Projeto Guignard: a leitura de sua obra O Projeto Guignard, ao abrir espaço à virtualidade de exposição das obras do artista Alberto da Veiga Guignard, um dos mais significativos modernistas do País, dá início à democratização de acesso à sua produção. A maioria de suas obras encontra-se em coleções particulares. Nem sempre essas coleções abrem-se ao público. Pressupõe-se que apenas as mais representativas instituições públicas de arte do Brasil registrem a presença de Guignard em seus respectivos acervos. A proposta central desse projeto, em grandes linhas, é catalogar sua produção, tornar conhecida sua obra e trabalhar sua memória. Pretende-se que o Museu Casa Guignard, em Ouro Preto, Minas Gerais, torne-se um centro nacional de documentação e pesquisa sobre sua obra e se transforme em espaço de ação educativa na concretização desse projeto. Ao traçar a metodologia inicial deste trabalho, decidiu-se eleger três centros do Brasil, nos quais se concentra a maioria das coleções particulares e públicas, representativas da produção de Guignard como um todo: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Posteriormente, serão pesquisadas e catalogadas as obras que se encontram em outros centros, dentro e fora do País, já mapeadas e consideradas notáveis em relação à síntese desta pesquisa. A decisão metodológica de iniciar este trabalho pela catalogação e leitura das obras das coleções particulares e públicas que se encontram em Belo Horizonte e Ouro Preto justifica-se a partir do pressuposto de que ocorreram nesses espaços significativas mudanças em sua obra, após a sua vinda para Minas, e colocar em evidência as diferenças assinaladas. Recorda-se, também, que esta foi a última fase de sua história de vida. Partiu-se do mais próximo para o mais distante. A visão de síntese de sua obra revela não só sua inquietação e disposição de mudança, mas também os experimentos realizados em busca de um novo olhar. À moda de Cézanne, que pintou a montanha de Sainte-Victoire em busca de um novo tom, de uma nova pincelada, também Guignard fez das montanhas de Minas espaço de pesquisa e criação de novas e diferentes possibilidades pictóricas alcançadas no dia-a-dia do seu trabalho, cujo ritmo e duração somente se interromperam com sua morte, em 1962, em Belo Horizonte. Guignard chega a Minas em 1944, a convite do prefeito Juscelino Kubitschek, para a criação de uma moderna escola de Belas Artes, que hoje tem o seu nome. Havia chegado ao Rio em 1929, regressara a seu país de origem após longa temporada na Europa. Sua formação artística se fez notadamente em Munich, Alemanha; Florença, na Itália; e posteriormente em Paris. Guignard confessou que de acadêmico passou a moderno. Sua obra libertara-se da perspectiva linear, do claro-escuro, em busca de lições modernistas transgressoras. Ele teve uma sólida formação, na qual ressaltam-se o desenho e a pintura. Observa-se que, após sua chegada ao Rio em 1929, procurou relacionar sua obra, contraditoriamente, à finesse de sua formação européia e ao meio ambiente, cuja paisagem tropical primitiva tornara-se objeto de sua pintura: cores vibrantes, tinta pastosa e densa. Nesta época, dialoga com o primitivismo de Rousseau e a elegância de Matisse. Pesquisa a paisagem serrana de Itatiaia e as marinhas de Paquetá, em cuja pintura busca a tradição nas lições dos paisagistas holandeses no século XVII. Guignard relaciona o passado ao presente e busca o futuro em suas criações, ao enfrentar o devir das artes em eterna mutação através dos tempos. Em Minas, o olhar de Guignard, sob diferentes óticas, cria novas imagens e dá outras leituras às suas paisagens. As palavras-chave para essas mudanças são as novas concepções, tanto do espaço transgressor em relação às normas acadêmicas, quanto do novo tratamento pictórico das diferentes paisagens realizadas no Rio de Janeiro. O espaço moderno abandona totalmente a ilusão de profundidade e valoriza o plano. Observa-se que as paisagens montanhosas, cujos significantes associam-se às imagens das regiões do ciclo do ouro em Minas, perdem volume e vão-se tornando progressivamente menos profundas, até aproximarem-se do primeiro plano, próximo ao olhar do observador. No entanto, jamais suas formas tocam a superfície plana da obra. Ao substituir o claro-escuro por manchas de cor totalmente planas, o espaço perde sua característica volumosa. Inicia-se, também nessa época, o movimento de ascensão vertical das montanhas, cujo limite se encontra nas bordas da parte superior do quadro. Com freqüência esse movimento dissolve a linha demarcatória entre o céu e as montanhas. Elas ocupam toda a extensão pictórica da obra, e cada vez a composição se torna menos profunda. A ascensão vertical das montanhas superpondo-se, de modo escalonado, tornara-se uma das maneiras criadas por Guignard para ordenar a sucessão de diferentes planos sem o uso da perspectiva linear. Guignard admirava tanto os primitivos flamengos – dentre eles Van Eyck – quanto os italianos Botticelli e Giotto, cujas obras foram realizadas em épocas anteriores à perspectiva linear. As obras dos artistas citados apresentam modelados rasos, suaves e espaços, pouco profundos. Simultaneamente, Guignard dialogava com a arte moderna de Manet, Cézanne, Matisse, dentre outros, e trabalhava de forma dialética as contradições dessas realidades. Há mudanças também no tratamento pictórico da obra após sua vinda para Minas. As paisagens perdem o rico texturado de suas formas e linhas e tornam-se mais abertas, com menos elaborações e detalhes. Essas mudanças são bem evidentes quando se comparam as paisagens do Jardim Botânico do Rio de Janeiro com as do Parque Municipal de Belo Horizonte. Nos desenhos das cidades mineiras montanhosas do ciclo do ouro, particularmente Ouro Preto, observa-se a beleza da linha fina sobre o papel, criando as formas das igrejas e suas torres, casarios e montanhas, sobre um espaço branco, vazio, que contrasta com a tinta negra das formas em sua pureza gráfica. Há mudanças consideráveis também com relação à materialidade dos pigmentos, que passam de pastoso, denso, para a realidade das massas de consistência rala. Dentre as diferentes pinceladas, destaca-se o movimento da diluição da massa pictórica, que se torna molhada e deixa à mostra a poética da tinta que escorre sobre a tela, à semelhança da aquarela. As Noites de São João, obras-primas do autor, vão perdendo em Minas as características urbanas tradicionais e realizam-se em plena montanha, cujos casarios, igrejas e torres vão-se tornando minúsculas formas e cedem espaço às performances dos céus iluminados e das montanhas fantasmagóricas da arte onírica. Poéticas são também as imagens das brumas de Ouro Preto, na concepção pictórica de Guignard. Elas se deixam romper pelas torres das igrejas, que se envolvem nessa massa de nuvens brancas em forma de volutas. Pressupõe-se que se assemelham a recortes originais do seu olhar sobre a cidade, jamais produzidos. Pois antes de Guignard, as brumas de Ouro Preto não tinham existência pictórica na arte do País. Até os últimos dias de trabalho, Guignard imprimiu mudanças às suas obras, ora em relação à cor, forma, textura; ora nos espaços de sua criação. Observa-se que suas obras revelam não apenas intuição arraigada aos sentidos, mas também conhecimento superior. Elas revelam interpretações de complexas estruturas da arte e a aplicação criativa de seus princípios. Guignard foi um estudioso da história da arte, cujas lições, relacionadas à sua obra, estiveram sempre abertas aos seus alunos e constituíram-se em elementos de sua metodologia de ensino. O Projeto Guignard abre espaço de conhecimento e de fruição de suas obras. Profa Ivone Luzia Vieira Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Linha de pesquisa: Modernidade e Modernismo.