A insistência na política lacaniana Ricardo Seldes* Parto de uma hipótese: a responsabilidade política é essencial ao desejo do analista. Familionário: Na adolescência comprei O chiste e sua relação com o inconsciente. Na época era um clássico receber (ou fazer) uma interpretação ao captar que em cada chiste havia alguma verdade, sexual claro, que o ouvido atento podia perceber. O livro de capas amarelas prometia dar-me um saber sobre o tema, feito que rapidamente se mostrou inexato. O primeiro chiste, o famoso “familionário”, mais me deixou atônito do que me fez rir, já que a menção aos Rothschild me conduzia apenas a um nome que minha família pronunciava para assinalar algum tipo de excesso, especialmente econômico. “Pensa que é filho de um Rothschild” tinha para mim mais peso identificatório que a suposta graça do pobre tipo a quem tratavam de um modo familionário. Essa diferença entre o que era buscado e o que era encontrado, entre esse saber prometido e a falta-a-ser, fez com que o livro fosse parar em uma biblioteca, ainda que sua capa brilhante nunca tenha deixado de sobressair entre o Outro saber mais clássico. Um sonho em análise me fez compreender que foi algo da ordem do sinistro28 o que me conduziu a ele. No sonho eu viajava de trem, na primeira classe, junto com Freud. Falávamos em inglês, e ele respondia com grande amabilidade a minhas perguntas. Tratava-me muito “familionarmente” e me dava A chave, a qual, claro, foi impossível recordar ao despertar. A lição freudiana sobre o sinistro, que inclui uma viagem de trem, se refere a essas coisas familiares que aparecem subitamente, as mais íntimas e reprimidas, das quais não se quer saber. A formação do analista exige que se provoquem certas condições subjetivas, *Analista Membro da Escola (AME). Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Diretor de PAUSA. 28 NT: Sinistro é a palavra usada em espanhol para traduzir o termo alemão Unhemlich, que em português foi traduzido como estranho. Todos se referem ao texto de Freud de 1919, “O Estranho”. 1 uma transformação do ser do sujeito. Ser analista não é uma qualidade nem um título, mas um modo de ser que se adquire através da experiência como analisante. É um fundamento da política lacaniana e, ademais, requer um posicionamento em relação à causa analítica, com um esclarecimento: a comunidade analítica, tal como se constituiu a partir de Lacan, implica um laço que não é sem o sintoma de cada um. O Compromisso: Um momento decisivo em minha formação ocorreu quando a determinação da instituição analítica ficou patente para mim. Um primeiro ato de posicionamento, no Simpósio do Campo freudiano, foi acompanhado pelas palavras de meu supervisor. Ele disse-me que a formação do analista incluía também assumir posições relativas à condução na instituição analítica na qual se trabalha. Comprometer-se com a instituição, entendi mais tarde, era também comprometer-se com a causa analítica. Sem esse compromisso, dificilmente se concebe o desejo do analista nos termos em que Lacan o formulou. A política, enlaçada com a clínica e a episteme, não é senão uma experiência. Como se forma um quadro em psicanálise? Que caminho faz cada um? Compartilhei longas noites de discussão, antes da criação da Escola com meus mestres, que me transmitiram um desejo, jamais anônimo. Acreditei no trabalho com meus companheiros da Comissão do Campo freudiano, no dos diretores da EOL, no do conselho da AMP. Um temperamento decidido: Sem dúvida, evoco em especial um momento que marcou para mim um antes e um depois. Algo comparável a uma urgência subjetiva. Ocupava o cargo de Secretário da AMP e preparávamos um encontro internacional. Um telefonema me inquietou: era o Delegado Geral, numa época antes da internet. Eu havia enviado uma carta dirigida aos meus colegas Presidentes das Escolas, sem mencionar seus cargos. Tratava-os muito familiarmente porque eram, e são, meus companheiros de muitas lutas. Assinei a carta como Secretário Geral da AMP. Desconheci o semblante deles, reforcei o meu. As ligações se repetiram ao longo da tarde. “Você se investiu na autoridade e destituiu-os da deles”. Não tinha resposta, meu assombro era equivalente a minha ignorância. Depois do quarto ou quinto telefonema, repetido a cada hora, demandando algo mais que enigmático, eu 2 estava esgotado de minha própria denegação e, diante da insistência dessa voz que me perguntava uma vez mais, veio a minha memória uma anedota, que relatei. “Era um exame da faculdade. Psicologia Geral. Escolas filosóficas. O exame oral já durava mais de uma hora. O titular me sabatinava e três professores que o acompanhavam me olhavam com certa compreensão. Sentia-me esgotado, o professor continuava perguntando... Não acabava nunca. O professor pediu que falasse de Descartes. Para me dar coragem e reanimar meu pensamento, inventei uma frase, algo como ‘Descartes irrompe em seu século com um temperamento decidido, um homem com grande caráter que revolucionou o espírito de sua época...’ O professor começou a rir, às gargalhadas. Os outros professores esboçaram um sorriso, também sem entender porque tanto riso. Ha, ha, ha, Descartes um temperamento decidido, ha, ha, ha, Descartes era um tipo tímido, Seldes, você me fez rir. Duas perguntas mais, breves, e o exame acabou.” Do outro lado da linha ouvi apenas um “muito bem”. Fim da comunicação. Asseguro-lhes que essa experiência produziu efeitos duradouros. Um cambalacho: A política lacaniana é uma política da insistência, de fazer sair o desejo oculto atrás das boas razões e da boa intenção. É uma das hipóteses maiores do seminário de JacquesAlain Miller sobre a Política Lacaniana. Hoje construo uma ficção: uma rara solidão que se anuncia ao entrar em um espaço silencioso. Não há cartazes indicadores, é uma imensidão sem presságios. No mesmo caminhar surge um espaço que se deve atravessar porque se impõe a iminência de algo. É tarde, pode ser uma estação ferroviária. É preciso se apressar porque é a hora do último trem. Não é fácil caminhar, mas não é impossível. No novo ambiente não há sinalização, há signos. Ouço o ruído do trem que se aproxima. Apresso-me. Caminho mais rapidamente. Esse som me orienta em direção à plataforma. Não há ninguém ali. Chego junto com o trem; surpresa, o trem não tem portas visíveis. Por onde subir? Detenho-me, não há mais tempo. Em um dos vagões se vê uma luz, uma janela, um homem e móveis usados, empilhados. Um cambalacho. A porta inexistente se abre, eu entro. De que se trata esse cambalacho? É um enxame, é uma comunidade orientada, nossa comunidade analítica, que tem um mais-um que provoca a elaboração, incita o saber. 3 Um mais-um que, como sujeito, faz trabalhar e, em seu ato, trabalha tanto ou mais que os outros. Cada um com seu sintoma por trás da causa. O político e o impolítico, aprendo com o livro de um colega,29 um contemporâneo. Vejo “formas de amizade restringidas, não segregativas. A singularidade se conserva na generosidade extensa. Não é pacto, não é contrato, não é adulação. Os amigos não são sócios nem contraem obrigações. Transitam sua amizade no ex-sistir e no pensar em comum que os converte. Pode haver distância com o amigo, isso não faz impossível a amizade e, se há proximidade, não se deve perturbar o pensar”. Um uso diferente: A arrogância tem vários nomes, um deles é o desejo de contar com um passaporte diplomático. Na prática clínica encontra-se um uso diferente, produzir no sujeito a ignorância, a experiência de seu não querer saber nada sobre isso, molestar a defesa, ir contra o sentido gozado, iluminar a opacidade desse gozo. Os artistas se antecipam aos analistas. M. Yourcenar faz o imperador Adriano dizer: “os homens mais opacos emitem algum resplendor. Poucos são aqueles que não podem ensinar-nos alguma coisa. Só em um ponto me sinto superior a maioria dos homens: sou ao mesmo tempo mais livre e mais submisso do que eles se atrevem a ser. Quase todos desconhecem igualmente sua justa liberdade e sua verdadeira servidão”. Um ato é tal à medida que aquilo que o determina é o gozo e as maneiras que requer, sempre políticas, a fim de preservar-se dele. A política em psicanálise é a do ato, e o âmbito em que nos inserimos neste momento, junto com o consultório e as aulas, o demonstra também. A política é o inconsciente, e o discurso analítico permite aliviar do supereu, esse maldito, se o faz da boa maneira. Bye, bye, Rothschild. Welcome, Rothschild. 29 Luis Tudanca. 4