O AMOR E SUA FOME: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS NOS CANTARES DE HILDA HILST Igor dos Santos Alves (CNPq/UFSJ) Dra. Maria Ângela de Araújo Resende (DELAC/UFSJ) Resumo: O objetivo deste trabalho é o de expor a forma como determinadas expressões sociais constitutivas da modernidade se manifestam através dos poemas de Hilda Hilst, no livro Cantares do sem nome e de partidas (1995). Serão explorados os conceitos de vida e amor líquidos na perspectiva do sociólogo Zygmunt Bauman (2004), no sentido de se compreender a palavra poética como reveladora do espírito de seu tempo; além de utilizar como escopo teórico para se pensar as (re) leituras da tradição moderna na Literatura, o pensamento de Octavio Paz (1984), Silviano Santiago (1989) e Marshall Bermann (1986). Palavras-chave: Hilda Hilst, Poéticas da Modernidade, Vida líquida, Amor Líquido. A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima Olho d'água, bebida. A Vida é líquida. (Hilda Hilst - Alcoólicas) Modernidade: vida e amor “por água abaixo”? Me perdoe a pressa É a alma dos nossos negócios (Paulinho da Viola – Sinal Fechado) E ste trabalho pretende refletir sobre as formas de relação social, em especial o amor, e sua configuração e expressão no mundo contemporâneo, a partir da produção literária inscrita na tradição da modernidade, tendo como objeto o livro Cantares, da poeta brasileira Hilda Hilst (1930-2004). Para que se possa entender como determinadas lógicas de organização social são transpostas do plano político-estrutural para o sociocultural, faz-se necessário pensar o processo histórico de instauração da modernidade, a partir de meados do século XIX, e as modificações pós-revolução industrial no mundo ocidental. A modernidade, como termo classificatório que é, se relaciona menos a um período de tempo do que a uma forma do homem encarar e se relacionar com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Não é possível que se pense em modernidade sem identificar as suas múltiplas possibilidades de expressão e ordenação, porém serão, na medida do possível, “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 ALVES, Igor dos Santos -2- delimitados os possíveis sentidos de interpretação desse termo na perspectiva deste trabalho; pois, como afirma Octavio Paz (1982): Como todas as classificações, as nomenclaturas são instrumentos de trabalho. No entanto, são instrumentos que se tornam inúteis quando queremos empregá-los para tarefas mais sutis do que a simples ordenação externa (p.17). Dessa forma, serão analisados os poemas sob a perspectiva das possíveis representações que a vida e o amor podem tomar numa sociedade que se caracteriza pela liquidez das relações sociais, no sentido de reificar as relações humanas, dominadas pela lógica tecnicista, consumista e imediatista, fruto da aceleração contínua dos meios de comunicação e produção. Além disso, essa produção será influenciada pelo progressivo domínio da indústria cultural sobre o indivíduo, cada vez mais enclausurado em seus prédios e subjetividades; no sentido que observa Benjamin (1955 - p. 170): Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição. Assim, é possível que se analise a obra de Hilda Hilst no sentido de observar a forma como um produto cultural carrega em si a possibilidade de representar as vicissitudes de seu tempo. Modernidade, contradição e contra dicção A partir do século XIX, com a aceleração dos meios de produção e a migração progressiva da população rural para a zona urbana, o mundo ocidental experimentou modificações sociais muito mais profundas do que a evolução tecnicista pode fazer crer. Os tempos posteriores à revolução industrial trouxeram para o ocidente toda uma lógica de maximização da produção e primazia da razão científica em detrimento de outros aspectos da individualidade humana. A defesa desses ‘aspectos’ não tardaria a aparecer sob a forma das revoluções trabalhistas, lutando por direitos desconsiderados pela lógica da produção industrial, que visava apenas lucro e produtividade, apesar dos possíveis efeitos sociais que a instauração dessa prática poderia provocar. O surgimento de correntes de pensamento na linha marxista também corroborou para a reflexão sobre a sociedade e a forma como a exploração dos trabalhadores por uma classe dominante não é justa e deve ser pensada sob outras perspectivas. Houve também reações, no plano artístico/literário, a essa nova realidade cultural, como as iniciados por escritores e poetas como Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire. Esses “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 O AMOR E SUA FOME: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS NOS CANTARES DE HILDA HILST -3- autores experimentaram novas formas de expressão literária, no sentido de explorar o fantástico e o horror, o subversivo como forma de reação à ordem que, a partir da Revolução Industrial afetaria sobremaneira a organização das relações socioculturais vigentes. Baudelaire, em sua conhecida carta O Público Moderno e a Fotografia (1859), afirma que o gosto exclusivo pelo verdadeiro (nobre aptidão quando aplicada a seus fins próprios) oprime o gosto do belo e ainda que é inútil e tedioso representar o que existe, porque nada do que existe me satisfaz. É necessário ressaltar aqui que o conceito de belo se revela muito mais amplo do que a idéia clássica de beleza, e a evolução dessa teoria do grotesco como belo culminaria numa tensão dissonante que seria a principal característica da poesia e da arte moderna, como observa Hugo Friederich (1972): Essa tensão dissonante da poesia moderna exprime-se ainda em (...) traços de origem arcaica, mística e oculta, contrastam com uma aguda intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade daquilo que é expresso, o arredondamento lingüístico com a inextrincabilidade do conteúdo, a precisão com a absurdidade (...) São, em parte, tensões formais e querem, freqüentemente, ser entendidas somente como tais (p.16). Dessa forma, já se pode visualizar como a literatura, em confluência com os sinais sociais de seu tempo, surge no sentido de retratar, no plano da linguagem, o mundo do qual ela emerge, como nos diz Paz (1982): A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; (...) A poesia revela esse mundo; cria outro (p.15). Liquidez e reificação das relações socioculturais na (pós?) modernidade Calma, não te assustes. Precisas acostumar-te com a cidade E seus ritos pendulares. Não viste nos jornais aquele grito E nas vitrinas em voz e cifra Liquidação Liquidação? (Liquidação de Inverno - Carlos Drummond de Andrade) Sob este prisma, é possível que se lance um olhar adiante, a partir das modificações causadas pela (r)evolução da tecnologia, especialmente dos meios de comunicação e do encurtamento de distâncias (física e virtuais), a partir da segunda metade do séc XX, e de que forma essas transformações causariam mudanças substanciais na cultura e na configuração das relações sociais do mundo ocidental do que o desenvolvimento da técnica industrial-tecnológica poderia fazer crer. “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 ALVES, Igor dos Santos -4- O avanço dessas novas formas de contato com o mundo e com o outro, causadas principalmente pelo pensamento neoliberal dominante, aliado à alienação consequente da primazia da cultura de massa e do intenso desenvolvimento experimentado pela produção tecnológica, resultariam numa espécie de reificação das relações entre os indivíduos que, imersos numa lógica de consumo, rapidez e fugacidade, passariam a adotar esses aspectos como norteadores de suas vidas. Essa noção de aproximação das distancias e 'coisificação' das relações do indivíduo com o que lhe é externo, é colocada por Walter Benjamin em seu ensaio A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica (1955): Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, a transitoriedade e a repetibilidade. (p.170) O consumismo aparece aí como um espectro em um mundo em que as relações são cada vez menos estáticas e a imagem da liquidez como metáfora dessa nova configuração das coisas parece cada vez mais pertinente. Nesse sentido, pode-se também observar como se manifesta essa sociedade do consumo, como pondera Bauman em Vida Líquida (2002), em que para além de meramente ser a soma de todos os consumidores, caracteriza um grupo que passa até a encarar uns aos outros como produtos a serem consumidos. Essa dinâmica da síndrome do consumo (...) se relaciona à descartabilidade das relações, das pessoas, das informações e das coisas em geral, assim como das pessoas, o que nos remete ao conceito da vida moderno-líquida (p.111). Assim, observa-se essa expressão de descartabilidade do indivíduo e do Outro nas relações afetivas, num jogo imediato e constante, que não admite procrastinações e a satisfação do agora é a regra, como reflete Bauman (2004): Guiada pelo impulso..., a parceria segue o padrão do shopping e não exige mais que as habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez. É, antes de mais nada, eminentemente descartável (p. 27). Sob essa ótica, pode-se perceber, de forma sucinta, como o abalo sísmico nas bases da sociedade, tanto no século. XIX como no XX, causaram modificações estruturais, que não “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 O AMOR E SUA FOME: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS NOS CANTARES DE HILDA HILST -5- se limitam a este ou aquele aspecto. Dessa forma, pode-se pensar numa produção cultural que refletiria, contestaria e revelaria feições sobre e sob estes tempos, em que a fragmentação identitária dos sujeitos e a intensa velocidade e fugacidade das relações seriam as principais características. A arte e a cultura apareceriam aí como preservadores de uma tradição em que expressões de contestação e releitura seriam as principais balizas, como assinala Octavio Paz (1984) sobre a tradição da ruptura e da analogia, característicos dos tempos modernos. Baudelaire, em O Pintor da Vida Moderna (1860) revela sua consciência sobre o essencial na modernidade, e o papel daquelas que a re-tratam: Por modernidade eu entendo o efêmero, o contingente, a metade cuja outra metade é eterna e imutável... num instante que passa e (em) todas as sugestões de eternidade que ele contém (p.174). E é neste caminho que este trabalho deve seguir. O amor e sua Fome ...en liquido humor viste y tocaste mi corazón deshecho entro tus manos (Sóror Juana Inés de La cruz) O livro Cantares do sem nome e de partidas (1995) constitui-se numa série de dez poemas, titulados apenas por sua numeração, tratando da temática proposta no título: o amor, sua fugacidade e dificuldade de representação e expressão. Interessante notar o primeiro e o último verso deste conjunto de textos que pode ser considerado, talvez, um grande poema: Que este amor não me cegue nem me siga – O amor e sua fome. O primeiro verso já introduz uma expressão que será desenvolvida no decorrer dos poemas, que é a impossibilidade da permanência do amor em um lócus permanente, fruto talvez da falta de estaticidade num mundo onde a rapidez é a regra, e ainda da natureza do próprio amor, que encontra na sua realização, a sua destruição, como observa Bauman (2004): Para Ivan Klima, poucas coisas se parecem tanto coma morte quanto o amor realizado. Cada chegada de um dos dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta a repetição, não permite recurso nem promete prorrogação. Deve sustentar-se “por si mesmo” – e consegue. Cada um deles nasce, ou renasce, no próprio momento em que surge, sempre a partir do nada, da escuridão do não ser sem passado nem futuro; começa sempre do começo, desnudando o caráter supérfluo das tramas passadas e a futilidade dos enredos futuros (p. 16 - 17). “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 ALVES, Igor dos Santos -6- O sujeito poético, através desse embate entre a realização-destruição do amor, e a impossibilidade de permanência num mundo moderno/líquido, encontra como saída o constante deslocamento, na busca de um não-lugar onde o amor possa se (des) realizar e, assim, permanecer, para que se cumpra uma efetiva realização da possibilidade do (não) amor. Só através de seu avesso, justamente pela relação dialógica do amor, é que ele pode se realizar, num movimento de constante deslocamento. Há aí o medo da prisão o do sofrimento provocado por este amor, que se constitui fundamentalmente de opostos, como a liberdade e a prisão, a beleza e as trevas, grandeza e pequenez, como pode ser observado no primeiro e emblemático poema: Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro. Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e Tenta Como só soem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida. Nesse sentido, abre-se cada vez mais o sujeito poético para a possibilidade da fuga, para perpetuar o que está sendo, como diz o segundo verso do poema III, transfigurando ainda o sentimento para algo distinto, que não tem nome de amor, reforçando a ideia da distância, da completude do todo apenas no outro lado da dicotomia, que prefere a ausência à escorregadia presença, que resultaria num inescapável, e trágico, desfecho: Isso de mim que anseia despedida “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 O AMOR E SUA FOME: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS NOS CANTARES DE HILDA HILST -7- (para perpetuar o que está sendo) Não tem nome de amor. Nem é celeste Ou terreno, Isso de mim é marulhoso E tenro. Dançarino também. Isso de mim É novo: Como quem come o que nada contém. A impossível oquidão de um ovo. Como se um tigre Reversivo Veemente de seu avesso Cantasse mansamente. Não tem nome de amor. Nem se parece a mim. Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso Dançarino e novo, ter nome de ninguém E preferir ausência e desconforto Para guardar no eterno o coração do outro. A imagem do outro como representação daquilo que escapa à possibilidade de representação na linguagem é expressa de várias formas no decorrer dos poemas, sendo chamado de “isso”, o “sem nome”, “esse”, “uma Cara”, o “Nunca mais”. Esses signos trazem em si a expressão desse 'algo' que está entre o paradoxo realização/destruição, que seria, aí, o cerne do que chamamos amor. Essa expressão de um Outro reflete tanto a incompletude necessária ao próprio amor, quanto ao próprio sujeito, inscrito num processo de procura, no sentido que nos diz Bauman (2004): Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor (p.22). Ao sinalizar o aparecimento do outro, do nunca, do distanciamento, o sujeito poético fala também de si, do sempre, da proximidade, através do jogo de recorrência de termos e de várias (intencionais) contradições, como pode ser observado nos seguintes trechos, constantes nos poemas IV e V, respectivamente: Isso sem nome fere e faz feridas. Penitente e algoz: “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 ALVES, Igor dos Santos -8- Como se só na morte abraçasses a vida. (...) Penitente e doloso Pode ser o sumo de um instante. Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte. Fêmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todo Que só se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais. O Nunca mais não é verdade. Há ilusões, assomos, há repentes De perpetuar a Duração. O Nunca Mais é só meia-verdade: Como se viesses a ave entre a folhagem E ao mesmo tempo não. (…) É de perpetuidade no que pensas efêmero E breve e pequenino No que sentes eterno. Nem é corvo ou poema o Nunca Mais. Na construção simbólica dessa relação de vida/morte, criação/destruição, coerência/contradição, se manifesta a tendência deste amor de auto aniquilação, a qual não impede que ele se dê no plano das possibilidades positivas, porém obriga o sujeito e desfazer-se de si, e abrir mão de suas defesas. O amor pode ser, e frequentemente é, tão atemorizante quando a morte. Essa deficiência na segurança de si, no sentido em que Freud (1930) afirma que o amor é o estado de maior fragilidade do indivíduo, junto das feridas e ressentimentos da vida compartilhada, faz parte da teia de argumentos que vão sendo construídos nos poemas, para quase que justificar essa necessidade de partida, como pode ser visualizado nos poemas VI, VII e VIII: Tem nome veemente. O Nunca Mais tem fome. De formosura, desgosto, ri E chora. Um tigre passeia o Nunca Mais “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 O AMOR E SUA FOME: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS NOS CANTARES DE HILDA HILST -9- Sobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue E perseguido és novo, devastado e outro. Pensas comicidade no que é breve: paixão? Há de se diluir. Molhaduras, lençóis E de fartar-se - Porque me fiz tanto de ressentimentos Que o melhor é partir. E te mandar escritos. (...) Perdi-me tanto em ti Que quando estou contigo não sou vista E quando estás comigo vêem aquela. - Saber-se pertencente é ter mais nada. É ter tudo também. É como ter o rio, aquele que deságua Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns. (…) Pertencente é não ter rosto. É ser amante De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã. Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender. É vida e ferida ao mesmo tempo, “ESSE” Que bem me sabe inteira pertencida. Interessante notar como a imagem da água, da liquidez, do fluido, é presente na poética da autora, e não por acaso. Não há indício de conexão direta com o pensamento de teóricos que utilizam imagens semelhantes para a sociedade moderna (como infinitas águas de um sem-fim de ninguéns), porém é notável como o mundo moderno-líquido se faz presente na poética em questão, especialmente quando se pensa na relação de desapego e pertencimento do amor colocado em xeque. Essas características, para além de ilustrar teorias com poemas, ou poemas com teorias, possibilita o entendimento de um sentimento de mundo expresso na palavra poética, e ainda, minimamente, reafirma o “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 ALVES, Igor dos Santos -10- caráter eminentemente moderno dessa poesia, como podemos conferir em Berman (1982): Ser moderno, eu dizia, é experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambiguidade e contradição: é ser parte de um universo em que tudo que é sólido desmancha no ar. Ser um modernista é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao redemoinho, fazer seu ritmo o dele, movimentar-se entre suas correntes em busca de novas formas de realidade, beleza, liberdade, justiça, permitidas pelo seu fluxo ardoroso e arriscado (p. 328). No desenvolvimento dos poemas, pode-se perceber como, no poema IX, é apresentada, finalmente, uma postura de redenção e de aceitação do amor e suas consequências, mesmo com as inevitáveis perdas e deslocamentos que a sua vivência trará, é sugerida uma coragem trágica como a postura a ser tomada: (...) Mas tudo mais falece quando pensas tardança E te despedes. E quando pensas breve Teu balbucio trêmulo, teu texto desengano Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha. E quando pensas VIDA QUE ESMORECE, E retomas Luta, ascese, e as mós vão triturando Tua esmaltada Garganta.... Mas assim mesmo Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas... Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade A esperança. É reconhecido o caráter inalcançável (e também inevitável) do ter e pertencer a um Outro-alguém, porém surge nesse discurso a imagem da esperança, ainda que tudo se desfaça, ainda que a relação entre Eros e Tanatos seja sempre concomitante, como é expresso nesse extenso mas revelador trecho de Amor Líquido: Eros é “uma relação com a alteridade, com o mistério, ou seja, com o futuro, com o que está ausente do mundo que contem tudo o que é...”.”O pathos do amor consiste na intransponível dualidade dos seres.” Tentativas de superar essa dualidade, de abrandar o obstinado e domar o turbulento, de tornar prognosticável o incognoscível e de acorrentar o “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 O AMOR E SUA FOME: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS NOS CANTARES DE HILDA HILST -11- nômade – tudo isso soa como um dobre de finados para o amor. Eros não quer sobreviver à dualidade. Quando se trata de amor, posse, poder, fusão e desencanto são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Nisso reside a assombrosa fragilidade do amor, lado a lado, com sua maldita recusa em suportar com leveza a vulnerabilidade. Todo amor empanha-se em subjugar, mas quando triunfa encontra a derradeira derrota. (…) Eros é possuído pelo fantasma de Tanatos, que nenhum encantamento mágico é capaz de exorcizar. A questão não é a precocidade de Eros, e não há instrução ou expedientes autodidáticos que possam libertá-lo de sua mórbida – suicida – inclinação (p. 22) É notável como, nesse penúltimo poema, aparece a imagem de seu texto-desengano, que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha, representando a palavra poética como reveladora do ser e da proximidade de seu desfecho (trágico), inevitável na liquidez da vida (morte) e no amor (separação). Ainda assim, faz-se necessária a crença num futuro incerto, na arte, ou em qualquer outra coisa que nos livre da catástrofe das coisas seguirem seu curso, nas palavras de Walter Benjamin. Um caminho a ser buscado entre a incerteza futura, como nos diz Bauman (2004): Nunca terá confiança suficiente para dispersar as nuvens e abafar a ansiedade. O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável. (p. 23) Enfim, a utopia, como possibilidade de escape à substância trágica da vida, e da fugacidade da existência perante o tudo e o todo, representado também por um outro, talvez um deus, ou o próprio Outro, como canta o último poema: Como se fosse verdade encantações, poemas Como se Aquele ouvisse arrebatado Teus cantares de louca, as cantigas da pena. Como se a cada noite de ti se despedisse Com colibris na boca. E candeias e frutos, como se fosses amante E estivesses de luto, e Ele, o Pai Te fizesse porisso adormecer... (como se se apiedasse porque humana És apenas poeira, E Ele o grande Tecelão da tua morte: a teia). Considerações Finais “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V – Número V – Janeiro a Dezembro de 2010 ALVES, Igor dos Santos -12- A partir dessa breve analise dos poemas, em contraponto com a reflexão sobre a própria modernidade, pode-se perceber como é representada, nessa obra, a dramaticidade e a vanidade deste amor-vida, porém em confluência com as propriedades intrínsecas à própria finitude do ser. Finitude enquanto possibilidade de início e fim, conhecimento e reconhecimento, permanência e deslocamento. Daí a beleza do acabar e do partir, da fome deste estado que é, por mais que se tente em filosofia, poesia e sensações se definir ou se sentir, indefinível. Inefável. Enfim, ISSO: Como se fosse vão te amar e por isso perfeito. Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se. E não é ele, o Fazedor, o Artífice, o Cego O Seguidor disso sem nome? ISSO... O Amor e sua Fome. Referências: BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. ______. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha pelo ar: a aventura da modernidade. 14. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 1986. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Magia, Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise Airione. São Paulo: Duas Cidades, 1978. FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1995. HILST, Hilda. Cantares. São Paulo: Globo, 2002. 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