UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL MICHELE NUNES DA SILVA FRIGORÍFICO DO ARMOUR: PODER E INFLUÊNCIA EM SANT’ANA DO LIVRAMENTO SANT’ANA DO LIVRAMENTO 2014 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL MICHELE NUNES DA SILVA FRIGORÍFICO DO ARMOUR: PODER E INFLUÊNCIA EM SANT’ANA DO LIVRAMENTO Trabalho apresentado à Coordenação do Curso de Graduação em História da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, para a obtenção da Licenciatura em História. Orientador (a): Prof.ª Ma. Vera Lucia Trennepohl SANT’ANA DO LIVRAMENTO 2014 MICHELE NUNES DA SILVA FRIGORÍFICO DO ARMOUR: PODER E INFLUÊNCIA EM SANT’ANA DO LIVRAMENTO APROVADO EM: _____/_____/_____ _____________________________________ Orientadora Prof.ª Ma. Vera Lucia Trennepohl – Unijui _____________________________________ Prof. Me. João Afonso Frantz – Unijui Banca AGRADECIMENTOS Agradeço a minha família, meus pais Jorge e Catarina que me apoiaram desde o início do curso. Ao meu irmão Abner e cunhada Sílvia pelo apoio. Agradeço em especial minha orientadora, Prof.ª Vera pelo auxílio e por ter compartilhado seu conhecimento para a elaboração desse trabalho. RESUMO O trabalho tem como objetivo analisar as razões que levaram a Companhia Armour da cidade americana de Chicago a estabelecer-se em Sant’Ana do Livramento no Rio Grande do Sul. Para isso busca na trajetória da empresa que iniciou-se na segunda metade do século XIX. O Armour a partir da década de 1880 fez parte das Cinco Grandes Companhias de carne de Chicago, sendo que três dessas companhias estabeleceram-se no Rio Grande do Sul. O trabalho também procurou investigar a presença da companhia americana na cidade e como ela exerceu seu poder e influência em Sant’ana do Livramento, assim como os conflitos trabalhistas que ocorreram durante a gestão do frigorífico pela Companhia Armour e a hierarquização social imposta pela empresa em todos os seus aspectos, e por fim encontrar indícios do neocolonialismo americano no período que compreende a gestão da Companhia Armour, até o início década de 1960. Para a realização do trabalho foi realizada pesquisas bibliográfica, utilizando trabalhos de autores como Vera Albornoz e Sandra Pesavento como fontes de referência sobre a história do frigorífico na cidade. Por fim o trabalho destaca a dependência de Sant’Ana do Livramento em relação ao frigorífico e a sua decadência social e econômica após a saída da empresa da cidade. ABSTRACT The present research aims to analyze the reasons that made the Armour Company from the city of Chicago to establish roots in Sant'Ana do Livramento, in Rio Grande do Sul.For this quest, we will search within the business' pathway which began in the second half of the 19th century. Armour & Company was part of the five biggest meatpacking companies of Chicago starting in the decade of 1880, three of them established in Rio Grande do Sul. The assignment also will investigate the presence of the American company in the city and how it exerted its power and influence in Sant'Ana do Livramento, as how the labour movements which occurred during the management of the meatpacking plant by Armour & Company and the social hierarchy imposed by the business in all its aspects, and afterwards find evidences of the American neocolonialism in the time between the Armour & Company's management until the beginning of the 1960's. For the achievement of this assignment, bibliographic databases were used, utilizing works of authors like Vera Albornoz and Sandra Pesavento as sources of reference about the meatpacking plant' story in the city. In the end, the work highlights the dependency of Sant'Ana do Livramento in relation to the meatpacking facility and its social and economic decadence after the business left the city. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 7 1 - História da Companhia Armour .................................................................. 10 1.1 A origem do Frigorífico Armour ....................................................... 10 1.2 Truste ou Cartel? ................................................................................ 15 1.3 A Companhia Amour na América do Sul .......................................... 16 1.4 O Armour no Brasil e no Rio Grande do Sul ..................................... 17 2- A Companhia Armour em Sant’Ana do Livramento.................................... 22 2.1 História de Sant’Ana do Livramento ................................................. 22 2.2 A Charqueada Anaya – Irigoyen ....................................................... 25 2.3 A Companhia Armour Chega a Sant’Ana do Livramento ................. 27 2.4 A Produção de Carne nos Primeiros Anos......................................... 34 2.5 Produção de Carne em Tempos de Guerra ........................................ 36 2.6 A Produção de Carne nos Anos Seguintes......................................... 38 2.7 Mudanças na Fronteira....................................................................... 41 3 - A Organização Hierárquica do Frigorífico Armour ................................... 43 3.2 O Clube do Bairro Industrial................................................................... 51 3.3 O Time de Futebol do Armour................................................................ 52 3.4 Conflitos Trabalhistas no Frigorífico Armour ........................................ 53 3.5 A Greve de 1949 ..................................................................................... 56 3.6 A Companhia Armour saí do Cone Sul .................................................. 58 CONCLUSÃO .................................................................................................. 62 BIBLIOGRAFIA: ............................................................................................. 64 7 INTRODUÇÃO No início de sua carreira como escritor, Nikolai Gogol aconselhou-se com seu amigo, o poeta russo Alexandre Pushkin, sobre o que deveria escrever, ao que Pushkin respondeu que ele deveria escrever sobre sua aldeia, sua realidade ou seja aquilo que conhecia, desse conselho surgiu “Almas Mortas”, obra que tem uma visão crítica da sociedade semifeudal russa época que Gogol presenciou. Não tive a pretensão de escrever algo tão incrível como a obra de Gogol, mas vali-me do conselho de Pushkin, de escrever sobre algo que era-me familiar. O frigorífico do Armour sempre gerou curiosidade, principalmente entre aqueles que não viveram seus “anos de ouro”. Sendo gabrielense, mas adotando Sant’Ana do Livramento como minha cidade, resolvi escrever sobre a empresa que representou o maior impacto econômico e social na cidade da fronteira. Empresa americana da cidade de Chicago Illinois, foi fundada por Philip Danforh Armour em 1867 e tornou-se juntamente com a Swift, Wilson, Morris e Cudahy os “Big Five de Chicago.” Para poder expandir os seus negócios essas empresas expandiram-se para diversas partes do mundo, inclusive na América do Sul, estabelecendo-se na Argentina, Uruguai e Brasil. No Brasil, essas empresas escolheram os estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, sendo que o Armour e o Wilson estabeleceram-se em Sant’Ana do Livramento. Vários foram as razões que trouxeram essas empresas estrangeiras para a cidade, sendo que a sua localização na região da fronteira foi uma das principais. Sant’Ana do Livramento sempre foi uma cidade que teve a pecuária como principal fonte de renda, então um frigorífico na cidade trouxe ainda mais benefícios econômicos para cidade, principalmente nos tempos de guerra, em que o frigorífico Armour exportava carne congelada para uma Europa em guerra. Na cidade o Armour desenvolveu uma grande influência que ultrapassou os limites econômicos, exercendo assim, controle político e social no município. Justamente esse domínio exercido pelo Armour é que me proponho a investigar, como uma grande Companhia americana veio parar na pequena Sant’Ana do Livramento. Assim como as consequências do estabelecimento desta empresa na cidade. Em minha pesquisa procurei aspectos que pudessem caracterizar a grande influência do 8 Armour em relação ao munícipio de Sant’Ana do Livramento sinais do imperialismo americano, representado pela Companhia Armour. Outro ponto estudado foi como os trabalhadores regiram ao modelo taylorista de administração empresarial. Junto com a empresa, os americanos trouxeram seus valores sociais e culturais, manifestados na organização do frigorífico, desde a disposição do espaço do complexo industrial construído na cidade, a hierarquia da empresa e na relação com a população da cidade. O trabalho procura resgatar dentro da história santanense esse período importante da cidade, em que ao mesmo tempo em que a empresa trouxe o desenvolvimento, também criou uma situação de dependência e exploração em relação a comunidade santanense. Para a elaboração do trabalho, foi realizada uma pesquisa bibliográfica com obras que abordam o tema das organizações empresariais, das charqueadas e frigoríficos gaúchos e também livros que relatam a história de Sant’Ana do Livramento. Parte do material foi cedido pela professora Vera Albornoz, que escreveu um livro sobre o assunto, intitulado “Armour: Uma Aposta no Pampa”. Também foram realizadas pesquisas no museu Folha Popular de Livramento, assim como fotos de arquivos pessoais que foram utilizados para a realização do trabalho. O primeiro capítulo trata da história da companhia Armour, do período anterior a sua fundação em 1967, por Philip Armour, passando pelo crescimento da empresa em território americanos, os conflitos com os operários imigrantes e com o governo americano, que acusou a empresa junto com os outros frigoríficos de formarem um truste, até a sua chegada a América do Sul. O segundo capítulo relata um pouco da história de Sant’Ana do Livramento e as razões que levaram a instalação da Companhia Armou nessa cidade. Trata da introdução do frigorífico na cidade, com o apoio do uruguaio Pedro Irigoyen, personagem fundamental para a vinda da empresa americana para Livramento. É abordada os anos de alta na produção de carne, principalmente nos períodos em que ocorreram as duas grandes guerras mundiais. As relações com os líderes políticos da cidade também são tratados neste capítulo. O terceiro capítulo trata da organização hierárquica da empresa, que manifestava-se na distribuição de moradias, nas relações de trabalho, na apropriação intelectual, e até nas atividades esportivas. Também são abordadas as greves e conflitos trabalhistas entre a empresa e a grande massa de operários, que procurou através das 9 greves lutar pelos seus direitos em duas ocasiões em 1919 e 1949. 10 Capítulo 1 - História da Companhia Armour 1.1 A origem do Frigorífico Armour A origem do frigorífico Armour está relacionado a dois importantes episódios da história dos Estados Unidos: A corrida do ouro na Califórnia (1848 – 1855) e a Guerra da Secessão (1861-1865). Nestes dois cenários um americano chamado Phillip DanforthArmour nascido em 1832 no estado de Nova York. Durante o período que correspondeu a corrida de ouro na Califórnia Phillip Armour aproveitou que a carne era uma parte importante da alimentação dos mineiros e abriu um pequeno açougue onde fornecia carne para os trabalhadores das minas. Como o estado da Califórnia estava longe da região criadora de gado, com o capital que havia levantado na Califórnia, Phillip Armour mudou-se primeiramente para o Wisconsin onde começou um negócio de grãos e carne tornando-se coproprietário de um pequeno frigorífico. Figura 1- Philip Danforth Armour, retrato de artista desconhecido, 1914, Biblioteca do Congresso, Washington D.C. 11 Fonte:< http://www.britannica.com/EBcheckedtopic / /308257/>. Acesso em 26 de setembro de 2013. Antecedendo ao declínio do preço da carne de porco, perto do final da Guerra da Secessão, comprou carne a preços muito baixos e revendeu-os a preços elevados em Nova York, com esse empreendimento lucrou quase dois milhões de dólares. Assim visando oportunidades nesses dois importantes episódios da história americana, Phillip Armour conquistou capital para fundar o que seria uma das companhias comerciais mais importantes dos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX. No ano de 1867 Phillip Armour, estabeleceu-se em Chicago Illinois e fundou juntamente com seus irmãos um matadouro em que eram abatidos mais de 30 mil suínos por ano, nos meses de inverno. Para a conservação, a carne era cortada em fatias e depois colocada em barris de salmoura, para então ser comercializada nos estados do oeste dos Estados Unidos. 1 Com o desenvolvimento da refrigeração, Philip Armour investiu em sua primeira câmara frigorifica o que possibilitou a empresa Armour funcionar durante todo o ano e a distribuir carne para todo o Estados Unidos e também para exportar a outros países. Para que isso pudesse ocorrer empresas como a Armour utilizavam o serviço ferroviário, sendo que Chicago estava situada no meio da rede ferroviária dos Estados Unidos, assim as empresas do setor conseguiram enviar carne congelada para todo o país, contribuindo para a expansão da indústria frigorífica norte-americana.2 Para poder expandir os negócios comprou frigoríficos em Kansas City no Missouri e Omaha no estado de Nebraska, assim como escritórios de venda por todo o Estados Unidos. Para poder acelerar a produção, Philip Armour adotou o sistema de linha de montagem, separados em compartimentos onde em um deles era realizado o abate dos 1 http://globalbritannica.com/EBchecked/topic/35474/Philip-Danforth-Armour 2 LEWINSOHN, R. 1945, p 97. 12 animais. As carcaças de suínos eram colocadas em trilhos e passavam de operário a operário. Já as carcaças bovinas como eram muito pesadas eram movidas por um elevador, nessas linhas de montagem milhares de animais eram abatidos, embalados e enlatados diariamente. Figura 2- A extensa rede de trilhos ao longo dos estaleiros permitia aos trabalhadores que descarregassem o gado. Fonte: < http://www.chicagohs.org/history/stock.html>. Acesso em 30 de setembro de 2013. Pode-se destacar que em seus primeiros anos a Companhia Armour trabalhava não só com o corte e distribuição de carnes, mas também com subprodutos oriundos das sobras dos matadouros como fertilizantes, cola, escovas de cabelo, botões, medicamentos entre outros produtos. Figura 3- Cartão de propaganda de 1891 da Companhia Armour. 13 Fonte: <http://www.chicagohs.org/history/stock.html>. Acesso em 30 de setembro de 2013. As condições de trabalho na indústria frigorífica de Chicago no final do século XIX e início do século XX não eram muito diferentes de outras indústrias do mesmo período, a situação dos operários dos frigoríficos era muito difícil. Os trabalhadores tinham que conviver com mau cheiro dos animais mortos, além dos gritos dos animais abatidos diariamente nos frigoríficos, os pisos dos compartimentos de abate eram sujos por causa do sangue dos animais mortos naquele compartimento. Além disso, as jornadas de trabalho eram longas de 10 a 12 horas diárias em ambientes de alta temperatura. A maioria dos operários eram imigrantes pobres que mal sabiam falar o inglês. A indústria frigorífica contratava muitos desses operários que em muitos casos não possuíam nenhuma qualificação especifica apenas dos açougueiros era exigida alguma técnica, as outras habilidades para a realização dos trabalhos nos currais eram adquiridas na prática, pois exigiam pouca técnica, o que levou irlandeses, lituanos, alemães, poloneses, eslavos e boêmios a aceitarem baixos salários e passarem a fazer parte da força de trabalho nos frigoríficos, assim como negros e latinos. As mulheres eram contratadas para empacotar a carne e empregava-se inclusive crianças que 14 trabalhavam como mensageiras. O calor, o mal cheiro e a sujeira faziam parte da rotina de trabalho dos operários dos frigoríficos. Figura 4- As péssimas condições de trabalho, tais como pisos encharcados de sangue, eram comuns nos matadouros, 1892. Fonte: < http://www.chicagohs.org/history/stock.html>. Acesso em 30 de setembro de 2013. As horríveis condições de trabalho movimentaram os trabalhadores dos frigoríficos a unirem-se por melhorias, através de greves e na tentativa de organização de um sindicato. Os trabalhadores fracassaram em suas primeiras investidas, por melhores condições de trabalho, sendo que nas duas greves mais significativas, uma em 1894 onde os açougueiros iniciaram uma greve por melhores salários, não sendo acompanhados em seu movimento por outros trabalhadores (principalmente aqueles que ocupavam postos em que não era necessária a qualificação) abandonaram seu objetivo. Já em 1904 os líderes da greve tiveram muitas dificuldades em unir os trabalhadores, pois os frigoríficos empregavam pessoas que pertenciam a diferentes grupos étnicos. Além disso, para não parar com a produção, foram contratados trabalhadores negros para ocupar o lugar dos grevistas, assim a luta pelos direitos trabalhistas transformou-se em um conflito racial entre negros e brancos. Os trabalhadores nos frigoríficos não alcançaram seu intento pela falta de união e organização dos próprios operários que não conseguiram ter suas reivindicações atendidas.3 3 http://www.chicagohs.org/history/stock.html 15 Figura 5- Greve na Union Stock Yard em Chicago. Fonte: < http://www.chicagohs.org/history/stock.html>. Acesso em 01 de outubro de 2013. Em 1906 o escritor americano Upton Sinclair, publicou após a recusa de várias editoras o livro “A Selva”. Sinclair, investigou a situação dos currais de Chicago e através de sua obra retratou através de personagens fictícios as difíceis condições dos operários dos frigoríficos de Chicago. O livro chocou a opinião pública que ficou aterrorizada ao tomar conhecimento sobre os problemas de higiene dos frigoríficos. No mesmo ano foi sancionada a “Pure Food Drug and Act” o que levou a algumas melhoras nos estabelecimentos frigoríficos.4 1.2 Truste ou Cartel? A Companhia Armour na década de 1880 fez parte do “meatpacking” que em tradução literal significa “enfardamento de carne” e considerado o último cartel do século XIX, juntamente com outras empresas do ramo em Chicago: Swift, Wilson, Morris e Cudahy, os “Big Five”, as cinco grandes empresas da cidade de Chicago. As empresas que formavam as “quatro grandes” de Chicago foram inicialmente acusadas de serem um truste, tanto que eram conhecidas nos Estados Unidos como “meattrust” que traduzindo significa truste da carne. Essas grandes empresas chegavam a controlar cerca de quatro quintos do mercado de carne nos Estados Unidos. 4 http://www.britannica.com/EBchecked topic / /308257/ 16 Essas grandes corporações como os frigoríficos tinham como objetivo controlar as etapas das linhas de produção no mercado americano. Isso constituiu-se em um grande problema para o governo dos Estados Unidos, visto que a constituição federal americana possui uma abertura, permitindo que os estados possam regular suas leis relacionadas a economia. Para garantir a concorrência entre as empresas, o parlamento americano votou em 1890 a Lei Sherman denominada Anti-trust que destinava-se a proibição de práticas comerciais monopolistas. Segundo a historiadora Vera Albornoz as empresas frigoríficas de Chicago formariam um cartel e não um truste, de acordo com as características que apresentavam. Na realidade os frigoríficos de Chicago não constituíam um truste, mas sim um cartel, pois as firmas não chegaram a unir-se, formalmente as empresas estavam separadas, mas havia um acordo sobre os preços da carne no mercado, o que caracteriza assim um cartel. Em 1914 foi estabelecida a Comissão de Comércio Federal, no Congresso dos Estados Unidos, que procurou regular e conter os cartéis. Durante essa comissão foi elaborado um documento, que “denunciava o ‘Truste da Carne’ como uma corporação, em que havia acordos de fretes e cartelização no comércio interestadual e mesmo internacional”.5 Por causa dessas denúncias a Companhia Armour encontrou dificuldades de entrar na Nova Zelândia em 1923, já nos países sul-americanos como Brasil, Argentina e Uruguai essas acusações não foram levadas em conta, mesmo com as denúncias feitas pelos britânicos de “intensão monopolizadora e práticas comerciais desonestas”.6 1.3 A Companhia Amour na América do Sul Os frigoríficos de Chicago buscavam no sul da América “repetir o binômio que os havia enriquecido na América do Norte: abundância de gado e ligação ferroviária” ALBORNOZ,2000, pág. 93) Certamente a mão de obra barata e o preço baixo da carne, 5 Albornoz, 2000, p.92. 6 GALLO, E.; CORTÊS CONDE R. 1987 p.128. 17 ajudou a aplicação de excedente de capital, o que já era uma dificuldade nos Estados Unidos. Na Argentina deparam-se com uma eficiente rede ferroviária que ligava todo o país ao Porto, em Buenos Aires. As pradarias nos pampas na Argentina, no Uruguai e no Rio Grande do sul repletas de cabeças de gado também atraíram o cartel de carnes de Chicago para a América do Sul. No início do século XX, os gados argentino e uruguaio já achavam-se dentro do “padrão frigorífico” com mais de 500 quilos. O gado crioulo era de um tipo mais magro então com a importação de raças europeias houve um cruzamento, entre o gado crioulo e o europeu para que o primeiro fosse aperfeiçoado. Os argentinos já contavam com frigoríficos desde o ano de 1883 e no Uruguai eles já existiam desde 1904. Já em 1910 os frigoríficos de Chicago controlavam 60% das exportações de carne resfriada na Argentina. No Uruguai os frigoríficos já haviam ultrapassado os Saladeiros, na exportação, sendo que nos dois países a exportação não era só de gado bovino mas também de suínos e ovinos. (ALBORNOZ, 2000, p. 93) Dois dos grandes frigoríficos de Chicago haviam chegado ao sul do continente americano no início do século XX, quando em 1907 a companhia Swift adquiriu o Frigorífico argentino “La Plata”. Já em 1908, uma associação entre as empresas Armour, Swift e Morris adquiriram o frigorífico argentino “La Blanca”, sendo que cada frigorífico adquiriu 40,4%, 46,7% e 13,9% nesta ordem. Três anos depois em 1911, a Companhia Swift comprou o Frigorífico Montevidéu no Uruguai. 1.4 O Armour no Brasil e no Rio Grande do Sul Quando iniciou-se a Primeira Guerra Mundial em 1914, cresceu a demanda de carnes para abastecer as tropas, a carne refrigerada que requeria animais selecionados deu lugar à carne congelada onde utilizava-se animais de menor qualidade. Para Pesavento (1979, p. 217), “tal ocorrência possibilitou que os frigoríficos estrangeiros pudessem estabelecer-se em regiões do globo que possuíam rebanhos numerosos, mas 18 não refinados como no Brasil.” Durante o período que compreendeu a Primeira Guerra Mundial, as Companhias Armour, Wilson e Swift estabeleceram três frigoríficos no Brasil, sendo que o Armour foi a primeira a estabelecer-se no país, o primeiro a funcionar foi no Rio Grande do Sul, com um investimento de US$ 5 milhões nos anos de 1917 e 1918 em Sant’Ana do Livramento e contava com 1.200 empregados, já a Companhia Swift começou a operar no Brasil em 1919, também no Rio Grande do Sul, com um investimento de US$ 3 milhões, sendo que o Wilson também instalou-se no estado gaúcho. A Companhia Armour inaugurou seu segundo frigorífico no estado de São Paulo. A empresa Armour tinha a intenção de transformar o frigorífico instalado em São Paulo em um dos maiores da América do Sul e produziria tudo o que era feito nas filiais americanas. Mas os planos da empresa não se concretizaram, no começo da década de 1920, quando estavam previstos o início dos trabalhos do frigorífico Armour em São Paulo, por causa da escassez de animais para abate e pela alta de preços no mercado em relação ao preço do gado. Apesar disso a instalação de três dos grandes frigoríficos americanos no Brasil, foi bem sucedida “tomado em conjunto, eles duplicavam a capacidade instalada para o processamento de bovinos e triplicavam a de suínos e ovinos” (Szmrecsányi, 2002, p268). No Brasil os grandes de Chicago, em 1918 já controlavam seis frigoríficos, sendo que dois no estado de São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul: Swift, Armour e Wilson. Já na década de 1930, as três empresas americanas (Armour, Swift e Wilson), juntamente com o frigorífico inglês Anglo dominavam 95% do processamento de carne bovina e 87% de carne suína e ovina de todo o Brasil. (ABORNOZ, 2000, p. 93) Como foi colocado anteriormente os frigoríficos Armour, Swift e Wilson relizaram um grande investimento no Rio Grande do sul pois levando em conta a superioridade das pradarias gaúchas nas regiões da Campanha e sul do Rio Grande do Sul, e sobretudo a ligação dessa região com o Prata pelas linhas ferroviárias uruguaias, os frigoríficos americanos assim se manifestaram através de um livro do Serviço de inteligência da América Latina: “A provisão de grandes ferrovias é uma indispensável necessidade. (...) O valor das 19 terras meridionais do Brasil para a centralização da indústria de carnes repousa no fato de que elas possuem facilidades de transporte a um porto moderno, e que elas são geograficamente uma continuação das terras propícias à pecuária da Argentina e Uruguai.” (MANNNG, E.; LUSO,J. 1919, p. 137). Além dessas vantagens, o governo gaúcho havia concedido incentivos fiscais para as empresas frigoríficas que se instalassem no Rio Grande do Sul, almejando futuramente implantar um frigorífico nacional, projeto que estava sendo trabalhado pela União de Criadores. Com a industrialização da carne, os produtores consideravam inevitável mudanças, pois estavam certos sobre a falência das charqueadas. Portanto intencionavam abrir um frigorífico no Rio Grande do Sul, utilizando recursos locais mas teriam que enfrentar a forte concorrência estrangeira. O que ocorreu quando em 1917 quando foi inaugurado em Pelotas o frigorífico Rio Grande, tendo iniciando seus trabalhos em 1920, Nesta época as empresas Armour em Santana do Livramento e a Swift em Rosário do Sul, e em Rio Grande já estavam estabelecidas no estado gaúcho tendo que enfrentar a partir de então a concorrência com uma empresa de capital nacional. Apesar das vantagens em relação a vinda de frigoríficos de capital estrangeiros para o Rio Grande do Sul, eram levantadas algumas questão, de acordo com Pesavento: “A questão da entrada do capital estrangeiro era por demais discutida, uma vez que se tinha por estabelecido que a maquinaria deveria ser importada e que o capital nacional mostrava-se insuficiente. Não havia, por parte do Rio Grande, ojeriza ao capital estrangeiro em si, mas do que ele pudesse representar através de combinações exclusivistas, subjugando o capital nacional, mais débil” (PESAVENTO, 1980, p.125) Também era questionado o fato de que uma vez introduzida uma empresa estrangeira de maneira monopolista como era o caso dos frigoríficos, os mais prejudicados seriam os produtores de gado, que estariam “à mercê dos preços que lhes quisessem pagar por seus gados” (PESAVENTO, 1980, p.125). O Governo do Rio Grande do Sul deixou clara sua posição em relação aos frigoríficos estrangeiros na Comissão de Orçamento, na legislatura de 1916 em que assegurava “que a ação do Estado não envolvia concessão de privilégios nem de favores só aos empreendimentos locais ou estrangeiros...” (PESAVENTO, 1980, p. 125) O governo de Borges de Medeiros pretendia acelerar a expansão do 20 capitalismo, partindo de uma ideia de que essa expansão e desenvolvimento teria que ser apoiado na auto sustentação, o que só iria ocorrer por meio da total liberdade econômica e através de uma produção diversificada, assim teriam que ser concedidas as mesmas oportunidades para todos os setores produtivos do Rio Grande do Sul, tendo em vista que aumentariam as exportações e consequentemente diminuiriam as exportações. Sendo que o estado poderia intervir se constata-se alguns abusos das empresas privadas em relação aos monopólios. Segundo Pesavento a concepção da inserção das “republicas positivistas”, esse era o objetivo a ser alcançado, de que liberdade deveria ser concedida a todos os setores da economia gaúcha. Pesavento coloca que essa visão em relação à economia, não condizia com a realidade do Rio Grande do Sul naquele momento. O caminho idealizado pelo governo gaúcho da época, pois as grandes empresas que eram superiores em recursos e com maior domínio de mercado levavam vantagem sobre as pequenas empresas que sofreriam as consequências de um cenário monopolista no estado. Sobre os problemas que poderiam decorrer o governo do Rio Grande do Sul, voltou-se a perspectiva da “função técnica do Estado”, de controlar a economia e conter qualquer excesso do capital, amparar o trabalho, estabelecendo as regras dessa relação e “verificar para que o capital cumpra o seu destino social de reverter à comunidade de onde se originou.” (PESAVENTO, 1980, p. 127) Em relação aos investimentos do modo capitalista de produção no setor pecuarista, exigia consentir com o capital estrangeiro, o Estado ficaria responsável por regular a situação e não permitir que as empresas com recursos estrangeiros de tornarem-se monopólios, afetassem o desenvolvimento social do estado em proveito do objetivo de lucro das empresas estrangeiras. De acordo com Pesavento, o problema do Rio Grande do Sul não era específico do estado gaúcho ou do Brasil, mas de todos os estados e nações que haviam introduzido o modelo de desenvolvimento capitalista tardiamente. No caso do Rio Grande do Sul, a elite pecuarista possuía o interesse de estabelecer uma indústria frigorífica no estado, mas outros países mais desenvolvidos como Estados Unidos e Inglaterra que já encontravam-se no estágio de exportação de investimento em outros lugares do mundo, já demonstrava que a introdução da indústria frigorífica indicava um lucro alto. Mas os investidores gaúchos necessitava de recursos para levar seu projeto adiante, opor-se ao investimento estrangeiro, constituía dizer não a tecnologia necessária para o empreendimento de uma indústria frigorífica gaúcha, o 21 melhor para o governo gaúcho era equilibrar aos frigoríficos estrangeiros um com capital nacional. 22 Capítulo II A Companhia Armour em Sant’Ana do Livramento 2.1 História de Sant’Ana do Livramento Figura 6- Mapa da Localização de Livramento Fonte:< http://www.estacoesferroviarias.com.br/rs_bage_riogrande/santana.htm>. Acesso em 12 de novembro de 2013. A cidade de Sant’Ana do Livramento localiza-se na região da Fronteira-Oeste do estado do Rio Grande do Sul, estando a 498 km da capital rio-grandense Porto Alegre. A cidade originou-se de um acampamento militar da Cidadela de São Diogo em 1811, sendo que em 1814 foram concedidas as primeiras sesmarias, já em 1823 o agrupamento de Nossa Senhora do Livramento adquiriu uma autorização para a construção de um a capela. No ano seguinte em 1824, a Capela alçou o status de Curato, sendo que somente alguns anos depois em 1830 começou a trabalhar com os livros de casamentos e batizados. Nesta época a região era somente um aglomerado de casas onde ficou assentado o Acampamento da Imperial Carolina, enquanto decorria o conflito pela independência do Uruguai. Em 1848 já com o nome de Sant’Ana do Livramento, passou a ser Freguesia, em 1857 separou-se de Alegrete a ascendeu a Vila, sendo que 23 em 1876 começou a ser indicada como Cidade.7 A localidade de Sant’Ana do Livramento ficava muito afastada e isolada, devido a distância e as dificuldades impostas pela péssima situação das estradas, “até Pelotas se demorava numa viagem de carreta dezoito dias no verão e até oitenta no inverno.” (Albornoz,2000, p. 33) Contudo, Livramento devido a sua localização tornou-se uma importante rota comercial entre a região norte da província e Montevidéu. Da província eram abastecidos por gêneros alimentícios como feijão, farinha, milho e banha, além de madeira, erva-mate e fumo, do lado uruguaio chegavam produtos estrangeiros como tecidos e roupas que entravam pelo porto de Montevidéu. A região da Campanha no período que ocorreu a Revolução Farroupilha foi ocupada pelos rebeldes devido ao seu distanciamento de outras localidades, sendo que grande da parte de sua população na zona rural, da mesma forma que ajudou o fato de Livramento possuir os campos naturais cheios de bois e cavalos, além de estar situada na fronteira o que favorecia o acesso a armas e mantimentos do outro lado da fronteira. No ano de 1865, o Imperador Dom Pedro II vem a Sant’Ana do Livramento com o Conde D’Eu seu genro, que retrata a Vila em seu diário: “A vila de Sant’Ana do Livramento está assente em um contraforte da coxilha. Tem aspecto quase europeu: as casas são disseminadas pelo meio de jardins verdejantes, onde crescem árvores da Europa, como o choupo e a acácia (...) que em outras partes do Brasil são desconhecidas. As sebes estão cobertas de rosinhas. Os pessegueiros e os marmeleiros começaram a formar frutos. Na praça há em frente da Igreja, um teatro de exterior monumental (...) Da última casa da vila à cumeada, e portanto a fronteira, a distância é de apenas cem passos. Imediatamente do outo lado fica uma casa sobre a qual se vê flutuar a bandeira oriental.” (CAGGIANI, 1986, p. 72) Já durante a segunda metade do século XIX, Livramento era uma vila em desenvolvimento, onde viviam cerca de dez mil habitantes. A base da economia da Vila era a pecuária, sendo que o comércio também tinham um papel importante na economia da localidade. Grande parte da população vivia na área rural. Nesta época os roubos de gado eram frequentes, roubava-se de um lado e vendia-se o gado roubado do outro lado da fronteira. A fronteira seca e sem nenhuma divisão natural sem montanhas ou rios permitia essa prática e também as terras das propriedades atingiam os dois lados da 7 ALBORNOZ, 2000, p. 32. 24 fronteira. A fronteira Livramento-Rivera possuí caraterísticas peculiares, com uma colonização tardia juntamente com a distância dos demais centros urbanos do Rio Grande, os santanenses acabaram por aproximar-se dos seus vizinhos uruguaios. “O povo da fronteira (...) tendo muito contato com as repúblicas do Prata, é desenvolvido, (...) os adiantamentos observados naqueles países vizinhos. Nota-se mesmo que, para numerosos coestaduanos nossos, a sua capital é Montevidéu ou Buenos Aires. Identificados como se acham com os costumes daquelas lindas capitais que conhecem fundamente. Alguns a que, moradores aqui, na campanha do Estado, lá estão constantemente, não conhecendo Porto Alegre e nem o Rio de Janeiro”. (COSTA, A. R., 1922, p.1) No ano de 1892, o trem chegou a cidade de Rivera, diminuindo a distância a capital Montevidéu para vinte horas. No outro lado da fronteira, em Livramento o trem chegou somente dezoito anos depois, e não existindo pontes e nem estradas unindo a cidade ao resto do estado, Livramento ficou ainda mais ligada a Rivera e inserindo a cidade brasileira a região de influência da capital uruguaia.8 8 ALBORNOZ, 2000, p. 31 25 2.2 A Charqueada Anaya – Irigoyen Figura 7- Saladero dos srs. Anaya & Irigoyen, em Sant'Anna do Livramento S/D: 1) Onde se salgam os couros; 2) Vista geral do saladero; 3) O terreiro para secagem; 4) Curral do matadouro. Fonte:<http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0300g41g81.htm>. Acesso em 16 de novembro de 2013. Em 1903 os charqueadores uruguaios Francisco Anaya e Pedro Irigoyen transferiram para Sant’Ana do Livramento seu saladeiro. As razões dos industriais uruguaios de tirar sua empresa de Montevidéu eram principalmente políticas. Ambos pertenciam ao partido Nacional, os blancos e com a vitória do colorado José Batlle para a presidência da República no Uruguai com medo de represálias trazem sua empresa para o país vizinho. Outro motivo foi a alta nas taxas impostas para o ingresso do charque uruguaio no Brasil, medida tomada pelo governo para beneficiar o charque gaúcho. Sendo o Brasil o maior consumidor de charque, os uruguaios perceberam as vantagens de introduzir-se no lado brasileiro. A cidade uruguaia de Rivera, vizinha de Sant’Ana do Livramento era um refúgio do partido de oposição, o Partido Nacional. Os blancos uruguaios ligados aos republicanos santanenses também facilitaram a vinda do saladeiro Anaya – Irigoyen 26 para Sant’Ana do Livramento. Os charqueadores uruguaios então adquiririam seis quadras de sesmarias no Rincão da Carolina, cerca de cinco quilômetros da cidade. Além do saladeiro foram projetadas “a residência, a escola e os demais edifícios necessários.” No ano de 1904 a construção da Charqueda Livramento ficou pronta, além da preparação do charque a empresa fabricava velas e sabão, também implantados sete poços artesianos e uma usina elétrica. A administração da empresa ficou a cargo de uruguaios vindos de Montevidéu, assim como os operários experientes, a nomenclatura utilizada na empresa era em espanhol, assim como o livro de balanço e o idioma ensinado na escola. Segundo Albornoz, o salário dos funcionários da empresa era calculado em pesos uruguaios e pago em libras esterlinas. A localização e a economia do munícipio de Sant’Ana do Livramento que tinha como base a atividade pecuária, beneficiou o saladeiro de capital uruguaio. Os faturamentos de Livramento subiram de 119 contos de réis em 1902, para 190 contos de réis em 1905. Em 1906 chegou a abater cerca de 88 mil cabeças de gado, já no ano seguinte em 1907 a Charqueda já era a segunda maior firma em custo de produção do estado gaúcho e contava com cerca de 410 funcionários em seu quadro, sendo que foi no mesmo ano apontada como a 16º firma industrial do Brasil. Exportavam seus produtos pela estrada de ferro que passava pelo Uruguai e do porto de Montevidéu.9 Tendo a pecuária como sua base econômica a industrialização da carne trouxe desenvolvimento para a fronteira Livramento/Rivera apesar das duas cidades terem exercido apenas a parte complementar nesse processo. E a aproximação entre as duas cidades só colaborou para isso, pois apesar da empresa ser um investimento uruguaio, assim como administração, funcionários e o espanhol o idioma falado na firma, nada disso causou estranheza nos santanenses, pois sempre foram muito abertos ao que era relacionado ao lado uruguaio. Apesar disso segundo Albornoz na fronteira “não havia mentalidade empresarial.” Segundo a historiadora os pecuaristas apenas importavam-se em investir o seu capital adquirindo mais terras, não interessando-se em modernizar 9 ALBORNOZ, 2000, p. 68. 27 suas atividades com técnicas modernas.10 2.3 A Companhia Armour Chega a Sant’Ana do Livramento Figura 8- Frigorífico Armour, 1950 Fonte: foto do arquivo de Cláudio Coronel Em 1916 tinha-se a perspectiva de uma empresa frigorífica de capital estrangeiro em Sant’Ana do Livramento. A cidade possuía além dos campos abundantes em gado a ligação com a uruguaia Rivera que possuía a linha férrea até o porto de Montevidéu. O empresário uruguaio Pedro Irigoyen então iniciou uma negociação com um dos grandes frigoríficos de Chicago, a Companhia Armour. Para isso trouxe para a cidade de Sant’Ana do Livramento alguns membros da diretoria da firma americana, que foram hospedados em sua casa durante 30 dias. Ao término das negociações a charqueada Livramento foi vendida aos americanos, em fevereiro de 1917, sendo que Irigoyen participou da diretoria da Companhia Armour em Livramento até o ano de 1919.11 Durante o período da construção dos estabelecimentos da Companhia Armour 10 ALBORNOZ, 2000, p. 70. 28 em Sant’Ana do Livramento, a empresa utilizou temporariamente as instalações da Charqueada Livramento, onde deram o início aos trabalhos no frigorífico. Sobre a aquisição da Charqueda Santana pela Companhia Armour o governador Borges de Medeiros assim se pronunciou: “A ‘Companhia Armour do Brasil”, tendo adquirido a ‘Charqueda Irigoyen’ em Livramento, transforma-la-á em frigorífico, para que estão sendo construídos os edifícios destinados à congelação e refrigeração de carnes, com capacidade para uma matança diária de 800 reses, e uma fábrica de conserva, com capacidade para matança diária de 400 cabeças. Serão instaladas, em edifícios próprios, fábricas de sabão, de línguas, de classificação de gorduras, de preparação de miúdos, de óleo de animais, etc. Todas as instalações, inclusive maquinismos, estão orçadas em um milhão e quinhentas mil libras e ficarão concluídas definitivamente dentro de cinco anos. Os vagões frigoríficos serão de propriedade da companhia, que pretende dispender nesta aquisição até 6.000:000$000.” (Mensagem presidencial, 1917, p. 734, PESAVENTO, 1980, p. 132) Lastimando-se da preferência da empresa americana por Livramento em relação a Rio Grande, o jornal Echos do sul ressaltou em uma edição de 23 maio de 1917: “Um dos diretores do frigorífico, o Sr. Pedro Iriogyen, disse ser aquele o único município do Estado em que um estabelecimento daquele gênero pode encontrar todas as vantagens de que carece, pois é o centro dos melhores municípios produtores de gado adaptável à refrigeração de carnes – Bagé, D. Pedrito, Quaraí e Uruguaiana, além do próprio munícipio de Livramento que em nada fica inferior àqueles. Esses municípios, classificou-se os Sr. Iriogyen em primeira classe ficando em segunda os de Pelotas, Alegrete, S. Gabriel, Rosário e Itaqui, e, depois, em terceiro, os de Rio Grande e outros (...) As modificações efetuadas no ‘Saladeiro Irigoyen’ para a sua adaptação ao frigorífico ficarão terminadas durante este ano (...) as despesas estão orçadas em 7.500.000 dólares, ou seja, cerca de 28.500 contos ao câmbio atual. O Pessoal do saladeiro todo será aproveitado no frigorífico.” ( Echos do Sul, Rio Grande, 23 de maio de 1917, p. 1). Segundo Pesavento, “O Frigorífico Livramento seria, pela sua proprietária a Companhia Armour do Brasil constituída em sociedade anônima, tendo por sede Santana” (Pesavento, 1980, pág132). Em 6 de Junho o jornal Echos do Sul de Rio Grande pública: “O principal fim da sociedade é a exploração do negócio de carnes e tudo quanto se relacione com esse ramo, inclusive a criação de gado. Tratará, também, da exploração de curtumes, lavagem de lá, etc. (...) estabelecerá frigoríficos adequados, 11 ALBORNOZ, 2000, p. 94. 29 fábricas, depósitos, trapiches e toda a classe de instalações industriais relativas à exploração de diversos ramos da pecuária e agricultura, realizando as construções que julgar necessárias e úteis. Funcionará (...) uma grande fábrica de carnes enlatadas (...) uma fábrica de sabão (...) fábricas de línguas em conservas, de classificação de gorduras, de preparação de miúdos e caixas (...) haverá uma grande fábrica de óleo de animais. Todo o maquinismo do estabelecimento será movido a eletricidade, para cujo serviço empregará exclusivamente o carvão de pedra nacional, tendo-se já feito contrato com as empresas de minas do Estado para o fornecimento do precioso artigo durante o prazo de dois anos.” ( Echos do Sul, Rio Grande, 6 de junho de 1917, p. 1). De acordo com a Companhia Armour do Brasil, a razão da escolha de Sant’Ana do Livramento para o estabelecimento do frigorífico pela abundância de gado em seus campos, pois isso trazia facilidades para a aquisição da matéria-prima na região da fronteira e a sua localização facilitava a saída da produção para a capital uruguaia Montevidéu, pela Ferrocarril Central del Uruguay, sendo que a deslocação para o porto de Montevidéu através da via ferroviária foi decisivo para que a Companhia Armour escolhesse Sant’Ana do Livramento. Em 1921 houve uma notícia que circulou pelos jornais de Montevidéu de que a companhia iria começar a utilizar o porto de Rio Grande para as suas exportações, sobre isso um representante da empresa esclareceu:12 “Não Apenas o Armour está disposto a manter seus contratos com o Uruguai, senão que ano após ano se propõe a intensificar seu movimento, como ocorreu com a presente safra em relação ao ano anterior. Além disso, é difícil, senão impossível por muitos anos a saída por Rio Grande, já que não há meio de comunicação direta entre este porto e a cidade fronteiriça de Sant’Ana. Onde a empresa tem instalado seu frigorífico. As condições existentes são muito precárias, e obrigam deslocamento a Santa Maria, ao norte da cidade, para então dirigir-se a Rio Grande, num trajeto de 900 quilômetros.” (Jornal El Siglo, 1922). A opinião sobre o país dos empresários estadunidenses foi colocada no livro do Serviço de Inteligência sobre o Brasil em 1919, “futuro promissor como fornecedor de carne para o mundo.” (MANNING,E; LUSO,J. 1919,p.134). Outros motivos que levaram os frigoríficos americanos a voltar suas atenções para os estados das regiões centro-sul do Brasil foram, os obstáculos enfrentados pelos grandes centros de comercialização de gado como Chicago nos Estados Unidos e em Buenos Aires na Argentina, a péssima situação do sistema ferroviário brasileiro e a exigência da melhoria do gado nativo, fizeram que os frigoríficos estadunidenses 12 ALBORNOZ, 2000, p. 96 30 olhassem com atenção para essas regiões do Brasil. Os estados do Paraná e Santa Catarina chegaram a oferecer quatorze anos de isenção sobre o imposto de exportação de carne, já o estado gaúcho “decretou que as empresas estrangeiras de carne congelada ficarão isentas de pagamento de todas as taxas de exportação pelo período de trinta anos.” (MANNIGN,E; LUSO,J. 1919,pág.137). Os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul venceram a disputa pela instalação dos frigoríficos estrangeiros, e a cidade de Sant’Ana do Livramento saiu com a vantagem devido a sua localização geográfica, por estar ligada ao porto de Montevidéu através da linha férrea por Rivera e por ser um centro produtor se gado bovino. Pedro Irigoyen teve um papel fundamental na vinda da Companhia Armour para Sant’Ana do Livramento, pois foi muito mais atuante no neste processo do que as lideranças políticas da cidade gaúcha, segundo Albornoz: “salientou as condições de transporte de seu país e de sua cidade,(...) que o trajeto de trem pelo Brasil era muito mais longo do que pelo Uruguai...” ( Albornoz, 2000, p. 98). Figura 9- Dom Pedro Irigoyen, 1935. . Fonte: <http://familytreemaker.genealogy.com/users/b/o/l/Ricky-I-Bols/WEBSITE-0001/UHP0010.html>. Acesso em 20 de novembro de 2013. No dia 4 de julho de 1917 na data da independência dos Estados Unidos, ocorreu uma solenidade de inauguração no Clube Comercial para comemorar a inauguração e a apresentação da Companhia Armour em Sant’Ana do Livramento para a sociedade santanense. Estava presente o Sr. Hanford Finney, presidente da empresa americana em Livramento, que discursou para os presentes, prometendo para os 31 cidadãos da cidade os “mercados do mundo”:13 (...) A união do Brasil com os Estados Unidos da América do Norte é uma combinação que produzirá uma força e unidade de ações tais, sob o ponto de vista financeiro, moral e industrial, que bem se avantajarão a qualquer outra combinação de idêntico caráter do Hemisfério do Ocidente (...) É propósito da ‘Companhia Armour do Brail’ fazer ainda com que este frigorífico seja o maior do vosso grandioso país. E o único limite que lhe será dado ao dispêndio de capitais na construção das edificações para esse estabelecimento, estará na quantidade de gado bovino, suíno e ovelhum que pudesse fornecer para serem abatidos. Quando ao transporte de seus produtos para todos os pontos da terra providenciará a ‘Companhia Armour do Brasil’. O senhor Armour, que foi o fundador e é o engenheiro chefe e grande orientador de nossa companhia, tem reafirmado constantemente, nestes três últimos meses, que o mundo clamará pelos nossos produtos e que tão patriota é o homem que vai as trincheiras batalhar com a sua carabina, quanto é aquele que dali se acha retirado, produzindo alimentos para prover subsistência, a fim de que não lhe faltem forças para disparar sua arma (...) Um frigorífico não é uma instituição filantrópica. Trabalhamos de verdade, para ganhar dinheiro. Mas temos verificado, em nada menos de 60 anos de existência, que não podemos conseguir esse ‘desideratum’ no lugar onde o povo não é próspero. Portanto por orientação da ‘Companhia Armour’, em qualquer meio onde se estabeleça (...) é querer que o mesmo prospere também, sendo que de qualquer modo, dentro dos limites do possível, a companhia contribuirá com os seus esforços para a realização desse objetivo. A ‘Companhia Armour” vos proporcionará os mercados do mundo. Os produtos de Santana não serão enviados apenas para os Estados Unidos, para a Argentina e para o Uruguai, mas para a França também, para a Inglaterra e mesmo para a Alemanha, uma vez terminada a guerra (...) É que a ‘Companhia Armour’ fornecerá os vapores para o transporte das manufaturas dos gados bovinos e porcinos que lhe forem vendidos por vós. Eis, pois, como a ‘Cia. Armour’ se torna um elemento de valor para qualquer comunidade. (...) Resta-me agora dirigir a palavra aos senhores e senhoras da ‘Companhia Armour’. Sois, por ora, um conjunto reduzido, um décimo apenas do que será a vossa agremiação ao cabo de um ano. Mas o único meio que há neste mundo de se conseguir o êxito de qualquer organização política mesmo, é a união. E isto está em serdes leais aos vossos chefes, dedicados ao vosso trabalho, fazendo tudo o que estiver em vós, sempre que fordes chamados (...) lembrando-vos finalmente e sempre, que todos vós, se trabalhardes na ‘Companhia Armour’ com dedicação, lealdade, com persistência, haveis de receber a devida recompensa, apenas seja apurado o vosso merecimento. Lembrai-vos que a ‘Companhia Armour do Brasil’ progride continuamente e tende sempre presente na imaginação a soma de capitais que ela pode depender, a fim de proporcionar vantagens que agradem a todos, no futuro (...) É meu desejo que o pessoal todo desta companhia disponha de um belo lugar para a sua morada e que todos tenham um centro para diversões. Providenciaremos a fim de que tudo se realize, não deixando de gastar dinheiro necessário, mas é necessário que me auxilieis (...) sendo leais, conservando-vos unidos, lutando sempre por este fim: - o êxito da ‘Companhia Armour’ no Brasil.” (A Plateia e a Folha Popular, 1974) Ficou claro no discurso do Sr. Finney “a necessidade de estabelecer uma 13 PESAVENTO, 1980, p. 133 32 relação de confiança com a sociedade santanense, principalmente em relação aos pecuaristas da região, que receberam promessas de enriquecimento, para isso foi pedido um voto de confiança para a empresa americana, enfatizando a fundamental participação dos criadores locais em relação ao sucesso da Companhia Armour em Sant’Ana do Livramento. Os funcionários também seriam contemplados segundo o discurso com moradia e um centro de recreação. O Frigorífico Armour estabeleceu-se em uma cidade localizada em uma região de fronteira modernizada, não foi necessário trazer pessoal de “fora” como engenheiros e mestres de obra, somente os matérias chegaram de Montevidéu juntamente com as plantas das prédios. Uma firma uruguaia a Adams y Shaw cuidou de projetar e inspecionar a construção, sendo que um engenheiro uruguaio Francisco Serralta foi o responsável pelas obras de todos os edifícios, exceto o do frigorífico. Para isso uma firma argentina de Buenos Aires a Sundstrom ficou responsável pela sua edificação, utilizando maquinaria vinda da Inglaterra, da firma inglesa British Structural com filial em Buenos Aires, juntamente com a empresa americana General Eletric. Para o estabelecimento do frigorífico foram erguidos um prédio para a gerência, uma residência para funcionários solteiros, trinta e duas residências para os funcionários casados e um clube esportivo, que continham um campo de golfe e quadras de tênis. Uma firma francesa a Loncan construiu uma estrada de ferro até Sant’Ana do Livramento, juntamente com uma estação ferroviária No ano de 1919 cerca de mil funcionários trabalhavam no frigorífico Armour, sendo que destes 50% eram brasileiros, 40% eram uruguaios e os restantes 10% era formado por argentinos, americanos, ingleses entre outros. Os operários que trabalhavam no antigo saladeiro Anaya & Irigoyen continuaram no frigorífico Armour.14 O primeiro escalão da Companhia Armour do Brasil era composta pelos norteamericanos: Thomaz Park – residente em Sant’Ana do Livramento, August Danielson - residente em Sant’Ana do Livramento, 14 ALBORNOZ, 2000, p. 99. 33 Hanford Finney – residente em Buenos Aires, Boyce Campbell – residente em La Plata, Earl Moore – residente em Buenos Aires, Howard Benell – residente em Buenos Aires, Lloyd Mason- residente em Montevidéu, Inglês: Salomon Rough – residente em Buenos Aires, Argentino: Carlos Meyer – residente em Buenos Aires. Uruguaio: Pedro Irigoyen – residente em Sant’Ana do Livramento. Figura 10- Gerência do Armour S/D . Fonte:<http://filhosdesantana.com.br/portal/?p=676>. Acesso em 26 de novembro de 2013. A Diretoria era formada por um presidente e quatro assessores, estes não 34 estavam incluídos no Livro dos Empregados e recebiam ações da empresa. A presidência da empresa representada pelo americano Hanford Finney estava estabelecida em Buenos Aires de onde viam as ordens para o frigorífico em Sant’Ana do Livramento, sendo que na cidade residiam dois membros da alta hierarquia da empresa na América do Sul, August Danielson e Thomas Park, estes era auxiliados por outros estrangeiros que viviam na cidade e não foram citados acima: Louis Mc Caulay, Albert Baylis, José Randle, Frederic Olson e Paul Floyd. Pedro Irigoyen continuou como sócio da empresa até o ano de 1919 e atuava como relações públicas dos estrangeiros, dos pecuaristas santanenses e das autoridades políticas de Sant’Ana do Livramento. O segundo escalão da empresa era constituído por técnicos e chefes de seção, sendo que era formado por funcionários de diferentes nacionalidades como uruguaios, argentinos, espanhóis, brasileiros e um francês e um inglês. Estes constituíam o quadro de funcionários permanentes e receberam uma casa para morar no interior da planta industrial. Já os operários eram empregados somente nas épocas de safra e ganhavam somente o terreno aos arredores do frigorífico, para poderem erguer suas moradias.15 2.4 A Produção de Carne nos Primeiros Anos A Companhia Armour do Brasil participou em maio de 1918 do 3º Congresso Rural de Santa Maria no Rio Grande do Sul, onde foram realizados comentários sobre o desempenho da empresa desde a sua instalação em Sant’Ana do Livramento, sobre a expansão da criação de gado bovino e ovino no Rio Grande do Sul. Na Conferência foi expressada a conclusão reconhecida pela assembleia:16 “O Congresso aconselha a criação de porcos na maior escala possível e louva o ato da ‘Companhia Armour do Brasil’, introduzindo no Estado as raças Pollands-China e Duroc Jersey puro Sangue. (...) O Congresso aconselha a introdução, nos rodeios, de reprodutores puro-sangue, e tendo conhecimento de que a ‘Companhia Armour’ pretende introduzir no Estado, em larga escala, reprodutores bovinos para vender aos criadores, a preços de custo, faz votos de que essa companhia leve a efeito seu louvável intento.” (Terceiro Congresso Rural de Santa Maria, Correio do Povo, 15 ALBORNOZ, 2000, p. 100. 16 PESAVENTO, 1980, p. 134. 35 19180, pág.9) Ainda sobre o melhoramento do rebanho gaúcho, o presidente da Companhia na América do Sul Hamford Finney em uma entrevista para o jornal o Correio do Povo no final do ano de 1917 declarou: “Apesar de não fazer parte de seu programa de negócios, a ‘Companhia Armour” está introduzindo gado vacum e suíno puro sangue, dos Estados Unidos e Inglaterra, para reprodução e vendendo-os a preço de custo a seus criadores, para conseguir o aperfeiçoamento da rala crioula.” (Correio do Povo, 1918, p.1) Nota-se que a Companhia Armour estava motivada a aprimorar o gado gaúcho, considerando a qualidade da mercadoria comercializada e exportada e que levava o nome da Companhia Armour. No estado gaúcho o processo de aprimoramento encontrava-se em um estágio de desenvolvimento. Além dos cruzamentos, iniciavam-se também os cuidados com a “higiene e a saúde dos animais, como atestam a presença de banheiros carrapaticidas pelo Estado, que atingiam o número de 291 para o gado bovino em 1917 (...) para o gado ovino o número atingia a 96 para o mesmo ano.” (PESAVENTO, 1980, p. 135). Hamford Finney deu uma entevista ao jornal Correio do Povo no final de 1917. Na entrevista ele é destacado como o presidente da Companhia Armour na América do Sul relacionado ao crescimento da companhia em países como Uruguai, Argentina, Paraguai, Chile e Brasil, sendo que neste último encontravam-se em construção dois frigoríficos, um em São Paulo e o outro em Sant’Ana do Livramento onde estava estabelecida a sede da companhia. Segundo Pesavento, ainda que o frigorífico que estava sendo construído em São Paulo fosse maior, como a capacidade de matança de 2.500 cabeças de gado vacum e 3.000 suínos diariamente, sendo já estimado em 4 milhões de dólares, no frigorífico santanense por exemplo a capacidade de matança era de 1.500 cabeças de gado, sendo que o seu investimento havia sido de 2 milhões e meio de dólares. Mas a escolha deu-se segundo Finney:17 “Até hoje (...) em vistas das vantagens oferecidas pelo Governo e pela estrada central do Uruguai, a ‘Armour exporta seus produtos via Montevidéu. Mas desde 17 PESAVENTO, 1980, p. 135. 36 que o Governo do Estado do Rio Grande do Sul e a estrada de ferro ofereceram as mesmas vantagens, a ‘Companhia Armour” terá o maior prazer em exportar sua produção pelo porto de Rio Grande, fomentando, desta maneira, a riqueza e o desenvolvimento do país, pois é sistema da companhia dar preferência ao país em que trabalha, usar meio que ele pode oferecer, que estes meios sejam a mão-de-obra, o transporte, ou materiais de construção.” (Correio do Povo, 1918, p.1) 2.5 Produção de Carne em Tempos de Guerra No ano de 1918, em comunicado à Assembleia dos Representantes do Estado, o presidente do estado Borges de Medeiros deu a notícia sobre a situação do frigorífico Armour em Sant’Ana do Livramento:18 “Está produzindo por enquanto charque, carnes em conserva, línguas em conserva, graxa, sabão, extrato de carne. São abatidas por mês 5.000 reses, mais ou menos. A Companhia já tem realizado ali o capital fixo de 9.500 contos, que espera elevar gradualmente até 19.000 contos, depois de concluídas todas as instalações.” (Mensagem presidencial, 1919, p.48) Em seus três primeiros anos em Sant’Ana do Livramento, ainda utilizando o antigo estabelecimento da Charqueada Livramento, o Armour continuou a produção de charque, sebo, vela e carnes em conserva, enquanto o frigorífico não ficava pronto. Abaixo uma tabela que mostra alguns dados sobre os abates do Armour em seus primeiros anos em Sant’Ana do Livramento, os números são anuais, conforme vemos na tabela 1. 18 PARTICIPAÇÃO DE LIVRAMENTO NOS PRIMEIROS ANOS DO ARMOUR Anos Novilhos Vacas Terneiros Gado de cria Bovinos 1917 30.497 5.475 9 __ 35.891 1918 45.391 3.215 __ __ 48.606 18 Idem, p. 136. 37 1919 25.291 1.784 __ __ 27.075 1920 36.957 323 __ __ 37.280 1921 73.257 222 __ __ 73.479 Fonte: PESAVENTO (1980) Observa-se que no ano de 1919 houve uma diminuição na matança do frigorífico, que segundo Pesavento, isso ocorreu pois de acordo com os livros da empresa devido a primordialidade de aplicar o capital para o crescimento da Companhia como bens de produção: maquinarias e instalações, pois foi no ano seguinte em 1920 que o frigorífico começou a exportar carne congelada. O que pode ter acarretado ausência de capital de giro, que seria utilizado para a compra de gado bovino. Quando o capital da empresa voltou a estabilizar-se o número de abate aumentou19 Durante a Primeira Guerra Mundial a compra de carne congelada aumentou consideravelmente, já que existia imprescindibilidade de alimentar as tropas que estavam em combate na Europa. F. Edson White, um dos mais importantes chefes do Armour era o responsável pelo abastecimento do Exército dos Estados Unidos. “Os Estados Unidos, por longo tempo o maior exportador de carne, estava importando o produto resfriado. A Grande demanda criada pela necessidade de conseguir suprimento adequado para os exércitos na Europa, e matança de milhares de gado nos países beligerantes, levou as grandes empresas refrigeradoras de carne – Packing Houses – a procurarem novas forças de produção. O Passo óbvio era procurar implementar a indústria no Brasil, e gratificados pelo sucesso obtido pelo empreendimento na Argentina, as empresas de carne congelada dirigiram seus esforços para desenvolver empreendimentos similares na República irmã.” (MANNING,E; LUSO,J. 1919,p.134) Em Sant’Ana do Livramento a média na matança de gado durante a Primeira Guerra Mundial foi de 64.731 de gado bovino, por ano. A Companhia Armour achavase intensificando as suas edificações, porém já comprava gado bovino em várias cidades da região, como é demonstrado na tabela nº2. O gado vindo de outras localidades 19 PESAVENTO, 1980, p. 138. 38 chegava em tropas e algumas vezes o próprio criador acompanhava o seu gado até Livramento. Pequenos produtores de gado, as vezes agregavam seus rebanhos nas tropas dos grandes pecuaristas da região.20 2.6 A Produção de Carne nos Anos Seguintes Nas décadas que seguiram podemos observar na tabela 2 a participação de vários municípios da região no abate do Armour por década. PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DA REGIÃO NO ABATE DO ARMOUR Cidade 1920 1930 1940 1950 Livramento 45.33% 76.96% 68.15% 67.91% Alegrete 23.42% 4.6% 6.42% 11.34% Bagé 13.62% PP PP PP Uruguaiana 7.91% 2.4% PP PP Rosário do Sul 6.80% PP PP 3.4% Quaraí 6.56% 4.45% 11.97% 3.4% Dom Pedrito PP 11.76% 4.60% 12.86% São Borja PP PP 2.60% PP ALBORNOZ (2000) 20 ALBORNOZ, 2000, p. 112. OBS: PP significa pequena participação 39 Entre os anos de 1920 e 1924 a matança de gado bovino foi de 57.845, de acordo com Albornoz estes números eram “menores que nos anos de pico Charqueda Livramento.” (ALBORNOZ,2000, p.112) Na segunda metade da década de 1920, ocorreu um crescimento expressivo, elevando para 86.941 cabeças de gado anuais. Durante as décadas de 1920,1930, 1940 e 1950 a cidade de Sant’Ana do Livramento foi a principal fornecedora de gado para o Frigorífico Armour, cerca da metade. Na primeira metade da década de 1940, o Armour teve o melhor resultado anual da produção de carne. Esses anos de alta na produção ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, período em que houve aumento da exportação de carne para alimentar as tropas que lutavam na Europa. Algo semelhante ocorreu quando o frigorífico foi instalado em Sant’Ana do Livramento em 1917, e a Europa estava em guerra. Nestes anos que coincidiram com a guerra o frigorífico abateu em média 165.791 reses bovinas anuais. A produção na segunda metade da década de 1940 baixou para 81.434 em média anual, com o fim do conflito na Europa. Na década de 1950, a produção diminuiu ainda mais, tanto que segundo Albornoz as médias da produção foram “menores que as da Charqueada Livramento, no início do século, perfazendo 62.717 cabeças no primeiro e 49.937 no segundo quinquênio.” (ALBORNOZ, 2000, pág.115). As razões para a queda na produção do frigorífico foram o fim da Segunda Guerra Mundial e o início das cooperativas de criadores de gado.21 Figura 11- Anúncio do Extrato de carne Armour, 16 de janeiro de 1945. 21 ALBORNOZ, 2000, p. 115. 40 . Fonte: <http://blogs.estadao.com.br/reclames-do-estadao/tag/armour/>. Acesso em 3 de dezembro de 2013 No ano de 1923, o Armour iniciou o abate de ovinos, com cerca de 18.185 cabeças em dois anos. No ano seguinte em 1924 o frigorífico começou a trabalhar com suínos, abatendo em média 2.228 animais. O frigorífico possuía o intendo de introduzir animais selecionados, para poder formar varas de raça. Na segunda metade da década de 1920, o frigorífico abateu cerca de 14.434 suínos, cerca 2.886 po ano.21 41 Figura 12- Anúncio do Armour, 1950. Fonte: Imagem do arquivo de Cláudio Coronel 2.7 Mudanças na Fronteira A vinda da Companhia Armour para a Fronteira Livramento-Rivera trouxe um considerável progresso para as duas cidades, além de gerar empregos diretos e indiretos para os moradores de ambas as cidades, ajudou enriquecer os pecuaristas da região e levantou o comércio dos dois municípios. No ano de 1932, na “Síntese Geográfica das Regiões Naturais do Rio Grande do Sul” coordenada pela professor Tupi Caldas, Livramento ocupa o terceiro lugar como “parque industrial”, atrás de Porto Alegre e Rio Grande. Segundo Albornoz nos anos seguintes:22 “Em 1937 Sant’Ana possuía 50 industrias, com 2.757 operários trabalhando no setor secundário da economia. O capital investido nestas indústrias era de 44.645 contos de réis, sendo o valor da produção de 88.940 contos de réis. Só que ao Frigorífico Armour correspondia um capital de 40.000 contos de réis, 89,59% do total do munícipio. Quanto ao valor da produção, essa indústria produzia 73.865 contos de réis por ano, 83,05% do valor de toda a produção industrial do munícipio. Com 2.630 operário, trabalhavam no Armour 85,60% dos industriários da cidade.” (ALBORNOZ, 2000, p. 111). 22 ALBORNOZ, 2000, p. 111. 42 O frigorífico Armour possuía uma parcela importante na industrialização do munícipio sendo que detinha juntamente com o poder político de Livramento o controle da economia da cidade. Em setembro de 1930, o então prefeito de Livramento Hugolino Andrade Farias conseguiu um empréstimo com a Companhia Armour de 157.894 dólares, que seriam pagos em 10 anos com juros anuais de 8%. O dinheiro do empréstimo seria usados para financiar os gastos com o calçamento das ruas do munícipio. A utilização de dinheiro estrangeiro era algo usual nesta região de fronteira, sendo que este costume era comum a população. Mas o problema em relação a este empréstimo, “como a perda de poder local frente a empresa multinacional”, foram as condições impostas ao munícipio que comprometeu-se em não aumentar e nem criar novos impostos. Lê-se na alínea 12ª: “12ª. O Munícipio obriga-se, na vigência deste contrato, a não criar impostos municipais, seja qual for, que afete ou possa afetar a Companhia, bem como obrigase a não alterar para mais os que atualmente paga, em algum caso.” O governo executivo municipal se restringiu em seus direitos constitucionais de competência tributária, através de um acordo privado em que a Companhia Armour saiu beneficiada com vantagens especiais. Sob o ponto de vista ético a Prefeitura havia deixava de fiscalizar a empresa americana, já que está era sua credora. No mês seguinte ao contrato entre a Companhia Armour e a Prefeitura de Sant’Ana do Livramento, ocorre a Revolução de 1930, quando então o Presidente Getúlio Vargas decreta que estão proibidos os pagamentos em moedas estrangeiros e em ouro no Brasil, com aplicação retrocessiva. Baseado nesta lei, o intendente eleito rescindiu o 1º. contrato e sua protelação em agosto de 1937. O 3º. contrato estabelecia o pagamento em “moeda nacional” e rescindia a alínea 12º. No ano de 1939 ficou estabelecido que a Prefeitura pagaria a dívida anualmente despendendo 81.898$ 800, este valor deveria ser pago todos os anos durante duas décadas, valendo a partir do segundo contrato realizado em 1937.23 23 ALBORNOZ, 2000, p. 112. 43 Capítulo 3: A Organização Hierárquica do Frigorífico Armour 3.1 A Disposição do Espaço Físico do Bairro Industrial O frigorífico Armour não representou para Sant’Ana do Livramento apenas uma indústria, mas ao seu redor originou-se uma comunidade que vivia em função do Armour. Em torno do frigorífico desenvolveu-se um complexo social que agregava além do frigorífico um complexo social que mudou definitivamente a estrutura urbana de Sant’Ana do Livramento. O prédio que comportava o frigorífico Armour demorou três anos para ser construído, durante este período foi utilizado as instalações da Charqueada Livramento para a produção. Todas as máquinas ingressaram no Brasil como capital. Através da Planta Geral da Fábrica e Residências planejada pela companhia e centralizada na entrada do frigorífico, ficava na parte inferior a estrada que conduzia ao prédio, e à esquerda os currais e o frigorífico. Como foi colocado anteriormente no livro caixa da Companhia Armour constam quatro construtoras: Sundstrom e Locam, Serralta, está última uma empresa local construíram todos os edifícios do complexo industrial além da casa dos superintendente, e dos funcionários do primeiro escalão da companhia, inteirando 32 residências, a Adams y Shaw empresa uruguaia de Montevidéu que projetou e fiscalizou os trabalhos da construção da Gerência, da casa dos solteiros e do clube. O complexo industrial é uma reprodução do frigorífico Cerro de Montevidéu.24 A empresa possuía compartimentos internos de graxearia, cozimento de sangue, latoaria, rotulagem, salga de couros, conserva, moinho de ossos, matança, cozimento de carne, câmaras frigoríficas, picada, tanque de cozimento, resfriador e salmoura. Já na parte exterior encontravam-se as instalações de carpintaria, armazém e a balança para vagões e para o gado. Os escritórios da gerência, de compra e de 24 Idem, p. 118. 44 engenharia de operações achavam-se no conjunto da planta industrial. Abaixo uma nota do jornal “A Federação”, sobre as instalações do Armour. Figura 13- Publicado no jornal A Federação 24 de maio de 1918. Fonte: imagem do arquivo de Camila Viscardi. As normas do Gerenciamento Cientifico de Frederick Taylor foram adotadas 45 na organização do espaço físico do complexo industrial do frigorífico Armour em Livramento, sendo que o edifício da administração era por inteiro afastado da fábrica. O taylorismo aconselhava a subdivisão do trabalho da gerência originando um grupo especializado executor do trabalho de escrita e organização. Na Planta da Empresa, o edifício da administração situa-se a direita da entrada do prédio, perto da rua onde ficava o prédio da administração à direita, fica uma rua que era conhecida como 1º Avenida onde residiam os funcionários do primeiro escalão do frigorífico como o gerente e seus assessores, sendo que a casa do gerente era a maior o que demonstrava que a posição na empresa fazia-se valer em todas as particularidades da hierarquia social.25 Esta avenida dava para a casa dos solteiros e o clube campestre. Os prédios projetados pelo escritório uruguaio em Montevidéu, foram construídos para serem fortes e sólidos e contavam com dois andares, sótão e porão, eram em três e foram arquitetados no estilo Georgiano, do começo do século XVIII, característico da Inglaterra, sendo utilizado nos Estados Unidos como uma implicação da aristocracia rural. Os arquitetos ingleses da Adam y Shaw que viviam no país vizinho, em Montevidéu pretendiam com seu projeto trazer para a Companhia Armour apresentar edifícios que mostrassem elegância e opulência. Segundo Albornoz “era muito comum a referência a estilos de outras épocas, conjugada aos avanços técnico-científicos e aos novos conceitos de sanitarismo: iluminação e aeração das peças, na Arquitetura Eclética ou Historicista.” (Albornoz, 2000, p.120). Na disposição do Bairro Industrial do Armour a edificação de casas construídas pela Companhia somente para os altos funcionários sendo que estas ficavam dentro dos limites do complexo industrial. A residência do gerente destacava-se por ser maior que as demais casas, o que demonstrava que a hierarquia fazia-se valer em todos os lados da organização do sistema industrial. A casa do gerente possuía mais cômodos com quatro quartos, dois banheiros e dois quartos de empregadas. Mas em relação ao material era usado o mesmo tipo em todas as residências como os telhados e janelas. Marta Andrade Pinheiro, filha de um médico que trabalhou para a Companhia Armour, relatou em depoimento a professora Vera Albornoz, as diferenças entre as moradias construídas 25 ALBORNOZ, 2000, p. 122 46 pelo Armour e as residências de Sant’Ana do Livramento:26 “As do Armour tinham conforto, (...) tinham um living, tinham um ambiente acolhedor, coisa que nas casas de Sant’Ana não tinha. (...) Tinham salas de visita fechadas, as pessoas se reuniam na sala de jantar. Ficavam depois do jantar, em torno da mesa conversando. Ninguém tinha lareira. As únicas casas que tinham lareira eram as do Armour.” (ALBORNOZ, 2000, p.123) Já a casa dos solteiros apresentava um estilo mais simples mas austero, contava com cerca de quarenta e nove cômodos com armários e pias. Os espaços privados como os quartos e coletivos como os banheiros e corredores eram ventilados e possuíam boa iluminação. Figura 14-Alojamento para os solteiros construído pelo frigorífico Armour. Autoria: Michele Nunes da Silva, 28 de janeiro de 2014. Figura 15- Escadaria do original do alojamento dos solteiros. 26 ALBORNOZ, 2000, p. 122. 47 Autoria: Michele Nunes da Silva, 28 de janeiro de 2014. Para os operários a companhia cedia terrenos para a construção de casas, “nunca houve financiamentos para a compra de casa para os operários.” (Gornatti, pág3) Os próprios operários construíam suas casas de madeira e as revestiam com folhas de aço estanhado, feitas com latas de conserva, pois quando a chapa apresentava algum problema, o material era vendido aos operários registrados. As “casas de lata” até hoje são características do Bairro do Armour, sendo que foram construídas em torno do frigorífico, outra característica destas residências são as cores fortes e marcantes, pois as casas tinham que ser pintadas todos os anos para que as latas fossem danificadas. 27 Segundo um estudo feito pela professora Neiva Shaffer, da UFRGS, as “casas de lata medem entre 30 e 50 metros quadrados (...) enquanto as casas dos funcionários mais graduados, os ‘capotes brancos’, medem entre 150 e 200 metros, confrome se vê no orçamento do engenheiro atrás.”(ALBORNOZ, 2000, p.123) 27 ALBORNOZ, 2000, p. 123. Serralta, datado de quase sessenta anos 48 Figura 16- Casa de lata do Bairro Armour. Autoria: Michele Nunes da Silva, 28 de janeiro de 2014. As casas dos operários não possuíam sistema de esgoto, luz elétrica ou água encanada, diferente dos funcionários especializados que tinham suas residências nos arredores do frigorífico. Os operários do frigorífico Armour eram contratados apenas em época de safra, nos períodos de ‘safra seca’ a maioria dos operários era dispensada pela empresa. Chegavam a ficar cerca de quatro meses sem emprego. Para poder manter-se nesses períodos recebiam horas extras, sendo que nos tempos de safra procuravam trabalhara mais. Segundo Heber Dachi operário do frigorífico: “A gente deixava até a família de lado, trabalhava mesmo. Teve gente, na época, que disse que aqui nós não trabalhávamos nós matávamos.” (ALBORNOZ, 2000, p. 108.) A clara distinção entre os operários e os empregados mensalistas estabelecia as relações de trabalho dentro do frigorífico através do controle social. Os empregados mensalistas que ocupavam uma posição intermediária na hierarquia da empresa. Os funcionários que se destacavam recebiam prêmios altos em dinheiro, além de continuarem contratados pela empresa, recebiam moradia e mais leite, água e luz praticamente gratuitos. A empresa seguia as concepções do taylorismo, que em prática 49 gerava a diferenciação entre os funcionários com o reconhecimento dos cargos superiores. Isso criava uma rivalidade entre as chefias da empresa. Na empresa existiam normas de conduta que determinavam que os funcionários deveriam ter os cabelos e barbas sempre feitos. A respeito da disciplina da empresa em relação a aparência dos funcionários, um antigo funcionário do frigorífico concedeu o seguinte relato:28 “O corte de cabelo era uma exigência, a barba feita todo o dia também era uma exigência. Conhecia gente que não prosperou na carreira funcional porque oferecia resistência a hábitos exigidos pela direção, como a barba feita diariamente.” Dentro do complexo industrial existiam duas cadeiras de barbeiro, o barbeiro aparecia na fábrica pela parte da manhã e ia à tarde no escritório por exemplo, ou o inverso. O barbeiro não possuía vínculo empregatício com a empresa e cobrava todos os funcionários pelos serviços prestados. Através do serviço de ponto era exercido o controle em relação a todos os empregos do frigorífico, cada funcionário possuía uma plaqueta com um número específico. “Tinham três controles para cada funcionário, desde o operário até a direção.” (ALBORNOZ, 2000, p..105) No momento em que o empregado tirava a chapa, era apontada a hora que ele retirava da chapa, posteriormente o desempenho do serviço possuía o apontador. Dois funcionários realizavam o ponto, e “apontador departamental, que era o departamento, checava a presença do operário na totalidade das horas que eram anotadas no Livro do Ponto.” ( ALBORNOZ, 2000, p.106). Uma das histórias mais curiosas relacionada a Companhia Armour e sua estrutura hierárquica, foi em relação as invenções de seus funcionários e de como a empresa se apropriava das patentes. Um desses funcionários o senhor Manuel Rico recebeu apenas um bônus em dinheiro por sua invenção, sendo que está foi patenteada com o nome da Companhia Armour. A história do senhor Manuel Rico, foi contada em depoimento a Vera Albornoz, pela filha de Pedro Irigoyen, fundador da Charqueada 28 ALBORNOZ, 2000, p. 106. 50 Livramento. Mercedes Irigoyen, casada com um antigo funcionário do frigorífico Armour, relatou:29 “Gostaria de destacar o fato do aproveitamento pelas multinacionais (...) da capacidade (...) intelectual de seus empregados latino-americanos. Um exemplo disso é a invenção da máquina etiquetadora para as latas de “corned-beef” de uma libra de peso. Pelo seu formato, exigem uma etiqueta de forma quase trapezoidal, que deve ser aderida à lata com grande cuidado para encaixar perfeitamente na saliência, que servirá para abrir a lata. (...) Manuel Rico, conhecido como Manolo, inventou aqui em Livramento, a máquina que podia fazer o trabalho com perfeição. A diretoria do Armour de Chicago, interessadíssima, pediu os planos da mesma. Mas Manolo não sabia fazer planos. O problema foi solucionado, colocando-se uma máquina fotográfica com o obturador aberto, enquanto durava o movimento da máquina inventada, controlada por um bom fotógrafo. Nas fotos assim obtidas, se podia ver detalhadamente as diferentes fases do movimento mecânico. Eu sei disto, porque meu marido era empregado do Armour, além de muito bom fotógrafo, sendo quem conseguiu a prova fotográfica. Manolo recebeu um bônus de compensação, mas a máquina foi patenteada pela Companhia Armour.” ( ALBORNOZ, 2000, p. 109). O senhor Heber Dachi, confirmou o depoimento de Mercedes Irigoyen e ainda acrescentou afirmando que “se não levasse cera de abelha não rotulava direito”. Dachi ainda relata que existiram outras invenções como “um tipo de martelete para desprender o couro da rês, “o matambreiro e a desossa aérea, método que compreendia “pendurar os bois em um trilho em cima e matar o boi andando, (...) enquanto passava para lá, outro já ia tirando o couro.” Este método, segundo antigos funcionários era muito mais eficaz e higiênico do que desossar o animal sobre a mesa. Todas as invenções citadas, foram criadas por Manuel Rico, de acordo com antigos funcionários do Armour que confirmam esses fatos. Elba Cepada, nora de Manuel Rico declarou que:30 “Naquela época ele ganhou um prêmio de cinco mil cruzeiros, foi o que ele ganhou. Era um prêmio. Mas ele inventou e a patente saiu no nome da companhia.” (ALBORNOZ, 2000, p. 110) Elba Cepada, relata que o sogro não se incomodava, com a apropriação de suas invenções pela Companhia Armour. Manuel Rico era um eletricista bobinador e teria feito um curso por correspondência de mecânica, assim tornou-se o criador de vários 29 ALBORNOZ, 2000, p. 109. 30 Idem, p. 110. 51 inventos. Segundo Mercedes Irigoyen, a empresa de Chicago “vestia-se de plumas aleias” em uma referência ao aproveitamento da aptidão criativa de seus empregados. Além disso havia a perspectiva de “neocolonialismo cultural”31 de que somente europeus e americanos seriam capazes de grandes realizações, ou seja, quem nascia abaixo da linha do Equador não possuía a capacidade de criar algo ou de ocupar um grande cargo, exercendo somente funções subalternas. Manuel Rico, mostrou-se capaz se ser um grande inventor, mas não levantou a voz para exigir os seus direitos pelas suas criações. Manuel Rico, representa muito bem os muitos santanenses trabalhadores do Armour, que importavam-se apenas em manter o emprego. 32 3.2 O Clube do Bairro Industrial O Clube destinado ao divertimento dos altos funcionários, no local jogavam dados, bridge e sinuca. Às quartas-feiras as senhoras reuniam-se para tomar chá e as sextas-feiras jogavam bridge. O campo de golfe do clube começou a ser utilizado já em 1918 dois anos antes das instalações do complexo industrial. No ano do início dos trabalhos na Charqueada Livramento, os gerentes da companhia “trouxeram da Argentina um jovem espanhol profissional de golfe, chamado José Maria Gonzalez, para que em terreno que circundava o belo edifício do clube social da companhia implantasse um clube de golf.” (GONZALES, 1987, p.121). As instalações do clube também contavam com quadras de tênis para serem usadas pelos funcionários da diretoria e suas famílias. De acordo com Albornoz, na planta das instalações aparece uma biblioteca que nunca foi instalada e a sala projetada para este espaço acabou sendo usada como sala de jogos para senhoras. O clube ainda contava com três lareiras e uma cozinha.33 Figura 17- Membros do Clube do Armour, 1917. 31 ALBORNOZ, 2000, p. 110. 32 Idem, p. 110. 33 Idem, p. 120. 52 Fonte: <http://filhosdesantana.com.br/portal/?p=676)>. Acesso em 15 de janeiro de 2014. 3.3 O Time de Futebol do Armour O time de futebol do Armour foi fundado em 17 de junho de 1917. Formado por funcionários do frigorífico que eram conhecidos como tripeiros. O primeiro escalão do frigorífico incentiva a atividade física entre os operários e cediam algumas horas de intervalo para os treinos. Entretanto apenas os funcionários não especializados jogavam futebol, os funcionários administração ou os chamados “capotes brancos” ou aqueles que pretendiam exercer uma função administrativa na empresa era estimulados a jogar golfe ou tênis. O senhor Arturo Eguia foi funcionário da empresa e começou como mensageiro 11 anos de idade. Acabou chamando a atenção de Richard Scoutt, inglês que trabalhava como chefe do escritório. Scoutt enviou o jovem Eguia para Montevidéu para estudar. Em depoimento dado a Vera Albornoz ele relatou o conselho que recebeu do inglês:34 “Mr. Scoutt disse para mim, quando eu era criança que eu não podia ir para o campo de futebol porque ia me misturar com os negros. Eu tinha que ir para o campo de tênis.” p. 107) 34 ALBORNOZ, 2000, p. 107. (ALBORNOZ, 2000, 53 Figura 18- Brasão do Time de Futebol do Armour. Fonte: <http://cacellain.com.br/blog/?p=33378)>. Acesso em 18 de fevereiro de 2014. A divisão hierárquica fazia-se presente em todos os aspetos da empresa. Das moradias ao tipo de esporte praticado, o futebol era somente para os brasileiros que para os estrangeiros eram negros. Os funcionários especializados foram trazidos de fora do Uruguai e da Argentina, a esses era permitido utilizar o campo de golfe e a quadra de tênis. Já os operários eram praticamente todos brasileiros, esses era o grupo que formava o time de futebol da empresa. 3.4 Conflitos Trabalhistas no Frigorífico Armour A grande maioria dos trabalhadores da Charqueda Livramento, empresa de propriedade dos uruguaios Pedro Irigoyen e Franscisco Anaya que foi vendida a Companhia Armour foram contratados pela empresa americana quando esta estabeleceu-se em Sant’Ana do Livramento. Em 1919 a empresa contava com cerca de mil operários, sendo que destes 50% eram brasileiros, 45 % de uruguaios e os 5% restantes eram constituídos de diferentes nacionalidades como argentinos e 54 americanos.35 No ano de 1919, Pedro Irigoyen que até então trabalhava para o Armour como relações públicas desliga-se da empresa. O uruguaio Irigoyen não aceitava as condições de trabalho impostas pela Companhia americana aos trabalhadores brasileiros e uruguaios. Na época em que administrada a Charqueada Livramento aplicava as leis trabalhistas uruguaias aprovadas em 1915, que determinava 8 horas diárias de trabalho e seis dias na semana. Sobre as leis trabalhistas de seu país o presidente Batlle afirmou no jornal “El Dia”:“Seremos uma pobre e obscura republiqueta, mas temos leizinhas adiantadinhas.” (NAHUM, 1995, p. 44) Certamente que as leis do país vizinho era avançadas na perspectiva da Companhia Armour do Brasil. No frigorífico daquele período os operários trabalhavam 10 horas por dia e para a empresa não havia motivos para diminuir duas horas da jornada de trabalho dos operários. A folga semanal era costume na fronteira já aquela época, era algo que existia desde 1883, com o estabelecimentos fechando suas portas nos domingos e feriados. Em 13 de março de 1919, iniciou-se uma greve no Frigorífico Armour em Sant’Ana do Livramento, que logo após foi aderida pelos funcionários do Frigorífico Wilson (outra companhia americana de Chicago instalada em Livramento). No dia 16 do mesmo mês os operários organizaram-se em uma caminhada até o centro da cidade até a casa de Pedro Irigoyen para lhe prestarem homenagens. Os operários de ambos os frigoríficos entregaram as empresas Armour e Wilson um ofício com as seguintes reivindicações:36 1º. Redução de 10 para 8 horas de Trabalho; 2º. Aumento de 20% nos salários dos trabalhadores manuais e braçais. 3º. Aumento de 25% nos salários das mulheres; 4º. Pagamento em dobro dos trabalhadores executados nos domingos ou fora do serviço de 8 horas. 5º. Readmissão de todos os operários grevistas e exclusão dos que não aderiram ao movimento. 35 ALBORNOZ, 2000, p. 99. 55 Os representantes dos frigoríficos de Chicago não aceitaram nenhuma das reivindicações dos grevistas. Nas passeatas os operários em greve empunhavam cartazes com os seguintes dizeres em espanhol: “Queremos lo que pedimos.”/“Estamos com el derecho y la justicia.” 37 Os ideias anarquistas influenciaram o movimento grevista dos funcionários do Armour, sendo que muitos deles eram uruguaios, argentinos e espanhóis. Em 1911 começou a circular na fronteira Livramento-Rivera o jornal anarquista bilíngue “A Evolução”, que apoiou a greve. Os operários da capital uruguaia também resolveram mostrar seu apoio aos grevistas da fronteira enviando o Delegado da Federação Operária de Montevidéu para participar de um comício na praça mais importante da cidade de Rivera38 Mesmo com tanta pressão as companhias de Chicago continuavam irredutíveis e resolveram não ceder a nenhuma das exigências dos grevistas. No mês de abril de 1919, alguns funcionários voltaram ao trabalho, somando-se aos cerca de quatrocentos que haviam sido contratados de emergência em razão da greve. No 1º de maio de 1919, os grevistas realizaram uma grande passeata pelas ruas de Sant’Ana do Livramento e neste mesmo dia conseguiram uma resposta positiva a suas reivindicações, as empresas americanas resolveram ceder aos funcionários 10% de aumento nos salários e redução na jornada de trabalho de 10 para 9 horas diárias. Longe de ser o desejado pelo movimento grevista, foi uma importante conquista tratando-se de duas empresas que representavam o poderio do imperialismo americano no cone sul.39 No período em que compreendeu a greve dos trabalhadores dos frigoríficos Armour e Wilson foi criado o Centro de Assistência de Ofícios Vários que no ano seguinte em 1920 foi convertida no Sindicato de Ofícios Vários. Essa associação tinha como finalidade o auxílio reciproco entre os operários. Organizado por Santos Soares, fundador da Liga Comunista de Livramento em 1918. O papel de Santos Soares na luta operária em Livramento foi mencionado por I. Axelrud, na Revista de Estudos, de 36 ALBORNOZ, 2000, p. 101. 37 ALBORNOZ, 2000, p. 101. 38 Idem, p. 102. 39 Idem, p. 101. 56 1952:40 “Mas o jovem dirigente comunista, a medida que ia se temperando na luta, aprendendo e acumulando experiência, compreendeu que era preciso dar atenção especial à empresa fundamental. Santos Soares lançou-se à tarefa de organizar e levar à luta os trabalhadores do Frigorífico Armour. Ali era a cidadela dos patrões e dos fazendeiros. Mas ali era que se encontravam os trabalhadores.” (CAGGIANI, 1996, p.165) Os políticos santanenses positivistas, apoiaram as empresas americanas, assim como a Brigada Militar que foi acionada para proteger as empresas, o que foi reconhecido depois pela Companhia Armour que enviou uma nota de agradecimento em que se lia: “Tendo terminado por completo uma greve que tentavam alguns operários do Frigorífico, cumpro o grato dever de agradecer a V.Excia. a cooperação eficaz que prestou-nos no sentido de debelá-la, louvando o modo correto como se portou em nosso estabelecimento, a força pública aqui destacada. (...)” (Cópia de carta expedida pela Companhia Armour, ALBORNOZ, 2000, p. 102) Na capital do estado, Porto Alegre o governo do estado deixou de lado a política de não-intervenção nas relações de produção e acabou por adotar medidas para conter os movimentos operários em relação as greves que eclodiam pelo Rio Grande do Sul. No decorrer do ano de 1919 ocorreram diversas greves no estado, “foi constante a presença de piquetes antigrevistas de policiais ou brigadianos dispersando as manifestações operárias, patrulhando os estabelecimentos industriais e os bairros operários, invadindo e ocupando as sedes dos sindicatos, prendendo e algumas vezes ferindo ou matando grevistas em meio as arruaças que se formavam.41 Inclusive nas greves pacíficas não se rompia a norma de controle por parte da força pública”. Existia um “rígido intervencionismo, (...) um claro e constante posicionamento de Borges junto aos interesses do empresariado.” (PETERSEN, 1979, p. 324) 3.5 A Greve de 1949 Em abril de 1949 os operários do Armour entraram em greve. Sobre esse 40 Idem, p. 103. 41 PETERSEN, 1979, p. 324. 57 episódio o pesquisador santanense Marlon Aseff coloca:42 “Na edição de segunda-feira, 4 de abril de 1949, o jornal o Republicano, portavoz da UND local, publicava: ‘como vinha sendo esperado de há muito, finalmente na 6º.a feira última irrompeu o movimento grevista no frigorífico Armour desta cidade, sob o pretexto de pleitear o aumento de salário dos funcionários daquele frigorífico e contra o desconto do imposto sindical, mas, na realidade, servindo aos desígnios revolucionários e subversivos dos comunistas que procuram acima de tudo a anarquia, a desordem e a desharmonia social. O movimento teve uma longa preparação psicológica, através da impressa comunista, da distribuição de boletins subversivos, e da atuação desenvolvida pelos vereadores comunistas Lucio Soares Neto e Solon Pereira Neto, na Câmara Municipal, procurando da tribuna daquela Câmara agitar os meios operários e sindicais e justificar o direito de greve. Porque a greve, é preciso que se diga, embora uma faculdade constitucional, por não ser de auto-aplicação, e depender da regulamentação legal, praticamente não existe em nosso país.” (POTOKO, 2013, p.145) Corria na cidade de que os líderes da greve haviam sido presos e levados para a capital, Porto Alegre. Segundo pesquisadores da cidade foram momentos tensos em que os militantes que estavam até o momento em liberdade decidiram agir. Entre os líderes do partido comunista estavam Lucio Soares Neto, secretário do partido e Hugo Nekesaurt, homem de confiança do partido. Aseff relata sobre esses momentos de tensão na fronteira:43 “Escondidos em um fundo de quintal de uma modesta casa nas cercanias no frigorífico, junto a um chiqueiro de porcos, varavam a noite despistando a polícia, correndo risco de vida. Hugo recorda: “Estávamos nos fundos de uma casa de gente requetepobre. E de madrugada é que se deu o caos. As mulheres dos companheiros presos foram exigir, chorando, uma solução. Se dizia que iam ser levados para Porto Alegre no trem que saía de manhã e ninguém sabia o que podia acontecer”. Pressionado, Lucio não resistiu ao apelo desconcertante das companheiras, angustiadas pela incerteza da luta e o que poderia acontecer aos seus maridos. De súbito, determinou a Hugo mais uma das missões quase suicidas, que já faziam parte do cotidiano da luta. É o velho militante comunista, sobrevivente daquelas décadas radicalizadas, que rememora: “No portão do Armour a greve tava fervendo, miles de personas não? quase dentro da fábrica. E o Lúcio me manda a mim que vá ao bairro Wilson, na estação ferroviária, a conquistar brigando a liberdade dos comunistas que iam seguir preso. E digo, e vou só? Sim, você vai no Armour, pega gente no portão e vai lá, o trem vai parar na estação do Wilson, você sobe no último vagão, passa por todos e manda que eles desçam. Mas não era para dizer aos companheiros qual era a missão que o partido mandou, só quando chegasse no trem. Aí caminhamos uns cinco ou seis quilômetros pela via férrea, e quando chego e digo olha, nós vamos fazer o seguinte, vamos ver se recuperamos a liberdade dos nossos companheiros, todos deram volta, uns cinco ou seis, e eu fiquei sozinho.Agora imagina, tinham que 42 POTOKO, 2013, p. 145. 43 POTOKO, 2013, p. 146. 58 levar gente muito bem armada para fazer isso, e eu com um revólver 32 e sozinho”. Hugo não desertou. Esperou o trem, e conforme o combinado com Lucio, ofereceuse ao sacrifício pela liberdade dos companheiros. Nem que fosse à bala iria tirar dali Felício, Aladim, Horacílio, Pedro e Adair. Também deviam estar no trem o Juvelino, o Nazário, o Joventino, o Antônio, o Ernesto e o Toríbio. Com a arma em punho, dissimulada no bolso, percorreu os vagões em intermináveis minutos. Mais uma vez, a sorte o acompanhou. O conflito fora adiado. Os companheiros ficaram detidos na delegacia, de onde só sairiam depois de sumariamente demitidos do frigorífico. Hugo desceu em Palomas e empreendeu uma arriscada caminhada rumo ao centro do conflito, novamente. Enquanto percorria os quilômetros que o separavam da cidade, da fábrica e dos grevistas, pensava na peculiaridade da luta. Mal poderia supor que pouco mais de um ano depois veria quatro de seus companheiros chacinados em frente ao Parque Internacional. Quem observasse aquele homem caminhando pelos trilhos; obstinado, cansado, envolvido até a raiz na luta social, não poderia supor que a luz daquela manhã outonal iluminava um idealista que pouco se importava com as privações que o combate impunha. Conforme bem notou o historiador Jorge Ferreira, para os comunistas “amargurado era aquele que não sabia as origens de seu sofrimento, infeliz era o operário alienado que desconhecia as razões de sua miséria, sacrificado era o camponês que nascia e morria faminto acreditando na vontade de Deus; sofrido era o pequeno-burguês em sua vã corrida para alcançar os capitalistas. Para um autêntico revolucionário, o sofrimento era um sentimento perturbador tão somente para aquele que ignorava as matrizes de suas dores”. (...)Não que Hugo fosse frontalmente contra os pequenos burgueses ou os caudilhos. Admirava Don Pedro Irigoyen, o dono do saladeiro, que soube ludibriar os gringos que pensavam ter comprado o terreno do Armour com direito aos eucaliptos da avenida, semeados por ele. Lembra com indisfarçável orgulho da frase proferida tantas vezes por Don Pedro: “Mientras exista Pedro Irigoyen, y sea dueño del saladero, nunca van a ver un milico en el portón”. A hombridade da luta política também acendia a admiração ao caudilho maior, Flores da Cunha. “Gosto do Flores, apesar do Flores ser da UDN , porque era um homem romântico, humano, chorava por qualquer coisa. E era o valente número um não?”. A relação com o Frigorífico passou da admiração para uma crescente consciência de classe. Quando olha para trás e revê a luta que teve como palco o frigorífico, Hugo reflete sobre os prós e os contras que o desenvolvimento capitalista impôs naquele momento : “Isso eu penso até hoje, quando perco o sono. É a evolução do mundo, claro, eram uns ladrões, sempre foram uns ladrões, mas teve uma etapa em que eles ajudaram os povos, verdade? Porque quer indústria melhor do que um frigorífico para trabalhar? As pessoas aqui de Santana trabalhavam em campanha, grátis, por comida. Faziam muro de pedra, quando não havia alambrado. E eu faço uma comparação do Frigorífico com um filho. Você cria o seu filho, ajuda, mas ele cresce e casa e você deixa de ajudar. Ele já é livre. E com os capitalistas sucede a mesma coisa, a princípio é encantador trabalhar em um frigorífico, mas depois um se dá conta de que é roubado” (Entrevista disponível em http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&I temid=0&id=358) 3.6 A Companhia Armour saí do Cone Sul Na ocasião em que as cinco grandes Companhias de Carne de Chicago, Armour, Swift, Wilson, Morris e Cudahy, em 1912 pela Comissão de Comércio Federal, nos Estados Unidos foi apurado que havia um acordo entre as cinco empresas. 59 Mas não existiam provas contra elas, pois estas não eram independentes juridicamente. De acordo com Leonel Gornatti, último gerente do frigorífico em Sant’Ana do Livramento “eram cartelizadas, indiscutivelmente, embora (...) juridicamente separadas.” Algo que ocorreu até 1972, ano em que ocorreu a fusão entre a Armour e a Swift, constituindo a Swift – Armour S.A. Indústria e Comércio. Certamente por causa da investigação ocorrida nos Estados Unidos, o Armour trocou o nome da companha diversas vezes, para poder adequar-se as leis dos países em que se situou. Em Sant’na do Livramento, a empresa possuiu três nomes, anteriores a fusão: 44 1º- Companhia Armour do Rio Grande do Sul 2º- Armour of Brazil Corporation 3º- Frigorífico Armour do Rio Grande do Sul S.A. Leonel Gornatti elaborou um histórico, em que a Armour of Brazil Corporation locava e gerenciava as posses da Companhia Armour do Brasil, que tinha sua sede em São Paulo, e a Companhia Armour do Rio Grande do Sul, com sede em Sant’Ana do Livramento. Em 1924, a diretoria da Companhia Armour transferiu-se da cidade do Illinois para o Maine e em 1954 mudou para Delaware, estado americano conhecido por conceder benefícios fiscais as empresas. Neste tempo, a Armour of Brazil Corporation foi incorporada a Armour American Corporation, juntamente com as ações do Frigorífico Armour do Brasil S.A. e do Frigorífico Armour do Rio Grande do Sul S.A. pela International Packers Ltda, com sede em Buenos Aires, que já possuía a maioria das ações da Companhia Swift do Brasil. Formalmente, a fusão ocorreu no ano de 1969, no momento em que a International Packers Ltda, uniu-se a Deltec Panamérica, sendo esse o principal comprador do Armour, originando a Deltec Internacional. No ano de 1972, foi constituída a empresa Swift – Armour S.A. Industria e Comércio, em ainda em 1972, a SASA – Administração e Participação, passou a ter controle das ações, sendo que o capital foi incorporado pela empresas Caemi em 55% e Brascan em 54%, firmas relacionadas a mineração e ao setor financeiro. Porém, de acordo com Albornoz a fusão pode ter ocorrido anteriormente, “ao 44 ALBORNOZ, 2000, p. 125. 60 doar o terreno para construir uma Escola Estadual em 1978, há declaração de que ‘ratificam para todos os efeitos legais, a doação (...) efetuada em fevereiro de 1957.” Pedro Silva, que era funcionário do Armour, em depoimento esclarece que: “Em 57, foi doado o terreno pelo Armour e não podia ser doado depois da fusão. Foi doado pelo Armour, e não pela Swift-Armour.” (ALBORNOZ, 2000, p.126) Em 1961, o Frigorífico Armour do Rio Grande do Sul S.A., vendeu o Clube do Armour, o que “foi devidamente autorizado pela Assembleia Geral Extraordinária de seus acionistas, realizada em 30 de junho de 1959 e de número 65, lavrada no respectivo Livro de Atas.” Em 1958, a Companhia Armour já havia saído do Uruguai, então certamente quando o clube foi vendido o Armour já não deveria estar em Sant’Ana do Livramento. Mas ainda são levantadas dúvidas sobre a saída do Armour da região do prata, como será que as Companhias americanas saíram da Argentina e do Uruguai como falam os “castellanos”? Saindo desses países, não se retirariam do Rio Grande do Sul? Como Pedro Silva, relata em 1957 a companhia cedeu em 1957, um terreno para uma escola, assim como a confirmação do último gerente da Swift-Armour, Leonel Gornatti, sobre a doação do terreno em 1957 e concedido para o estado em 1978, então seria o ano de 1958 o ano de saída do frigorífico de Sant’Ana do Livramento? Outro fato que pode confirmar esta versão foi a aprovação pelos acionistas do Clube do Armour em 1959. Até 1968, o Frigorífico Armour seguiu funcionando em Sant’Ana do Livarmento. A carne era exportada através do porto de Montevidéu. Nesse ano, o Armour operava juntamente com a International Packers Ltda. Em depoimento Arturo Eguia que começou na empresa como mensageiro aos 10 anos e chegou a gerência, declarou: “No papel dizem que a Swift comprou o Armour, mas a verdade é que os acionistas chegaram à conclusão de que um fazia concorrência para o outro, e aí juntaram os dois.” (ALBORNOZ,2000, p. 127) Em 1989 a Swift-Armour foi vendida para o grupo Bordon, pedindo concordata em 1994. No mesmo ano a empresa de Bagé Cicade, apropria-se da SwiftArmour. P presidente da empresa bajeense afirmou que teria aconselhado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Alceu Collares, a ‘rodar a fábrica’, ganhando para tal linhas de crédito nos bancos do governo. Justificando não ter recebido as linhas de 61 crédito dos bancos estatais, fechou a Swift-Armour. “Estando a Swift-Armour em concordata, seus bens são indisponíveis. E, sendo indisponíveis, não poderiam ser negociados.” (GORNATTI, S/D, p.16) Após a Segunda Guerra Mundial, passaram-se os anos de ‘fartura”. Após a década de 1940, a cidade de Sant’Ana do Livramento foi perdendo sua população. Nos anos de maior produção do frigorífico em 1940, chegou a ser a 6º cidade em população do Rio Grande do Sul. A medida em que os anos passaram, a população da cidade decaiu juntamente com a produção do frigorífico. A cidade, por muitos anos viu-se dependente do Armour, pois o frigorífico era o principal empregador da cidade. É fácil encontrar santanenses que tenham tido algum vínculo empregatício com a empresa, mesmo filhos de ex-operários. Por causa desta dependência e pela falta de planejamento do poder político municipal, Sant’Ana do Livramento foi uma das cidades que sofreu mais perdas na sua população. Os frigoríficos de Chicago, permaneceram fortes no Cone Sul, durante o tempo em que conseguiram monopolizar o negócio de carne na região. Com mão de obra barata e sindicatos sem muita força, conseguiram tirar todo o proveito das vantagens que vieram buscar na região. Até terem que competir com os produtores locais, que organizados em pequenas cooperativas, estabelecendo frigoríficos com produção própria, acabando com o monopólio da carne, e terminando com o imperialismo americano em Sant’Ana do Livramento. 62 CONCLUSÃO Uma das principais razões para a vinda do Frigorifico Armour para Sant’Ana do Livramento foi a sua privilegiada localização geográfica. A relação de proximidade com a uruguaia Rivera, permitia a exportação de carne pelo porto de Montevidéu. Já no seu estabelecimento o Armour foi influenciado pelo caráter binacional da fronteira. Viuse isso na construção de prédios do complexo industrial, feito por firmas uruguaias, a contratação de funcionários especializados na sua maioria uruguaios e argentinos. Como colocou o senhor Arturo Eguia em seu depoimento: “É um engano pensar que o Armour veio para o Brasil. O Armour veio inicialmente para a Argentina e Uruguai, onde continuou o cartel existente nos Estados Unidos para a compra e comercialização de carne, cujo transporte era realizado em navios com câmaras frigoríficas, formando um acordo entre americanos, ingleses e argentinos, já em 1914.” (ALBORNOZ, 2000,p.148) Como a mais importante força econômica de Sant’Ana do Livramento, empregando cerca de 82% dos trabalhadores da cidade, o Armour exerceu grande influência na cidade, inclusive política, ao firmar acordos vantajosos para empresa com o poder municipal. O poder executivo municipal inclusive, sempre foi um grande incentivador da empresa dando todo o apoio necessário mesmo em tempos conflituosos como as greves de 1919 e 1949. O poder público alias mostrou pouca iniciativa em relação a preocupação de desenvolver outras atividades com os produtos provenientes da matéria-prima usada pelo Armour. Derivados como o couro, o sangue, os ossos, os miúdos, os cascos, os chifres e o sebo não eram aproveitados na cidade, mas comercializados fora. Havia falta de planejamento e excessiva dependência em relação ao frigorífico que sozinho equivalia a 85% do capital industrial em Sant’Ana do Livramento. Segundo a professora Vera Albornoz não houve por parte das autoridades locais e nem do Armour o interesse de estimular o desenvolvimento da economia local com a utilização e comercialização 63 desses derivados dentro do munícipio. A comunidade santanense também não mostrou interessada quando o Armour procurou introduzir a industrialização de suínos, sendo que a produção local foi fraca e esporádica. É inegável que houve progresso nos anos de grande produção, foi tão significativo que pode-se avaliar pela decadência econômica e social que a cidade viveu após a saída do Armour de Livramento. Mas isso não esconde o fato de a influência do Armour sobre o município ter tido claras características imperialistas como o registro de patentes pela Companhia Armour, com a apropriação indevida das invenções de Manuel Rico, ou o descaso com o operariado em que, governo e empresa foram negligentes com a população do bairro industrial que durante décadas não teve acesso à educação, saúde e outros direitos básicos. Hoje apesar de muitos santanenses ainda ficaram saudosos em relação aos tempos do frigorífico, admitem que a cidade ficou muito tempo olhando para o passado e buscando respostas para a saída da Companhia Armour da cidade, está vendo que a região já não proporcionava-lhe o mesmo lucro, procurou sair e estabelecer-se em locais onde o seu capital lhe rendesse mais lucro. Sant’Ana do Livramento está reerguendo-se e buscando outras alternativas como a vinda de uma Usina Eólica para a cidade, gerando o crescimento econômico e social da cidade, o Armour hoje faz parte do passado da cidade, inclusive com o projeto da criação de um museu sobre a história do Frigorífico na cidade. 64 BIBLIOGRAFIA: ALBORNOZ, Vera do Prado Lima Fronteira Gaúcha: Santana do Livramento. Caderno de História: Memorial do Rio Grande do Sul. Secretaria de Estado da Cultura – Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008. ALBORNOZ, Vera Prado Lima, Armour: Uma aposta no pampa. Santana do Livramento; Editora Sâmara, 2000; CAGGIANI, Ivo – Sant’Ana do Livramento, 150 anos. Sant’Ana do Livramento, Editora Museu Folha Popular, 1986. COSTA, A. R. – O Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Livraria do Globo, 1922. GALLO, E, CORTÊZ CONDE, R. – História Argentina, Buenos Aires, Editora Paidós, 1987. GONZALES, M. – Golf no Brasil. Rio de Janeiro, B. Borges Edições, 1987. GORNATTI, L. – História da Swift Armour S.A. Indústria e Comércio. Apostila. LEWINSOHN, Richard – Trustes e Cartéis: Suas Origens e Influências na Economia Mundial, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo, Edição da Livraria do Globo, 1945. 65 MANNING, E. LUSO, J. – The United States of Brazil. Its History, People, Commerce, Industries and Resources, London: The South America Intelligence Co., 1919. NAHUM, B. – Manual de Historia del Uruguay, Montevideo, Ed. De la Banda Oriental, 1995. PESAVENTO, Sandra Jatahy, República Velha Gaúcha: Charqueadas, Frigoríficos e Criadores, Porto Alegre – RS, Editora Movimento, 1980. PETERSEN, S.R.F. – Greves no Rio Grande do Sul (1890-1919). IN: ANTONACCI, M.A. et. Ali – RS: Economia e Política: Mercado Aberto, 1979. POTOKO, Carlos Alberto – Sant’Ana do Livramento: 1823, Fundação Biblioteca Nacional, 2013. SILVA, Sérgio; SZMRECSÁNYI Tamás (Orgs.) - História Econômica da Primeira República. São Paulo, Hucitec/EDusp/Imprensa Oficial SP, 2002. 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