HISTÓRIA NO MUNDO CIBERNÉTICO? Prof. Esp. Diego Fruscalso dos Santos 1 "Não há imortalidade que não seja a lembrança que deixamos impressa na memória e na mente da Humanidade!" Napoleão Bonaparte RESUMO Contemplando a contemporaneidade, este artigo quer enfocar o conceito de história que predomina no mundo cibernético. Partindo dos ideais que foram desenvolvidos ao longo dos séculos. Encontramos uma dissociação da memória, do tempo e da história. Conceitos que se confrontam na sociedade cibernética. Com base neste enfoque, através de estudos bibliográficos, foi possível contextualizar a história como produção intelectual no ciberespaço. Para tanto, utilizou-se como base referencial destes estudos, os trabalhos de Pierre Lévy e Jacques Le Goff a fim de elucidar a história no mundo contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: cibercultura - história – memória – redes sociais – ciberespaço INTRODUÇÃO A Historiografia passou por inúmeras transformações a começar por Heródoto, passando por Augusto Conte, Karl Marx e a Escola dos Annales. Em todos estes ciclos a história foi tratada segundo as ideologias predominantes do período. Atualmente vivenciamos uma etapa singular visto que, segundo Castells (1999) os indivíduos estão conectados através das redes globais. Cabe assim verificar como a história é compreendida neste tempo. 1 Formado em História pela Universidade Feevale, Especialista em Filosofia e Sociologia Ensino e Questões Contemporâneas - Feevale/RS. Docente das Disciplinas de História e Filosofia do Colégio Santa Teresinha de Campo Bom/RS. Mestrando em Filosofia Social e Política pela Unisinos. Membro do Grupo de Estudos: Filosofia da Tecnologia – Unisinos. [...] as redes globais de intercambio instrumentais conectam e desconectam indivíduos, grupos regiões e até países, de acordo com sua pertinência na relação dos objetivos processados na rede, em um fluxo contínuo de decisões estratégicas. (CASTELLS, 1999. p. 41) Antes da análise do tema proposto é importante entendermos o desenvolvimento do conceito de história. Para isso se faz necessário analisar o homem como agente de produção histórica. Arendt (2009, p. 71) menciona que para Aristóteles a existência humana esta ligada aos ciclos repetidos de sua existência. Ou seja, a mortalidade é a marca de distinção dos humanos. O movimento histórico começou a ser construído a imagem da biologia [...] o mundo da história fora reintegrado no mundo da natureza, o mundo dos mortais no universo que existe para sempre (ARENDT, 2009, p.72). Assim cabe ressaltar que para Arendt (2009) a história está intimamente conectada a Bios, pois o processo histórico foi construído em concomitância com a vida biológica. Em concordância com Castells (2005, p. 544) afirma que o tempo na sociedade é medido pela morte, sendo ela tema principal da sociedade ao longo da história. Neste contexto há uma luta constante de tentar expulsar a morte buscando assim a imortalidade. HOMEM MODERNO SÉCULO DAS LUZES. Em continuidade ao desenvolvimento a filosofia da história, Bourde (1999, p. 44) destaca que no século das luzes2 o pensamento esta voltado para o devir3, termo que também é utilizado por Lefort (1999, p. 37). Neste contexto pensadores como Voltaire e Kant acreditavam no desenvolvimento da humanidade em direção a um Estado Ideal. 2 Século XVIII 3 Devir em Hegel, constitui a síntese dialética do ser e do não-ser, pois tudo o que existe é contraditório estando, por isso mesmo, sujeito a desaparecer Isso constitui um movimento constante de renovação, ou seja, o que vai vir a ser. 2 Em contrapartida Burke destaca que intelectuais da Escócia, França, Itália e Alemanha buscaram desenvolver uma história que não se limitava a acontecimentos políticos, militares, proezas e grandes homens. [...] século XVIII, certo número de escritores e intelectuais, [...] começou a preocupar-se com o que denominava “história da sociedade” Uma história que não se limitava a guerras e à política, mas preocupava-se com as leis e com o comércio, a moral e os bons “costumes”, tema que haviam sido o centro de atenção do famoso livro de Voltaire essa sur lês moeurs. (BURKE, 1992, p.17) A idéia de desenvolver uma história não-politica foi abafada pelas Revoluções Burguesas4, devido aos ideais positivistas5 que defendia uma história construída por grandes homens resultando um Estado Ideal. (Bourde 1999, p. 44). Neste contexto, segundo Arendt (2009, p. 89) “a História emergiu como algo que jamais fora antes”, sendo valorizada por ser um processo global de exclusiva produção humana. Em continuidade Arendt (2009, p. 93) apresenta como ponto de grande mudança para a Filosofia da História o surgimento de novas tecnologias. Neste contexto, a Historiografia moderna incorpora os termos desenvolvimento e progresso, condicionando na sociedade uma nova conjuntura histórica. Daí a importância do século XVIII, conforme palavras de Hobsbawm: [...] a Revolução Industrial [...] foi provavelmente o mais importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção da agricultura e das cidades. (1997, p.45) É nesta conjuntura da Revolução Industrial, que segundo Bourde (1999, p. 157) Karl Marx apresenta, em 1848, o folheto O Manifesto. Nele, Marx descreve que “a evolução da humanidade não segue um curso linear, mas procede por mutação de outra estrutura”. Neste contexto Lefort (1999, p. 38) corrobora acrescentando a 4 Onda revolucionária que ocorreu desde o final do século XVII, tem como principal acontecimento a Revolução Francesa. 5 Positivismo, conjunto de doutrinas de Augusto Comte (1798-1857) 3 idéia de Marx que a humanidade vive em um contínuo desenvolvimento, encontrando nas sociedades primitivas o necessário para viver. Entretanto segundo Bourde (1999, p. 158) para Marx em algum momento as forças produtivas, o proletariado, entraram em confronto com a relação de produção. Assim surgira uma nova Revolução Social equivalente à revolução Francesa que afastou o governo absolutista do poder. Para o autor do Capital, a ação e a consciência estão intimamente ligadas. Um grupo humano só pode compreender uma evolução ao empenhar-se no processo de mudança. Por outras palavras, os homens [...] não são objetos passivos, mas sujeitos ativos da sua própria história. (BOURDE. 1999, p. 158) Cabe ressaltar Burke (1992, p.19) que mencionou: [...] Marx [...] oferecia um paradigma histórico [...]. Segundo sua visão histórica, as causas fundamentais da mudança histórica deveriam ser encontradas nas tensões existentes no interior das estruturas socioeconômicas. Na seqüência do desenvolvimento da teoria histórica Burke (1992) menciona a criação em 1929 da revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch. Esta revista se tornou o símbolo de uma nova corrente historiográfica denominada de Escola dos Annales. Burke (1992) relata que Annales possui Três Fases, ou Três Gerações distintas. Das quais vou me deter aqui apenas a Terceira Geração, esta surgiu em 1968, neste momento, existe uma troca de conceitos históricos entre os pensadores europeus e os que vivem nos Estados Unidos realiza-se assim, uma “síntese entre a tradição dos Annales e as tendências intelectuais americanas” (Burke, 1990, p.80) Um dos pensamentos que se fortifica na Terceira Geração é a história das mentalidades, esta idéia surgiu logo após a primeira guerra mundial com historiadores como Marc Bloch, Lucien Febvre. No entanto somente a partir de 1960, os ideais da mentalidade foram ratificados com o históriados Philippe Ariès, que desenvolve seu trabalho em cima de temas raramente discutidos por muitos autores, tais como a família, escola, infância. Com isto inspira outros historiadores a voltar um 4 olhar para a história das mentalidades, o que seria uma valorização das memórias individuais. Destaca-se ainda nos anos 60, Jacques Le Goff que trabalh “O tempo dos mercadores e o tempo da Igreja na Idade Média. Neste momento Le Goff “discutiu o conflito entre as concepções do clero e as dos mercadores” ao enfocar dois grupos distintos Le Goff trabalha uma visão contrária da História positivista e marxista. Le Goff realiza um olhar em que todos os homens e mulheres são agentes da construção da história. E cada um destes possui a sua versão, a suas lembranças dos fatos ocorridos. Segundo Burke (1990) surgiu várias linhas de pensamento alguns demógrafos históricos, pensavam em uma psicologia histórica, outros em uma história antropológica, coube ainda uma história das mentalidades, diversos temas foram discutidos. Mas o que os historiadores pareciam desejar era ter a oportunidade de tempos em tempos passear por outras disciplinas e eventualmente utilizar alguns de seus conceitos. MNEMOSINE TECENDO RELAÇÕES. Cabe agora neste momento um olhar específico para a memória. Para os gregos a memória é a mãe da história. Divinizaram a memória dando a ela o nome de Mnemosine que ao manter relação com Zeus deu a luz as nove musas entre elas a Clio, a musas da história. (LE GOFF, 1996. p. 438) Cabe ainda ressaltar que Zeus era filho de Cronos, o tempo. Apesar desta conotação mitológica de parentesco, a memória é tratada fora do tempo, separando a memória da história. Segundo Le Goff (1996) a memória é trabalhada por Platão e Aristóteles em um contexto separado do tempo e da história: [...] em Platão e em Aristóteles, a memória é uma componente da alma, não se manifesta contudo ao nível da sua parte intelectual mas, unicamente, da sua parte sensível. [...] A memória platônica perdeu o seu aspecto mítico, mas não procura fazer do passado um conhecimento: quer subtrair-se à experiência temporal. [...]. Aristóteles – que distingue a memória propriamente dita, a mnernê, mera faculdade de conservar o passado, e a 5 reminiscência, a mcannesi, faculdade de evocar voluntariamente esse passado –, a memória, dessacralizada, laicizada [...] (1996. p. 439) Segundo Le Goff (1996. p. 440), a interpretação da memória como algo desvinculado do tempo combinado com a invenção da escrita produziu uma nova técnica de memória a mnemotécnica. Esta teve como inventor o Poeta Simônides de Céos. Que caracterizou memória artificial em “memória para as palavras” (memória verbum) e “memória para as coisas” (memória rerum). A memória das coisas não se baseia na memória humana que é frágil e falível, consiste em se utilizar da escrita para manter o conhecimento “por meio das letras que duram para sempre” (Guy apud Le Goff, 1996. p. 450) Como exemplo de uma memória das palavras Le Goff destaca os cristãos que devem conduzir as suas vidas “na memória da palavra de Jesus”, palavra que deve ser retransmitida através da técnica da retórica. (1996. p. 444) A mnemotécnica recebeu ao longo dos séculos inúmeras contribuições que oportunizaram maior qualidade aos registros. Cabe aqui ressaltar a fotografia que oportunizou uma precisão de detalhes e uma verdade visual. Isso foi muito vantajoso, pois segundo Le Goff, permitiu “guardar a memória do tempo e da evolução cronológica” (1996. p. 446). HISTÓRIA NO MUNDO CIBERNÉTICO. Conduzindo a minha analise para a contemporaneidade podemos verificar os estudos de Manuel Castells (1999) onde ele destaca que a humanidade vivencia um processo único de desenvolvimento técnico que influencia diretamente o individuo e seu tempo. [...] no final do século XX vivemos um desses raros intervalos na história. Um intervalo cuja característica é a transformação de nossa “cultura material” pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação. (CASTELLS, 1999. p. 67) Segundo Castells (1999. p. 553) vivemos um período singular em que tudo pode ser vivenciado imediatamente. Qualquer indivíduo pode ser testemunha da 6 história. As novas tecnologias, os meios de comunicação ultrapassam as barreiras temporais. A história não esta mais apenas ligadas a Bios, ela encontrou um a maneira de superar a morte através da técnica. É neste contexto que se destaca a memória histórica. Para Le Goff (1996) a memória ultrapassou o domínio humano para ser objeto das máquinas: Mas o desenvolvimento da memória no século XX, sobretudo depois de 1950, constitui uma verdadeira revolução da memória e a memória eletrônica não é senão o elemento sem dúvida o mais espetacular. (p. 467) Neste contexto, Le Goff (1996) afirma que no mundo de memórias eletrônicas, a memória não é individual, mas é automática e impessoal. Pois todos podem publicar as suas vivências e ao mesmo tempo acessar as memórias alheias. Entretanto a memória eletrônica não é autônoma, pois necessita das memórias humanas para ser abastecida de novas informações. Assim “a memória eletrônica não é senão um auxiliar, um servidor da memória e do espírito humano.” (p. 469) Neste contexto destaca-se Lévy (2000) que reforça a importância da informática para a memória: A informática e os programas propõem-nos tecnologias intelectuais que modificam e aumentam as nossas capacidades de percepção, de memória, de raciocínio, de imaginação e de inteligência coletiva. (p. 65) Assim segundo Lévy (2000, p. 14) as tecnologias contribuem para uma evolução cognitiva desenvolvendo com maior qualidade a memória, o raciocínio, a capacidade de representação mental e a percepção, ou seja, as novas tecnologias oportunizam um desenvolvimento singular para os nichos sociais que utilizam corretamente delas. Ao mesmo tempo Castels (1991, p. 553) enfatiza que “as novas tecnologias de comunicação oferecem um sentido de instantaneidade que derruba as barreiras temporais”. É neste contexto que Lévy apresenta a memória da sociedade. 7 [...] a sociedade humana ultrapassou um limiar de interconexão sem precedentes na história da vida porque ela atingiu o estádio em que a própria sociedade dispõe de uma memória. (Levy, 2000. p. 23) Cabe assim ressaltar, segundo Castels (1991, p. 554) a memória da sociedade se apresenta como algo interminável e transitório visto que atinge através, das redes de comunicação, o passado e o futuro e ao mesmo tempo depende “do contexto e do objetivo da construção cultural solicitada”. Compete mencionar que para Castels (1991) o tempo é intemporal, pois as informações postadas nesta sociedade em rede se confundem em ordem sistemática da postagem, confrontando com a ordem cronológica do ocorrido. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluindo queremos ressaltar que, desenvolver um conceito de história para a sociedade cibernética é um desafio de proporções ilimitadas. Tendo em vista a rapidez que as informações são emitidas ocorre uma instabilidade que oportuniza mudanças constantes. Tais variações são observadas em todos os segmentos, tais como a comunicação, as relações humanas e a produção cultural. Neste trabalho, nos propomos a verificar como os conceitos históricos foram trabalhados no decorrer da historiografia. Para tanto, buscamos alguns elementos nos campos da filosofia da história e da sociologia para auxiliar na compreensão deste fenômeno assim como algumas pistas que nos propiciassem elementos para iniciar estas discussões. Argumentamos que a história, conforme os autores aqui mencionados possui um forte e importante envolvimento com a memória. O exemplo mais pertinente é a história mitológica de Mnemosine, que desenvolve uma nova conjuntura a partir da mnemotécnica. Esta nova situação concretizou o ilustrado nos estudos de Le Goff e Lévy. A rede apresenta uma nova memória denominada de memória eletrônica. Este movimento provoca um reordenamento de valores, pois a memória eletrônica torna-se uma auxiliar da memória humana. Podendo incorporar não só as memórias de um único individuo mas ser construída por inúmeras pessoas. Assim não se desenvolve a memória de uma única pessoa mas de uma sociedade em rede. 8 Esta nova conjuntura historiografica permite uma nova concepção nos estudos da história totalmente inovadora e desconhecida. Cabe ressaltar que esta conjuntura necessita de maiores investigações visando assim uma melhor compreensão desta fonte de pesquisa que é a memória eletrônica. 9 BIBLIOGRAFIA: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. 348 p. BOURDE, Guy; MARTIN, Hervé; RABAÇA, Ana Maria. As escolas históricas. Mirasintra: Publicações Europa-América, 1990. 220 p. BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a escola dos annales (1929-1989). 2. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. 154 p. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 617 p. (A era da informação: economia, sociedade e cultura;1) HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 366 p. LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 1996. 553 p. LÉVY, Pierre. Filosofia world: o mercado, o ciberespaço, a consciência. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. 212 p. Disponível para download em www.sagezza.com.br 10