A76
ID: 58895339
20-04-2015
Tiragem: 36756
Pág: 46
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,48 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Urgências,
de novo
O
António Correia de Campos
Terra e Lua
panorama apresentado num
canal da TV sobre urgências
em diversos hospitais tem
duas características que
aumentam a gravidade do
problema desvendado há três
meses. Não é conjuntural, mas
cumulativo. Doravante será
provavelmente sempre pior, se
não forem tomadas medidas
radicais. Já veremos quais.
A segunda circunstância é a intenção
deliberada de esconder o problema. Visível
na comparação entre as imagens da câmara
indiscreta e as da câmara autorizada. Já se
sabia que em algumas urgências se mostra
a jornalistas apenas a parte civilizada,
externa. Portas adentro, o inferno é outro.
Um imenso desafecto à verdade acompanha
esta atitude.
Vamos à realidade: as urgências são
hoje um inferno, porque foi destruída
a sua capacidade: escalas de dimensão
“económica”, redução a 50% do
pagamento de horas extras, nãosubstituição de profissionais reformados,
emigrados ou desistentes; paragem na
constituição das unidades de saúde
familiar (USF) a montante do problema
e congelamento da criação de cuidados
continuados a idosos e dependentes (CCI)
a jusante, recurso a médicos tarefeiros
arregimentados por empresas, entrega
das chefias a profissionais de bom nível,
mas muito jovens, sem senioridade para
imporem respeito e sem que a equipa
que precariamente dirigem assegure
produtividade no trabalho de banco e
continuidade de cuidados. Sabemos que,
no afã de agradar, alguns administradores
cortaram camas de internamento, sem
precaver o futuro, ou sequer o presente.
Sabemos que a procura se alterou com o
envelhecimento, a pluripatologia, a prática
recorrente de alguns lares lucrativos
despejarem na urgência os idosos doentes
com patologias ignobilmente agravadas, por
não quererem contratar pessoal de saúde e
não haver quem a tal os obrigue. Sabemos
que emigraram em 2014, segundo as
respectivas ordens, 400 médicos (tal como
500 médicos dentistas) e outros tantos
enfermeiros. Sabemos que começa a faltar
o material de consumo. Já agora, sabemos
também que os hospitais devem hoje
cerca de 700 milhões de euros à indústria
farmacêutica e cerca de 600 milhões
às empresas que vendem dispositivos
médicos, tornando a gestão do quotidiano
um permanente operação de relações
públicas com credores.
Tudo isto era previsível se tivesse havido
quem pensasse no cavalo do inglês, morto
pela redução, a quase zero, da ração inicial.
Se tivesse havido quem olhasse o sistema de
forma global, e não de forma orçamental.
Quem ouvisse os interessados, visitasse
urgências de surpresa, falasse mais com o
povo, andasse de metro e autocarro, desse
crédito a jornalistas sérios e experientes.
Impossível, o Governo cegou em vários
gradientes. A cegueira de pensar que a fome
salvadora regenerava o espírito e curava
o organismo. Depois, ainda, por os seus
amigos lá de fora e alguns opinadores cá
de dentro prescreverem o mercado e suas
falhas como terapêutica única contra as
falhas de Governo.
Quando a evidência ultrapassa a razão,
recorre-se à negação e ao absurdo de
transformar o mau em bom. O comentário
de um responsável político valorizando o
facto de os doentes estarem em boas camas
e não em macas, tão espontâneo quanto
insensato, entristece-nos duplamente: por
vermos a negação erigida em doutrina e
por o improviso infeliz se arriscar a ser
confundido com cinismo. Agora que aqui
chegámos, que fazer, para recuperar a
confiança dos
cidadãos nos seus
hospitais?
Estudem ou
mandem estudar
rapidamente
a dimensão e
profundidade do
problema. Vão aos
locais, ver com
os próprios olhos
e sem aviso. Têm
que incidir sobre
as causas: acelerar
a criação de USF
e CCI; rever os
pagamentos de
horas extras; tentar
substituir tarefeiros
por médicos
do hospital,
As urgências
são hoje
um inferno,
porque foi
destruída a sua
capacidade
MARIA JOÃO GALA
com incentivos adequados; tentar,
onde possível, profissionalizar equipas
de urgencialistas; readmitir médicos
reformados em regime de acumulação
com pensão, sem cortes, por um período
transitório de três anos, até os seis mil
internos em formação a terem concluído;
visitar lares privados obrigando-os a
contratar enfermeiros e médicos para
não deixar descompensados doentes
idosos; visitar lares públicos e particulares,
aconselhando a colaboração estreita com
o centro de saúde e hospitais da área, sem
pensar em dois ministérios diferentes.
E fugir das falsas soluções: pensar que
instituições particulares podem criar bons
serviços de urgência é um insulto a essas
instituições, voltando ao erro dos SAP.
Cuidados de urgência são cuidados a sério,
bem organizados, bem instalados e com
pessoal suficiente, treinado e variado.
Custa dinheiro? Pois custa, mais uma razão
C
para não aliciar instituições honradas com
ofertas envenenadas.
idadãos de segunda. Passos
Coelho declara que, apesar
de ter servido em governos
do PS, lamenta a perda de
José Mariano Gago. AguiarBranco, no passamento de
Silva Lopes, proclama ter ele a
felicidade de morrer no mesmo
dia que o imortal Manoel de
Oliveira. Ficámos a saber que
ser socialista é perda de cidadania, e que o
passamento de Oliveira é motivo de alegria
para os que com ele partiram, no mesmo
dia. Que diabo! Qualquer dos três merece
melhor epitáfio! Qualquer Português
merece melhor Governo.
Professor catedrático reformado.
Escreve à segunda-feira
Página 76
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Urgências, de novo