IRAN_ RIO ART C ONNEC T ION
Compreender o contexto histórico, cultural e político do Oriente Médio constitui um tremendo desafio a qualquer brasileiro que venha a se debruçar
sobre a região, quer seja buscando explicações para os conflitos locais que incidem – senão de maneira direta, ao menos transversa – sobre sua
própria realidade ou mesmo tentando estabelecer relações entre repertórios culturais e artísticos aparentemente tão diversos quanto os ocidentais
e orientais.
Esta última foi uma de minhas tarefas ao ser convidado pelo Largo das Artes a prestar suporte curatorial à realização de um dos mais relevantes
projetos a figurar na agenda carioca em 2014. Mediante financiamento do Prince Claus Fund for Culture and Development, a Iran-Rio Art Connection, ora ocupando aquele espaço, tem como objetivo estreitar laços entre Brasil e Irã, países não apenas distantes geograficamente mas apartados culturalmente por um complexo midiático avesso ao trânsito de informações desprovidas do parti pris ideológico adotado pelos canais
hegemônicos de comunicação.
Embora sejamos permanentemente expostos a imagens altamente belicistas provenientes do Oriente Médio, raras vezes somos contemplados com
análises éticas e bem fundamentadas sobre os eventos que respingam sobre o conjunto do mundo ocidental. Habituamo-nos a perceber a região
como um bloco uno mantido à ferro e fogo pelo fundamentalismo islâmico, largamente responsável por alguns dos mais candentes conflitos ocorridos nos séculos XX e XXI. Na melhor e mais esclarecida das hipóteses, fomos capazes de entender que tais conflitos e intifadas são resultado não
apenas dos regimes teocráticos que controlam a região, mas sobretudo do esquartejamento étnico e geográfico promovido por colonizadores
europeus durante as duas grandes guerras. As razões para tal, tampouco desconhecemos: virtualmente, infinitas jazidas de gás e petróleo lá
localizadas, ambos combustíveis essenciais à manutenção da economia capitalista em seu estágio atual.
Como a tentativa de exaurir esta argumentação se revelaria tarefa desmedida ou mesmo despropositada neste contexto, após brevíssimo preâmbulo de viés sociológico, atenho-me às questões específicas deste inaudito projeto no cenário artístico nacional, via de regra ensimesmado ou
atento apenas à produção cultural do eixo hegemônico. Antes disso, porém, vale esclarecer alguns pontos quanto ao modus operandi de tal empreitada.
Após estabelecer contato com instituições e agentes culturais do Irã e arredores, o Largo das Artes elencou nomes representativos da produção
artística contemporânea daquele país para participar de uma residência no Rio de Janeiro. Dois deles, Shadi Ghadirian e Farnaz Jarhanbib – escolhidos de antemão por Consuelo Bassanesi e Leila Lak, as idealizadoras do projeto – são artistas relativamente bem estabelecidas, com exposições
em espaços de reconhecida importância, como o Victória & Albert Museum e o Los Angeles County Museum of Art, por exemplo; já Ali Zanjani e
Amin Aghaei, estão em princípio de suas trajetórias e foram selecionados por um comitê curatorial que incluiu, além de mim, Marta Mestre, Daniela
Labra, Miguel Sayad e Ernesto Neto.
O universo heterogêneo de artistas que compõem a presente exposição ilustra a diversidade de motivações e referências a informar a atual prática
artística no Irã. Neste sentido, o cenário contemporâneo do país bem pode ser visto como uma colcha de retalhos que justapõe a nostalgia pelo
passado a um presente aparentemente intransponível, onde a arte contemporânea e as conexões com o Ocidente funcionam como escape a uma
realidade local permeada pela guerra e pela violência nos mais diversos níveis. Por conta disso, a mostra em cartaz é menos fruto de uma curadoria
precisa sobre determinado aspecto da produção artística do Irã do que a reunião de obras representativas das preocupações que pautam criativamente esses artistas.
Assim, Shadi Ghadirian exibe a série de fotografias “Zero a Zero”, que remete simultaneamente às clássicas naturezas mortas e às imagens
publicitárias de moda - as quais, segundo Harun Farocki, seriam o equivalente contemporâneo daquelas pinturas flamencas –, combinando objetos
de fetiche do mundo do consumo ao arsenal bélico presente tanto na realidade cotidiana do mundo islâmico como também no corrente imaginário
ocidental. Não por acaso, estes dois mundos - a saber, o do consumo e o da guerra - respondem por ampla fatia das imagens às quais somos
expostos diuturnamente pelos mais variados canais de comunicação.
No ateliê da artista, uma outra serie fotográfica pode ser vista: imagens de múltiplos espectros da mulher iraniana vestindo o shador aparecem em
diversas combinações da tradicional indumentária associadas aos usuais utensílios domésticos. Embora não seja possível ver a face desta mulher,
uma vez que foi substituída por panelas, bules, ferros de passar, luvas etc. – elementos que caracterizam o cotidiano da maioria das mulheres em
qualquer parte do globo –, percebemos no jogo de imagens duplas (tal qual um jogo de memória) a construção de uma identidade feminina forjada
pelo islamismo em detrimento da individualidade da mulher persa.
Amin Aghaei explora conceitualmente em pintura, vídeo e fotografia o olhar fracionado, embotado e caótico de quem experimenta a guerra de
maneira íntima, e por conta disso levanta barreiras visuais ou imaginárias no afã de preservar sua vida interior ou afastar-se da premente realidade
de violência e horror em seu entorno. A série em exibição na sala principal do Largo das Artes, “Eu vejo você através da porta”, é fruto do confronto
diário com a realidade bélica que dominou boa parte da infância do artista, obrigando-o a viver em permanente deslocamento devido a eminência
dos constantes ataques à região do Khuzestan. Esta região, justo na fronteira com o Iraque, é uma das áreas mais ricas em gás e petróleo do Irã,
razão pela qual Sadam Hussein deu início a um dos conflitos bélicos mais deletérios, à tentativa de construção de um novo Irã através da não menos
obtusa, manipulada e polifônica Revolução Iraniana (1979). Esta revolução tinha por objetivo maior depor o regime despótico (muito embora
secular) do Xá para estabelecer uma nova sociedade. O que sucedeu, entretanto, foi a assunção de um novo regime altamente conservador e
ditatorial, preservado até os dias de hoje .
Por outro lado, as pinturas reproduzidas em fotografia no ateliê de Amin, espaço contíguo à galeria, revelam o papel libertador exercido pela imaginação humana em situações limite, caracterizadas pelo cerceamento das liberdades individuais e de expressão, impedindo assim a possibilidade de
se divisar um futuro alentador. Desta equação perversa, emergem imagens de um passado longínquo porém recorrente, no qual a identidade
cultural persa mantinha-se ainda incólume tanto à influência islâmica quanto ocidental que sobreveio nos séculos a seguir. E é justamente nos vilarejos por onde transitou com sua família nos primeiros anos de vida que o artista vai buscar elementos deste tempo perdido. Segundo Amim, a animação em vídeo de uma de suas pinturas – “Vinte e Oito” – também em exibição no Largo das Artes, trata exatamente deste deslocamento em
suspensão, isto é, um perpétuo movimento de resultado inócuo, uma vez que faz com que nos deparemos com a impossibilidade de transcender
uma realidade política e econômica de tal modo instaurada no Irã ao ponto de apresentar-se como intransponível.
Ali Zanjani, partindo de imagens de arquivo em película 16 mm extraídas de filmetes educativos sobre energia estática, combina referências à
representação da mulher antes e após a Revolução Iraniana em sua série Gravidez Estática, uma grande constelação reapropriacionista que
captura a beleza feminina ao passo em que tangencia o contraste entre a representação da mulher velada no atual Irã e a superexposição de seus
atributos no mundo ocidental, especialmente em comerciais de moda e cosméticos. Vale dizer que a palavra gravidez, em persa, significa a um só
tempo a gestação de um filho e a energia estática presente na natureza, sinalizando, quem sabe, simultaneamente a constante transformação pela
qual passa a mulher ao longo da vida – da infância ao período de fertilidade – e que também atravessa na contemporaneidade na esteira dos
movimentos feministas disseminados ao longo do século XX; por outro lado, a imagem da ninfeta que constitui a série aparece congelada, pois que
extraída dos fotogramas roubados pelo artista dos rolos de filme que encontra ao longo de sua jornada, apontando talvez para o estado de imutabilidade da condição feminina no atual Irã.
Na série em exposição em seu ateliê “Lutadores”, Ali exibe imagens de lutadores iranianos – o esporte nacional por excelência – em sequências
narrativas que forja a partir da reordenação de stills das antigas películas por ele colecionadas. Aqui, o artista promove um verdadeiro embate
entre a tradição machista e esportiva do Irã e a sexualidade ou homossexualidade reprimida pelo regime teocrático. Num tour de force que curiosamente faz lembrar os expedientes usados pelo artista brasileiro Alair Gomes, Ali estabelece uma tensão sexual entre os lutadores, manifestada
apenas de forma latente nas filmagens originais.
Já Farnaz Jahanbin faz uso de banners – este material plástico que reveste a publicidade nas ruas de toda e qualquer cidade ao redor do globo
– para reproduzir imagens emblemáticas da história antiga e moderna do Irã na série “Palavras Não Ditas”, fazendo sobre eles intervenções em
pintura com a milenar caligrafia daquele país, aproximando-se assim, paradoxalmente, da street art produzida no ocidente. Numa das obras,
entrevemos o monumento erguido pelo Xá em uma das principais praças de Teerã, e noutro, um antiquíssimo conjunto de desenhos representativo
da história persa pré-islamismo. Vale lembrar que os iranianos, antigos persas, não são árabes e tampouco eram islâmicos em seu passado remoto.
Embora situado no Oriente Medio, o Irã experimentou uma historia diversa, ainda que imbricada com a de seus vizinhos árabes. Enquanto o mundo
árabe vem lidando com conflitos bélicos constantes, desde o fim da guerra Irã-Iraque, o país enfrenta não exatamente o drama da guerra, mas de
um pesado regime teocrático que impõe ao povo persa os dogmas do islamismo. Artistas, portanto, se veem obrigados a enfrentar o regime
através do sutil e engenhoso exercício critico, quando não se veem obrigados a se autocensurar devido ao risco das sinistras repercussões que
sua rebeldia possa acarretar. Em que pese o brutal isolamento político e cultural que caracteriza a vida no Irã, decorrência direta do regime
teocrático e do fundamentalismo religioso, os artistas iranianos atualmente logram estabelecer contato com o mundo ocidental especialmente
através da internet, ferramenta essencial à sua formação cultural e à familiarização com a história da arte produzida em outros cantos do mundo.
Na ausência de escolas e críticos locais capazes de por em perspectiva a produção artística desenvolvida após os anos de 1980 nos países cêntricos, eles se apropriam do cânone ocidental no afã de digerir a história recente e acessar públicos e realidades que lhes escapam devido ao
isolamento imposto em seu país de origem. Este isolamento, costumeiramente, suprime toda e qualquer forma de apoio a circulação e divulgação
de seus trabalhos, ao passo em que também desautoriza sumariamente a publicação de suas obras mediante a eventual inclusão de seus nomes
em uma lista negra promovida pelo ironicamente nomeado Ministerio do Esclarecimento, órgão equivalente ao nosso Ministerio da Cultura.
As narrativas que ganham corpo e forma em suas obras são permeadas por saltos cronológicos ou espaciais, alinhavando realidades sublimadas
pela historia oficial, preservadas tão somente pela tradição, pela memoria oral e pela obstinação de alguns em resgatar informações banidas do
imaginário coletivo. Movendo-se entre o passado e o presente, e acionando o futuro através das brechas articuladas pelo discurso artístico
contemporâneo, esses artistas desenvolvem suas praticas criativas em exercício constante de revisão de sua própria iconografia relacionando-a
àquela produzida no Ocidente.
Bernardo José de Souza
Curador associado ao projeto Iran-Rio Art Connection
Setembro 2014
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