Os conflitos entre a ONU e a dupla Banco Mundial/FMI desde as origens até aos anos setenta
Extrait du CADTM
http://cadtm.org/Os-conflitos-entre-a-ONU-e-a-dupla
Série : Os setenta anos de Bretton Woods,
Mundial e do FMI (Parte 3)
do Banco
Os conflitos entre a ONU e a dupla Banco
Mundial/FMI desde as origens até aos anos
setenta
Date de mise en ligne : segunda-feira 28 de Julho de 2014
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Os conflitos entre a ONU e a dupla Banco Mundial/FMI desde as origens até aos anos setenta
O Banco Mundial e o FMI são instituições especializadas da ONU comparáveis à
Organização Internacional do Trabalho ou à FAO. A esse título, espera-se que colaborem
estreitamente com os organismos das Nações Unidas e com as outras instituições
especializadas na prossecução dos objetivos contidos na Carta e na Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
O Banco e o FMI tentaram, desde o início, evitar as obrigações Obrigações Parte de um
empréstimo emitido por uma sociedade ou uma colectividade pública. O detentor da obrigação, ou
obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Também pode, se a
sociedade estiver cotada na Bolsa, revender o título em bolsa. a que estão sujeitas as organizações
membro do sistema das Nações Unidas. No que diz respeito ao Banco, apesar de a sua missão de
ajuda ao desenvolvimento levar a uma tentativa de aproximação à ONU, os seus dirigentes
trabalharam, com sucesso, no sentido de o manter fora do alcance dessa organização. O Banco e o
FMI tiveram um papel ativo na Guerra Fria e, mais tarde, em relação à reação dos dirigentes dos
países industrializados contra a ascensão dos PED que reivindicavam uma Nova Ordem
Económica Internacional.
O BM e o FMI violaram a Carta e várias resoluções das Nações Unidas, apoiando a política
colonial da ditadura de Salazar em Portugal e do regime de apartheid na África do Sul.
Em março de 1946, por ocasião da primeira reunião dos governadores do Banco Mundial e do FMI, o presidente do
Conselho Económico e Social da ONU |1| (conhecido pela sigla inglesa ECOSOC) entrega uma carta, à direção do
Banco, solicitando o estabelecimento de mecanismos de ligação com a sua organização. O Banco leva a discussão
à reunião dos diretores executivos, que ocorrerá em maio de 1946. Na realidade, houve tão pouco empenho por
parte do Banco que será preciso aguardar por novembro de 1947 para se chegar a um acordo entre as partes
envolvidas. Segundo Mason e Asher, historiadores do Banco, durante todo esse tempo, as negociações não foram
particularmente cordiais |2|. Como a primeira carta da ECOSOC não obteve resposta, é enviada uma segunda carta,
à qual os diretores executivos do Banco respondem que um encontro, no seu entender, é prematuro. Entretanto, as
Nações Unidas tinham já concluído acordos de colaboração com a Organização Internacional do Trabalho, a
UNESCO e a FAO.
Em julho de 1946, no decurso de uma terceira tentativa, o secretário geral da ONU propõe, ao Banco e ao FMI,
estabelecer negociações em setembro do mesmo ano. Os dirigentes do FMI e do Banco reúnem-se e decidem que
não é ainda oportuno realizar tal reunião. Mason e Asher comentam essas manobras dilatórias da seguinte maneira:
"O Banco temia fortemente que, tornando-se uma agência especializada da ONU, fosse submetido ao controlo ou a
uma influência política indesejável e que isso prejudicasse a sua nota (credit rating) em Wall Street..." |3|.
Finalmente, o Banco adota um projeto para ser submetido a discussão nas Nações Unidas, que é mais uma
declaração de independência do que uma declaração de colaboração. O assunto dá lugar a um dia de discussão, no
quartel general da ONU, durante o qual o presidente do Banco, John J. McCloy, aceita deitar um pouco de água na
fervura.
Embora aceite pelo comité de negociação do ECOSOC, o acordo alcançado levanta um clamor de indignação no
seio do ECOSOC e da Assembleia Geral. Na sessão de 1947, o representante da União Soviética considera que o
acordo constitui uma violação flagrante de, pelo menos, quatro artigos da carta das Nações Unidas. Mais
embaraçoso ainda para os responsáveis do Banco e, escondidos atrás deles, para os Estados-Unidos, é o ataque
do representante da Noruega (país de origem do secretário geral da ONU na época, Trygve Lie). Trygve Lie declara
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que a Noruega não pode aceitar que tais privilégios sejam concedidos ao Banco e ao Fundo, porque isso minaria a
autoridade das Nações Unidas. O representante dos Estados Unidos responde que nada minaria mais a autoridade
das Nações Unidas do que a incapacidade de alcançar um acordo com o Banco e o Fundo. Finalmente, o ECOSOC
aprova (13 votos a favor, 3 votos contra e 2 abstenções) o projeto que é ratificado, em setembro 1947, pelo
Conselho de Governadores do Banco (o governador da Jugoslávia absteve-se). O acordo foi aprovado pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em novembro de 1947.
Esse acordo ratifica o estatuto de organização especializada da ONU, mas, a pedido do Banco, permite-lhe
funcionar como "organização internacional independente". No mesmo sentido, autoriza o Banco a avaliar quais as
informações úteis que devem ser comunicadas à ECOSOC, o que constitui, de facto, uma derrogação do artigo 17º,
alínea 3, e do artigo 64º da Carta das Nações Unidas (o artigo 64º permite à ECOSOC obter relatórios regulares das
agências especializadas). Há também uma derrogação do artigo 70º, que prevê a representação recíproca em cada
deliberação. Ora, o Banco e o Fundo reservam-se o direito de só convidarem representantes das Nações Unidas
para a reunião do Conselho de Governadores. Na sua avaliação, os historiadores do Banco declaram que o acordo
era insatisfatório, na perspectiva do secretario geral das Nações Unidas, mas que ele teve de se resignar e de o
aceitar. Acrescentam que "o presidente do Banco, McCloy, não podia ser considerado um admirador das Nações
Unidas e Garner (vice-presidente do banco) era visto como anti-ONU" |4|.
O Banco Mundial recusa satisfazer os pedidos da ONU em relação a Portugal e à África do Sul.
A partir de 1961, quando a maior parte dos países coloniais alcançaram a independência e se tornaram membros da
ONU, a Assembleia Geral adota, diversas vezes, resoluções que condenam o regime de apartheid na África do Sul,
assim como o regime de Portugal, que mantem diversos países de África e da Ásia sob seu domínio. Em 1965,
perante a continuidade do apoio financeiro e técnico do Banco a esses regimes, a ONU solicita formalmente: "A
todas as agências especializadas das Nações Unidas, em particular ao Banco Internacional para a Reconstrução e
Desenvolvimento e ao FMI, (...) de se absterem de conceder a Portugal qualquer assistência financeira, económica
ou técnica, enquanto o governo português não renunciar à sua política colonial, que constitui uma violação flagrante
das disposições da Carta das Nações Unidas" |5|. Fez o mesmo em relação à África do Sul.
A direção do Banco reúne-se para tomar uma posição e a maioria dos diretores executivos decide prosseguir com
os empréstimos. Justificação apresentada: o artigo 4º, 10ª secção dos estatutos |6| proíbe fazer política! Todos os
países industrializados, apoiados por alguns países latino americanos, votam a favor da continuidade dos
empréstimos. Em 1966, o Banco aprova um empréstimo de 10 milhões de dólares a Portugal e de 20 milhões à
África do Sul. De seguida, sob maior pressão, o Banco não concede mais empréstimos. No entanto, uma secção
das Nações Unidas, o Comité de Descolonização (Decolonization Committee), continuará a denunciar, durante mais
quinze anos, o facto de o Banco permitir que a África do Sul e Portugal se candidatem à obtenção de financiamentos
do Banco para projetos noutros países. Além disso, o Banco tenta seduzir a África do Sul para que faça doações à
AID |7|.
Tradução: Maria da Liberdade
Parte 1 Parte 2 Parte 3 Parte 4 Parte 5 Parte 6 Parte 7 Parte 8 Parte 9 Parte 10 Parte 11
Post-scriptum :
Eric Toussaint, porta-voz do CADTM Internacional (Comité para a anulação da dívida do Terceiro Mundo, www.cadtm.org), é professor na
Universidade de Liège. É autor de Bancocratie, Aden, 2014, http://cadtm.org/Bancocratie ; Procès d'un homme exemplaire, Edition Al Dante,
Marselha, setembro 2013 ; Banque mondiale : le coup d'Etat permanent, Edition Syllepse, Paris, 2006, descarregável :
http://cadtm.org/Banque-mondiale-le... Ver também Eric Toussaint, Tese de Doutoramento em Ciência Política apresentada em 2004 nas
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universidades de Liège e de Paris VIII : « Enjeux politiques de l'action de la Banque mondiale et du Fonds monétaire international envers le
tiers-monde », http://cadtm.org/Enjeux-politiques-... Eric Toussaint é coautor com Damien Millet de 65 Questions, 65 Réponses sur la dette, le FMI
et la Banque mondiale, Liège, 2012 (versão descarregável em: http://cadtm.org/65-questions-65-re... ) ; La dette ou la vie, co-edição
CADTM-Aden, Liège-Bruxelas, 2011. Prémio do livro político concedido pela Feira do livro político de Liège .
|1| O Conselho Económico e Social da ONU faz recomendações com o objetivo de coordenar os programas e atividades das instituições
especializadas das Nações Unidas (artigo 58º da Carta das Nações Unidas). Nesse sentido, o ECOSOC dispõe de poderes que lhe são
atribuídos nos termos do capítulo X da Carta. O artigo 62º, parágrafo 1º, especifica o seguinte: «O Conselho Económico e Social pode realizar
ou promover estudos e relatórios sobre questões internacionais nas áreas económica, social, cultural e educativa, de saúde pública e noutras
áreas afins e pode dirigir recomendações sobre todas essas questões à Assembleia Geral, aos membros da Organização e às instituições
especializadas interessadas».
|2| Mason, Edward S. e Asher, Robert E. 1973. The World Bank since Bretton Woods, The Brooking Institution, Washington, D.C., p.55.
|3| Idem, p.56.
|4| Ibid., p.59
|5| UN Doc. A/AC.109/124 and Corr. 1 (Junho 10, 1965).
|6| O artigo 4º, 10ª secção estipula: "O Banco e os seus responsáveis não interferirão nas opções políticas de qualquer dos membros e é-lhes
proibido deixarem-se influenciar nas suas decisões pelas características políticas do membro ou dos membros envolvidos. Apenas considerações
económicas podem influenciar as suas decisões e as suas considerações serão consideradas imparciais, de modo a alcançarem os objetivos
(fixados pelo Banco) estipulados no artigo 1º".
|7| Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 692
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