamericanas. Embora este CD-ROM não se destine ao uso em sala de aula, é interessante que o professor o traga para sua aula para que seja discutido e problematizado e, assim, promova uma não-suspensão da atitude crítica em relação aos textos didáticos, à língua inglesa e ao modo como o ambiente de trabalho, marcadamente anglo-americano, é representado. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Enfim, ao ensinar inglês, este material didático digital pode ensinar também práticas consideradas normais e naturais do mundo corporativo, indicando ao aluno como deve se posicionar na empresa em que trabalha(rá) a fim de ser bem sucedido. Gostaríamos de concluir reiterando a necessidade de desmistificar a noção de material didático como repositório de saber livre de ideologias. Todo texto é ideológico e consideramos importante e desejável encorajar nos professores e alunos a prática de posicionar-se criticamente frente aos textos com os quais se deparam, inclusive os didáticos, em qualquer modalidade (impressa ou digital). Do contrário, corre-se o risco de contribuir para a naturalização e veiculação de valores e práticas que ajudam a consolidar um tipo de visão de mundo, que nem sempre é possível e aceitável em diferentes contextos. Referências bibliográficas BAUMAN, Z. 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