IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
LÍRICA CONTEMPORÂNEA COMO LUGAR DE TENSÃO
Sandra Aparecida Fernandes Lopes FERRARI1
Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore.
(Hilda Hilst)
Introdução
A literatura do presente tem se instalado num lugar de trânsito entre o “ser” arte e o poder
de representação cultural. A influência das culturas midiáticas que individualizam o sujeito e
reordenam, segundo Kellner (2001), o espaço e o tempo, produz novos modos de experiência e
subjetividade. Assim, esta literatura assume o risco de deixar de ser, para colocar-se num lugar de
passagem por outros discursos. A atenção dada ao panorama social e político que propaga uma
nova forma de vida e de pensamento provoca uma reflexão sobre o espaço ocupado pela poesia,
que, segundo Renato Rezende, (2012) “merece um lugar de trânsito” no cenário crítico e cultural.
Espaço esse, que veio depois do modernismo e que, costumeiramente se chama pós-modernismo,
tem provocado uma série de debates nos estudos das artes e das ciências humanas em geral.
Há vários pontos de partida para se refletir sobre o “fenômeno” chamado pós-modernismo
que se deu nas artes, na política e na cultura em geral e que permanece como influência até o tempo
presente. Um leque de conceitos sobre o tema é apresentado no panorama mundial desde a segunda
metade do século XX, e, quer de forma diagnóstica, quer de forma analítica, acaba criando uma
guerra de discursos rivais que ora atacam, ora aceitam as novas maneiras de ver o cenário cultural,
político e artístico de final de século. Essas discussões se tornaram mais presentes na década de 60
1
Professora do IFRO, Campus Vilhena, Doutoranda (bolsista da Capes) no Programa de Pós-graduação em Letras pela
Unesp, Campus de São José do Rio Preto, sob a orientação do Professor Dr. Orlando Nunes Amorim.
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com o pensamento pós-estruturalista em rejeição às forças hegemônicas do estruturalismo. Desses
debates cresceu uma nova ordem no plano conceitual do discurso marxista, da psicanálise, da
semiótica, do feminismo, das políticas minoritárias, produzindo um olhar diferente para esses
discursos. Por conseguinte, outras formas de ver o mundo surgem a partir desse estado de coisas e
atrelada a isso temos uma arte literária feita neste clima de tensão que, segundo Haroldo de Campos,
“despe-se do eterno” para ganhar novas formas de representação.
Sabemos que não há um paradigma ou uma metateoria que forneça todos os subsídios para a
compreensão de um estudo das artes nos tempos atuais. Hoje não há mais radicalismos teóricos e
sim pressupostos que coadunam reflexões conceituais plausíveis. Pensando assim, optamos não
apenas por uma abordagem conceitual, mas pelo diálogo entre as várias visões. Não pretendemos
aqui desfiar cada teoria, não faremos nenhum resumo detalhado delas, mas buscaremos o que for
essencial para efetivar o discurso que pretendemos construir sobre a relação entre o contexto e a
produção da arte nos tempos atuais. Do ponto de vista do contexto pós-moderno as várias teorias
oferecem recursos para elucidar a realidade e ajudam os indivíduos a entender o mundo e suas
representações artísticas por meio da articulação de ideologias e valores que quebram as estruturas
fixas e sólidas.
Para entender o momento contemporâneo precisamos lançar um olhar para a cultura. O
sentido de cultura e alguns de seus diferentes desdobramentos semânticos se modifica através dos
tempos. Vale lembrar que arriscar a compreensão do conceito de cultura, hoje, é pensá-la como um
aspecto particularmente sensível da vida social. Se quisermos entender a nossa época é preciso
primeiro entender o conceito de cultura. O termo Cultura, popularizado nas últimas décadas como
“culturas” pode ser pensado como uma forma não só de conservação identitária de um povo, mas
também como transformação dessa identidade. Ainda segundo Kellner, os estudos culturais estão
intimamente ligados às novas tecnologias que são responsáveis por divulgar modos de culturas que
interferem na forma de vida e da sociedade: “a cultura está desempenhando um papel cada vez mais
importante em todos os setores da sociedade contemporânea com múltiplas funções” que moldam
um “eu-mercadoria com valores consumistas.”( p. 29). A visão capitalista de sociedade ganha
campo nos tempos pós-modernos e insere o sujeito no mundo consumista apregoado pelas novas
tecnologias, promovendo, assim, interesse de classes e disseminando novas identidades para o
sujeito e a sociedade. Ao contrário do que se possa parecer, o termo cultura, hoje, não denota mais o
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sinônimo de civilização pregado pelo Iluminismo, já que vivemos num mundo “incivilizado”.
Eagleton, em seu livro “A ideia de cultura”. Enquanto os iluministas associavam cultura à
civilização, hoje, prega-se um mundo sem normas, sem valores, isto é, “inculto” aos moldes do
Iluminismo.
A identidade de sujeito globalizado, ironicamente, pode ser vista do ponto de vista da
individualidade. Segundo Hall, “a identidade torna-se uma celebração móvel formulada e
transformada continuamente”. (2005, p.13). Sobre este aspecto, a crítica contemporânea tem traçado
inúmeras reflexões. Ao lado destas questões surgem outros termos, tais como: local, espaços
identitários de um determinado povo ou nação, que na contemporaneidade ganham novas facetas.
Neste contexto, trazemos para a discussão a lírica de Hilda Hilst em seu livro Cantares, (2004) que
constitui um caminho inquietante para uma realidade feita de fragmentos, e dramatiza o seu tempo
por meio de um diálogo com outros tempos e outras culturas.
1. Moderno ou Pós-moderno?
É próprio dos estudos das relações binárias definir os traços de um polo em contraposição ao
outro, isto é, reafirmar de maneira polarizante as diferenças entre ambos. O mesmo não acontece
quando se fala dos termos moderno/pós-moderno e modernidade/ pós-modernidade, para citar
apenas esses dois pares. A partir de uma visão panorâmica do cenário cultural contemporâneo
tentaremos refletir sobre essa “empreitada”. Sabemos que estes termos designam uma fratura dos
elementos e ideologias da tradição. Ambos os termos se atraem por alguns pontos e se repulsam por
outros. Enquanto o modernismo rompe com o passado, fratura-o e projeta no futuro seu olhar, o pósmodernismo passa pelo mesmo processo de ruptura, mas olha para si próprio, para o momento
presente, para a efemeridade das coisas e do tempo. Na modernidade, com ênfase no gênero lírico,
encontramos o gosto pela oposição que causa aquilo chamado por Baudelaire de “choque”, que
instiga o leitor e não faz questão de ser “compreendida” por ele. Assim, a relação entre poesia e
modernidade se faz por meio de termos como ruptura, tradição, universalidade. João Alexandre
Barbosa em As ilusões da modernidade chama o texto moderno de “texto-esponja e, ao mesmo
tempo, texto pedra, abrindo fulcros, singrando ondas, construindo espaço para reflexão”.
(BARBOSA, 2009, p. 13). Para este autor, a literatura, em especial a poesia moderna age como
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“recusa a pacificação”, o poeta está sempre “ameaçado pelo deslizamento constante da
referencialidade, desde que o referente não é jamais um dado tranquilo” (BARBOSA, 2009, p. 35).
Nesse sentido, “recusa à pacificação” é sinônimo de tensão. O que se entende por tensão é a
presença de vários termos opostos que se cruzam, mas não se excluem, dialogam entre si, num
movimento relacional, formando novas configurações para o discurso artístico.
Essas considerações sobre o modernismo servem de aporte para discutirmos o pósmodernismo. Existe uma grande polêmica a esse respeito. O que podemos afirmar é que desde a
década de 60 do século XX, em âmbito mundial houve uma mudança na “linha reta” que a
modernidade do século XIX havia traçado. “É entre o início dos anos 70 e fins da mesma década
que a polêmica ou debate do pós-moderno ingressa com certa força nos meios acadêmicos europeus
e norte americanos, sendo sem dúvida, o trabalho de La condición pós-moderne de Lyotard (1889)
que gerou o debate das ciências sociais.” (GADEA, 2007 p. 24). Esse debate gerou um diagnóstico
do presente e crise de legitimação do status da literatura, o que levou a pensá-la como negação do
passado, como fez o modernismo.
Desta forma, tornou-se comum falar de produção literária pós-moderna no jargão de prefixos
negativos como o des e o anti. Mas o modernismo também já não usou e abusou destes prefixos?
Questões como estas incorrem no risco do estigma da negatividade do passado se formos
categóricos em afirmar os prefixos negativos ao falarmos de pós-modernismo/modernidade.
Estigmatizar esse momento como negação do passado não seria uma boa saída para conceituá-lo, já
que a relação entre o que é passado e o que é presente nunca pode ser afirmada de forma irrestrita.
Digamos, portanto, que há uma relação complexa e amistosa entre modernismo e pós-modernismo,
modernidade e pós-modernidade, e é este diálogo que identifica o “pós” como estilo novo. Em
outras palavras, ser irreverente sem o propósito de ser. Essas discussões se inserem da mesma
forma no cenário cultural. Conforme já discutido, parece haver uma erosão entre a alta cultura e a
cultura de massa e isso é fundamental para dirimir alguns aspectos que se debatem entre o
modernismo e o pós-modernismo. Essa discussão ganha amplitude quando se substitui esses dois
termos por modernidade e pós-modernidade, num universo abrangente e ideológico.
Ao falar sobre os paradoxos da modernidade, Antoine Compagnon afirma que a arte
moderna é paradoxal e se completa o ciclo: “ruptura com a tradição à tradição da ruptura e, por fim,
à ruptura com a ruptura, que seria a nossa pós-modernidade” (COMPAGNON, 2003, P. 125). Esse
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panorama remete não só a um ecletismo, como também a uma pluralidade de vozes poéticas,
situadas nos mais variados circuitos contemporâneos. Termos como destruição do passado, arte
antipassadista são frequentemente identificadores do movimento moderno, mas não do pósmoderno. A esse respeito, Steven Connor, ao discutir às teorias do pós-modernismo no livro Cultura
pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo comenta que na pós-modernidade “a
tentativa de novidade está condenada desde o começo como repetição, a única maneira de evitar a
repetição parece ser repetir continuamente – voltar ao passado para celebrar a intemporalidade e
imutabilidade dos valores da situação presente para demonstrar que ele nunca é simplesmente
passado, em vez disso, o lugar dos sentidos pelos quais vivemos e com os quais lutamos no
presente” (CONNOR, 1993, p. 67-8). Nesse sentido, é certo afirmar que a novidade para o pósmoderno é o antigo? Designar o termo pós, segundo Steven Connor, é estar aberto a essas
discussões, isto é, trabalhar com o conceito de dualidade em relação ao passado modernista. Ao
mesmo tempo em que o pós admite um movimento de declínio do modernismo notamos uma
autoafirmação desse passado próximo, engendrando um paradoxo que desemboca em uma relação
complexa. A posição de complexidade em relação ao passado é que conota uma nova forma de ser
da arte: subverter os valores tradicionais e reelaborar conceitos. Ainda segundo Connor, a
univalência modernista, que celebra o rompimento com o passado e a rejeição de suas formas, cede
lugar, no pós-modernismo, à multivalência, isto é, a linguagem artística não trabalha mais com
formas arquetípicas ou absolutas, mas faz parte de um campo mais amplo das estruturas da
linguagem e da comunicação. Parte para o campo significativo e emblemático dos contextos
múltiplos. Parte da univalência para a multivalência. Assim, como já amplamente discutido, há uma
aglutinação de aspectos fundamentais do moderno no pós-moderno e para reafirmar isto trazemos o
pensamento de Linda Hutcheon: “o moderno está inevitavelmente embutido no pós-moderno, mas o
relacionamento entre eles é de consequência, diferença e dependência”. (1991, p. 61). A estudiosa
canadense ainda afirma que parte dos textos pós-modernos é paradoxal e especificamente paródica
em sua relação intertextual com a tradição e as convenções dos gêneros envolvidos: “Podemos
pressentir, por de trás dos fragmentos, uma espécie de ansiedade pela continuidade da tradição.”
(1991, p.28).
Retomando o pensamento de Connor, ao tratar do pós-modernismo e literatura, reafirma que
existem várias tendências teóricas acerca dele, e pode-se vê-lo como ruptura ou quebra, ou uma
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intensificação seletiva de certos elementos do modernismo, “encarando o surgimento do pósmodernismo como apenas mais uma fase desse processo.” (CONNOR, 1993, p. 92). O autor cita
várias posições teóricas que tratam dessa relação, chamada por alguns de dialógica e por outros de
lógica binária. Uma posição mais amistosa, que Connor comenta, é a de Alan Wilde. Para este, o
pós-modernismo se faz de forma conflituosa e paradoxal, mas os paradoxos não são resolvidos de
forma binária, mas “delimitados no âmbito de uma forma estética reconhecível”. (CONNOR, 1993,
p. 97). Desta forma, a poética pós-modernista é uma poética da concordância em relação ao
modernismo, segundo o autor.
2.
Experiência e constituição poética
Entre as muitas vozes do contemporâneo está a experiência poética. A poesia brasileira
contemporânea talvez seja pouco lida, mas é muito vasta. Muitos estudos têm sido desenvolvidos
nas ciências humanas desde as últimas décadas do século XX sobre o debate moderno e pósmoderno. Entretanto, a maioria desses estudos, no campo da estética, volta-se para a prosa. Porém,
tem havido mudanças substanciais também na poesia, sobretudo uma espécie de reação ao que
comumente se passou como um sintoma de crise, que demarcaria a poesia da modernidade. Partindo
desse pensamento, a produção poética das últimas décadas, segundo Heloísa Buarque de Hollanda,
no prefácio ao livro Esses poetas: uma antologia dos anos 90, mostra-se como uma “confluência de
linguagens, um emaranhado de formas temáticas sem estilos ou referências definidas”
(HOLLANDA, 2001, p. 11).
Tais ideias servem de base para implementar o estudo da poética de Hilda Hilst, no sentido de
investigar como se dá a sua constituição lírica. Hilda Hilst é considerada pela crítica como um dos
principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Autora de mais de 40 livros, entre prosa,
teatro e poesia, nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, no dia 21 de abril de 1930, mas morou
grande parte de sua vida em uma chácara entre Campinas e Valinhos. Seus primeiros livros foram:
“Presságio” (1950), e “Balada de Alzira” (1951) que escreveu enquanto cursava Direito. Nos anos
60, Hilda passa a se dedicar exclusivamente à literatura. Em 67, redige “A Possessa” e “O Rato no
Muro”, iniciando uma série de oito peças teatrais, até 1969, um teatro absurdamente pouco visto em
cena. A partir de então passou a escrever outras obras de prosa e poesia até sua morte no ano de
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2004. Na sua prosa, há essencialmente uma estrutura narrativa híbrida, heterogênea e inacabada que
causa estranheza, mas que não perde o vínculo com seu tempo. Na poesia, Hilda representa um grau
máximo de criação artística, um constructo que seduz o leitor pela capacidade de dialogar com a
tradição e reelaborar o presente, por meio de discussões filosóficas e metafisicas do homem.
O livro Cantares é uma reunião de dois livros publicados entre 1983 e 1995. O primeiro é
“Cantares do sem nome e de partidas” (1995), composto por dez poemas e o segundo é “Cantares de
perda e predileção” (1983), composto por setenta poemas. Com este último, a autora recebeu o
Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1984. O próprio título da reunião, Cantares,
remete à noção primeira de lírica que é o de canto, melodia. Essa reunião mostra em seu discurso
remissões às formas dos cantares, ou cânticos, como no livro bíblico, ou, ainda, cantos. Só que o
espaço metafórico em que os versos se apresentam é o do diálogo às avessas com a forma bíblica,
pois não há uma situação de equilíbrio como se apresenta na bíblia e sim de angústia que questiona
conceitos, identidades e tudo o que era considerado imutável. “Cantares do sem nome e de partidas”
mostra um sujeito em trânsito, em busca de nomear as coisas. Entretanto, essa busca não delineia um
estado conflituoso, pelo contrário, o tom dos versos, mesmo que oscilem entre ideias adversas, é
leve, próprio da música e do canto:
Isso de mim que anseia despedida
(para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: como quem come o que nada contém
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isso?
Ser tenro, marulhoso.
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.
(HILST, H. “Cantares do sem nome e de partidas” In: Cantares, 2004, p.19).
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Este poema, o terceiro de “Cantares do sem nome e de partidas” mostra certa inquietação
incessante na procura de conceitos que se desdobra e outras facetas. O pronome “isso” sugere a
busca do sem nome, metaforizado pelo movimento pendular entre o nada e o tudo, materializandose num outro movimento: o do corpo que é também o do corpo do poema. Há uma preocupação em
perpetuar a poesia pelo discurso, no momento em que ele está sendo feito. A impressão que se tem é
que esse discurso está sempre em trânsito entre elementos que aparentemente formam pares opostos,
“terreno”, “celeste”, mas que se diluem movidos pela dança das palavras. Há um movimento
deslocalizante afetado pelo ser dado conflituoso que permanece inquietante como um tigre que
“cantasse mansamente”. Vemos aqui uma experiência poética pautada na busca do eterno, por meio
da ausência pela qual vive o ser em suas emanações e transfigurações. Um ser inquieto, como que se
movimentasse constantemente em sua procura que é ao mesmo tempo vazia e plena de conflitos e
que busca no Outro a sua edificação: “E preferir ausência e desconforto /Para guardar no eterno o
coração do outro.”
Além desse universo há na obra em questão um repertório ibérico que é revisto e uma
preocupação com conjunto reinventivo da linguagem. Alcir Pécora, no prefácio ao livro, afirma que
o espaço do livro é o espaço nada ameno e que “o espetáculo da poesia amorosa é verossímil, em
seus excessos pungentes de conceito, pompa, santidade, penitência, pecado e negação simultânea do
celeste e do terreno.” (PÉCORA, 2004). Nesta perspectiva, a obra da poeta se estabelece como uma
massa líquida, que se dissolve ao ser tocada, produzindo uma sensação de estar pisando em um
terreno no qual as relações entre os opostos se fazem de forma branda e ao mesmo tempo “nervosa”;
produzindo uma sensação de mobilidade dos signos na construção poética:
(...)
Como pode ser isso?
Ser tenro, marulhoso.
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.
(HILST, H. “Cantares do sem nome e de partidas” In: Cantares, 2004, p.19).
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Considerações finais
As exposições acima produzem uma reflexão sobre o diálogo com o passado e aceitação do
presente inútil que não se projeta no futuro, mas busca a afirmação do momento e não do eterno. A
arte pós-moderna é uma arte da “precariedade” (segundo Haroldo de Campos em A arte no
horizonte do provável) na medida em que se despe do eterno e incorpora novas formas de expressão.
Desta forma, a constituição da lírica do nosso tempo passa por várias formas e tons discursivos, que
não são novos, mas se renovam ao toque do trabalho do poeta. No caso de Hilda Hilst, os signos que
seleciona em sua poesia remetem à necessidade de perpetuar-se: Isso de mim que anseia despedida /
(para perpetuar o que está sendo)” e “É de abismos e de arroios./ é de perpetuidade no que pensas
efêmero.”
As breves considerações sobre a obra Cantares, feitas anteriormente, demonstram a
dimensão poética proposta por Hilda Hilst, indo na contramão do que afirmam alguns estudos
críticos sobre escassez de formas da poesia contemporânea. Escassez que não é sinônimo de
precariedade posta por Haroldo de Campos, mas que representa o retrato da poesia hoje. Uma poesia
que aponta para uma diluição de fronteiras acerca da lírica tradicional e sua consciência criativa
revela a extensão de seu tempo. Numa época que apregoa o culto ao “eu” mercadoria, Hilst trata de
um outro eu, aquele que fica no vão das palavras já ditas, à espreita de sentidos revisitados, que já
existiram em tempos remotos e voltam sob outra face. Por isso, quando usa formas poéticas já
visitadas pela tradição a escritora nos dá indícios de que esses recursos são utilizados para criar uma
empatia com o leitor e ao mesmo tempo recuperar índices de significação para sua poética muitas
vezes de forma paródica e irônica. Neste sentido, no processo de desfamiliarização da poesia, o
diálogo com o passado produz uma desfiguração do tradicional, e busca, em sua forma, um esforço
de superação da crise representativa da poesia e da perda da referencialidade coletiva imposta pela
ideologia dominante. Esse estado de coisas faz com que a poesia do presente coloque-se num lugar
de trânsito e de passagem para outros discursos. Neste contexto, a lírica contemporânea da poeta
Hilda Hilst constitui um caminho ativo de discernimento da realidade, pois ela dramatiza o presente
por meio da manipulação que faz com as palavras.
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CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.
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