V Encontro Nacional da Anppas 4 a 7 de outubro de 2010 Florianópolis - SC – Brasil ______________________________________________________ Dilemas Socioambientais das Regiões Atingidas por Barragens: O Caso da UHE Santo Antônio Deborah Werner (UNICAMP) Economista e Mestranda do Instituto de Economia [email protected] Resumo O artigo trata dos dilemas socioambientais no âmbito do setor elétrico no recente período de expansão, em que os Planos Decenais de Expansão Energética (PDEE) estabelecem a necessidade de se aproveitar o potencial hidrelétrico da região Amazônica. O caso a ser analisado é a UHE Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia. Para além dos efeitos acarretados pelas hidrelétricas sobre as regiões em que estão inseridas, tais como a desmobilização social, a degradação ambiental e os processos conflituosos entre empresas, Estado e sociedade, o período recente de expansão remete a uma discussão acerca da inserção internacional do país e, consequentemente, ao modo como está se dando a apropriação do espaço Amazônico no quadro do planejamento desses empreendimentos. Palavras-chave Hidrelétricas, questões socioambientais, desenvolvimento regional, Amazônia Introdução O histórico de expansão do setor elétrico brasileiro, por meio das hidrelétricas, é permeado por conflitos e questionamentos quanto à capacidade de grandes projetos hidrelétricos servirem ao desenvolvimento das regiões em que se inserem, uma vez que são recorrentes situações de degradação ambiental e instabilidade sócio-econômica. À medida que o Estado determinava a instalação de grandes empreendimentos hidrelétricos para suprir as necessidades demandas pela industrialização do país, expandiam-se também os problemas socioambientais, uma vez que o planejamento setorial desconsiderava relações sociais, econômicas e ambientais desenvolvidas na região dos projetos. Por esse aspecto a ação do Estado não foi capaz de articular o projeto nacional com as demandas regionais de desenvolvimento, marcadas por profundas desigualdades. Entre as décadas de 1930 e 1990, o setor elétrico brasileiro esteve a cargo do monopólio estatal, e teve como direcionamento a construção de grandes projetos hidrelétricos. É a partir do planejamento e investimento estatal, através de suas empresas, que foram edificadas as grandes hidrelétricas, como UHE Sobradinho (1979), UHE Itaparica (1988), UHE Tucuruí (1984) e a 2 binacional UHE Itaipu (1984). O auge da expansão do setor elético ocorre com o lançamento do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), lançado em 1974, fase em que a periferia é acionada para participar do processo de industrialização a partir de investimentos direcionados à exploração de recursos naturais em torno da montagem da indústria de bens de capital. No entanto, ao se acionarem as regiões com potencial hídrico favorável à construção de hidrelétricas, aniquilaram-se as relações sociais, econômicas e culturais atreladas às características ecológicas das regiões, sem que houvesse contrapartidas sociais às populações atingidas, que permaneceram à margem do projeto nacional. Esse resultado poderia ser atribuído ao caráter autoritário e hermético com que se estabeleceram as decisões de planejamento no setor elétrico, instituição fundamental para a sociedade urbano-industrial, mas que tem seu padrão de eficiência medido apenas pela capacidade de gerar e transmitir energia e não por conseguir realizar essas atividades a um custo socioambiental e econômico mínimo (LEONEL, 1998). No entanto, sucessivas experiências de deterioração social e ambiental nas regiões receptoras de grandes barragens contribuíram para um processo de politização das populações atingidas, que organizadas puderam reivindicar seus direitos. Foi nesse contexto que surgiu, já na década de 1990, o Movimento dos Antigidos por Barragens - MAB, oriundo de movimentos de resistências iniciados ainda na década de 1970, com destaque para as mobilizações sociais em torno da construção das hidrelétricas de Itaipu, Itaparica e Tucuruí (VAINER, 2004). O artigo trata dos dilemas socioambientais no âmbito do setor elétrico no recente período de expansão, em que os Planos Decenais de Expansão Energética (PDEE) estabelecem a necessidade de se aproveitar o potencial hidrelétrico da região Amazônica. Na primeira parte, é abordado o modo como as questões socioambientais são inseridas no setor elétrico, assim como os rebatimentos ao processo quando das privatizações na década de 1990. Em seguida, serão apresentadas as implicações ao se considerar a Amazônia como próxima fronteira energética do país, como apresentam os Planos Decenais de Expansão Energética1 (PDEE) elaborados pelo governo brasileiro, para em seguida discutir os dilemas socioambientais que emergem no processo de instalação das usinas do rio Madeira, Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, com ênfase no tratamento das questões socioambientais na UHE Santo Antônio, no município de Porto Velho. Por fim, serão abordados os desafios a serem enfrentados pela sociedade brasileira frente ao projeto de desenvolvimento que demanda recentes obras de infra-estrutura para o país, como as hidrelétricas. 1 Os Planos Decenais de Expansão Energética são elaborados pela Empresa de Pesquisa Energética, vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Para ter acesso aos planos, www.epe.gov.br. 3 1. Questões socioambientais e setor elétrico: das conquistas dos movimentos sociais aos retrocessos com a privatização do setor A década de 1980, apesar de muitas vezes considerada “a década perdida” em decorrência da crise econômica que assolava o país, em termos sociais foi permeada por muitas conquistas. Com relação aos atingidos por barragens, Vainer (2007) afirma que a ascensão de movimentos ambientalistas, a pressão da sociedade civil e, sobretudo, a organização e resistência dos próprios atingidos, pressionam o setor elétrico a incorporar progressivamente as questões sociais e ambientais no âmbito dos seus projetos. O advento da redemocratização concede oportunidade de reversão ao processo de inserção regional no planejamento do setor elétrico, situação muitas vezes atribuída ao caráter autoritário da intervenção estatal. Em 1986 são estabelecidos o Conselho Consultivo de Meio Ambiente da Eletrobrás, em 1986, assim como o Manual de Efeitos Ambientais dos Sistemas Elétricos e o Plano Diretor para a Melhoria do Meio Ambiente nas Obras e Serviços do Setor Elétrico; e o Departamento (à época, Divisão) de Meio Ambiente da Elétrobrás, em 1987. No âmbito legal são estabelecidas a Resolução 01/86 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), que normatiza as diretrizes de elaboração do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), exigência presente na Lei 6.938/812; e a Resolução Conama 06/87, que estabelece as regras para o licenciamento ambiental de obras de grande porte. Quando da promulgação da Constituição Federal, em 1998, as questões ambientais ganham espaço no Capítulo IV, Do Meio Ambiente, artigo 225, inciso IV, que determina que o Poder Público deve exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, portanto incorpora exigências da lei 6.938/81 a Carta Magna. Em fevereiro de 1989, a Lei 7.735 determina a extinção da Secretaria Especial do Meio Ambiente e cria o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), cabendo ao orgão, entre outras funções exercer o poder de polícia ambiental e executar ações das políticas nacionais de meio ambiente, referentes às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle sobre a qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais, à fiscalização, ao monitoramento e controle ambiental, mediante diretrizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente (IBAMA, 2010). O órgão deve estabelecer condicionantes socioambientais no âmbito do licenciamento dos projetos que determinam ações dos empreendedores sobre as regiões com vistas a minimizar os impactos. Como afirma o IBAMA, 2 Referente a Política Nacional de Meio Ambiente - PNMA. 4 “O licenciamento ambiental é uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou atividade potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente e possui como uma de suas mais expressivas características a participação social na tomada de decisão, por meio da realização de audiências públicas como parte do processo” (IBAMA, 2010). 3 Quando do I Encontro de Atingidos por Barragens, em 1991, a opinião unânime dos participantes, provenientes de várias partes do país e por isso compartilhando diversificadas experiências, era de que a intervenção do setor elétrico para a implantação dos projetos hidrelétricos resultava de decisões impostas de fora da região, que não consideravam a realidade local e eram tomadas sem a participação da população diretamente atingida pelos seus efeitos. Reivindicavam, portanto, que a ação do governo e de suas estatais fosse fundada nas reais necessidades das populações das regiões atingidas (VAINER E ARAÚJO, 1992). Para os participantes do Encontro, as reivindicações explicitavam que a política setorial não atendia aos anseios de grupos sociais expressivos das regiões em que se inseriam os projetos, quando não eram contrários a eles. A redemocratização possibilitaria uma mudança de postura por parte do setor, uma vez que os movimentos não mais seriam violentamente reprimidos sob o aparato do regime militar. Todavia, ao incorporar a questão regional no planejamento de seus projetos, tal inserção se mostrou mais como uma tentativa de legitimar e reforçar a lógica econômica, social e territorial que determina os modos de apropriação e consumo dos recursos energéticos do que uma possibilidade de envolvimento da sociedade nas decisões. Sendo assim, o setor elétrico rejeitaria qualquer esforço para uma revisão da estratégia exportadora de energia levada a cabo pelo país desde a década de 1970, a partir do modelo de desenvolvimento urbano-industrial caracterizado como desequilibrado social, espacial e ambientalmente. Além disso, se negaria a qualquer iniciativa em torno da exploração de técnicas de conservação de energia e tampouco se traduziria em uma revisão na matriz energética brasileira, pautada pelos grandes empreendimentos hidrelétricos, ou na consistente avaliação dos custos sociais e ambientais desses projetos (VAINER E ARAÚJO, 1992; VAINER 2007). Ainda assim, Vainer (2007) considera que “Foi um período de rico debate, no qual o confronto de idéias e projetos sustentou um triplo aprendizado: i) o da democracia – que significa também, necessariamente, o conflito; ii) o da responsabilização social e ambiental crescente do setor elétrico e de suas empresas; iii) o da necessidade de qualificar quadros técnicos e criar os espaços legais e institucionais favoráveis, se não à resolução, pelo menos à explicitação dos novos conflitos e desafios sociais e ambientais associados aos grandes projetos hidrelétricos” (VAINER, 2007, p. 120). 3 Os posteriores documentos mencionados referentes ao processo de licenciamento, inclusive o Projeto Básico Ambiental (PBA) estão disponíveis no site do Ibama http://www.ibama.gov.br/licenciamento/ . 5 No entanto, com a crise fiscal da década de 1980, que dá legitimidade aos ideais neoliberais de Estado Mínimo, levam a uma modificação na relação entre Estado e economia. De uma postura intervencionista, o Estado passa a ser mero regulador das atividades econômicas, em tese, favorecendo a economia de mercado vista como a mais eficiente e propulsora do desenvolvimento, o que acarretará em implicações às conquistas socioambientais em curso. Como afirma Vieira (2007), a relação entre setor elétrico e economia pode ser orientada para os interesses da sociedade e da indústria brasileira, caso sejam atendidas as dimensões da energia enquanto antimercadoria, de modo que se articulem as políticas industrial, ambiental e social, com a política econômica, com vistas ao desenvolvimento do país. No entanto, essa orientação não permeou a condução da política econômica no Brasil, e para o setor elétrico as alterações acarretariam em privatizações, que permitiu maior participação de agentes privados nas decisões de geração e distribuição da energia elétrica. O argumento utilizado para a privatização do setor foi o da necessidade de transformar o setor elétrico monopolista num mercado em que vigorasse a concorrência (VIEIRA, 2007). A proposta de reestruturação se enquadra na concepção do chamado Consenso de Washington, cujas principais determinações são: i) a transferência da exploração do espaço econômico a grupos internos ou externos, predominantemente sob hegemonia do capital financeiro e especulativo, com claros rebatimentos para a tecnologia, níveis de emprego e utilização dos recursos naturais; ii) com relação aos serviços públicos, transforma usuários e cidadãos em clientes ao mesmo tempo em que altera de maneira excludente e profunda a natureza inerente dos serviços públicos como instrumentos de afirmação da cidadania e direitos humanos (SAUER, 2002). Em termos institucionais, o novo modelo se amparou em três órgãos principais, a saber: ANEEL, ONS e MAE. A Agência Nacional de Energia Elétrica, ANEEL4, órgão regulador do setor em nível federal, vinculada ao Ministério das Minas e Energia (MME), tem como finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, conforme as políticas e diretrizes do Governo Federal. Operação, coordenação e controle do mercado competitivo estão a cargo do Operador Nacional do Sistema (ONS)5, que substituía o GCOI (Grupo Coordenador da Operação Interligada). Completa este quadro o Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE)6, organização privada, em que as empresas geradoras venderiam sua produção e centralizaria os contratos de curto, médio e longo prazo, inclusive de produtores independentes de energia (PIEs). Posteriormente a organização seria substituída pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE. 4 5 6 Conforme Lei n° 9.427/96 Conforme Lei n° 9.648/98 idem item anterior. 6 Sob essa configuração, o Estado deixava de ter o monopólio sobre a oferta de energia e a iniciativa privada passaria a ocupar maior parcela desse mercado, de modo que as reformas privilegiariam os objetivos inerentes à iniciativa privada, através de um processo de mercantilização da energia em detrimento da postura de antanho que orientava a dinâmica do setor elétrico de acordo com os requisitos do desenvolvimento do país (VIEIRA, 2007). O modelo se mostrou ineficaz, apesar de ter sido esse o argumento para legitimar as reformas, e em 2001 o país passa por um longo período de racionamento energético, o “apagão”. A despeito das afirmativas que atribuíam a culpa à falta de chuvas, o episódio teve como causa a falta de investimentos no setor, em virtude da estruturação em bases liberalizantes sobre as quais o setor privado não foi capaz de responder às necessidades de investimento para a manutenção da oferta adequada de energia para o país. Assim, no Governo Lula é criada a Empresa de Pesquisa Energética – EPE7, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, com o intuito de que o planejamento da expansão energética do país fosse articulada às estratégias de desenvolvimento, visto que o racionamento energético evidenciou a impossibilidade de legar um setor estratégico como o de energia às determinações do setor privado. Com relação às questões socioambientais, Vainer (2007) caracteriza as privatizações como um retrocesso para as conquistas advindas da década de 1980. Segundo o autor, a legislação referente às concessões para a prestação de serviço público – Lei n. 8.987/95 e a Lei n. 9.074/95 – foram omissas em relação as questões socioambientais, pois não há necessidade de cumprimento de condicionantes dessa natureza para estar apto a receber a concessão de um serviço público. A lei n. 8.987/95 menciona, ainda que superficialmente em seu artigo 29, a questão ambiental ao incumbir o poder concedente de “estimular o aumento da qualidade, produtividade, preservação do meio ambiente e conservação”. No entanto, em relação especificamente às concessões do setor elétrico, atributo da lei n. 9.074/95, a omissão é ainda mais notável, pois não há referência a essas questões a despeito das experiências passadas. Por outro lado, Vainer destaca que ambas preocupam-se com a questão das desapropriações, e estabelece às empresas concessionárias o poder de promover as desapropriações conforme edital e contrato (Lei n. 8.987/95), e ao poder concedente declarar a utilidade pública para fins de apropriação de áreas necessárias para a implantação de instalações concedidas, destinadas aos serviços públicos de energia elétrica, auto-produtor e produtor independente (Lei n. 9.074/95). Considerando o caráter mercadológico com que se tornou a energia, Vainer (2007) não deixa de destacar a distorção em se considerar como um serviço público, de utilidade pública, 7 A Empresa de Pesquisa Energética – EPE foi criada pelo Governo Lula (Lei n° 10.847/04) em 2004 e suas funções são prestar serviços na área de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento em energia elétrica, petróleo e gás natural e seus derivados, carvão mineral, fontes energéticas renováveis e eficiência energética, dentre outras. 7 aproveitamentos hidrelétricos em que uma empresa privada utiliza o potencial hidrelétrico – um patrimônio público – para abastecer a demanda de uma planta industrial privada. Quando se refere ao aproveitamento ótimo dos empreendimentos, a Lei 9.074/95 afirma que nenhum aproveitamento poderá ser licitado sem que seja estabelecido, pelo poder concedente, o “aproveitamento ótimo”, considerado apenas pelos aspectos técnicos de engenharia, a partir do conceito de eficiência energética, sem que se estabeleçam critérios que acarretem em projetos o menos danoso social e ambientalmente possível8. Crítica semelhante é realizada por Carvalho (2010), ao afirmar que a política energética advinda da reestruturação do setor elétrico em anos neoliberais além de ser essencialmente voltada para o lucro dos agentes privados, no caso do setor elétrico especificamente não foram previstos mecanismos que obrigassem as empresas privatizadas a avaliar e contabilizar de modo justo os custos socioambientais referentes às suas atividades. Vainer (2007) refere-se ainda à incompetência da agência reguladora, ANEEL em tratar das questões socioambientais, bem como a indefinição das responsabilidades da Empresa de Pesquisa Energética quanto a esses aspectos. Por parte da Eletrobrás, é abandonado o compromisso firmado em fins da década de 1980 em relação a necessidade de rever políticas e resgatar a dívida com a sociedade brasileira. De modo geral, o Estado perde soberania no direcionamento do uso de seus recursos naturais e sua participação em empreendimentos hidrelétricos, consequências da privatização, “[...] permite um processo de licenciamento aberto e maleável, uma vez que o setor elétrico deixou de ser um mero instrumento de acumulação para ser espaço prioritário de acumulação, ele mesmo transformado em negócio[...]Fatiadas a geração, a transmissão e a distribuição em nichos de mercado, foi inaugurado um mercado que forneceu elevada rentabilidade aos operadores privados e transnacionais. Abriu-lhes também a possibilidade de planejar a expansão e condicionar o uso final da energia elétrica no país” (GARZON, 2009, p. 169). É nesse cenário de críticas quanto ao modo de inserção regional do setor elétrico e às omissões atribuídas à legislação e ao aparato institucional estabelecido após as privatizações, que conferem um caráter mercantil à energia, que se inserem os recentes planos de expansão do setor elétrico, tendo a Amazônia como a fronteira hidrelétrica do país. A seguir, algumas questões que envolvem a expansão das hidrelétricas na Amazônia e o projeto Madeira. 2. Hidrelétricas na Amazônia e o Projeto Madeira A despeito das críticas acerca da matriz energética brasileira quando da avaliação de seus desdobramentos socioambientais, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) atesta que a exploração dos recursos hídricos como fonte de energia possibilitou a matriz energética ser constituída majoritariamente de fontes renováveis, por isso ecologicamente limpa, de modo que as 8 Considera-se “aproveitamento ótimo” todo potencial definido em sua concepção global pelo melhor eixo do barramento, arranjo físico geral, níveis d’água operativos, reservatório e potência, integrante da alternativa escolhida para divisão de quedas de um bacia hidrográfica (Lei n. 9.074 de 07.07.1995, artigo 5º, § 3, apud Vainer, 2007). 8 hidrelétricas correspondam a 71,2% da capacidade elétrica do país, considerando apenas o Sistema Interligado Nacional – SIN (BRASIL, 2009). Além de ser considerada uma fonte energética barata, renovável e limpa – pois, o país possui vantagens comparativas na implantação desses empreendimentos e os mesmos apresentam reduzida emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa se comparados às fontes baseadas em combustíveis fósseis – as conseqüências sociais e ambientais são passíveis de receber medidas mitigadoras e compensatórias, que institucionalmente estão alinhadas aos preceitos de desenvolvimento sustentável. No entanto, o Plano considera como desafio ao desenvolvimento sustentável o fato de 70% desse potencial se encontrar na região Amazônica e no Cerrado, com o agravante de que o potencial a ser explorado na Amazônia se encontra em unidades de conservação e terras indígenas. Em contrapartida, atesta que é possível conciliar as questões ambientais com a expansão das hidrelétricas uma vez que o Brasil possui uma das legislações ambientais mais exigentes do mundo, além de estabelecer a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) em diversas bacias, estudos que identificam os efeitos sinérgicos e cumulativos dos impactos ambientais ocasionados pelo conjunto dos empreendimentos hidrelétricos em determinada bacia. Para a região Amazônica, estão previstos nos Planos Decenais de Expansão de Energia (PDEE) projetos que irão acrescer em 60% a produção de energia hidrelétrica ao SIN até 2017. Incluídos no plano estão as Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, no estado de Rondônia, com capacidade instalada de 6.450 MW, somados os dois empreendimentos. Todavia grandes projetos de investimento na Amazônia, incluindo as hidrelétricas, merecem ressalvas no que se refere aos desdobramentos dos impactos socioambientais. Os grandes projetos hidrelétricos na região foram planejados para suprir, além das necessidades requeridas pelo processo de urbanização regional, as necessidades das indústrias extrativas minerais, atraindo consórcios formados por empresas nacionais e internacionais, que receberam subsídios no preço da energia elétrica, quando da transferência da indústria mineradora eletro-intensiva, a partir da década de 1970, dos países centrais para as economias periféricas, em decorrência do encarecimento de energia nos países desenvolvidos, conforme Cano (2007). Além do abrupto processo de urbanização desordenado, o processo de ocupação da região Amazônica teve fortes consequências sobre a expansão da fronteira agrícola, pressão sobre territórios indígenas, conflitos fundiários, desestruturação de comunidades ribeirinhas, uma vez que as intervenções infra-estruturais por parte do Estado desconsideraram a configuração social da região (LEONEL, 1998). 9 Exemplo disso é o projeto de colonização denominado Polonoroeste, financiado pelo Banco Mundial, que pretendia a pavimentação da rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR-364) e consolidar a infra-estrutura para os projetos de colonização ao longo da rodovia e dos ramais de estrada. No entanto, seus efeitos foram a intensa imigração para o estado de Rondônia; desmatamento, conflitos entre população indígena e imigrantes e concentração de terras para a pecuária; elevação da demanda energética para Rondônia, entre outros, que levaram a suspensão do financiamento por determinado período (SWITKES, 2008; LEONEL, 1998). A UHE Tucuruí, instalada no rio Tocantins, a partir de 1975, pela estatal Eletronorte, é um exemplo emblemático desse processo. O referido empreendimento, construído para atender a indústria de extração ferrífera, inundou 2.830km² para a formação do reservatório, incluindo reservas indígenas e alguns núcleos urbanos. O deslocando compulsório envolveu 10 mil famílias entre população rural e urbana, afetando profundamente suas condições de vida, pelo rompimento das estruturais socioambientais tradicionais desenvolvidas na região, sem a adequada reinserção no novo ambiente estabelecido (ACSELRAD E SILVA, 2004). Outros exemplos são a UHE Balbina e a UHE Samuel. Além dos hectares de florestas alagadas, tanto a UHE Balbina, no rio Uatumã, no Amazonas, como UHE Samuel, no rio Jamari, em Rondônia, foram permeados por fatos que evidenciam a negligência com relação as questões sociambientais. A primeira, considerada o maior desastre ambiental do setor elétrico em decorrência da baixa energia gerada por área alagada, foi responsável pelo deslocamento de 1/3 da população da tribo Waimiri-Atroari (SWITKES, 2008). Com relação a UHE Samuel, Simonian (1996, apud CARVALHO, 2009), afirma que resultou em deslocamento compulsório de comunidades inteiras, sem que fossem dadas condições de recomposição social e as consequências foram a perda econômica dos deslocados e o empobrecimento generalizado dos mesmos. Ainda, um erro de cálculo durante o planejamento, contornado pela construção de diques, faz com que outras áreas da floresta próximas a represa sejam atingidas, quando da elevação do lençol freático (CADMAN, 1999, apud SWITKES, 2008). O caso de Balbina nos remete a outro problema das hidrelétricas na Amazônia. O fato de a região ser caracterizada por planícies, fez com que os projetos hidrelétricos na Amazônia fossem constituídos com a formação de grandes reservatórios9 (LEONEL, 1998). Por conta de sua extensão, estudos mostram a possibilidade de que as emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa sejam elevados – em decorrência da matéria orgânica em decomposição – o que coloca em dúvida o caráter de energia limpa atribuído às hidrelétricas (BERMANN, 2003). 9 Tucuruí, alagou 2.830 km² para gerar inicialmente 8.000 MW; Balbina, alagou 4.000 km², para gerar 240 MW; e Samuel, alagou 560 km² para gerar 250 MW, são alguns exemplos. 10 A despeito dessas questões, as hidrelétricas planejadas pelos recentes planos decenais de expansão argumentam que a experiência adquirida no tratamento das questões ambientais, o comprometimento da legislação brasileira e os avanços tecnológicos do setor, que fazem com que seja possível explorar o potencial hidrelétrico da região Amazônica sem grandes impactos, de modo que os projetos sejam articulados com o desenvolvimento regional. Veremos a seguir o caso Madeira e o tratamento concedido às questões socioambientais. 2.1. Complexo Madeira e tratamentos das questões socioambientais na UHE Santo Antônio Em 2001, a empresa estatal Furnas e a empresa privada Odebrecht iniciaram, com autorização da ANEEL, o inventário para o rio Madeira, concluindo que alterações em um projeto de engenharia estabelecido nos anos 70, possibilitariam a construção de dois barramentos no rio Maderia, em território brasileiro, sem necessariamente inundar o território boliviano e sem perdas significativas na capacidade de geração. Em 2003 o projeto foi apresentado no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, defendido pelo reduzido impacto ambiental e solução para garantir ausência de apagões para os próximos 10 anos. O projeto possibilitaria ainda que o rio Madeira se tornasse navegavel, o que o tornaria importante diante dos interesses de integração sul-americana, (SWITKES, 2008). Os baixos impactos ambientais viriam da tecnologia na construção das barragens, uma vez que seriam utilizadas turbinas tipo bulbo, que funcionam a fio d`água, com a própria vazão do rio sem a necessidade de grandes reservatórios. A elevação do nível do rio não ultrapassaria o referente ao nível de cheia, o que comprometeria atividades econômicas desenvolvidas nos períodos de estiagem, demandando medidas de compensação para a população. A despeito do caráter sustentável conferido ao projeto pelo governo e consórcio, os estudos de impacto foram amplamente questionados por especialistas independentes, movimentos socioambientais e pelo próprio IBAMA. Um dos pontos questionados refere-se ao processo de sedimentação do rio Madeira, que poderia inviabilizaria atividades econômicas na região boliviana, e até o funcionamento da usina de Santo Antônio, segundo especialistas (GARZON, 2009; CARVALHO, 2009). A própria empresa PCE10, contratada durante os estudos de viabilidade, expôs “contornável risco de acentuada sedimentação com a construção das barragens no rio Madeira” e atestou a necessidade de novos levantamentos e estudos para a fase de Projeto Básico dos empreendimentos (GARZON, 2009). No entanto, para que as dúvidas fossem sanadas, o Banco Mundial financiou, em acordo com o Ministério de Minas e Energia, a contratação de um 10 A empresa PCE (Projetos e Consultoria de Engenharia) foi contratada pelo consórcio Furnas-Odebrecht para a realização de estudos sedimentológicos, realizados em 2005. 11 especialista para afirmar a ausência de qualquer risco dessa magnitude. O especialista atestou a inadequação do modelo utilizado pela empresa de consultoria, que levou a super-estimação de resultados. O diagnóstico do especialista recebeu críticas assim como foi alvo de questionamentos pelo próprio IBAMA com relação a metodologia. No entanto, o órgão foi reestruturado e o episódio serviu para posicionar o papel do Banco Mundial no processo: legitimador das obras e consultor técnico em prol da flexibilização da legislação ambiental brasileira (SWITKES, 2008; GARZON, 2009; CARVALHO, 2009). Outras divergências entre especialistas e o EIA envolvem os efeitos do barramento sobre a icitiofauna, visto que acarretará em extinção de várias espécies tanto de valor comercial, como importantes para a subsistência da população ribeirinha – efeitos irradiados para além da área de influência direta dos empreendimentos pela importância do Madeira como principal tributário do Amazonas, em termos de contribuição para a biodiversidade; ausência de estudos sobre o efeito dos barramentos para o território boliviano; a possível contaminação do pescado por mercúrio e consequentemente a contaminação da população ribeirinha; proliferação da malária; pressões fundiárias e consequências sobre os povos tradicionais; expansão da fronteira agrícola; e efeitos sócio-econômicos irreversíveis para a população local, incapaz de recompor suas vidas após as barragens. Souza (2009), a partir de trabalho referente ao tratamento concedido aos povos indígenas, afirma que os estudos de impacto servem mais para legitimar o empreendimento do que para identificar os riscos, prejuízos e consequências para as sociedades e meio ambiente afetado. Segundo ela, as populações não são ouvidas como parte do processo decisório de construção das barragens – ineficácia do processo de audiência pública –, assim como as relações sociais são consideradas de menor importância e passíveis de mitigação e compensação se comparadas com os efeitos sobre os meios físicos e bióticos, considerados mais relevantes em termos de inviabilização da obra. Ainda, atesta que os empreendimentos podem aprofundar os conflitos fundiários na região a partir das barragens, pois a área sofre pressões por parte das diversas disputas em torno do modo de apropriação dos recursos, entre latifundiários, agronegócio, indígenas, pequenos produtores, garimpeiros e madeireiros. Por parte do governo brasileiro, a despeito dos inúmeros aspectos questionáveis do projeto, sua posição foi marcada pela pressão sobre o órgão ambiental para a concessão da licença e consequente desmoralização por parte do governo, do processo de licenciamento ambiental brasileiro. Além disso, conferiu um aparato jurídico-financeiro que garantisse aos investidores salvagardas quanto aos riscos advindos do projeto. O atual modelo de participação estatal nas obras de infra-estrutura do país, as chamadas consequentemente “PPPs”, parcerias público-privadas, foram defendidas pela falta de capacidade 12 de financiamento do estado, de modo que o modelo propiciaria a atração de investimentos privados. No entanto, o Estado financia todas as obras assim como cobre os riscos, de modo que ao setor privado restam os ganhos. Com relação ao financiamento, é adotado o modelo denominado project finance, em que os empreendimentos são projetados com foco no retorno financeiro, de modo que a lógica privada norteira o planejamento de setores antes considerados estratégicos e essenciais. O mesmo argumento utilizado para justificar as PPPs aparece para justificar project finance, o que não se sustenta quando analisado a magnitude da participação do estado nesses financiamentos (GARZON, 2009). Esse foi o modo de participação estatal nas hidrelétricas do Madeira. O BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, principal financiador das recentes obras de infra-estrutura do país, com destaque para a magnitude dos empréstimos concedidos ao setor elétrico – assume que os projetos envolvem altos riscos sociais e ambientais, de modo a justificar seu papel em resguardar a viabilidade dos investimentos. A partir dessa postura, tem-se que o aparato jurídico-financeiro estabelecido para levar adiante as usinas protege os investidores dos riscos, de modo que a precaução seja antes de tudo financeira. Às questões socioambientais, muitas das vezes irreversíveis, restam medidas mitigadoras e compensatórias, sem que investidores assumam posteriores riscos, ao contrário, são resguardados dos mesmos. A atuação do BNDES levou ao questionamento do caráter da participação do Estado financiando empreendimentos marcados pelo rompimento das relações econômicas e sociais e promotores de danos ambientais sobre as populações atingidas em diversos setores, dentre eles o elétrico, através do banco e suscitou por parte da sociedade civil organizada a realização do Seminário “Atingidos”11 realizado em novembro de 2009 no Rio de Janeiro. Por esse aspecto, fatores de injustiça ambiental emergem no processo de instalação dos empreendimentos, pois danos socioambientais causados por uma apropriação privada dos recursos naturais, recaem sobre parcela da sociedade incapaz de usufruir das riquezas, numa equação simples: riquezas privadas e danos socializados, não para toda a sociedade, mas por grupos já vulneráveis em termos sociais (ACSELRAD et al., 2009), sendo o Estado o principal patrocinador. Apesar do caráter conflituoso em que se estabeleceu o processo de licenciamento das hidrelétricas do Madeira, Santo Antônio e Jirau, os empreendimentos receberam a Licença Prévia (LP), referente à LP n°251/2007, emitida pelo IBAMA em 9/07/2007. O documento atesta que os empreendimentos, com potência instalada de 3.150MW e 3.300MW e áreas de reservatório de 271,3 Km² e 258 Km², deveriam detalhar estudos, estabelecer monitoramentos e medidas de compensação social entre outras condicionantes. Caberia ao consórcio vencedor responder a posteriori sobre as incertezas surgidas nos estudos de impacto ambiental. 11 Ver “Carta dos Atingidos pelo BNDES”, disponível em www.plataformabndes.org.br. 13 Mediante a LP, foi realizado em 10/12/2007 o leilão de concessão e venda de energia da UHE Santo Antônio (Jirau seria leiloado posteriormente), que teve como vencedor o Consórcio Madeira Enegia S.A12 (MME, 2007). Em uma tentativa de impedir a continuidade do processo, foi elaborado pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – DHESCA – em abril de 2008, um documento com as seguintes recomendações ao Governo brasileiro: “Imediata suspensão de quaisquer atos relativos ao licenciamento das usinas de Santo Antônio e Jirau, com nulidade das licenças prévias e dos leilão de Santo Antônio; avaliação detalhada independente e participativa das necessidades energéticas do país [...]; debate público sobre as diferentes alternativas para atender às necessidades do país, priorizando as políticas de eficiência energética e otimização do potencial instalado [...]; garantir que água e energia, [...] estejam sob controle do Estado e sejam fornecidos a preços e em qualidade adequada, impedindo-se a privatização e mercantilização do setor; [...] realização de estudos de impacto ambiental em toda a bacia do rio Madeira [...], excluindo-se a possibilidade de postergação das condicionantes para etapas posteriores; levantamento detalhado de índios isolados por parte da Funai e demarcação e homologação dos territórios indígenas; negociação com os governos peruanos e bolivianos para decisão institucional sobre a viabilidade e interesse no empreendimento; levantamento completo e respectiva proteção a todo o patrimônio histórico e arquiológico da região;[...] regularização fundiária na região, incluindo titulação de comunidades ribeirinhas e demarcação dos territórios indígenas [...]; realização de consulta às populações potencialmente atingidas para obtenção de consentimento prévio por parte de povos indígenas e comunidades tradicionais; garantia do direito a informação e discussão através de audiências públicas com efetivo poder de participação e compreensão pelos participantes; compensação financeira e social de todos os atingidos pela barragem de Samuel por parte da Eletronorte; revisão e discussão participativa do Plano Diretor de Porto Velho, com imediata realização de audiências públicas; [...]” (FERREIRA E MACIEL, 2009, p. 219 e 220). No entanto, após o recebimento e análise do Programa Básico Ambiental (PBA) elaborado pelo consórcio com base no EIA/RIMA, o IBAMA emitiu em 13/08/2008 a LI n. 540/2008, que condicionava o empreendimento a monitoramentos e complementação de estudos, já na fase de instalação, ou seja, sem a possibilidade de reversão no processo. O PBA estabeleceu vinte e cinco programas de mitigação e compensação para o município de Porto Velho e região. Considerando as profundas alterações engendradas no espaço urbano, devido às migrações provocadas pelo projeto e consequentemente pressão nos serviços públicos, o PBA compõe um programa específico para as questões urbanas de Porto Velho, o Programa de Compensação Social, composto por três subprogramas: Apoio ao Município de Porto Velho; 12 Consóricio composto por Odebrecht Investimentos em Infra-estrutura Ltda. (17,6%); Construtora Norberto Odebrecht S/A. (1%); Andrade Gutierrez Participações S/A. (12,4%); Cemig Geração e Transmissão S/A (10%); Furnas Centrais Elétricas S/A (39%) e Fundo de Investimentos e Participações Amazônia Energia (FIP) - formado pelos bancos Banif e Santander (20%). 14 Qualificação da População; e Apoio a Revisão do Plano Diretor do Município de Porto Velho. Já os serviços de saúde receberam programa próprio, o Programa de Saúde (PBA, 2008). Ainda, o documento estabelece que 70% da mão-de-obra para o empreendimento seria contratada na própria região de Porto Velho. Como complementação ao PBA, além de estudos referentes aos aspectos físicos e bióticos do empreendimento, para as questões sociais a Licença condiciona o empreendimento à melhoria da oferta de serviços de saúde; delimitação e monitoramento de terras indígenas; financiamento de melhorias em saneamento básico13; arcar com custos de aquisição de equipamentos de combate aos incêndios florestais para o Corpo de Bombeiros do estado de Rondônia, assim como equipamentos de combate aos crimes ambientais para o Batalhão Florestal da Polícia Militar Estadual, entre outros. Recente avaliação do IBAMA acerca do cumprimento da LI foi emitida no Parecer Nº 029 /2010 – COHID/CGENE/DILIC/IBAMA e para fins deste artigo destaca-se o seguinte parecer: “A SAE [Santo Antônio Energia] informou na reunião do dia 05/03/2010 que pretende antecipar o cronograma de geração de energia para meados de 2011, é importante ressaltar a necessidade de avaliar, com urgência, a compatibilidade desse novo cronograma de obras com o andamento dos programas ambientais proposto no PBA. Destaca-se, por exemplo, que alguns programas e atividades já estão com seus respectivos cronogramas bastante comprometido, a exemplo: conservação da ictiofauna, conservação da fauna, limnologia, remanejamento da população, compensação social e ações a jusante. Ressalta-se que o equilíbrio ou compatibilidade do cronograma de obra com o andamento dos programas ambientais é que possivelmente assegurará a eventual emissão de Licença de Operação – LO” (IBAMA, 2010). Esses aspectos foram destacados para evidenciar que as obras são condicionadas ao fornecimento de infra-estrutura e provimento de serviços básicos para a população. Por esse aspecto, argumentam-se as potencialidades de desenvolvimento para regiões desprovidas desses serviços em decorrência das medidas de mitigação e compensação das obras, assim como seus efeitos dinamizadores para a economia local. Por outro lado, os programas assim como o processo licitatório acabam por legitimar a obra como única possibilidade de conquistas desses direitos, de modo que apesar de envolverem obrigações por parte do Estado, passam a ser fornecidas a partir da iniciativa privada, que cumpre a função de redefinir territórios em torno dos projetos, com o agravante de que tais medidas ficam submetidas ao estreito cronograma das obras, o que pode comprometer a qualidade das ações engendradas. A análise do processo de licenciamento das usinas do Madeira evidenciou as pressões por parte do governo para que as obras recebecem a chancela ambiental e fossem construidas. Os argumentos seriam em torno da necessidade da energia gerada para evitar novos apagões, assim 13 A condicionante 2.44, referente às obras de saneamento básico foi posteriormente objeto de alteração, para que a verba fosse destinada ao Hospital de Cocal, no Estado de Rondônia. A solicitação partiu do Governo do Estado de Rondônia, visto que o município de Porto Velho já contava com financiamentos referentes ao saneamento, junto ao governo federal. 15 como seriam propulsores do desenvolvimento regional obediente aos ditames da sustentabilidade. No entanto, além do questionamento em relação aos próprios estudos, aos critérios socioambientais que envolvem o projeto e a vulnerabilidade a que está submetida a legislação ambiental brasileira, com fortes pressões para a sua flexibilização, o que passa a ser alvo de críticas, extrapola consequências socioambientais das obras e remete ao projeto de desenvolvimento levado a cabo pelo país, contexto que se inserem os emprendimentos, pontos abordados a seguir. 2.2. As hidrelétricas no contexto da inserção internacional do país: as propostas do IIRSA O Complexo Madeira – composto pelas duas usinas em questão, Santo Antônio e Jirau, já em implantação, e outras duas planejadas, as barragens de Guajaramirim, bi-nacional Brasil/Bolívia, com 3.000MW e a barragem de Cachuela Esperanza, em território boliviano, com 600MW – irá permitir o caminho fluvial de 4225 km de extensão de Puerto Maldonato (Madre de Dios, Peru) e Riberalta (Beni, Bolívia), até o estuário do Amazonas e o Atlântico. Para o Brasil, será a conquista do caminho para o Pacífico, completado pelas vias rodoviárias multimodais (SWITKES, 2009). A interligação faz parte do conjunto de propostas da Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA) e permitirá a superação das corredeiras presentes no Madeira, de modo que balsas possam transportar grãos, minérios, madeiras e outras mercadorias brasileiras até o Pacífico, assim como produtos bolivianos e peruanos até o Atlântico. Assim, o Complexo Madeira é o projeto âncora da IIRSA para o eixo Peru-Bolívia-Brasil, sendo que a orientação das propostas que compõem a integração regional é a de facilitar a exportação de produtos primários para pontos do Atlântico, Pacífico e Caribe. A mesma orientação é atribuída ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado para superar os gargalos infraestruturais do país, considerado o IIRSA nacional, como afirma Switkes (2009). Carvalho (2010) destaca a importância da Amazônia para se viabilizar a inserção internacional das empresas brasileiras, questionada exatamente pelo aprofundamento do modelo primário-exportador a que se coloca o Brasil, cada vez mais especializado em grãos, minério e energia. Corroborando esse pensamento, Bermann (2003) afirma que a exportação continua a ser o principal determinante dos investimentos industriais brasileiros, que num processo de globalização da economia internacional, aprofunda o papel de mero exportador de produtos básicos de baixo valor agregado e elevado conteúdo energético. No entanto, a despeito de argumentos acerca da potencialidade das obras engendrarem o desenvolvimento da região, Menezes (2009) adverte para o fato de que essas intervenções estatais reduzem os custos de transporte e energia para atividades industriais ligadas a produção de commodities, beneficiando apenas alguns grupos econômicos que pouco contribuem para a 16 configuração social do país, como é o caso dos benefícios apropriados pela mineração, produção da soja e celulose. Portanto, ao atender aos preceitos da IIRSA, as hidrelétricas do Madeira remetem ao questionamento sobre o modelo de desenvolvimento engendrado pelo país. Tal modelo foi aprofundado pela absorção do ideário neoliberal, que exige que o dinamismo das regiões dependa de sua competitividade no mercado externo, levando aos vultosos investimentos que atendem às necessidades logísticas da atividade exportadora (ARAÚJO, 1999). O modelo de apropriação dos recursos brasileiros tem obedecido a esse padrão. Segundo Acselrad et al. (2009) dois processos caracterizaram a territorialidade do capitalismo brasileiro, o primeiro refere-se a concentração crescente do poder de controle dos recursos naturais nas mãos de poucos agentes, de modo que a acumulação capitalista se desse em escalas cada vez mais amplas de produção, novos espaços sociais para a exploração do trabalho, bem como novos espaços físicos a valorizar. Daí justifica-se o amadurecimento capitalista em meados do século XX ter sido acompanhado de concentração crescente do uso dos recursos hídricos através de grandes hidrelétricas, grandes projetos de irrigação, restrição do acesso a regiões ricas em minerais aos grandes projetos mineradores e incorporação de grandes regiões de terras de fronteira por frentes especulativas. A esse processo, os autores denominam de acumulação extensiva e teve como característica se sobrepor à formas sociais não-capitalistas de apropriação do território e seus recursos. Outro processo de apropriação se caracteriza pela privatização do uso do meio ambiente comum, que se baseou na aceleração dos ritmos de produção e intensificação do trabalho, e por necessidades de geração de lucros crescentes, levou a chamada acumulação intensiva, com esforços em aumentar o capital investido que se chocou com o ritmo mais lento de recuperação do meio ambiente. Segundo Becker (1998), a região Amazônica sofre disputas em torno de dois projetos: um internacional, que pretende aproveitar o potencial biotecnológico da região, “colocando a natureza como capital de realização futura”; e o regional (nacional), de frente energética com a expansão das atividades em torno da hidreletricidade e das atividades de extração mineral. “O projeto internacional” merece ressalvas, pois ao se identificar os sujeitos do processo tem-se que o “projeto nacional” se consolida quando do apoio das Instituições Financeiras Multilaterais (a exemplo do Banco Mundial) mostrando que em determinados setores esses projetos estão imbricados, como mostra Carvalho (2009). Em Seminário “Contra a privatização do rio Madeira e pela Soberania da Amazônia”, ocorrido no canteiro da UHE Santo Antônio, foram explicitadas a oposição ao modelo de apropriação do espaço Amazônico. O manisfeto levanta, entre outras questões que, 17 “[...] são as empresas eletrointensivas e o agronegócio as principais beneficiárias dos projetos previstos no PAC e na IIRSA. O povo brasileiro é que pagará por esta conta com dinheiro do FAT, através do BNDES. As famílias enganadas por falsas negociações isoladas estão sendo expulsas de suas Comunidades, na área do canteiro de obras, com a queima, derrubada e desmonte de casas, algumas famílias remanejadas para hotéis em Porto Velho sem sequer receber o prometido.[...]o preço cobrado pela energia consumida pelo povo brasileiro é um roubo. [...] Os Estudos de Impacto Ambiental aprovados, amplamente questionados, inclusive por técnicos do IBAMA, Ministério Público Federal e sociedade civil, por suas fragilidades técnicas, e escondem as consequências socioambientais para toda a região do Madeira afrontando a soberania dos povos da Bolívia e Peru; toda energia gerada com as águas do Madeira, irá ser transportada por linhão e não irá beneficiar os povos da grande Amazônia como tem sido divulgado pelos interessados nas obras [...] Águas para a vida não para a morte!” (FERREIRA E MACIEL, 2009, p. 220). Por esse aspecto, as críticas acerca dos empreendimentos hidrelétricos devem superar o dualismo entre oposicionistas “favoráveis ao atraso” e progressistas “favoráveis ao desenvolvimento”. Não se trata de negar as promessas de empregos gerados pelos empreendimentos na Amazônia a partir dos grandes projetos de investimento, incluindo os projetos hidrelétricos, bem como as ações infra-estruturais referentes ao acesso a serviços básicos a que a população carece, ou ainda os investimentos em habitação e possibilidade de treinamento para a formação de mão-de-obra especializada na região, como estabelecido pelo PBA para o município de Porto Velho, a partir das hidrelétricas. Trata-se de refletir esse processo enquanto modelo de desenvolvimento regional, uma vez que a potencialidade dos empreendimentos hidrelétricos engendrarem o desenvolvimento se restringe ao dinamismo promovido pelas obras durante o período de instalação que, segundo Leonel, não passa de ilusões de prosperidade. Isso se evidencia no fato de que as regiões produtoras de energia elétrica na maioria das vezes “exportam” a energia gerada, de modo que a despeito dos vultosos investimentos, a energia produzida não necessariamente é utilizada pela região, em decorrência do nosso modelo de transmissão interligado, controlado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS). No Madeira, essa questão fica explícita quando da necessidade de construção do “linhão”, maior linha de transmissão do mundo, que levará a energia das usinas do Madeira de Porto Velho (RO) a Araraquara (SP), com 2.375 km de extensão, e que apesar disso foi excluída dos estudos do EIA (SWITKES, 2008; GARZON, 2009). Esse aspecto reforça questionamentos quanto a capacidade das obras do Madeira propiciarem o desenvolvimento da região, pois a capacidade de dinamismo regional, que pouco se estabeleceu pelo modelo extrativista, atividade que marcou os ciclos econômicos da região, menos ainda poderá ser evidenciada quando de sua especialização em “região exportadora de energia”, visto o caráter concentrado das estruturas produtivas no Centro-Sul do país, reforçado pelo modelo de desenvolvimento levado a cabo. 18 No entanto, apesar das contradições que envolvem as potencialidades de dinamismo econômico de grandes projetos de investimento, como as hidrelétricas, questionar o modelo de apropriação da região perde legitimidade perante a sociedade, uma vez que diante do modo como se configurou a ocupação da região Amazônica, o argumento da geração de emprego e melhorias sociais prevalece sobre a necessidade de uma profunda transformação no modo de apropriação do território. Considerando a precariedade das condições infra-estruturais dos municípios em que se inserem a maioria dos grandes projetos – precariedade generalizada em se tratando da região Amazônica – vis-à-vis a demanda por emprego e por melhores condições infra-estruturais, as condicionantes socioambientais tornam-se fatores de legitimação desses empreendimentos, de modo que a cada anúncio dos mesmos, renovam-se as esperanças de desenvolvimento regional. Assim, a precariedade da região, antes conseqüência do modelo de apropriação do espaço Amazônico, passa a ser motivo de afirmação da necessidade dos empreendimentos, apesar de inserí-la no dinamismo econômico nacional como exportadora de commodities e energia, o que reforça o caráter periférico do desenvolvimento do país. 3. Considerações finais O que se pode verificar ao analisar os aspectos socioambientais do Projeto Madeira, com ênfase na UHE Santo Antônio, é que o processo de instalação de hidrelétricas no recente período de expansão guarda muitos dos aspectos que motivaram a emergência dos movimentos sociais de atingidos por barragens, que envolve a imposição de projetos defendidos como propulsores do desenvolvimento regional, porém que desconsideram a população local enquanto sujeitos do processo decisório de instalação dos projetos. A possibilidade de dinamismo econômico a partir dos empreendimentos se restringe ao período de construção das usinas, bem como as transformações se mostram incompatíveis com os modos de vida tradicionais das populações envolvidas, suprimidos pelo modelo imposto a partir de decisões externas às regiões. No entanto, a questão das hidrelétricas no recente período de expansão não se restringe aos dilemas entre um projeto nacional capaz de engendrar o desenvolvimento regional, a partir da modernização das relações sociais existentes, e um projeto regional incompatível com tais transformações. Ou ainda, a insuficiência dos estudos de impacto vis-à-vis a reinvidicações para que as demandas das populações atingidas sejam atendidas. Aos recorrentes efeitos regionais dos projetos hidrelétricos, como desagregação social, degradação ambiental e conflitos entre Estado, empresa e sociedade, soma-se o questionamento acerca do projeto de desenvolvimento a que esses empreendimentos atendem, questões que se exacerbam com a privatização do setor elétrico e consequente mercantilização da energia. O fato de grandes projetos hidrelétricos serem planejados na Amazônia para beneficiar setores primário-exportadores evidencia que o modo de apropriação da região inviabiliza tanto o desenvolvinento regional, quanto sinaliza o aprofundamento da inserção periférica do país, 19 consolidando nossa especialização em commodities, atividade a que a região tem servido, inapropriadamente diante de suas potencialidades. Assim, a ideia de antagonismo entre um desenvolvimento regional que considere os aspectos ambientais e culturas tradicionais da região e a necessidade premente de superação do atraso do país é refutada pelo fato de que prejuízos socioambientais aos territórios Amazônicos advindos de projetos de infra-estrutura que fomentam setores primário-exportadores com benefícios restritos a apenas poucos grupos econômicos é incompatível com o desenvolvimento do país. O dilema reside, então, entre aprofundar o modo de apropriação do território Amazônico estabelecido a partir das necessidades do padrão primário-exportador, e a necessidade eminente do país superar tal modo de inserção internacional, especializado em commodities, de modo a estabelecer a apropriação do território Amazônico em novas bases, pois o atual se mostra profundamente vinculado ao caráter concentrador e desigual do desenvolvimento brasileiro. Referências Bibliográficas ACSELRAD, H; SILVA M.G. Conflito social e mudança ambiental na barragem de Tucuruí. In: Henri Acselrad (org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll, 2004. ACSELRAD, H; CAMPELLO, C.A.; MELLO, G.N.B. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. ARAÚJO, T. B. Por uma política nacional de desenvolvimento regional. REVISTA ECONÔMICA DO NORDESTE. Banco do Nordeste Vol.30 n.2 abr - jun de 1999. 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