Edézio Teixeira de Carvalho. Telfax (31) 3375 0414; 3375 6127 TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO – O DIA SEGUINTE1 Geocentelha 127 Inicialmente manifestei não ter opinião fechada contra a transposição de 3% da vazão regularizada do São Francisco porque não conhecia o projeto. Em princípio sou contra transposições. O resíduo de indefinição foi concessão aos responsáveis, do benefício da dúvida. Integrando comissão do Projeto Manuelzão para estudar o assunto, obtive mais dados e hoje não tenho essa dúvida. Contudo ela dissipou-se mais pelas mãos eficazes do próprio governo que pelos argumentos dos contrários posicionados de início. Entre as ações do governo que contribuíram para que eu firmasse posição contrária, assinalo esta: ele propõe-se executar a obra, mas não quer saber da pós-produção – o dia seguinte da obra. Acho também que a revitalização do São Francisco, como claramente se tem posicionado o Projeto Manuelzão, não pode estar condicionada à transposição. Se o for, estamos de fato muito mal em políticas de gestão. Pode ser curioso: conclui-se a obra sob chuvas torrenciais, por exemplo, e todos vão para casa aguardar ansiosamente o evento que justifique pô-la a funcionar, algo assim como o cemitério da novela o “Bem Amado”, cuja inauguração ficou o tempo todo dependendo de um óbito na cidade. Dizem que a arte imita a vida, mas aqui a vida pode estar-se inspirando exatamente na arte maior da nossa televisão. Esse dia seguinte da obra inaugurada não precisará ser tão tragicômico para ser um fardo a mais para o povo brasileiro. De imediato, na área beneficiada serão postos de lado os sistemas de mitigação da seca (exatamente como em Belo Horizonte a imensa maioria de poços tubulares foi posta de lado quando chegou a água da adutora, poços que hoje voltam, mostrando que afinal não tinham ficado tão dispensáveis). A transposição já estará, logo ao descerrar da placa, alijando recursos tecnológicos hoje disponíveis. Dizem que a faixa de terreno diretamente beneficiada pela transposição é de 10 quilômetros de cada lado dos rios renutridos. Isto leva-nos a supor que os cerca de 90% restantes de semi-árido serão beneficiados indiretamente (ficando com quotas dos reservatórios atuais que hoje se dirigem para as áreas beneficiadas ?). O rio perenizado será para essas populações como linhão energizado: todos irão a ele e pressionarão por ligações cada vez mais distantes. Quem sabe até gatos semelhantes aos da energia? A elevação de água a partir do rio será energia a mais a debitar às contas globais da transposição. Estaremos fazendo um rio invertido (!), cujas águas fluem para o alto do morro. Vai-se também inaugurar algo novo: além de, pelo desvio, estarmos reduzindo o valor dos territórios a jusante (porque as águas provenientes de montante fazem parte deles naturalmente) estaremos também tirando valor aos territórios banhados a montante do desvio pelos compromissos a serem atendidos com a produção de energia e com o volume a ser transposto (não adianta falar no Tocantins, porque a transposição de parte deste apenas ampliará o efeito da primeira!). Nos períodos detestáveis de chuvas regulares, os operadores, que não estarão a soldo do governo federal, terão infinitas horas para descobrirem as mais sutis variações do buraco e da canastra. À frente das válvulas e nos postos de vigia o truco rolará solto enchendo de gritos desesperados o silêncio do sertão. Enquanto isto os outros brasileiros, de Minas Gerais a Colégio e Propriá estarão muito ressentidos por seus canteiros ressecados, com seus patrícios em nome dos quais se terá feito a transposição, sem saber que, de fato, eles não foram atingidos por uma gota sequer das águas desviadas, porque estarão fora dos famosos 20 quilômetros de margem. A ciência da gestão é sutil. Quando operada com inteligência e bom propósito, é como a mão invisível a conduzir bem a construção de uma nação. As grandes transposições, embora envolvendo pouca água de início, tendem a crescer muito porque viram bom negócio e só não terminam em guerras quando há muita disparidade de forças. Contudo criam ressentimentos perenes. Em boa hora (01/04/01) chama o Estado de Minas atenção para a concreta possibilidade, acho que pela primeira vez, tachando o São Francisco de rio da Discórdia Nacional. A nação há de ouvir aquele aviso mais que oportuno. Belo Horizonte, 02/04/01 _____________________ Edézio Teixeira de Carvalho. Geólogo, consultor, ex-professor da UFMG. 1 Estado de Minas – Opinião, p. 07; 16/04/01, sob o título “O dia seguinte da transposição”.