O Amor e seus transtornos a partir de Hilda Hilst e seus devoramentos Andrea Fricke Duarte Mestranda PPG Psico Social/UFRGS I- Hilda Hilst nos devora “VI-ME AFASTADA DO CENTRO de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas”. Assim começa o romance A Obscena Senhora D, da escritora brasileira Hilda Hilst. Esta é a fala de Hillé, a personagem. Uma senhora de sessenta anos que escolhe o vão da escada para morar. Seu marido Ehud, morre um ano, ela diz, após essa sua retirada do espaço comum. Dali do vão da escada ela conversa com ele, com alguns poucos moradores da vila onde mora e também conversa com Deus, o qual ela chama às vezes de O Porco-menino, menino-louco, menino-precioso. Hilda Hilst nos apresenta uma mulher-personagem que quer encontrar respostas. O diálogo com seu marido é sempre o do desencontro entre o desejo de ambos. Hillé quer compreender, O todo, o incomensurável, seu corpo, a matéria, nada mais parece dizer-lhe respeito, enquanto para Ehud, o mundo concreto do sexo, do café, do passeio na rua, esse mundo da cotidianidade lhe é familiar. Não há encontro entre eles: “o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud compreender o quê? isso de vida e morte, esses porquês escute, Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizesses um café, hen?(p.18) Há na personagem uma busca desenfreada por respostas que dessem a ela alguma garantia de sentido. “Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A senhora D. D de derrelição, ouviu? (p.35) Então Hillé volta a falar a sós, narrando seu desamparo frente à espera de um Deus que a teria abandonado, e num complexo jorro de palavras, intercalando o cômico e o grotesco da humanidade, Hillé testemunha ao leitor horrores das páginas dos jornais, situações de violência e corpos torturados. Ao relatar terríveis fatos, insiste na sua condição desamparada frente a uma suposta totalidade, o porco-menino, que a cada página está mais esburacado. Edson Sousa (2007/2009), professor e psicanalista, pesquisador da questão das utopias hoje relembra a importância do precário e do informe como condição de resistência política. Vai trazer a dimensão da utopia num sentido negativo, de fracasso1, como uma operação de esburacamento dos ideais, de “desclassificar o sujeito, levá-lo a uma perturbação que lhe restitua uma chance de enunciação mesmo em estado de desespero.” Isto nos interessa uma vez que apostamos que haja uma transmissão na fala desesperada de Hillé que precisa ser escutada. Nós leitores avançamos extenuados, ora rindo pelo modo absurdo com que Hilda Hilst encadeia à narrativa, ora horrorizados com um vislumbre cada vez mais vívido do nosso próprio desamparo. Na primeira frase do romance, Hillé se intitula teófaga. Teófago é aquele que come deus. Aqui não temos bem certeza quem é devorado. Ora somos nós leitores, devorados pelas perguntas irrespondíveis de Hillé, de sua fúria desejosa e desesperada por alguma garantia, qualquer em que ela pudesse repousar um pouco a cabeça. Ora, será ela devorando a divindade, furando sua idéia de totalidade, tornando o divino entre o humano e o animal: o porco-menino, entre uma infância louca desgovernada e a animalidade. O que Hilda Hilst põe em cena é justamente uma tensão, entre o desejo intenso de encontrar uma resposta, completa e segura das coisas e a impossibilidade mesma de alcançá-la. Já que com a parte, o seu marido com suas falhas, a compreensão impossível, o desencontro persiste por uma recusa. E com a totalidade, e aí talvez entre de modo mais sutil a ironia de Hilda Hilst, é desde o princípio um encontro falhado, eis que a totalidade está destroçada de sua própria qualidade, que é a sustentação da idéia de divindade. Em determinado momento Hillé pergunta: “Ai Sr. tens igual a nós o fétido buraco?” (p.45) Esse Deus, um porco-menino, que teria respostas, que faria sentido, que taparia o furo da existência, não fosse ele um porco. 1 JAMESON (1997) II – Amor parcial? “Se a psicanálise fizesse do amor um princípio de salvação ela se tornaria uma mística” (Fédida, 1988, p.42) Fédida em palestra intitulada Amor e morte na transferência (1981) situa o amor e as pulsões parciais a partir de dois pontos importantes. Primeiro ele traz a difícil tarefa de unificar contrários e enfrentar a ambigüidade, por exemplo, da abertura da palavra amor, que ao abrir-se como ternura e sexualidade traz o intolerável. Para um pai ou uma mãe desidealizar o seu amor pelo filho e pela filha e deparar no interior de si com um desejo sexual pelo filho ou pela filha, é intolerável. Portanto, a totalização do amor, aparece como uma proteção, diz ele: “A totalização do amor equivale à autoconservação do eu. Poderíamos dizer que o que faz o princípio de totalização é a morte, mas a morte não realizada, de forma que assegura ao eu a função de unidade psicológica, de identidade pessoal, a tal ponto que se a palavra amor vem a se abrir, é o eu que se vê ameaçado.” (P.45). A segunda colocação que Fédida faz, retomando Freud, é concepção da sexualidade também como uma intrusão estranha que gera angústia, e também ameaça a integridade do eu. Podemos encontrar no livro de Hilda Hilst esse confronto com o sexual, a cada momento reapresentado pelos apelos de Ehud e uma espécie de fragmentação de Hillé, que diz: “não posso dispor do que não conheço, não sei o que é corpo mãos boca sexo, não sei nada de você Ehud, a não ser isso de estar sentado agora no degrau da escada, isso de me dizer palavras, nunca soube nada, é isso nunca soube...”. Parece que a maestria de Hilst está em manter uma idéia de uma totalidade sendo buscada, como pano de fundo do romance, mas a compulsão a que retorna Hillé é o sempre deparar-se com a falha, com o impossível desta busca, somada ao impossível amparo na sua relação amorosa. De certa forma Hilda Hilst denuncia a precária estrutura do humano neste jogo de pulsões, que sufocam, asfixiam, num mergulho intenso, que é o sentimento de Hillé perturbado pela busca de uma totalidade, e a insistente queda no abismal absurdo da existência. III – Amor mais negativo Que imagens podem nos fazer parar? Que imagens podem restituir minimamente a inexatidão do viver?(Sousa, 2007) Pensar o amor como síntese, em busca de uma totalidade, nas formas da união mística, aqui, a queixa de desamparo de Hillé, aproximam-se das organizações delirantes e até mesmo fetichistas, diz Fédida, ao colocar o outro como ideal do eu. E o que seria preciso é justamente “poder admitir os contrários e fazê-los coexistir no interior de si mesmo, fazê-los co-habitar, fazê-los frutificar juntos. Portanto poder romper a clivagem e assim poder estar do lado da análise do amor e não da sua síntese.” (p.45) Fédida vai pensar na tentativa filosófica, que tem por objetivo a resolução dos contrários, esperando encontrar uma síntese. E afirma que toda posição filosófica assim constituída é anti-psicanalítica. “Há sempre o amor mais a morte, o amor mais o ódio, o amor mais o negativo. A análise é sempre estar em contato com o negativo. (p.47). Isso é muito importante para pensar certa função que o livro A Obscena Senhora D de Hilda Hilst assume, tentando fazer co-existir contrários, na figura de alguém que tenta desesperadamente uma ascese, uma subida de salvação, e ao lado, narrações da degradação humana e xingamentos para uma divindade tomada ora como uma criança louca ora como um animal. Essa perspectiva negativa, apontada por Fédida também participa da dimensão utópica que nos traz a diluição das formas como uma potência, vendo no desequilíbrio, no inexato e no informe possibilidades de surgimento de um novo. Um fio de navalha na língua de Hilda Hilst. O amor e seus componentes tóxicos, não estarão em relação à impossibilidade de criar aberturas, de criar uma mínima distância para poder perceber o outro? Quando Hillé nos assalta com suas irrespondíveis perguntas, sua desmedida agonizante, não somos nós, leitorestestemunhas desta impossibilidade de encontrar respostas, confrontados com o ponto de furo, com um limite, com as falhas? Bibliografia HILST, Hilda. A Obscena Senhora D. São Paulo: Globo, 2001. JAMESON, Frederic. As sementes do tempo, São Paulo: Editora Ática, 1997. FÉDIDA, Pierre. Clínica Psicanalítica: estudos. São Paulo: Escuta, 1988. SOUSA, Edson Luis Andre de. Para não ficar de mãos vazias. In: FONSECA, Tânia M. G.Org; ENGELMAN, Selda. Org; Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora da UFGRS,2004. SOUSA, Edson Luis Andre de. Uma Invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007. SOUSA, E. L. A. . Utopia e objeto a. Polêm!ca , v. 8, p. 33-42, 2009.