Um ponto de vista singular Sônia Salzstein I- APRESENTAÇÃO Em face da programação realizada pela Divisão de Artes Plásticas do Centro Cultural São Paulo ao longo dos últimos quatro anos, a exposição Guignard surgiria de maneira aparentemente deslocada, como a injunção de um recorte histórico no âmbito de projetos ligados primordialmente à produção contemporânea. Tal deslocamento, entretanto, deu-se muito a propósito, e tem suas razões de ser para além da oportunidade, sempre produtiva, de revistar o trabalho de um grande artista. De saída, ele impõe que interroguemos a vigência desta notável lacuna, separando a produção contemporânea de uma obra que afinal não lhe é tão distante assim, e cujos desdobramentos e contribuições estão ainda para serem devidamente examinados nas discussões sobra arte brasileira. Além disso, o que esteve sempre em questão para a maior parte dos projetos conduzidos pela Divisão, é a capacidade que ela deveria demonstrar de reconhecer à nossa produção contemporânea um campo cultural próprio, ainda que constituído à base de múltiplas referências culturais, um campo cujos contornos primeiros – à falta de uma tradição – teriam sido divisados por certas presenças que hoje vemos como fundamentais na história da arte brasileira. Tratava-se, portanto, não apenas de propiciar o diálogo entre as gerações mais recentes de artistas, de modo a configurar aquele campo cultural, mas também de rebater o trabalho destas sobre um pano de fundo, que só se revelaria no reconhecimento de algumas figuras-chave em nosso processo de desprovincianização e de elaboração de uma experiência de modernidade. Optamos aqui por Guignard, mas poderíamos com igual entusiasmo e elenco de razões ter escolhido Alfredo Volpi, José Pancetti, Ernesto De Fiori, Milton Dacosta, Maria Leontina, entre alguns outros cujas obras surgem como manifestações esparsas e solitárias, à espera de um relance de visibilidade, que poderia então estabelecer-lhes os elos e enfim a inteligibilidade de uma pequena tradição cultural. II- A MATRIZ DA MODERNIDADE EM GUIGNARD – UM CAMPO DE DISCUSSÃO EM ABERTO De fato, a obra de Guignard nos parecia um tanto intrigante sob esse aspecto, uma vez que mantida em posição oblíqua ao que o meio de arte brasileiro, com maior ou menor propriedade, elegera como moderno, impunha o dimensionamento mais cauteloso e complexo disto que podemos entender por uma "arte moderna brasileira". Ela fornecia pistas, enfim, de que o que na verdade estava em jogo era a possibilidade mesma de se falar em arte moderna num meio cultural às voltas com a conquista de uma fisionomia própria e que deveria, ao mesmo tempo, superar o provincianismo local e preparar-se um lugar transformador nas correntes da tradição moderna. Embora o trabalho de Guignard tenha começado a se firmar na década de 30, numa trajetória praticamente indiferente aos primeiros e bem sucedidos feitos de Tarsila do Amaral e na animação do movimento modernista, víamos nele a questão moderna ser experimentada mais densamente, como processo, lento, penoso, marcado marchas e contramarchas, deixando registros que às vezes nos decepcionavam, nos pareciam pueris e alheios ao aprendizado da modernidade, ao rigor cognitivo da pintura moderna, mas que afinal, e por isso mesmo, firmavam a obra como um campo virtual de conseqüências culturais a serem desdobradas. Não obstante esse processo que nos lega uma obra necessariamente irregular, parece-nos este o aspecto de maior interesse na trajetória de Guignard, pois é assim justamente que ela nos adverte da possibilidade de elaboração do moderno, para além do episódio formal emblemático de Tarsila, para além dos saborosos períodos pau-brasil e antropofágico de uma empresa que, de todo modo, e passado o fulgor daqueles primeiros anos, nos devolve à nossa condição de pré-modernos e provincianos. A originalidade da presença de Guignard talvez resida justamente nisto: uma auto-confiança desarmada, que o faz entregar-se à pintura a partir de um viés interno, alheio à idéia do projeto civilizador que vemos nos anos "légerianos" de Tarsila, por exemplo, alheio à idéia de uma racionalidade construtiva que deveria resgatar positivamente o caos tropical para a construção da nova cultura nacional. Nesse sentido, as irregularidades no corpo desta obra, a emergência episódica dos traços acadêmicos, dos exageros pitorescos que às vezes entravam o fino arranjo entre o registro temático e a configuração formal, ao invés de contarem contra ela, mais favorecem sua presença renovadora, pois rompem a representação da modernidade como ideal para enfrentá-la enquanto problema1, enquanto possibilidade de arranque transformador, numa oportunidade privilegiada de reatamento da arte brasileira com a tradição européia. III- UM TEMPO INTERNO O que surpreende em Guignard é que a atitude moderna, que mobiliza de maneira muito especial a realização de sua pintura, não decorre do esforço programático presente na maioria de nossos modernistas. Ao contrário, encanta e torna mais complexo o exame dessa obra o fato de que uma espacialidade moderna emerge dela naturalmente, em estado bruto, talhada no atrito com as condições objetivas de um ambiente cultural como o brasileiro. Aí estaria, a nosso ver, o desempenho problematizador do trabalho de Guignard, entregue com desconcertante candura à conciliação desses dois mundos: o aprendizado culto da tradição européia e a adesão intuitiva e sem reservas a uma tipologia da paisagem brasileira, com suas festas juninas, suas figuras populares, um gosto pelo caprichoso e pelo decorativo. Dessa maneira, a elaboração refinada do que fora absorvido da melhor pintura moderna européia (ele cita Dufy, mas há também um pouco de Van Gogh, Cézanne, Matisse...) atua e reage ante uma inocência figurativa pré-moderna, que permite mesmo pensar na possível ressonância da pintura flamenga do século XV na obra do artista... 1 Remeto aqui à obra Um Mestre na Periferia do Capitalismo / Machado de Assis, de Roberto Schwarz, cuja leitura muito me estimulou na elaboração deste texto. Esse rebatimento entre duas ordens formais tem muito a ver com o ajuste afetivo de um ponto de vista local, resultando na depuração de determinados esquemas figurativos, que acabam ganhando força constituinte, e por isso mesmo, formalizadora em sua pintura. É claro que essas duas ordens aparecem numa espécie de adaptação simultânea e recíproca, e seria equivocado considerá-las como indícios de uma cisão na atitude do artista. Caso assim fosse, ele estaria abordando "de fora" sua temática. Trata-se antes de um sistema formal muito especial na pintura brasileira, articulando de seu interior essas ordens, conciliando uma apreensão construtiva do plano com o imponderável de suas formas, com os contornos imprecisos e o aspecto instável delas. Parece, enfim, que Guignard não opõe resistência ao tempo de sua obra; e este não sendo um tempo finalista e de compromisso, transporta o artista a incríveis enleios, que o fazem preencher prosaicamente móveis e objetos com pinturas decorativas, produzir mais de centena e meia de pequenos desenhos com mensagens pueris a um amor impossível, alternar o uso construtivo das faixas de morros e nuvens de seus quadros com um uso puramente decorativo, e assim por diante. Contraponha-se-lhe, por exemplo, o recurso a festas e jogos populares na obra de Léger, onde estes surgem como deslocamentos de planos e cores sobre a superfície pictórica; ou mesmo Volpi, para nos atermos a um caso próximo, onde as fachadas, bandeirinhas, brinquedos e mastros surgem antes de uma disposição construtiva frente ao plano. Mas em Guignard o apelo poético do tema não entra como recurso no processo de elaboração de cada pintura. Daí o interesse fundamental dessa obra: pois as duas demandas, a qualidade formal e a poética narrativa saliente devem, de alguma maneira, se combinar de modo a produzir um todo harmônico, sem conflitos metalingüísticos. E se a consciência crítica da linguagem aí se exerce em alguma medida – pois não estamos falando de um artista naïf – ela não pode se distanciar de seu objeto a ponto de subordinar o registro figurativo. De todo modo, pode-se dizer que em Guignard a qualidade pictórica sempre se anuncia antes que advirtamos a bem sucedida associação que aí é posta em marcha, entre o tema e a forma. É nesse sentido que falávamos na potência formalizadora do tema que, conforme veremos, diz respeito à emergência de um ponto de vista identificando uma determinada história cultural. IV- A CONSTITUIÇÃO DO PONTO DE VISTA Mas qual será o dispositivo pelo qual a pintura de Guignard logra esse efeito? Tomemos a paisagem como o representante exemplar dessa obra, e veremos que o elemento de mediação entre a instância formal e a instância temática é justamente o estabelecimento de uma determinada escala na figuração, que garantirá sempre o ajuste de um ponto de vista à distância. Ao situar todos os seus diferentes objetos num lugar inacessível, que os despoja de suas determinações anedóticas (?) e os faz coexistir numa mesma superfície, Guignard está conferindo um valor capital à experiência da distância em sua obra. Dessa experiência não interessaria reter as coisas, uma a uma, pois o que ressalta é a integridade da superfície, aí onde a instância formal se revela em toda sua potência plástica e poética. Nessas paisagens, os objetos são como que miniaturizados, não em nome de um apreço ao minucioso, ou porque trairiam uma ingenuidade formal, mas para conquistar mais amplidão de vistas, para enfim pintar o espaço, pura e simplesmente. Se o olhar do artista empurra tudo para longe, criando um estranho ponto de vista em que tudo se posiciona paralelamente ao observador, interpondo-lhe com isso um campo inabitado e intransponível, é porque o que está em questão é justamente esse espaço vazio, e, por conseguinte, o lugar mesmo do observador. É desse lugar que se manifesta o exercício pleno da visão, que não almeja um objeto em particular, mas uma experiência de limites e de abrangência. A isto sim, talvez se possa chamar de específico, trazendo a marca da contribuição original de Guignard à pintura moderna, na medida em que obriga o objeto da visão a rebater-se sobre si próprio, agora como questão. A especificidade não decorre, pois, de uma "temática brasileira", mas da maneira original com que essa temática se infunde de potência constituinte na obra do artista. Com isso poderíamos dizer que, se as paisagens de Guignard designam uma certa geografia, a das cidades e montanhas de Minas Gerais, elas não se detêm no pitoresco, e passam longe da estreita adesão afetiva ao que parece simples e familiar. Ao contrário, tal percepção empírica deve ser apurada nos registros da memória e devolvida na forma de uma experiência íntegra e essencial da visão. É como se as superfícies rasas da pintura de Guignard resultassem da projeção desses registros emblemáticos de memória – as igrejas que pairam, trens que passam sobre pontes longínquas, estradas em serpentina, balões – cuja contigüidade só é possível nesse intangível lugar à distância. A atitude de tornar homogêneos o céu e a terra (as estradas que vão até as nuvens, a ausência de chão), de dissolver a linha de horizonte e converter tudo numa imponderável matéria em suspensão, teriam algo a ver com uma desconfiança da solidez dos objetos, o que em outros termos poderia muito bem ser pensado como a desconfiança da busca metódica de uma inteligibilidade absoluta das coisas. Enquanto muito de nossos modernistas estavam às voltas com uma pedagogia cubista dos objetos (Di, Portinari...), Guignard apropriou-se da tradição moderna (a evidência do plano) para colocar em questão a própria noção de espaço. Daí a dissolução das formas numa apreensão apenas fugaz das coisas, que não confortam com qualquer garantia de permanência e solidez. É dessa posição instável e desconfiada que a obra de Guignard, entre doce e melancólica, constitui um ponto de vista singular na história da arte brasileira. E é este que, a nosso ver, reata com a produção contemporânea.