CÉLULA PSÍQUICA: A FACE ESTRUTURAL DA UNIDADE BÁSICA DA
PSIQUE CONFORME A AFETIVIDADE AMPLIADA
Psychic Cell: The structural facet of the basic unity of the human psyche
according to the Extended Affectivity
RENÉ SIMONATO SANT’ANA-LOOS1
[email protected]
HELGA LOOS-SANT’ANA2
RESUMO
O conceito de Célula Psíquica como a face (ou faceta) estrutural da psique é
aqui apresentado, conforme postulado pelo Sistema Teórico da Afetividade
Ampliada (STAA). A concepção de tal unidade básica busca, assim, contribuir
para elucidar a “partícula fundamental” da psicologia humana, sem
desconsiderar a interdependência e a complementaridade entre estrutura e
função na análise dos fenômenos. A célula psíquica organiza cada indivíduo
em referência à realidade da qual participa, minimizando a entropia debilitante
e avançando rumo à homeostase.
Palavras-Chave: Afetividade Ampliada; Célula Psíquica; Desenvolvimento
Humano; Estruturalismo e Funcionalismo; Homeostase.
ABSTRACT
The concept of Psychic Cell as the structural facet of the psyche is here
introduced, as postulated by the Theoretical System of Extended Affectivity
(TSEA). Conceiving this basic unity provides a contribution in order to
elucidating the “fundamental particle” of human psychology, without
disconsidering the interdependence and complementarity between structure
and function for phenomena analysis. The psychic cell organizes each
individual in reference to the reality in which they participate, in order to
minimize depleting entropy, thus advancing towards homeostasis.
Keywords: Extended Affectivity; Psychic Cell;
Structuralism and Functionalism; Homeostasis.
1
Human
Development;
Graduado em Filosofia (UFPR); Mestre em Educação, linha de pesquisa: Educação, Cultura e
Tecnologia (UFPR); Doutor em Educação, linha de pesquisa: Cognição, Aprendizagem e
Desenvolvimento Humano (UFPR). E-mail: [email protected]
2
Graduada em Psicologia (UFRN); Mestre em Psicologia, área de concentração: Psicologia
Cognitiva (UFPE); Doutora em Educação, área de concentração: Psicologia, Desenvolvimento
Humano e Educação (UNICAMP). Professora do Departamento de Teoria e Fundamentos da
Educação e da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. E-mail:
[email protected]
CÉLULA PSÍQUICA: A FACE ESTRUTURAL DA UNIDADE BÁSICA DA
PSIQUE E DA AFETIVIDADE AMPLIADA
O que não se compreende não se possui.
(GOETHE).
Introdução
Como disse Vygotsky (1984, p. 9), “alguém que pudesse descobrir qual é
a „célula‟ psicológica – o mecanismo produtor de uma única resposta que seja
– teria, portanto, encontrado a chave para a psicologia como um todo”.
Pensamos poder apresentar, conforme nossos estudos e pesquisas, uma
proposta suficientemente coerente da localização da tal “célula”, a estrutura da
unidade básica da psique. Contudo, apesar de uma unidade básica, celular,
dever ser uma coisa simples, talvez não seja igualmente tranquilo explicá-la.
Isso pode ocorrer principalmente pelo fato de estarmos acostumados a certo
background técnico na Psicologia, que, muitas vezes, torna-se multifacetado
em diversas tendências teóricas; as quais, por sua vez, não alcançam
harmonia, no sentido do diálogo científico. O espaço de um artigo é breve e,
por isso, algumas ideias aqui apresentadas podem ter ficado um tanto quanto
comprimidas. Mas pedimos ao caro leitor para que seja paciente e reconheça
que talvez valha a pena conhecer nossos esforços para tentar contribuir
significativamente à compreensão da psique humana. Além do que, essa é
apenas a síntese de um ponto específico, entre tantos, que compõem a
apresentação do argumento do que se constitui e almeja o status de uma nova
teoria científica. E o leitor interessado poderá avançar no restante de nossos
manuscritos para melhor compreender o que está em questão.
Por ora, o que queremos apresentar é a Célula Psíquica perscrutada pelo
Sistema Teórico da Afetividade Ampliada (STAA), ou simplesmente Afetividade
Ampliada; que é como “batizamos” o conjunto dos nossos argumentos que
ensejam formular o sentido da psique humana e, por conseguinte, da
cientificidade do conhecimento. Tal conceito tem a aspiração de engendrar o
fundamento básico da psique. Evidentemente, se essa perspectiva estiver
correta, as repercussões devem ser significativas, ao ponto de fomentar um
entendimento amplo e unificador das diversas tendências teóricas da
Psicologia, conforme o projeto científico (inconcluso) do próprio Vygotsky
(SANT‟ANA-LOOS, 2013). Logo de uma compreensão mais apurada do que
nos faz humanos e, por extensão, de todos os ganhos que isso pode advir para
a melhor lida com o conhecimento e a condição humana, de um ser
cognoscente.
Basicamente, nosso argumento acerca de uma unidade básica da psique
se constitui de duas partes. Em um primeiro momento buscamos explicar
algumas premissas que intentam escorar um conjunto teórico acerca da ideia
de Afetividade Ampliada, noção que sustentaria o nexo existente de unicidade
entre partes (ou faces) de uma mesma “coesão celular psicológica”, a Célula
Psíquica. Em outras palavras, defender a ideia de estrutura multidimensional –
Célula Psíquica ou Unidade Triádica – enquanto unidade ou base fundamental,
que é, ao mesmo tempo, indivisível porquanto funcional.
Em segundo lugar, procuramos demonstrar os motivos de a estrutura da
Célula Psíquica ser indissolúvel e, por isso, poder vir a se constituir em um
conceito adequado para demonstrar o que realmente nos faz humanos, isso
entendido de uma maneira unificada dentro da psicologia e da ciência de um
modo geral. O raciocínio gira, essencialmente, em torno da busca de uma
melhor localização (mais plena) do sentido da linguagem e do desenvolvimento
humano. Assim, esperamos contentar o leitor acerca da aceitação de que o
aqui se prontifica merece a atenção para, no mínimo, inaugurarmos um diálogo
científico justo que honre o que de melhor há em nós: a capacidade e a
habilidade de ampliar o sentido e o significado das coisas (e pessoas) que
afetamos e que nos afetam; por isso, uma realidade de Afetividade Ampliada.
1 A Afetividade Ampliada e a Estrutura Psíquica do “Jogo” Dual das
Interações: a Célula Psíquica
O famoso “efeito borboleta” anuncia a proposição de que mesmo uma
insignificante intervenção ou ingerência pode causar uma ampliada e
significativa consequência sistêmica. Isso acontece quando a quantidade de
caos ou entropia de um sistema é grande ou, se não o era antes, aumenta
consideravelmente. Conforme o que se tem teorizado (EKELAND, 1999;
GLEICK, 1991; LAZLO, 2011; LOOS-SANT‟ANA, SANT‟ANA-LOOS, no prelo;
MORIN, 2005, 2013; MLODINOW, 2009, PRIGOGINE, 2011; REULLE, 1993),
o caos (ou entropia) leva os sistemas a se comportarem de maneira
imprevisível ou incerta. Também se afirma que os sistemas complexos tendem
a se tornar caóticos ou entrópicos. Porém, isso pode ser visto apenas como
uma questão de escala. Pois, na interação com a realidade mais ampla ou até
mesmo mais restrita, eles podem fazer trocas que os (re)equilibram, rumando à
homeostase. Nessa mesma linha, defendemos a ideia de que a nossa estrutura
psíquica segue (ou deve seguir, se bem desenvolvida) exatamente essa
mesma perspectiva.
Por isso, não devemos atrelar de forma necessária a complexidade com o
próprio caos (EKELAND, 1999, p. 39), como tem sido a tendência
recentemente
(por
exemplo,
MORIN,
2005,
2013;
GLEISER,
2010;
MLODINOW, 2009; e muitos dos neomarxistas) – com o que há a propensão
de classificar o ser humano como um sistema indecifrável, imprevisível. Isso
porque “[...] a incerteza não está ligada à complexidade” (EKELAND, idem),
mas somente ao caos ou à entropia e isso no sentido das escalas ou contextos
em que aparecem e que não conseguimos identificar, logo prever. Se os
sistemas complexos, como é o caso da humanidade, puderem alcançar um
nível aceitável de equilíbrio (homeostase, harmonia), e por que não dizer
felicidade, então estes sistemas conseguirão controlar suas ações – as quais
dependem inexoravelmente de como efetivam suas interações. Neste sentido,
o Sistema Teórico da Afetividade Ampliada (STAA) (SANT‟ANA-LOOS, LOOSSANT‟ANA, no prelo) expressa a tese de que o ser humano – que pode ser
visto sob a perspectiva de sua psique, por conta de esta administrar suas
ações/interações – apesar de ser um sistema altamente complexo, tanto na
esfera individual quanto coletiva, pode alcançar tal equilíbrio ao se
compreender melhor como se desenvolver. Para isso, defende-se que será
necessário igualmente entender melhor a estrutura e o funcionamento
fundamental da psique, bem como a ideia de sensibilidade, já que é por meio
desta que “coletamos” os dados da realidade e, em seguida, afetamos e somos
afetados por eles.
[...] nosso mundo é sensível, e por isso até mesmo pequenas flutuações produzem
efeitos em grande escala. Esses são os lendários “efeitos borboleta”. Sua história diz
que se uma borboleta monarca bate as asas na Califórnia, ela cria uma minúscula
flutuação no ar que se amplifica cada vez mais e termina por criar uma tempestade na
Mongólia. [...] A mais leve perturbação mudaria a trajetória evolutiva da situação
meteorológica do mundo [...] Pelo que parece, a meteorologia é um sistema em estado
permanentemente caótico – um sistema permanentemente governado por atratores
caóticos [estranhos]. Subsequentemente, descobriu-se uma variedade considerável de
atratores caóticos. Eles podem ser aplicados, até certo ponto, a todos os sistemas
complexos e, acima de todos, os sistemas vivos. [...] (Os físicos dizem que eles
equilibram a entropia positiva que produzem internamente importando entropia negativa
[negentropia] do ambiente que os cerca). (LASZLO, 2011, p. 39).
A Afetividade Ampliada promulga que, no sentido de buscar “dominar” a
entropia ou a “dificuldade de ser do homem” (SANT‟ANA, LOOS, CEBULSKI,
2010), é necessário emergir certo controle intencional entre os participantes de
uma dada interação, o que se faz pela “plenificação” da linguagem. E que as
interações são a base de toda a realidade. Mais ainda: que todo o conjunto de
interações da realidade faz um sentido único, monista: “O monismo já é tudo:
conteúdo e forma, ao mesmo tempo; o máximo das possibilidades e o mínimo
ocorrendo simultaneamente; etc. Ele é, por definição, a superação do
dualismo.” (SANT‟ANA-LOOS, 2013, p. 144). Por isso, compreender a estrutura
do “jogo” dual das interações e a funcionalidade dos agentes que a compõem
se torna imprescindível: para que a dualidade não se transforme em dualismo.
Sendo o fundamento primário de tudo, a interação em si é sistematizada
pela linguagem – ou realidade dinâmica3 – e os participantes ou agentes da
interação são os interlocutores ou defensores de ideias: geralmente aquelas
ideias que constituem a si mesmos, que se tornam suas referências (de mundo
e de si próprios, suas crenças de autorreferência). Isso significa que, em última
instância, interagir é defender ou fazer realizar a própria existência (seu devir);
ao que se deve incluir o contínuo das interações ou o entorno que perfaz o
agente interacional em questão (SANT‟ANA-LOOS, 2013; SANT‟ANA-LOOS,
LOOS-SANT‟ANA, no prelo). No caso humano, por exemplo, interagir é
defender/realizar, na devida medida, a individualidade. Mas também, para a
própria individualidade fazer sentido, é preciso dar a ela o sentido (maior) da
espécie e do mundo: primeiramente nos nichos mais simples (família, amigos)
e posteriormente, ou adjacentemente, nos grupos mais complexos (escola,
trabalho, instituições, comunidade, país, etc.) até concretizar o seu devir em
consonância com o ecossistema mais universal. Nesse sentido, poder-se-ia
revidar o adágio que tem sido tão “batido” recentemente, de que “devemos
privilegiar o nós em detrimento do eu”, para, quem sabe: devemos promulgar o
nós em harmonia (sintonia e sincronia) com o eu. Desta feita, o controle
3
Linguagem ou Realidade Dinâmica enquanto noções partícipes do conceito filosófico logos;
vocábulo grego que, etimologicamente, dá origem à palavra linguagem, mas também às
noções de coerência, razão, etc., e da própria realidade, ou seja, das coisas arranjadas em
(uma) ordem, logicamente.
intencional nas interações é baseado, sobretudo, na busca, que todo sistema
manifesta, de defender/realizar sua existência em condição de homeostase.
Assim, aquele que age em uma interação o faz, em alguma medida
intencionalmente, a partir de ideias ou convicções ou composições que são
parte de sua própria estrutura existencial: suas crenças autorreferenciadas –
autoconceito, autoestima e crenças de controle (ou senso de autoeficácia, ou
autoconfiança) (LOOS, 2003; LOOS, CASSEMIRO, 2010; LOOS, 2010).
Conforme a Afetividade Ampliada, existe uma instância (estrutura) na psique
humana onde são “armazenadas”, entre outras coisas, tais crenças de si. Por
isso, concluímos que tal estrutura faz jus à denominação de “dimensão do Self”
(ou “sélfica)”. Por se tratar de uma instância particular de cada agente que
interage, o Self se localiza “no interior” de cada indivíduo, ou seja, é uma
dimensão subjetiva, interna ou “citoplasmática”, pois serve, por conter em si as
crenças de autorreferência, como recursos para as interações. Por isso,
também podemos chamar o Self de dimensão recursiva.
Contudo, para que o organismo individual interaja (comunique-se com a
realidade, por meio da linguagem), ele precisa se referenciar e ser referenciado
pelos outros (agentes ou sistemas da realidade). Por conta disso, a psique
também se perfaz com uma instância periférica ou “membranácea” de contato
com a realidade. É o que comumente chamamos de Identidade. É a dimensão
de interface entre a subjetividade (interior existencial – conjunto de crenças de
referência) – que é a postura a partir da qual o indivíduo se prepara para
interagir com o meio – e a objetividade existencial – as atitudes que indicam a
performance identitária do mesmo; isto é, o que ele é ou está sendo
representado por si mesmo. É, em última análise, o domínio da manifestação
do conteúdo da consciência psíquica, postada no Self; ou seja, é por onde se
demonstra o pensamento consciente (cognitivo) e se faz a linguagem (diálogo
interacional) acontecer. E, subsidiado pela recursividade contida no Self,
contribui para a (re)construção dos recursos subjetivos e emocionais que
indicarão a postura a partir da qual o sujeito se sensibilizará e responderá para
si mesmo como agir e o que fazer na realidade imediata. Essa diferenciação
entre Self e Identidade, tão opaca na literatura da ciência psicológica,
acreditamos ser uma relevante contribuição da Afetividade Ampliada para
novas discussões não só na Psicologia, mas, em reverberação, em todas as
Ciências Humanas e, posteriormente, em toda a ciência.
Contudo, ainda, a estrutura do “jogo”, que é sempre afetivo e dual, das
interações necessita se ampliar. É preciso haver uma instância a partir da qual
se possa renovar ou recriar ou criar presentes crenças de referência. Pois, se
não houver reciclagem ou autoatualização, o sistema, a organicidade do ser
(psíquico) ou indivíduo não terá plasticidade: seria um agente de um único
algoritmo de ação/interação. E, todos sabemos, o ser humano é (ou pode ser)
de uma altíssima plasticidade (PIAGET, 1973; VYGOTSKY, 1984). Segundo as
bases epistemológicas da Afetividade Ampliada, este campo de “revisão” da
postura psíquica constitui a dimensão nuclear ou “paradigmática”, nomeada
pelo nosso sistema teórico de Resiliência Ampliada4: é a dimensão criativa, o
“banco de dados do universo”, o qual carrega uma espécie de fractal do todo
(ou a possibilidade de ampliar a escala de compreensão de mundo, recorrendo
ao nível universal), fornecendo caminhos para a apreensão do sentido
(semântica) do pensamento lógico (sintáxico), abstrato, e, por conseguinte, da
busca
alimentação
plena
da
linguagem
simbólica.
Esta
instância,
habitualmente, não é explorada em nível nitidamente consciente, mas instintivo
e intuitivo: por meio da meta-abstração – isto é, de catarses e insights, da
“sensibilidade gestáltica”. As novas “ideias” são, após, tratadas por meio de
uma “quebra” iterativa (analítica) no Self, podendo ser, então, “traduzidas”
(emuladas) para o nível consciente/cognitivo, tornando o indivíduo apto a
proceder à linguagem mais plenamente. Assim, por meio deste conjunto de
processos, a psique abre possibilidades de ampliação de si, assim como de
resistência e adaptação da totalidade do organismo; ou seja, de criatividade e
desenvolvimento do engenho intelectual perante as “vicissitudes” da realidade,
principalmente aquelas relacionadas ao caos ou à entropia.
Até aqui temos, mesmo que modo alegórico, três dimensões que levam à
ideia de célula (biológica): um núcleo (paradigmático), um citoplasma e uma
membrana. Assim, conforme a Afetividade Ampliada, a psique constitui-se, a
partir dessas três dimensões integralizadas, uma Unidade Triádica (“três em
um”) (SANT‟ANA-LOOS, LOOS-SANT‟ANA, no prelo). E como ela é a base
4
Escolhemos adicionar este termo à Resiliência para procurar denotar que há diferenças, e
marcantes, em relação ao conceito comum de resiliência utilizado nas Ciências Humanas.
para a constituição do tecido social, porque administra os indivíduos que
formam a coletividade humana, do qual todo indivíduo é dependente, é que
optamos por denominar tal coesão Célula Psíquica. Todavia, a estrutura do
“jogo” interacional ainda não está pronta. Falta, por exemplo, verificar o
esquema (meta) que aglutina ou confecciona o tecido social que será formado
por diversas Células Psíquicas. Afinal, a vida do comprometimento em
sociedade é, sem dúvida, uma das características marcantes dos seres
humanos.
Desse modo, embora se constitua uma estrutura unificada e até mesmo
singular, cada Célula Psíquica necessita se manter no e a partir do “jogo” das
interações. Isso é possível porque, entre uma unidade e outra (entre uma
célula e outra, afetivamente entre os indivíduos), há uma dimensão de
intersecção; e entre todas as unidades da realidade uma dimensão universal,
integralizadora, totalizante. Assim sendo, conforme a Afetividade Ampliada, a
psique possui ainda mais duas dimensões que perfazem as probabilidades
existenciais do indivíduo ou “ser psíquico”: a Alteridade e a Homeostase.
Uma dessas instâncias essenciais é a dimensão moduladora, que se
caracteriza pela Alteridade: a “engrenagem” de coordenação, modulação, das
interações dos elementos que compõem a realidade. A partir dela, a estrutura
psíquica – que mantém a organicidade do indivíduo – afeta e é afetada pelos
fenômenos da realidade (incluindo-se as demais pessoas, coisas, etc.); por
isso tem a chance de conferir e alterar (modular, regular) os modos de
ampliação, manutenção e representação de si. Trata-se da dimensão das
interações concretas da realidade, em que os sujeitos e os fenômenos da
realidade se relacionam: sempre de forma dual (dois de cada vez) e tendo
como atrator (meta, objetivação) a busca da homeostase. Portanto, por meio
desta “endentação”, as células podem alcançar o equilíbrio no movimento
existencial, o entendimento mútuo: se souberem, é claro, se coordenar rumo à
homeostase, ou seja, realizar ajustes e acordos na transmissão e na recepção
dos dados constituintes dos envolvidos. A Alteridade, assim, tem a função de
sintonizar, permitindo que cada um se coloque no lugar (na escala) do outro
(acionando a empatia) e vice-versa, cada qual aprendendo e modulando um ao
outro e os modos de ser (suas crenças de referência de si e de mundo) e a
constituir a Homeostase ou Translação Comunicativa do Eu (sensível e
pensante) em comprometimento com o encadeamento sistemático da
realidade.
Neste sentido, em última análise, a Alteridade é a dimensão pela qual os
indivíduos se perfazem, “cicatrizam” o relevo de suas identidades perante a
realidade, confirmando seus recursos (crenças) e criações de si. É uma quarta
dimensão destinada a permitir que as três primeiras constantemente se
atualizem e se (re)afirmem: sempre buscando o equilíbrio, a estabilidade, a
harmonia do sistema psíquico. Lembra-nos a história dos três mosqueteiros:
eram três, mas depois, com a entrada de mais um componente (Dartagnan),
ainda continuaram em uma perspectiva triádica – ou seja, não foi necessária a
alteração do nome (conceito) do grupo para os quatro mosqueteiros. Só que,
então, criaram um lema, uma diretiva, que os fortalecia: “um por todos e todos
por um”. Isso, na perspectiva da Alteridade, significa que as três dimensões da
estrutura psíquica do indivíduo têm de se constituir em uma unidade
dimensional só, o indivíduo (pessoa). E, desse modo, interagir com o outro –
que também é composto de três dimensões internas e igualmente deve agir
unificadamente –, como células que formam um tecido, no nosso caso humano,
o social. Disso tudo, a questão mais importante a ressaltar neste momento é
que para não decair em interações desarmônicas, conflituosas, dispersantes, é
preciso conjugar, a partir de cada indivíduo, as quatro dimensões que lhe são
constituintes, ou que lhe dizem respeito: três especificamente suas e outra que
também é sua, mas que tem de compartilhar, dualmente, em diálogo, com o
outro (e vice-versa). Assim, a união de duas células constitui uma nova (mais
complexa) unidade triádica; e quanto mais se anexarem a outros, mais
complexo ficará o sistema; mas, considerando-se as devidas conexões,
sempre em funcionamento triádico: um núcleo comum, porquanto o núcleo de
cada ser é um fractal do universo; um novo citoplasma, que será a conjunção,
em alteridade, das Células Psíquicas; e uma nova membrana, uma nova
identidade compartilhada por todos (por exemplo, uma cultura, uma reunião,
um casamento, uma família, uma especialidade, etc.).
Por fim, há ainda uma última instância, a dimensão de Homeostase ou da
Translação Comunicativa (ou do Atrator de Integralização Simétrica), que pode
ser traduzida como a Linguagem Plena ou o Verdadeiro Eu: o Eu que “nasceu”
para a conexão funcional, a linguagem (que comunica e, por conseguinte,
integraliza e/ou se justapõe à realidade). Ela é, basicamente, a “dimensão
conectiva ou homeostática”, na qual o ser psíquico anseia ao seu máximo limite
de desenvolvimento e harmonia das e entre as dimensões anteriores e as
unidades externas (o outro, a realidade, o mundo). É, ainda, a dimensão de
combate à entropia que pode vir a caotizar a organicidade sistêmica da Célula
Psíquica, incluindo-se nisso a esfera da “engrenagem” interacional, a
Alteridade. Isso dependerá fundamentalmente do alcance da prática da
Resiliência Ampliada, a qual funciona em modo de meta-abstração, e que é,
digamos, a instância mais “fugidia” e, por isso, mais complicada de exercitar.
Em outras palavras, a consolidação da Célula Psíquica depende da utilização
efetiva de todo o Circuito Psíquico (SANT‟ANA-LOOS, LOOS-SANT‟ANA, no
prelo). Entretanto, paradoxalmente, conforme o grau de instabilidade da Célula
Psíquica, a dimensão homeostática ou totalizante sequer chega a ser
verdadeira ou adequadamente ativada na promoção da simetria da dualidade
interacional, o que provoca certa repulsa interacional ou dualismo. Como
resultado, a base da sociedade, que é o comprometimento e o respeito entre
as partes, não se realiza efetivamente; porque, igualmente, não se consegue a
“interação em ordem”, ou seja, a linguagem acontecendo em sua excelência,
de maneira plena (SANT‟ANA-LOOS, 2013). Por isso, alcançar tal grau de
estabilidade, ou harmonia (o que poderíamos denominar desenvolvimento) é,
provavelmente, a base para se suplantar as contradições e dispersões
degenerativas da realidade dinâmica e complexa – essa que vivemos
concretamente –, antes que ela se torne altamente entrópica e entre em
colapso.
Por isso, impetrar ou desenvolver a dimensão da Integralização
Homeostática da Célula Psíquica, isto é, a Linguagem Plena, pode ser a chave
para a composição de parâmetros educacionais baseados no desenvolvimento
humano integral. Exatamente porque esta dimensão norteadora possibilita ao
homem verificar e compreender de forma integral – sentindo/sensibilizandose/raciocinando
(Self),
representando
(Identidade),
intuindo/“insightando”
(Resiliência Ampliada) e “jogando”/balanceando (Alteridade) – a multiplicidade
interacional
da
Realidade
Dinâmica,
perscrutando
os
complexidade e administrando os desvios caóticos da entropia.
caminhos
da
Por tudo isso, pode-se caracterizar, então, a Afetividade Ampliada
enquanto um arcabouço teórico monista e que se configura como uma metateoria psicológica. Isso porque busca superar os dualismos que fragmentam o
entendimento humano e que pulverizam a concepção da ciência psicológica,
mas também de todo o escopo científico, em diversas tendências teóricas. E
isso é justamente o que temos de evitar, já que nos afasta cada vez mais da
compreensão da psique e, por conseguinte, da verdadeira ciência do sentido
da vida humana (VYGOTSKI, 1991, VIGOTSKI, 1999; SANT‟ANA-LOOS, 2013;
SANT‟ANA-LOOS,
LOOS-SANT‟ANA,
no
prelo).
Assim,
quem
sabe,
poderemos superar as dificuldades em definir o fundamento do que realmente
nos faz humanos.
2 O que nos Faz Humanos: a Afetividade Ampliada e a funcionalidade da
psique a partir da demarcação da noção de Linguagem Plena e de
Desenvolvimento Humano
Conforme pesquisas recentes e “de ponta”, “comparações entre genomas
humanos e de chimpanzés revelam extensões de DNA exclusivas de nossa
espécie” (POLLARD, 2013, p. 30). Análises acerca do tal “DNA distinto” (idem,
p. 34) sugerem que “humanos e chipanzés são tão diferentes apesar de tão
parecidos em seus genomas” (idem, p. 32), por causa de propriedades
fornecidas por essa linhagem de genes que puderam desenvolver a linguagem.
Além, é claro de vários outros atributos que auxiliam na comunicação e na
expressão e efetivação de ideias, “a moeda de troca” da linguagem: tamanho
do cérebro, desenvolvimento do córtex cerebral e da cognição, aparelho vocal
especializado, a destreza da mão, etc. Ou seja, acerca do que nos faz
humanos, estão “as pistas na linguagem” (idem, p.32).
Esta linha de argumentação do que nos faz humanos também é
defendida por Devlin (2004, 2009), em um nível de análise mais voltado à
funcionalidade abstrata do cérebro, sobretudo a matemática. Segundo este
autor, o que nos faz humanos é a capacidade e habilidade de aportar o
processo mental da abstração, função psíquica por excelência: o aporte do
pensamento e da linguagem. Ou seja, possibilita a realização de um nível de
pensamento (importante processo mental) superior, mais avançado em relação
aos outros tipos que podem ser observados nas outras espécies. Ao que,
completa o autor, devemos observar que pensamento e linguagem “são faces
de uma mesma moeda”. Isto é, o que nos faz humanos é a linguagem, que, por
sua vez é a “cara metade” inseparável do pensamento e vice-versa; tese que já
podíamos localizar em Vygotsky (1993) e que Devlin também referencia.
A partir de suas apreciações, Devlin defende a ideia de que, por meio da
evolução, a espécie humana alcançou um nível de abstração próprio, superior.
Isso pode ser compreendido por meio de uma escala de níveis de abstração
que o autor apresenta:
Na abstração de nível 1 não há realmente nenhuma abstração. Os objetos sobre os
quais pensamentos são todos objetos reais acessíveis à percepção no ambiente
imediato. (Entretanto, pensar em objetos do ambiente imediato pode muito bem envolver
imaginá-los se deslocando para diferentes lugares do ambiente, ou arrumados de
diferentes maneiras no ambiente. Assim, acho razoável encarar esse processo como
pensamento abstrato, mesmo que os objetos desse pensamento sejam todos objetos
concretos no ambiente imediato) Muitas espécies animais parecem ser capazes da
abstração de nível 1.
A abstração de nível 2 diz respeito a objetos reais familiares a quem pensa, mas que não
são acessíveis à percepção no ambiente imediato. Chimpanzés e outros primatas
parecem capazes da abstração de nível 2.
Até onde sei, apenas os humanos são capazes da abstração de nível 3. Aqui os objetos
de pensamento podem ser objetos reais que o individuo conheceu de alguma forma,
mas que nunca encontrou, na realidade, ou versões imaginárias de objetos reais, ou
variações imaginárias de objetos reais, ou combinações imaginárias de objetos reais.
Embora os objetos no nível de abstração 3 sejam imaginários, eles podem ser descritos
em termos de objetos reais – por exemplo, nós podemos descrever um unicórnio como
um cavalo com um chifre na testa. [...] a capacidade de pensar no nível de abstração 3 é,
para todos os propósitos e objetivos, equivalente a ter uma linguagem.
Na abstração de nível 4 temos, enfim, o pensamento matemático [de aprofundamento do
entendimento das relações do mundo]. Os objetos matemáticos são inteiramente
abstratos; eles não têm ligação simples ou direta com o mundo real [...]. (DEVLIN, 2004,
p. 142-144).
Com isso, sob a ótica da Afetividade Ampliada, é possível analisar as
perspectivas de se avançar no entendimento desse atributo (abstração), que
em nível avançado, promove a identidade humana, de espécie que se perfaz
pelo pensamento e pela linguagem simbólica, bem como dos produtos que
destes emergem, como ciência e tecnologia, religião e arte, etc. O passo
crucial neste sentido é observar as diferenças entre a “boa” e a “má” gestão do
uso da abstração e dos seus instrumentos coordenadores, o pensamento e a
linguagem. Quando conduzida de modo “truncado”, fragmentado ou enviesado,
tal capacidade de processo mental, a abstração, pode se desconectar da
realidade ou começar a ver a realidade de forma distanciada ou desconectada
demais; em última análise, temos aqui a base do dualismo. Em contraposição,
quando guiada rumo à integralização da realidade, a abstração pode descobrir
ou (re)inventar uma realidade mais bem conectada, o que é fundamental para o
bem viver humano (LOOS-SANT‟ANA, SANT‟ANA-LOOS, no prelo). Assim,
tomando como base a escala dos níveis de abstração fornecida por Devlin, e
entendendo que os níveis de abstração devem convergir em uma realidade
dinamicamente integralizada e totalizante (monista), a Afetividade Ampliada
distingue um nível adicional de abstração, que, na verdade, já foi anunciada no
tópico anterior: a meta-abstração. A partir disso, grosso modo, podemos
resumir os níveis de abstração, em consonância com a Célula Psíquica, de
acordo o quadro a seguir5:
Nível
1
2
3
ABSTRAÇÃO
– Estímulo – Resposta –
– Causa – Efeito –
Linguagem (Simbólico)
(Alicerce do Pensamento)
PERSPECTIVA SISTÊMICA
Interacionismo
Realização Sistêmica – Objetividade
Hipersensibilidade aos Nexos (Atrator)
(Sistemas Comprometidos em „Tecidos‟)
Pensamento
“Distanciado”
Meta-Abstração
Idealização Sistêmica – Subjetividade
4
5
DIMENSÃO CÉLULA PSÍQUICA
ALTERIDADE
IDENTIDADE
HOMEOSTASE
(Equilíbrio Entrópico – Translação
Comunicativa)
SELF
Monismo (Realidade: Princípio Único)
RESILIÊNCIA “AMPLIADA”
(SANT‟ANA-LOOS, LOOS-SANT‟ANA, no prelo).
Assim, a Afetividade Ampliada propõe a categorização da abstração em
cinco níveis para fins de clarificação do seu desenvolvimento e possibilidades
de ação, haja vista a grande mobilidade entre os seus diversos estados ou
níveis ou dimensões. Tal “movimentação” é incitada pela entropia, já que esta
energia cria as possibilidades de trânsito dentro dos níveis de abstração, sendo
o que nos permite “enxergar” a realidade dinâmica. O papel da entropia, como
um todo, está em ser a fomentadora das forças (interações) que agem no
universo. Contudo, a partir do momento em que as interações (forças)
perscrutam a continuidade da existência, é preciso buscar certo equilíbrio – o
que provavelmente deu origem ao ordenamento das leis da Natureza. Por isso,
ao mesmo tempo em que a entropia aumenta o caos e a desorganização em e
entre os sistemas, ela também é a fonte da necessidade de organização dos
mesmos. Isso ocorre quando estes adquirem entendimento e conhecimento
das condições para existirem homeostaticamente (ou a condição, que pode ser
tornar condicionamento, adequada para interagirem) para se auto ajustarem e
compartilharem a mesma realidade com os outros diversos sistemas, o que é
propriamente um ato de evolução ou inteligência (WISSNER-GROSS, FREER,
5
Este assunto é minuciosamente discutido em nossas obras que explicitam a Afetividade
Ampliada.
2013). Desse modo, o nível adicional de abstração proposto pela Afetividade
Ampliada pode ser visto como a dimensão em que é possível localizar e
compreender os Atratores6 Caóticos (ou Estranhos) e que permitem que se
possa, então, por meio deles, equilibrar “a entropia positiva que [os sistemas]
produzem internamente, importando [comunicativamente] entropia negativa
[sintropia ou negentropia] do ambiente que os cerca.” (LASZLO, 2011, p. 39).
Desse modo, acreditamos, por meio do sentido epistemológico da
Afetividade Ampliada, podemos oferecer uma demarcação mais pontual do que
vem a ser o desenvolvimento integral do ser humano. Partindo-se da premissa
de que o que nos faz humanos é a abstração, que é gerida pelo pensamento e
que dinamicamente se institui pela linguagem, é possível deliberar que o ser
humano é, funcionalmente, um ser de linguagem plena – sintática e
semanticamente, racional e emocionalmente. Logo todo o seu desenvolvimento
deve ser pautado em evolui-lo até o máximo desse atributo, a Linguagem
Plena, habilitando-o a propiciar uma “medida” (realidade de ação) aceitável de
interação em “ordem” (SANT‟ANA-LOOS, 2013, p. 87-120). Mas o que
propriamente vem a ser, segundo a Afetividade Ampliada, um ser de linguagem
(plena)?
Como
funciona?
E,
por
conseguinte,
como
desenvolvê-lo
integralmente?
Conforme a Afetividade Ampliada, podemos dizer que a linguagem,
associada ao nível três de abstração, está situada no interstício entre o mundo
material (os dois primeiros níveis) e o “mundo das ideias” (os dois últimos): é a
ponte entre uma esfera e outra da realidade. É a passagem que nos diferencia
do restante dos seres vivos deste planeta, pelo menos até onde sabemos. Sua
função é exatamente a de nos proporcionar o discernimento para nos
autoatualizar e automodificar, conforme as necessidades oriundas das
múltiplas possibilidades da realidade, as quais podem ser traduzidas facilmente
como a tendência à entropia. Isso significa que, para executarmos a linguagem
(plena) enquanto superadora do caos, cada um de nós – únicos em nossa
individualidade, por conta da instância sélfica que desenvolvemos ao longo de
nossas vidas (nossa subjetividade e a combinação particular que formam
6
Um atrator pode ser definido como o conjunto de comportamentos característicos para o qual
um sistema dinâmico tende a se direcionar e assumir e se transformar dentro dos parâmetros
desses tais comportamentos característicos.
nossas crenças de autorreferência) – é, em alguma medida, um Atrator Caótico
(ou Estranho), conforme a nomenclatura da Teoria do Caos (RUELLE, 1993;
EKELAND, 1999, PRIGOGINE, 2011; GLEICK, 1991, LASZLO, 2011). Isso se
dá por nos constituirmos um sistema complexo e com altas tendências ao
acúmulo de entropia, e justamente o parâmetro direcional dado pelo atrator
ajuda no combate à entropia, pois exige a busca (necessidade) de organização
dos múltiplos fatores que compõem a existência.
Em outras palavras, significa que a função existencial (o Verdadeiro Eu)
perante o tecido humano (social) de cada um de nós é a de estar atento à
realidade e procurar reter as melhores informações para controlar o caos:
“importando entropia negativa do ambiente que nos cerca” (LASZLO, 2011, p.
39), de maneira a equilibrar a entropia positiva que produzimos dentro do
sistema humano de vida: nas células psíquicas (individuais) e nos tecidos
(sociais). Por isso cada um de nós, até por ser nosso devir, busca confirmar e
defender suas crenças, acreditando que somos ou detemos o resultado da
investigação que perscrutamos da realidade enquanto um direcionamento
adequado para existir; agindo, portanto, como um atrator (da necessidade de
realocar a homeostase). Deste modo, a linguagem passa a se constituir um
“jogo” interacional dual entre atratores estranhos que buscam, por meio da
Alteridade, sintetizar o que poderíamos chamar de atrator estranho “ideal”: a
síntese do jogo dialético. Nomeamos tal dialética, na Afetividade Ampliada,
como a Dialética do Afetar e Ser Afetado ou Dialética da Afetividade Ampliada.
A partir de tal explanação, depreende-se que o parâmetro de
desenvolvimento integral do ser humano deve se pautar não somente no
conhecimento em si – conhecimento de mundo, o que comumente
conhecemos como “conteúdos” escolares, basicamente científicos –, mas
também na aquisição da habilidade de dialogar nesta perspectiva dialética
(“jogo” das interações). E isso, segundo a Afetividade Ampliada, só é possível
(re)equilibrando todas as cinco dimensões da unidade básica da psique, a
Célula Psíquica. Em última análise, é preciso aprender a ponderar a construção
das crenças de autorreferência (de si e de mundo, transformando-as em
recursos psíquicos); a denotar uma configuração (de si) acessível às
interações; a sensibilizar-se com as diversas demandas existenciais (suas e
dos outros); e a respeitar os predicados dos outros sabendo se tornar
respeitado nos seus. Tudo isso deve se solidificar em possibilidades a partir
das quais todas as esferas estejam em um arranjo harmonioso, isto é, que haja
a devida maleabilidade no ajustamento de uma dimensão em relação às outras
e vice-versa.
3 O Fim Está Próximo? Depende...
Entretanto, o salto evolutivo que deu aos humanos essa qualidade
singular ainda não está estável. Tal condição bastante vantajosa de combate à
entropia, ou de plasticidade adaptativa, é bastante recente: “teve lugar durante
os últimos 200.000 anos, talvez há apenas 75.000 anos.” (DEVLIN, 2004, p.
211). Isso é muito pouco dentro da escala da evolução, que comumente
estabiliza os saltos evolutivos na escala dos milhões de anos. É claro que um
salto como o nosso pode ocorrer muito rapidamente, mas isso só seria (ou
será) possível com o foco na verdadeira identidade evolutiva do que realmente
nos faz humanos: a linguagem. Nesse sentido, não são os conceitos que
povoam a linguagem (os conteúdos científicos, por exemplo) que sozinhos vão
garantir o nosso sucesso enquanto espécie. É preciso urgentemente investir
nos agentes interacionais e seus “aparelhos” administradores, em suas
psiques. Senão, enquanto estes indivíduos não estiverem adequadamente
desenvolvidos em tal habilidade dialética de translação comunicativa, a
investigação da verdade – logo da construção dos efetivos e eficientes
conceitos e noções que nos subsidiarão – tornar-se-á um combate de opiniões,
de
filodoxias
(SANT‟ANA-LOOS,
2013),
em
vez
de
um
debate
harmoniosamente justo de construção dos atratores que nos conduzirão a
melhores condições, ao bem estar. Isso porque, na desarmonia da psique, a
confiança no outro – princípio básico da linguagem (ROSENSTOCK-HUESSY,
2002) – é perdida. Daí, o que resulta é o ceticismo exacerbado e cada qual se
isola em suas próprias crenças, em sua subjetividade, e o conhecimento, do
qual somos tão dependentes, tende a se constituir de maneira enviesada,
duvidosa, e poderá nos colocar em “maus lençóis”. Logo não há a formação
adequada de tecidos, de unidades triádicas amplificadas, ou seja, de sociedade
humana próspera. Basta olharmos para a atual realidade humana: de crises
ecológicas, econômicas, de relacionamentos, etc. Não à toa, a maneira
individualista de construir conhecimento vem sendo criticada, há muito, por
alguns grandes pensadores:
A investigação da verdade é, num sentido, difícil e, em outro, fácil. Isso é indicado pelo
fato de que se nenhuma pessoa isolada é capaz de ter uma adequada apreensão dela,
não é possível que todos falhemos nessa tentativa.
Cada pensador faz alguma observação a respeito da natureza e, individualmente, pouco
contribui para a investigação; mas uma combinação de todas as conjeturas tem como
resultado algo considerável. (ARISTÓTELES, 2006, p. 77).
Por isso, por exemplo, não é admissível uma metodologia científica que
promulgue o ceticismo acima de tudo, que tome como primeira e última
proposição o “duvidar de tudo”. O ato da linguagem em si já é o
estabelecimento primordial da dúvida: afinal, dialogamos para dirimir dúvidas,
para encaminhar estratégias que conduzam ao melhor viver. E, assim, não há
sentido em iniciar uma interação, um diálogo, duvidando do outro: seria duvidar
do tema em pauta e do interlocutor, uma dupla dúvida, o que esvazia o sentido
do diálogo! Simplesmente não aceitando o que o outro tem a dizer por que é
“opositor” ou em está em outro background.
Desse modo, não acolher o que o outro articula é nem iniciar a linguagem,
logo não estaremos, neste sentido, efetivando o ser de linguagem (plena) que,
tudo indica, somos. E, se não procedermos à linguagem nestes termos,
seremos um “bando” de atratores caóticos, cada um tentando conduzir o tecido
da espécie para uma direção particular e enviesada. Definitivamente, daí,
estaremos encrencados, já que estaremos expostos em um sistema (humano)
altamente entrópico. Ao que devemos acrescentar que, se nossa psique se
estrutura como uma célula, ela deve funcionar para engendrar um tecido
(social), ou seja, em diálogo. Para formar, como já diziam os gregos (ARENDT,
2005), a condição humana de zoo politikon, isto é, de animal social, político, na
excelência do termo; ou, melhor, na excelência da linguagem.
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