O AMOR E SUA FOME: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS NOS
CANTARES DE HILDA HILST
Igor dos Santos Alves (CNPq/UFSJ)
Dra. Maria Ângela de Araújo Resende (DELAC/UFSJ)
Resumo: O objetivo deste trabalho é o de expor a forma como determinadas expressões
sociais constitutivas da modernidade se manifestam através dos poemas de Hilda Hilst, no livro
Cantares do sem nome e de partidas (1995). Serão explorados os conceitos de vida e amor
líquidos na perspectiva do sociólogo Zygmunt Bauman (2004), no sentido de se compreender a
palavra poética como reveladora do espírito de seu tempo; além de utilizar como escopo teórico
para se pensar as (re) leituras da tradição moderna na Literatura, o pensamento de Octavio Paz
(1984), Silviano Santiago (1989) e Marshall Bermann (1986).
Palavras-chave: Hilda Hilst, Poéticas da Modernidade, Vida líquida, Amor Líquido.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
(Hilda Hilst - Alcoólicas)
Modernidade: vida e amor “por água abaixo”?
Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios
(Paulinho da Viola – Sinal Fechado)
E
ste trabalho pretende refletir sobre as formas de relação social, em especial o
amor, e sua configuração e expressão no mundo contemporâneo, a partir da produção
literária inscrita na tradição da modernidade, tendo como objeto o livro Cantares, da
poeta brasileira Hilda Hilst (1930-2004).
Para que se possa entender como determinadas lógicas de organização social são
transpostas do plano político-estrutural para o sociocultural, faz-se necessário pensar o
processo histórico de instauração da modernidade, a partir de meados do século XIX, e
as modificações pós-revolução industrial no mundo ocidental. A modernidade, como
termo classificatório que é, se relaciona menos a um período de tempo do que a uma
forma do homem encarar e se relacionar com o mundo, com o outro e consigo mesmo.
Não é possível que se pense em modernidade sem identificar as suas múltiplas
possibilidades de expressão e ordenação, porém serão, na medida do possível,
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delimitados os possíveis sentidos de interpretação desse termo na perspectiva deste
trabalho; pois, como afirma Octavio Paz (1982): Como todas as classificações, as
nomenclaturas são instrumentos de trabalho. No entanto, são instrumentos que se
tornam inúteis quando queremos empregá-los para tarefas mais sutis do que a simples
ordenação externa (p.17).
Dessa forma, serão analisados os poemas sob a perspectiva das possíveis
representações que a vida e o amor podem tomar numa sociedade que se caracteriza
pela liquidez das relações sociais, no sentido de reificar as relações humanas, dominadas
pela lógica tecnicista, consumista e imediatista, fruto da aceleração contínua dos meios
de comunicação e produção. Além disso, essa produção será influenciada pelo
progressivo domínio da indústria cultural sobre o indivíduo, cada vez mais enclausurado
em seus prédios e subjetividades; no sentido que observa Benjamin (1955 - p. 170):
Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um
processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição.
Assim, é possível que se analise a obra de Hilda Hilst no sentido de observar a forma
como um produto cultural carrega em si a possibilidade de representar as vicissitudes de
seu tempo.
Modernidade, contradição e contra dicção
A partir do século XIX, com a aceleração dos meios de produção e a migração
progressiva da população rural para a zona urbana, o mundo ocidental experimentou
modificações sociais muito mais profundas do que a evolução tecnicista pode fazer crer.
Os tempos posteriores à revolução industrial trouxeram para o ocidente toda uma lógica
de maximização da produção e primazia da razão científica em detrimento de outros
aspectos da individualidade humana. A defesa desses ‘aspectos’ não tardaria a aparecer
sob a forma das revoluções trabalhistas, lutando por direitos desconsiderados pela lógica
da produção industrial, que visava apenas lucro e produtividade, apesar dos possíveis
efeitos sociais que a instauração dessa prática poderia provocar. O surgimento de
correntes de pensamento na linha marxista também corroborou para a reflexão sobre a
sociedade e a forma como a exploração dos trabalhadores por uma classe dominante
não é justa e deve ser pensada sob outras perspectivas.
Houve também reações, no plano artístico/literário, a essa nova realidade cultural, como
as iniciados por escritores e poetas como Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire. Esses
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autores experimentaram novas formas de expressão literária, no sentido de explorar o
fantástico e o horror, o subversivo como forma de reação à ordem que, a partir da
Revolução Industrial afetaria sobremaneira a organização das relações socioculturais
vigentes. Baudelaire, em sua conhecida carta O Público Moderno e a Fotografia (1859),
afirma que o gosto exclusivo pelo verdadeiro (nobre aptidão quando aplicada a seus fins
próprios) oprime o gosto do belo e ainda que é inútil e tedioso representar o que existe,
porque nada do que existe me satisfaz. É necessário ressaltar aqui que o conceito de
belo se revela muito mais amplo do que a idéia clássica de beleza, e a evolução dessa
teoria do grotesco como belo culminaria numa tensão dissonante que seria a principal
característica da poesia e da arte moderna, como observa Hugo Friederich (1972):
Essa tensão dissonante da poesia moderna exprime-se ainda em (...)
traços de origem arcaica, mística e oculta, contrastam com uma aguda
intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade
daquilo que é expresso, o arredondamento lingüístico com a
inextrincabilidade do conteúdo, a precisão com a absurdidade (...) São,
em parte, tensões formais e querem, freqüentemente, ser entendidas
somente como tais (p.16).
Dessa forma, já se pode visualizar como a literatura, em confluência com os sinais
sociais de seu tempo, surge no sentido de retratar, no plano da linguagem, o mundo do
qual ela emerge, como nos diz Paz (1982): A poesia é conhecimento, salvação, poder,
abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária
por natureza; (...) A poesia revela esse mundo; cria outro (p.15).
Liquidez e reificação das relações socioculturais na (pós?) modernidade
Calma, não te assustes.
Precisas acostumar-te com a cidade
E seus ritos pendulares.
Não viste nos jornais aquele grito
E nas vitrinas em voz e cifra
Liquidação
Liquidação?
(Liquidação de Inverno - Carlos Drummond de Andrade)
Sob este prisma, é possível que se lance um olhar adiante, a partir das modificações
causadas pela (r)evolução da tecnologia, especialmente dos meios de comunicação e do
encurtamento de distâncias (física e virtuais), a partir da segunda metade do séc XX, e de
que forma essas transformações causariam mudanças substanciais na cultura e na
configuração das relações sociais do mundo ocidental do que o desenvolvimento da
técnica industrial-tecnológica poderia fazer crer.
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O avanço dessas novas formas de contato com o mundo e com o outro, causadas
principalmente pelo pensamento neoliberal dominante, aliado à alienação consequente
da primazia da cultura de massa e do intenso desenvolvimento experimentado pela
produção tecnológica, resultariam numa espécie de reificação das relações entre os
indivíduos que, imersos numa lógica de consumo, rapidez e fugacidade, passariam a
adotar esses aspectos como norteadores de suas vidas. Essa noção de aproximação das
distancias e 'coisificação' das relações do indivíduo com o que lhe é externo, é colocada
por Walter Benjamin em seu ensaio A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica
(1955):
Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão
apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o
caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade. Cada
dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, a transitoriedade e a
repetibilidade. (p.170)
O consumismo aparece aí como um espectro em um mundo em que as relações são
cada vez menos estáticas e a imagem da liquidez como metáfora dessa nova
configuração das coisas parece cada vez mais pertinente.
Nesse sentido, pode-se
também observar como se manifesta essa sociedade do consumo, como pondera
Bauman em Vida Líquida (2002), em que para além de
meramente ser a soma de todos os consumidores, caracteriza um grupo
que passa até a encarar uns aos outros como produtos a serem
consumidos. Essa dinâmica da síndrome do consumo (...) se relaciona à
descartabilidade das relações, das pessoas, das informações e das
coisas em geral, assim como das pessoas, o que nos remete ao conceito
da vida moderno-líquida (p.111).
Assim, observa-se essa expressão de descartabilidade do indivíduo e do Outro nas
relações afetivas, num jogo imediato e constante, que não admite procrastinações e a
satisfação do agora é a regra, como reflete Bauman (2004):
Guiada pelo impulso..., a parceria segue o padrão do shopping e não
exige mais que as habilidades de um consumidor médio,
moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve
ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem
uma preparação prolongada) e usada uma só vez. É, antes de mais
nada, eminentemente descartável (p. 27).
Sob essa ótica, pode-se perceber, de forma sucinta, como o abalo sísmico nas bases da
sociedade, tanto no século. XIX como no XX, causaram modificações estruturais, que não
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se limitam a este ou aquele aspecto. Dessa forma, pode-se pensar numa produção
cultural que refletiria, contestaria e revelaria feições sobre e sob estes tempos, em que a
fragmentação identitária dos sujeitos e a intensa velocidade e fugacidade das relações
seriam as principais características. A arte e a cultura apareceriam aí como
preservadores de uma tradição em que expressões de contestação e releitura seriam as
principais balizas, como assinala Octavio Paz (1984) sobre a tradição da ruptura e da
analogia, característicos dos tempos modernos. Baudelaire, em O Pintor da Vida
Moderna (1860) revela sua consciência sobre o essencial na modernidade, e o papel
daquelas que a re-tratam: Por modernidade eu entendo o efêmero, o contingente, a
metade cuja outra metade é eterna e imutável... num instante que passa e (em) todas as
sugestões de eternidade que ele contém (p.174). E é neste caminho que este trabalho
deve seguir.
O amor e sua Fome
...en liquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entro tus manos
(Sóror Juana Inés de La cruz)
O livro Cantares do sem nome e de partidas (1995) constitui-se numa série de dez
poemas, titulados apenas por sua numeração, tratando da temática proposta no título: o
amor, sua fugacidade e dificuldade de representação e expressão. Interessante notar o
primeiro e o último verso deste conjunto de textos que pode ser considerado, talvez, um
grande poema: Que este amor não me cegue nem me siga – O amor e sua fome. O
primeiro verso já introduz uma expressão que será desenvolvida no decorrer dos
poemas, que é a impossibilidade da permanência do amor em um lócus permanente,
fruto talvez da falta de estaticidade num mundo onde a rapidez é a regra, e ainda da
natureza do próprio amor, que encontra na sua realização, a sua destruição, como
observa Bauman (2004):
Para Ivan Klima, poucas coisas se parecem tanto coma morte quanto o
amor realizado. Cada chegada de um dos dois é sempre única, mas
também definitiva: não suporta a repetição, não permite recurso nem
promete prorrogação. Deve sustentar-se “por si mesmo” – e consegue.
Cada um deles nasce, ou renasce, no próprio momento em que surge,
sempre a partir do nada, da escuridão do não ser sem passado nem
futuro; começa sempre do começo, desnudando o caráter supérfluo das
tramas passadas e a futilidade dos enredos futuros (p. 16 - 17).
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O sujeito poético, através desse embate entre a realização-destruição do amor, e a
impossibilidade de permanência num mundo moderno/líquido, encontra como saída o
constante deslocamento, na busca de um não-lugar onde o amor possa se (des) realizar
e, assim, permanecer, para que se cumpra uma efetiva realização da possibilidade do
(não) amor. Só através de seu avesso, justamente pela relação dialógica do amor, é que
ele pode se realizar, num movimento de constante deslocamento. Há aí o medo da prisão
o do sofrimento provocado por este amor, que se constitui fundamentalmente de opostos,
como a liberdade e a prisão, a beleza e as trevas, grandeza e pequenez, como pode ser
observado no primeiro e emblemático poema:
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e Tenta
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
Nesse sentido, abre-se cada vez mais o sujeito poético para a possibilidade da fuga, para
perpetuar o que está sendo, como diz o segundo verso do poema III, transfigurando
ainda o sentimento para algo distinto, que não tem nome de amor, reforçando a ideia da
distância, da completude do todo apenas no outro lado da dicotomia, que prefere a
ausência à escorregadia presença, que resultaria num inescapável, e trágico, desfecho:
Isso de mim que anseia despedida
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(para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno, Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.
A imagem do outro como representação daquilo que escapa à possibilidade de
representação na linguagem é expressa de várias formas no decorrer dos poemas, sendo
chamado de “isso”, o “sem nome”, “esse”, “uma Cara”, o “Nunca mais”. Esses signos
trazem em si a expressão desse 'algo' que está entre o paradoxo realização/destruição,
que seria, aí, o cerne do que chamamos amor. Essa expressão de um Outro reflete tanto
a incompletude necessária ao próprio amor, quanto ao próprio sujeito, inscrito num
processo de procura, no sentido que nos diz Bauman (2004):
Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições
humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama
irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a
liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o
companheiro no amor (p.22).
Ao sinalizar o aparecimento do outro, do nunca, do distanciamento, o sujeito poético fala
também de si, do sempre, da proximidade, através do jogo de recorrência de termos e de
várias (intencionais) contradições, como pode ser observado nos seguintes trechos,
constantes nos poemas IV e V, respectivamente:
Isso sem nome fere e faz feridas.
Penitente e algoz:
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Como se só na morte abraçasses a vida.
(...)
Penitente e doloso
Pode ser o sumo de um instante.
Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte.
Fêmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todo
Que só se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais.
O Nunca mais não é verdade.
Há ilusões, assomos, há repentes
De perpetuar a Duração.
O Nunca Mais é só meia-verdade:
Como se viesses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tempo não.
(…)
É de perpetuidade no que pensas efêmero
E breve e pequenino
No que sentes eterno.
Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.
Na
construção
simbólica
dessa
relação
de
vida/morte,
criação/destruição,
coerência/contradição, se manifesta a tendência deste amor de auto aniquilação, a qual
não impede que ele se dê no plano das possibilidades positivas, porém obriga o sujeito e
desfazer-se de si, e abrir mão de suas defesas. O amor pode ser, e frequentemente é,
tão atemorizante quando a morte. Essa deficiência na segurança de si, no sentido em
que Freud (1930) afirma que o amor é o estado de maior fragilidade do indivíduo, junto
das feridas e ressentimentos da vida compartilhada, faz parte da teia de argumentos que
vão sendo construídos nos poemas, para quase que justificar essa necessidade de
partida, como pode ser visualizado nos poemas VI, VII e VIII:
Tem nome veemente. O Nunca Mais tem fome.
De formosura, desgosto, ri
E chora. Um tigre passeia o Nunca Mais
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Sobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue
E perseguido és novo, devastado e outro.
Pensas comicidade no que é breve: paixão?
Há de se diluir. Molhaduras, lençóis
E de fartar-se
-
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
(...)
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo vêem aquela.
-
Saber-se pertencente é ter mais nada.
É ter tudo também.
É como ter o rio, aquele que deságua
Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.
(…)
Pertencente é não ter rosto. É ser amante
De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã.
Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender.
É vida e ferida ao mesmo tempo, “ESSE”
Que bem me sabe inteira pertencida.
Interessante notar como a imagem da água, da liquidez, do fluido, é presente na poética
da autora, e não por acaso. Não há indício de conexão direta com o pensamento de
teóricos que utilizam imagens semelhantes para a sociedade moderna (como infinitas
águas de um sem-fim de ninguéns), porém é notável como o mundo moderno-líquido se
faz presente na poética em questão, especialmente quando se pensa na relação de
desapego e pertencimento do amor colocado em xeque. Essas características, para além
de ilustrar teorias com poemas, ou poemas com teorias, possibilita o entendimento de um
sentimento de mundo expresso na palavra poética, e ainda, minimamente, reafirma o
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caráter eminentemente moderno dessa poesia, como podemos conferir em Berman
(1982):
Ser moderno, eu dizia, é experimentar a existência pessoal e social
como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua
desintegração e renovação, agitação e angústia, ambiguidade e
contradição: é ser parte de um universo em que tudo que é sólido
desmancha no ar. Ser um modernista é sentir-se de alguma forma em
casa em meio ao redemoinho, fazer seu ritmo o dele, movimentar-se
entre suas correntes em busca de novas formas de realidade, beleza,
liberdade, justiça, permitidas pelo seu fluxo ardoroso e arriscado (p. 328).
No desenvolvimento dos poemas, pode-se perceber como, no poema IX, é apresentada,
finalmente, uma postura de redenção e de aceitação do amor e suas consequências,
mesmo com as inevitáveis perdas e deslocamentos que a sua vivência trará, é sugerida
uma coragem trágica como a postura a ser tomada:
(...)
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE, E retomas
Luta, ascese, e as mós vão triturando
Tua esmaltada Garganta.... Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.
É reconhecido o caráter inalcançável (e também inevitável) do ter e pertencer a um
Outro-alguém, porém surge nesse discurso a imagem da esperança, ainda que tudo se
desfaça, ainda que a relação entre Eros e Tanatos seja sempre concomitante, como é
expresso nesse extenso mas revelador trecho de Amor Líquido:
Eros é “uma relação com a alteridade, com o mistério, ou seja, com o
futuro, com o que está ausente do mundo que contem tudo o que é...”.”O
pathos do amor consiste na intransponível dualidade dos seres.”
Tentativas de superar essa dualidade, de abrandar o obstinado e domar
o turbulento, de tornar prognosticável o incognoscível e de acorrentar o
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nômade – tudo isso soa como um dobre de finados para o amor. Eros
não quer sobreviver à dualidade. Quando se trata de amor, posse, poder,
fusão e desencanto são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
Nisso reside a assombrosa fragilidade do amor, lado a lado, com sua
maldita recusa em suportar com leveza a vulnerabilidade. Todo amor
empanha-se em subjugar, mas quando triunfa encontra a derradeira
derrota. (…) Eros é possuído pelo fantasma de Tanatos, que nenhum
encantamento mágico é capaz de exorcizar. A questão não é a
precocidade de Eros, e não há instrução ou expedientes autodidáticos
que possam libertá-lo de sua mórbida – suicida – inclinação (p. 22)
É notável como, nesse penúltimo poema, aparece a imagem de seu texto-desengano,
que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha, representando a palavra poética
como reveladora do ser e da proximidade de seu desfecho (trágico), inevitável na liquidez
da vida (morte) e no amor (separação). Ainda assim, faz-se necessária a crença num
futuro incerto, na arte, ou em qualquer outra coisa que nos livre da catástrofe das coisas
seguirem seu curso, nas palavras de Walter Benjamin. Um caminho a ser buscado entre
a incerteza futura, como nos diz Bauman (2004): Nunca terá confiança suficiente para
dispersar as nuvens e abafar a ansiedade. O amor é uma hipoteca baseada num futuro
incerto e inescrutável. (p. 23)
Enfim, a utopia, como possibilidade de escape à substância trágica da vida, e da
fugacidade da existência perante o tudo e o todo, representado também por um outro,
talvez um deus, ou o próprio Outro, como canta o último poema:
Como se fosse verdade encantações, poemas
Como se Aquele ouvisse arrebatado
Teus cantares de louca, as cantigas da pena.
Como se a cada noite de ti se despedisse
Com colibris na boca.
E candeias e frutos, como se fosses amante
E estivesses de luto, e Ele, o Pai
Te fizesse porisso adormecer...
(como se se apiedasse porque humana
És apenas poeira,
E Ele o grande Tecelão da tua morte: a teia).
Considerações Finais
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A partir dessa breve analise dos poemas, em contraponto com a reflexão sobre a própria
modernidade, pode-se perceber como é representada, nessa obra, a dramaticidade e a
vanidade deste amor-vida, porém em confluência com as propriedades intrínsecas à
própria finitude do ser. Finitude enquanto possibilidade de início e fim, conhecimento e
reconhecimento, permanência e deslocamento. Daí a beleza do acabar e do partir, da
fome deste estado que é, por mais que se tente em filosofia, poesia e sensações se
definir ou se sentir, indefinível. Inefável. Enfim, ISSO:
Como se fosse vão te amar e por isso perfeito.
Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se.
E não é ele, o Fazedor, o Artífice, o Cego
O Seguidor disso sem nome? ISSO...
O Amor e sua Fome.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
______. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: A modernidade de Baudelaire. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha pelo ar: a aventura da modernidade. 14. ed.
São Paulo: Companhia Das Letras, 1986.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Magia, Técnica, Arte e
Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise Airione. São Paulo: Duas Cidades,
1978.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
HILST, Hilda. Cantares. São Paulo: Globo, 2002.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
______. Os filhos do barro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1984.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da Letra. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
______. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
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