CISC CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA imagemeviolência SOBRE O FUTURO DA VISIBILIDADE Dietmar Kamper Birke Mersmann Norval Baitello Junior A Visibilidade da Violência O tema ‘violência‘ nunca esteve tão em voga. Fala-se de violência bruta, real, imaginária, simbólica, estrutural. Nunca se mostraram tantas imagens violentas da violência que invade todos os espaços da vida e da mídia. Sobretudo fala-se muito da escalada da violência. E também, como conseqüência, vem crescendo no mundo todo a discussão sobre esse tema e suas variações. Contudo, essa discussão acaba por se deparar com um obstáculo que ela própria não consegue transpor, um enigma indecifrável. Permanece um verdadeiro enigma o fato de que o homem, depois de milênios de sua pacificação, veja inesperadamente surgirem irrupções de violência ao redor do mundo, em escala crescente e em proporções inusitadas. Immanuel Kant, juntamente com outros pensadores e filósofos iluministas, elaborou uma filosofia da história prevendo a crescente moderação da natureza humana, na qual o homem iria sendo construído e aperfeiçoado pouco a pouco através da civilização, da disciplina e da humanização. Neste enfoque a violência apareceria apenas no começo do processo evolutivo do homem. Acreditava-se que haveria um movimento histórico que evolui da barbárie para a humanização. Este era o sentido mais recôndito do conceito de progresso: a evolução e o desenvolvimento culminariam na perfeição de uma humanidade pacificada. Também Norbert Elias repete e enfatiza essa linearidade da história que vai do corpo, considerado como instância bruta, matéria vista como violenta por natureza, ao espírito e sua última e mais elaborada forma, o intelecto, visto como o refinamento do humano, a instância evoluída por excelência, e, portanto, pronta para a paz. Enfatiza ainda a linearidade que parte dos sentidos de proximidade, olfato, tato e paladar, não dispostos a se civilizar e a se disciplinar, e chega aos sentidos de distância, encarados como sentidos mais elaborados, dentre eles especialmente o olhar, o olhar emancipado. A Esperança Fracassada na Civilização do Homem O padrão de pensamento e de discussão segundo o qual a violência seria arcaica e pertenceria à natureza do homem teve até há bem pouco tempo um alto grau de aceitabilidade. Segundo esta crença o homem seria, no seu princípio, um animal e, no final de seu percurso evolutivo, um homem. Seu corpo seria escuro e impenetrável enquanto seu espírito seria luminoso e transparente. Assim se acreditava. Porém esta argumentação não poderia ser logicamente convincente. Ela teria que admitir que os resultados da civilização e da disciplina são apenas um disfarce, por trás do qual se reconhece facilmente a antiga fera, a besta humana. Apesar dos retrocessos, não se podia, no entanto, abandonar a esperança de alcançar um dia, por distante que fosse, a pacificação definitiva da natureza humana. Fazendo-se hoje um balanço, constatamos que no presente não restou muito dessa antiga esperança e dessa expectativa do homem. Nenhum século anterior produziu tanta violência como o século XX, em guerras, massacres e genocídios, mas também no relacionamento com o próximo, com o outro mais próximo e sobretudo no relacionamento consigo mesmo. A barbárie e a monstruosidade parecem ter crescido tanto quanto as defesas criadas pelo homem em favor da humanização e dos direitos humanos. A violência visivelmente trocou de frente de batalha. Na verdade continuam emergindo manifestações do corpo – sinais de alarme corporais - que resistem bravamente em favor da vida, mas nesse ínterim o espírito e suas instituições passaram a exercer uma tal proporção de violência que não se consegue mais ocultar nem silenciar. Calar-se diante do atual panorama seria já em si uma violência. Até mesmo as organizações responsáveis pela paz mundial vêm trabalhando em toda parte de mãos dadas com as guerras mais inflamadas e sangrentas. As obras primas da capacidade destrutiva do espírito humano vêm assim à tona, sem hesitação, sem restrições e com a máxima visibilidade. O Homem, sua Face, sua Carranca Edgar Morin formulou da seguinte maneira o grande enigma do humano: o homem jamais foi um animal, ele já era, desde o princípio, um ser humano. As investigações de Frans de Waal, descobrindo a existência de princípios de ética entre os chimpanzés, demonstram que até mesmo as espécies mais próximas apresentam uma face construtiva ao lado de uma face sombria e agressiva. Assim também o homem reúne e si, desde o princípio, um homo sapiens e um homo demens ao mesmo tempo. A face do homem jamais se mostra sem a sua carranca. A humanidade jamais existiu sem a sua monstruosidade. Deduz-se daí que o último capítulo da história da humanidade, a história do século XX, terá que ser escrita de novo. A violência, que por muito tempo serviu à evitação ou à minimização de si própria, tornou-se mais violenta que toda a natureza humana em toda a sua história. Por isso pode ser necessário redefinir toda a história das etapas humanas incluindo-se aí a pré-história; redefini-las e não apenas invertelas. Assim poderia ficar uma nova definição das etapas: domesticação, civilização, disciplinação, sedimentação (incluindo normalização). A domesticação, no início, refere-se ao esforço pré-civilizatório de interpretar o mundo como uma casa e mudar-se para ela (Peter Sloterdijk). A civilização constitui a fase na qual o grupo social impõe princípios e a disciplinação ocorre quando a coerção dos princípios sociais se torna auto-coerção (N. Elias). Interessa-nos, entretanto, a fase da sedimentação, no final do processo, fase que permanece estritamente ambivalente. Sedimentação quer dizer que o corpo humano, de sua posição ereta foi conduzido à posição sentada, foi obrigado a sentar-se. Nessa posição, sentada e sedentária, se acalma, se aquieta e elabora calculadamente insurreições passageiras, trama e tece com detalhes pérfidos as próximas erupções de sua carranca. Erupções que reconquistam, ainda que temporariamente o poder da verticalidade, tão caro ao homem (Harry Pross). Sedimentação significa, além disso, que enormes recursos e energia são necessários para agüentar a insuportável obrigatoriedade de ficar sentado ( Hajo Eickhoff), sobretudo para uma espécie de caçadores e nômades, seres afeitos à mobilidade e ao desafio, ao incerto e à luta (J. A. Gaiarsa). Já o dissera Nietzsche: “a vida sedentária, eis o verdadeiro pecado contra o santo espírito”. A Violência da Visibilidade Na civilização avançada a violência se manifesta na visão. Com a divisa do iluminismo, de “tornar visível tudo o que é invisível”, não se podia vislumbrar que a visibilidade potencializada teria conseqüências imprevisíveis. Michel Foucault tratou dessas conseqüências sob a rubrica do ”panoptismo do poder”. Na mudança do poder concentrado e centralizado dos soberanos e das autoridades para o poder disperso e individualizado da disciplina (quando o controle das normas e das leis já faz parte das tarefas do próprio indivíduo) instalou-se um olhar controlador, ainda que com a aparência de humanização. Um olhar controlador que produziu efeitos demolidores e devastadores. Essa estrutura ótica de vigilância e de punição, de correção, educação e emancipação já existia muito tempo antes da realidade tecnológica da mídia visual (máquinas fotográficas, câmeras de filmagem, monitores de televisão, gravadores em videocassetes, etc.) e foi aplicada socialmente por meio das instituições correspondentes a cada área social. Mosteiros, quartéis, clínicas, escolas, prisões, locais de trabalho e de correção espalharam a coerção do olhar em todas as direções sociais e zelaram para que essa coerção do olhar tivesse uma correspondente coerção da imagem. As pessoas tinham que sujeitar-se às coerções para poder fazer parte de sua sociedade. Paralelamente o conhecimento e a consciência das relações e das circunstâncias, dos nexos e dos sentidos, das reais razões e dos motivos verdadeiros foram postos sob proibição. O poder que provoca a escalada da visibilidade torna-se, de etapa para etapa, cada vez mais invisível. Obedece à divisa da teoria dos sistemas: será perfeita apenas aquela observação que não for observável ela própria. Trata-se assim de um poder que vigia e não permite ser vigiado, observa sem ser observado. Invade sem ser invadido. É a câmara que tudo vê mas não pode ser vista. As Máquinas de Imagens e as Máquinas de Olhar Depois de séculos de uma prática decisiva da visibilidade é que puderam assumir seu trabalho as máquinas de imagem e as máquinas de olhar. Elas apareceram, desde o princípio, não como instrumentos e ferramentas, mas como projetos de mundo com ambições totalitárias. Em vista de sua função social aumentou a expectativa de que se pudesse promover a humanização do homem como pacificação de sua natureza violenta. Aparece, contudo, muito logo uma ambivalência fundamental que perdura até hoje. No plano tecnológico, a sedimentação descrita acima consiste dos seguintes recursos: obrigou-se e obriga-se o homem à posição sentada sem a menor consideração, tendo empregado e ainda empregando, como calmantes, todos os recursos e meios disponíveis (de comunicação e entretenimento, de informação e de ritualização) para se criar uma relação de dependência, usando-os indiscriminadamente como drogas legais (H. Pross). As conseqüências são imprevisíveis. De um lado, o poder político e econômico e, de outro, a impotência das pessoas individualmente foram tão enganchados um ao outro que a esperança de uma diminuição da violência levou exatamente ao seu oposto, sua intensificação. E as causas exatas disto continuam totalmente obscuras. A esperada paz trazida pela informação e pela mídia não ocorreu. Em seu lugar impera uma selvagem guerra das imagens que ainda nem atingiu seu ápice. O olhar controlador, agora onipresente, obriga as pessoas a se transformar em uma imagem que não transborde para fora das molduras previstas e que satisfaça às exigências de uma visibilidade em ascensão. Tudo o que não for visível tem que ser descartado como objeto sem valor, antes mesmo de entrar no jogo. Em compensação, toda imagem conformável ao olhar pode ser configurada ativamente, apresentada e reapresentada em encenações repetidas uma vida inteira, inclusive com a participação das pessoas que se colocam sob os olhares controladores. Existir e Viver Apenas Como Imagem A coerção - de transformar em imagem tudo o que existe, por força do olhar – está algemada a uma estranha voluntariedade que borra e apaga inapelavelmente as velhas fronteiras, frentes de batalha e limites. Esta “coerção voluntária” desdobra-se e revela-se atualmente em imponentes efeitos especiais, e com uma eficácia irrefutável. E, para aqueles que, voluntaria ou involuntariamente, colocam a visibilidade como condição da própria pertencência social, ela não deixa a menor chance de escapar. Abre-se aí um círculo vicioso: para participar no processo da visibilidade em ascensão, as pessoas suportam a perda da própria vida em sua corporalidade pluridimensional. Elas condenam a si mesmas a existir e a viver apenas na superfície da imagem. E isto acontece com uma crueldade absolutamente internalizada. Além disso a longa sombra da visibilidade mergulha na obscuridade todo acontecimento que seja decisivo para todos. O máximo de resistência possível seria a sensação construída de que se “está em vista” (Sartre apud Lacan). Contrariamente a isto, hoje é completamente normal não se dar mais conta dos olhares, não mais perceber o olhar controlador e coercitivo. Ou então, quando por acaso ele é sim percebido, ele deve ser pronta e imediatamente esquecido, tão radicalmente quanto possível. Importaria aí, no entanto, não estar de acordo com este esquecimento do olhar e a violência que ele provoca. E para isso há a necessidade de clareza e nitidez em três direções. A saber: 1) Primeiramente temos que descrever as mudanças concretas no regime histórico da visão. 2) Em segundo lugar temos que rastrear, auscultar nas relações e nas circunstâncias a perda do próprio corpo e a perda da presença do outro. 3) Em terceiro lugar temos que reforçar a mudança de horizontes, de perspectivas, de paradigmas e de pontos de vista sobre as razões da violência. Por meio disso será possível compreender melhor e sob premissas mais adequadas aquilo que acontece hoje. Texto apresentado no Seminário Internacional “Imagem e Violência”, promovido pelo Cisc – Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, durante os dias 29, 30, 31 de março e 1º de abril de 2000. Dietmar Kamper ( † 2001) Professor de sociologia e história antropológica da Universidade Livre de Berlim, Alemanha, professor associado de teoria da mídia com ênfase em Gestalt. Iniciador de dez simpósios internacionais sobre temas de antropologia histórica como corpo, senso, alma, tempo e silêncio. Publicações recentes "Unmögliche Gegenwart: zur Theorie der Phantasie" (1995); "Abgang vom Kreuz" (1996); "Im Souterrain der Bilder. Die schwarze Madonna" (1997); "VON WEGEN" (1998); "Ästhetik der Abwesenheit. Die Entfernung der Körper" (1999 - em breve). Norval Baitello Junior Doutor em Ciências da Comunicação e Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim. Coordenador do Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia, junto à Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Diretor da Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP. Autor dos livros: "Die Dada-Internationale. Der Dadaismus in Berlin und der Modernismus in Brasilien" e "O Animal que Parou os Relógios. Ensaios de Semiótica da Cultura e da Mídia". Signature Not Verified Digitally signed by Cisc DN: cn=Cisc, o=Centro Interdisciplinar de Semiotica da Cultura/Midia, c=BR Date: 2002.07.03 18:21:34 -03'00' Location: SP - Brasil