A CRIANÇA-PERGUNTA QUE HABITA EM NÓS “O ser humano é um enigma, o ser humano é uma pergunta” “Quê devo fazer”: esta é a pergunta que inquietava S. Inácio quando de seu retorno da Terra Santa. Pergunta provocativa, instigante, que o impulsionava a “buscar e encontrar a Vontade Divina”; pergunta que não se encerrava numa resposta ou no encontro daquilo que buscava, mas pergunta que se tornou “hábito do coração”. Para o pensamento inaciano, o questionamento não apenas abre para o futuro, mas também é a essência do próprio tempo. Não há tempo sem pergunta. O ser humano se constrói, instante por instante, no tempo construído pela pergunta. “Quê devo fazer?” é a pulsão, a pulsação que procura e impulsiona para o novo. Perguntar e responder são atributos do ser humano. O ser pensante define-se mais pelo perguntar do que pelo responder. Perguntar é buscar; buscar sentido. Quem pergunta procura descobrir a verdade. O perguntar é ousado; perguntar contém desafio, provocação; leva dose de irreverência. Perguntar é interpelar; coloca dúvida nas certezas; perguntar é processo que desenfumaça a verdade. “Perguntar é mergulhar no abismo” (Exupèry). Então mergulhemos no abismo, já que não perguntar é se condenar a jamais se encontrar. Tudo o que acontece emerge da pergunta, desse abismo aberto pela pergunta “quê?” O ser humano é uma pergunta, mas não é um problema de ignorância. A pergunta é movimento. E só quando pergunta é que ele emerge da cotidianidade e percebe quão inacabada é sua existência e o quanto ainda tem a realizar e construir. Há um ensinamento que fala de uma pessoa que empreendeu longa viagem para ver o rabino que admirava. Fazia tempo que alimentava uma dúvida. Lá chegando, fez a pergunta que o levara até ali e foi imediatamente expulso do recinto. Choroso, encontrou um discípulo do rabino que lhe explicou: - “É prá você aprender a não trocar uma pergunta importante por uma resposta qualquer”. Era tão importante a pergunta que o rabino recusou-se a banalizá-la com sua resposta. A viagem do perguntador pode muito bem levá-lo até à resposta se ele tiver a paciência de suportar a ansiedade despertada pela pergunta. A resposta correta remete, por sua própria formulação, à pergunta que a atravessa, que a anima: resposta viva. “Ter paciência com tudo que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque (...) respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta” (Rilke). A “criança-pergunta” que nos habita se situa em uma relação com o mundo que não consiste mais em receber uma resposta feita, admitida passivamente, mas numa atitude de questionamento. Lemos o mundo como um texto, ao mesmo tempo luminoso e numinoso, fonte de revelação e de mistério, visível e invisível, aberto ao infinito das leituras e interpretações. Com as perguntas fazemos história, e a história é abertura para a aventura... Encontramos em Ex. 16, a passagem bíblica que nos ajuda a formular essa articulação entre o tempo e a pergunta. Trata-se do episódio do “maná”; a palavra “maná” não designa o “pão do céu”, mas a atitude interrogativa diante desse objeto extraordinário. O “maná” significa etimologicamente: “o que é?” Durante 40 anos, os hebreus comeram “o que é?” no deserto, local intermediário entre a escravidão do Egito e a terra prometida. Experiência “fundadora e fundante”, nesse espaço entre duas terras onde se forjou o aprendizado da liberdade. Assistimos nesse episódio a um acontecimento raro na História, uma espécie de paciência, uma nãopressa em encerrar o objeto desconhecido numa palavra ou numa categoria que faria calar a sua estranha manifestação. O “maná” como pergunta é surgimento da novidade absoluta. O “maná” é um objeto do mundo que permanece em “estado de pergunta”, oposto ao “estado de prisão” imposto por um pensamento que se apodera do mundo com um golpe, não deixando nenhuma chance para o livre desabrochar das coisas por si mesmas. O “maná”, a “pergunta” não se conserva. O espanto e o assombro diante do mundo não podem ser adquiridos de uma vez por todas. Uma pergunta que se tornou pergunta habitual não é mais questionadora e provocativa. Fecha o horizonte; corta o movimento da vida... FONTE: CEI-JESUÍTAS - Centro de Espiritualidade Inaciana Rua Bambina, 115 - Botafogo – RJ – 22251-050 [email protected] / www.ceijesuitas.org.br