QUE PODE A ANÁLISE DO DISCURSO OFERECER AO ENSINO DE
LÍNGUA MATERNA?
MAGALHÃES*, Amarildo Pinheiro–PLE/UEM
[email protected]
BERTO**, Jane Cristina Beltramini–PLE/UEM
[email protected]
SALVADOR***, Helena Maria Scavazini-SEED-PR
[email protected]
SOUZA****, Ivanize Ribeiro de-PLE/UEM
[email protected]
Resumo
Este trabalho tem por objetivo estabelecer as relações entre a análise do discurso e o ensino de
língua portuguesa enquanto disciplina escolar, a partir do escopo dos estudos lingüísticos.
Parte-se do princípio de que teorias situadas em um mesmo arcabouço epistemológico não
podem colocar-se em posições antagônicas no tratamento das sérias questões que envolvem o
processo ensino-aprendizagem de língua portuguesa. Isso pressupõe que, mesmo sendo a
Lingüística Aplicada o campo de estudos responsável pelas questões inerentes ao ensino de
línguas, é preciso que as demais áreas da Lingüística assumam, colaborativamente, uma
postura de complementaridade e co-responsabilidade já que a superação dos dilemas
concernentes ao idioma pátrio só podem ser solucionados por meio de um esforço coletivo.
Nesse movimento são apresentadas as bases epistemológicas da Análise do Discurso de linha
francesa (AD) e seus principais conceitos, com ênfase para as noções de condições de
produção e interdiscurso. Busca-se também um diálogo com estudos de Paulo Freire e
Ezequiel Theodoro da Silva a respeito da formação da criticidade leitora como condição
imprescindível para o exercício da cidadania. As conclusões insistem na necessidade de
instauração de processos de leitura voltados para o desenvolvimento da criticidade do leitor, à
medida em que esse sujeito, a partir do estudo discursivo dos textos que circulam socialmente,
passa a ter dimensão das contradições sociais e históricas que permeiam as suas condições
materiais de existência e tem a possibilidade de realizar um movimento dialético entre o texto
e a realidade, movido pelo desejo de superação de tais paradoxos.
Palavras-Chave: Análise do Discurso, Ensino de língua materna, Cidadania
*
Mestre em Letras (Estudos Lingüísticos) pela Universidade Estadual de Maringá. Aluno especial do Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. Professor da rede pública estadual de ensino do Paraná. Membro
do grupo de pesquisa Linguagem, Discurso e Ensino (UNEMAT/CNPQ).
**
Mestre em Letras (Estudos Lingüísticos) pela Universidade Estadual de Maringá. Aluna especial do Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. Professor da rede pública estadual de ensino do Paraná.
Participante do Programa de Desenvolvimento Educacional do Estado do Paraná – PDE.
***
Professora da rede pública estadual de ensino do Paraná. Responsável técnico-pedagógica pela disciplina de Língua
Portuguesa na Equipe Pedagógica do Núcleo Regional de Educação de Loanda-PR.
****
Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. Membro do grupo de
pesquisa “Interação e Escrita no Ensino-Aprendizagem” (UEM/CNPQ). Professora da rede publica estadual de ensino do
Paraná.
Considerações iniciais
Tradicionalmente as questões concernentes ao ensino de línguas tem sido objeto de
atenção dos estudiosos filiados ao campo dos estudos lingüísticos denominado Lingüística
Aplicada. Essa (necessária) compartimentação da ciência lingüística tem, indubitavelmente,
propiciado o aprofundamento dos temas ligados a essa problemática sem o qual os dilemas
envolvendo o ensinar e o aprender da língua materna poderiam ser maiores e ainda mais
complexos.
Todavia, essa mesma compartimentação, quando levada ao extremo, pode ser geradora
de dicotomias quase insuperáveis, em função do apagamento da relação de compartilhamento
de saberes entre as múltiplas faces de uma e mesma ciência, a Lingüística. Quando isso
acontece, lingüistas aplicados, analistas do discurso, sociolingüistas, psicolingüistas,
estudiosos da pragmática ou das teorias enunciativas, adeptos do estruturalismo,
funcionalismo ou gerativismo correm o risco de se digladiar em busca da demarcação de
territórios teóricos ou da refutação das teorias que são diferentes da sua e deixar de lado a
natureza e a especificidade do objeto de estudos que compartilham: a língua.
Tais contradições, além de se constituírem um entrave aos avanços da ciência
lingüística, pode ainda comprometer a superação das dificuldades referentes ao processo de
ensino-aprendizagem de línguas, visto que, quando o conhecimento do outro é previamente
julgado como insignificante para a resolução de questões inerentes a um campo de estudos
sobre o qual alguém ou um grupo pensa ter exclusividade teórica, é comum a interdição por
esses “proprietários do problema” de qualquer contribuição que seja estranho àquela
“comunidade científica”.
Quando o problema é o ensino, outro risco que se corre é o de se fazer o caminho
inverso, isto é, os pesquisadores não “filiados” à Lingüística Aplicada produzirem em relação
ao ensino um olhar de desprezo ou de incompetência. Na primeira situação, o pesquisador
constrói uma postura de que o ensino-aprendizagem seria uma área de interesse menor dentro
da Lingüística e procede como se dedicar-se a essas questões fosse perda de tempo. No
segundo caso, o estudioso considera-se completamente inapto para discutir tais temas e
procura não interferir em uma área de investigação em relação à qual se julga incapaz de
contribuir.
Neste trabalho, não estamos defendendo que o complexo processo de ensinoaprendizagem de línguas possa ser tratado por qualquer pesquisador ou não mereça um campo
de estudos específico. Em ambas as situações, seria desmerecer as profícuas contribuições que
a Lingüística Aplicada tem oferecido em favor do aprimoramento das práticas pedagógicas
500
em torno da Língua Portuguesa enquanto disciplina escolar, foco de interesse destas nossas
reflexões.
Todavia, somos defensores daquilo que Leffa (1988, online) denomina de ecletismo
inteligente:
[...] nem a aceitação incondicional de tudo que é novo nem a adesão inarredável a
uma verdade que, no fundo, não é de ninguém. Nenhuma abordagem contém toda a
verdade e ninguém sabe tanto que não possa evoluir. A atitude sábia é incorporar o
novo ao antigo; o maior ou menor grau de acomodação vai depender do contexto
em que se encontra o professor, de sua experiência e de seu nível de conhecimento.
Nesta perspectiva, recorrendo à Análise do Discurso de linha francesa (AD), mais
especificamente aos estudos de Michel Pêcheux, procuraremos delinear as formas pelas quais
alguns dos conceitos produzidos neste campo dos estudos lingüísticos, podem contribuir para
a formação e o desenvolvimento do leitor crítico, a partir das características levantadas por
Paulo Freire e Ezequiel Theodoro da Silva.
Em tempos em que se lamenta o desempenho dos alunos, sobretudo das escolas
públicas, nas avaliações nacionais e internacionais, principalmente no que concerne à leitura e
a escrita, entendemos ser de grande valia um movimento em favor da superação dessas
dificuldades, que só será possível com a contribuição de todos os estudiosos que têm a língua
como objeto de estudo, mesmo que sob diferentes perspectivas.
Análise do discurso: considerações teóricas e metodológicas
Neste nosso esforço em apontar as possibilidades de contribuição da AD em relação
ao ensino-aprendizagem de língua materna, procuraremos, inicialmente, delinear alguns
elementos teóricos que acreditamos ser essenciais para a compreensão do lugar a partir do
qual a Análise do Discurso aborda seus objetos de estudo.
Linguagem, sentido e exterioridade
Em seu esforço para conferir à Lingüística o estatuto de ciência, Ferdinand de
Saussure estabeleceu um sistema de oposições, sendo a principal delas a distinção entre aquilo
que, na linguagem verbal, poderia ser considerado social e o que se situa no âmbito do
individual. Elegendo o elemento social e abstrato, a que chamou langue (língua) como objeto
de estudo da nascente ciência lingüística, Saussure, por conseqüência, exclui desse campo de
estudos as manifestações individuais da linguagem, priorizando aquilo que, a seu ver, seria
passível de sistematização.
501
Por todas essas razões, seria ilusório reunir, sob o mesmo ponto de vista, a língua e
a fala. [...] Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingüística para cada uma dessas
duas disciplinas e falar duma Lingüística da fala. Será, porém, necessário não
confundi-la com a Lingüística propriamente dita, aquela cujo único objeto é a
língua. Unicamente desta última é que cuidaremos e, se por acaso, no decurso de
nossas demonstrações, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforçar-nos-emos para
jamais transpor os limites que separam os dois domínios. (SAUSSURE, 2002, p.
28)
Como se pode notar a partir das palavras do próprio Saussure, essa separação, que tem
sido denominada “corte saussureano”, gerou a imediata exclusão da área de interesse da
Lingüística, de elementos como o mundo, a história e o sujeito. A esse respeito, afirma
Guimarães ( 2002, p.19-20): “O corte saussureano é a “culminância bem sucedida
teoricamente de uma história de exclusão do mundo, do sujeito, para tratar a linguagem como
um percurso só interno”.
E ainda:
O corte saussureano exclui o referente, o mundo, o sujeito, a história. A Semântica
de nosso século vem procurando repor esses aspectos no seu objeto. O corte
saussureano exclui e dá o quadro da pertinência para o excluído. A questão é como
incluí-lo. E isto só pode se dar a partir desse mesmo corte, que ao formular-se
escapa da hipótese de que a língua expressa o pensamento, pois o signo de Saussure
(lembrar o conceito de valor) não admite um pensamento noutro lugar que se
expresse pela linguagem. (GUIMARÃES, 2002, p. 20)
Sendo assim, desde o corte operado por Saussure, vários lingüistas têm tentado repor
em seu campo de estudos aquilo que o mestre genebrino deixou de fora. Entre esses esforços
situa-se o trabalho de Benveniste que, ao propor uma teoria para a enunciação, atribui a
colocação da língua em funcionamento a um ato de vontade desse sujeito, em relação a um
interlocutor:
É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque
só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito
de ego. A subjetividade de que tratamos aqui é a capacidade do locutor se propor
como sujeito. [...] É ego que diz ego. Encontramos aí o fundamento da
“subjetividade” que se determina pelo status lingüístico da “pessoa”.
(BENVENISTE, 1995, p. 286)
Para o autor citado, portanto, constituir-se como tal é uma capacidade do sujeito, isto
é, o sujeito é capaz de, pela linguagem, fazer-se sujeito. Tem-se, portanto, para os estudos
enunciativos um sujeito psicológico, que se assume como tal a partir da categoria lingüística
de pessoa, a mais importante no âmbito do Aparelho Formal da Enunciação proposto por
Benveniste e que abrange também as categorias de espaço e tempo.
502
Na mesma efervescência dos anos 60, época em que Benveniste propôs seus estudos
enunciativos, surge na França uma nova vertente do pensamento lingüístico, igualmente
preocupada com a questão do sentido: a Análise do Discurso.
Essa nova área de estudos, cujo surgimento está diretamente ligado à figura de Michel
Pêcheux (MALDIDIER, 1994), configura-se a partir de elementos derivados de três áreas
diferentes: a Lingüística, a Psicanálise e o Materialismo Histórico.
No que concerne à Lingüística, Pêcheux critica inicialmente o fato de terem feito dela
a ciência piloto no campo das Ciências Sociais, a partir dos conceitos de sistema ou estrutura.
O fundador da AD discordava dessa primazia atribuída à Lingüística, porque a acepção
científica de Saussure excluía das Ciências Sociais elementos fundamentais referentes às
relações entre a linguagem e o seu exterior:
A lingüística, na vaga do estruturalismo, se colocou como ciência piloto das
ciências humanas. Como retorno, foram-lhe colocadas questões que se originam
nessa sua relação com as outras ciências. No entanto, elas ficaram sem resposta,
pois para se constituir nesse lugar, a lingüística teve, justamente, de se livrar disso
que interessa mais de perto às outras ciências humanas e sociais e que diz respeito à
relação da linguagem com a exterioridade. (ORLANDI, 1990, p. 26)
Além disso, em termos semânticos, o modelo estruturalista não coincidia com as
preocupações de Pêcheux, conforme destaca Maldidier (2003, p. 31):
O sentido, objeto da semântica, excede o âmbito da lingüística, ciência da língua.
[...] Sobre o próprio terreno da lingüística, Michel Pêcheux aprofunda sua
afirmação. O raciocínio repousa sobre a intuição muito forte de que não se pode
visar as sistematicidades da língua como um contínuo de níveis. Para além dos
níveis fonológico, morfológico e sintático, cuja descrição Saussure autoriza, a
Semântica não é apenas um nível a mais, homólogo aos outros. É que o laço que
liga as “significações” de um texto às condições sócio-históricas desse texto não é
de forma alguma secundário, mas constitutivo das próprias significações.
Nota-se, desse modo, que Pêcheux contraria uma tendência bastante arraigada em
várias correntes lingüísticas segundo a qual a Semântica seria uma sucessão normal e imediata
da Fonologia, da Morfologia e da Sintaxe. Deve-se destacar, inclusive, o fato de muitos dos
manuais de gramática que circulam em nossa sociedade conterem um capítulo denominado
“Semântica”. Assim concebida, essa área dos estudos lingüísticos permaneceria atrelada ao
conceito de estrutura e o sentido continuaria sendo visto como a soma dos sintagmas de uma
sentença ou das sentenças de um texto. Ou ainda, restringir-se-ia o processo de produção de
sentidos ao funcionamento interno da própria unidade textual. Esse autor pensa em uma
realidade muito mais ampla, que extrapola os limites da superfície textual e avança em
503
direção às margens do texto, reconhecendo nelas as relações que, apesar de não remeterem
diretamente às supostas evidências da estrutura lingüística do texto, determinam a sua
constituição e significação.
Assim, pode-se dizer que o esforço de Pêcheux em redefinir o objeto e os métodos da
Semântica tem seu princípio na crítica veemente à Lingüística, ciência da língua e paradigma
das Ciências Sociais, decorrente das teorias saussureanas. A esse respeito, referindo-se ao
texto de Pêcheux e Fuchs (1975), afirma Orlandi (2001, p. 48):
A Semântica lingüística que, segundo esses autores ainda não está feita, seria uma
teoria do funcionamento material da língua na sua relação com ela mesma, isto é,
uma sistematicidade que não se opõe ao não sistemático (língua/fala) mas que se
articula sobre processos (discursivos). Pêcheux opera com a distinção entre
semântica discursiva e semântica lingüística, segundo o que penso, para distinguir o
lugar correspondente à construção do efeito-sujeito, isto é, a simulação que põe em
funcionamento uma forma-sujeito, a do sujeito lingüístico-discursivo (autônomo e
submisso).
Já no que se refere à segunda área constitutiva da AD, a Psicanálise, contribuem para a
Análise do Discurso os estudos que Jacques Lacan faz da obra de Freud. Tais reflexões se
refletem principalmente para a constituição da AD enquanto uma teoria não-subjetivista da
linguagem, isto é, baseada nas considerações de que o consciente não é o responsável
exclusivo pelas produções da linguagem humana. Antes, sob efeito do inconsciente e do préconsciente, o sujeito não tem condições de fugir aos equívocos e deslizes que são
constitutivos da linguagem, pois, conforme destaca Pêcheux (1997, p. 293): “só há causa
daquilo que falha”.
Essa concepção de sujeito derivada da psicanálise está, no caso da AD, vinculada a
uma teoria das ideologias, advinda do Materialismo Histórico, principalmente a partir da
leitura sintomática (GREGOLIN, 2004) que Louis Althusser faz da obra de Marx. Para
Althusser (1977), é pela linguagem que a ideologia se materializa, de modo que os indivíduos
são interpelados em sujeito pela ideologia.
Sem aderir totalmente à tese da interpelação de Althusser e buscando contribuições
nos estudos de Michel Foucault, Pêcheux (1997, p. 161) afirma que: “os indivíduos são
‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas
que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhe são correspondentes”.
Por formação discursiva, Pêcheux (1997, p. 160) define “aquilo que, numa formação
ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada, determinada
pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito”. Essa noção de formação
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discursiva reforça uma tese central para a teoria do discurso proposta por Michel Pêcheux,
aquela de que não há um sentido a priori. Ao contrário, o sentido das palavras pode ser
modificado de acordo com a forma-sujeito a partir da qual são pronunciadas.
Essa realidade proposta por Pêcheux, além de negar de forma contundente qualquer
possibilidade de transparência e neutralidade da linguagem, já que, em princípio, o sentido
não depende apenas do significado isolado das palavras que foram ditas ou escritas, toca em
um ponto nevrálgico da teoria do discurso: a subjetividade. Essa questão que, conforme
mencionamos, já fora contemplada na teoria de Althusser, envolve um rompimento com as
concepções subjetivistas dos estudos enunciativos, abandonando um sujeito capaz de, por si
próprio, passar da condição de indivíduo para o exercício pleno da subjetividade, tendo assim,
domínio total daquilo que diz e dos significados decorrentes desse ato enunciativo.
Constituição e formulação
Ao buscarmos elementos da Análise do Discurso que possam contribuir com as
práticas sociais que envolvem a leitura, precisamos levar em conta que um texto se
desenvolve a partir de dois eixos: o eixo da formulação e o eixo da constituição (PÊCHEUX,
1997).
Segundo essa perspectiva, todo discurso, em sua produção, envolve os processos de
formulação e de constituição. Enquanto formulação do discurso, podemos situar o texto que
nossos olhos contemplam, seja ele verbal ou imagético ou aquilo que ouvimos, no caso dos
textos orais. Pelo encadeamento das palavras, por sua disposição, pelas escolhas do autor, os
sentidos vão se instaurando no texto. Porém, não é somente a partir da materialidade da
língua ou da imagem que o texto, enquanto objeto material, produz sentido em uma situação
de interação social pela linguagem. Muitos dos sentidos se instauram a partir daquilo que não
está dito, pelo que está implícito.
Nesse sentido, vale destacar o dizer de Pêcheux (1997, p. 161):
[...] uma palavra, uma expressão ou uma proposição não têm um sentido que lhes
seja “próprio, vinculado à sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em
cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições
mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação
discursiva.
Tem-se, portanto, no conjunto dos conceitos e reflexões até aqui mobilizados, a idéia
de que, a partir da materialidade da superfície lingüística, manifestam-se processos
ideológicos que destituem os processos interlocutivos e intersubjetivos de qualquer ilusão de
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objetividade e neutralidade, revelando os processos políticos e históricos que lhe são
constitutivos. Além disso, um texto, sempre remete a palavras ou situações que ocorreram em
outro lugar e que emergem da superfície textual por um trabalho da memória. É exatamente
essa memória, que completa os implícitos, os não-ditos do texto, que faz rememorar outras
unidades textuais, outros dizeres, outros fatos, que atua no eixo da constituição, atravessando
o dito, o explícito e influenciando fortemente os seus sentidos.
O interdiscurso
No que tange especificamente à AD, o interdiscurso tem sido identificado como
memória discursiva. A esse respeito, Pêcheux (1999, p. 52) afirma: “a memória discursiva
seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os
‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados,
discursos transversos, etc) de que sua leitura necessita: a condição legível em relação ao
próprio legível”.
Referindo-se também à memória discursiva e ao conceito de esquecimento, Orlandi
(2001, p. 180) destaca que: “Trata-se do que foi dito a respeito de um assunto qualquer, mas
que, ao longo do uso já esquecemos o que foi dito, por quem e em que circunstâncias e que
fica como um já-dito sobre o qual nossos sentidos se constroem”.
Essa definição da autora assume relevância por reforçar o fato incontestável de que, ao
constituir-se como discurso transverso com relação ao eixo das formulações, a
interdiscursividade não se configura como mera repetição do que foi dito, como sentidos que
igualmente se repetem. Ao contrário, da posição postulada por Orlandi, percebe-se que, a
partir do que se disse em outro lugar, o que ocorre não é uma reconstrução dos sentidos
anteriores, pertinentes às condições primárias de sua produção, mas uma nova construção de
sentidos que se dá, sim, sobre os sentidos anteriores, que têm, todavia, a possibilidade de
configurar sentidos totalmente diferentes: inevitavelmente atravessados pelos primeiros, mas
cujos efeitos podem e devem ser exatamente outros.
Desse modo, a memória discursiva não pode ser vista de forma cumulativa, como em
uma série matemática em que a um elemento soma-se outro, sucessivamente. O autor citado
destaca que o acontecimento discursivo, provocando interrupção, pode desmanchar essa
“regularização” e produzir retrospectivamente uma outra série sobre a primeira, desmascarar
o aparecimento de uma nova série que não estava constituída enquanto tal e que é assim
produto do acontecimento (PÊCHEUX, 1999)
Nesse percurso teórico-metodológico a que a Análise do Discurso tem se dedicado,
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destaca-se a preocupação com a História. Essa historicidade distingue-se da historiografia e
do sentido temporal, expandindo-se para muito além da narrativa cronológica. Orlandi (2001)
destaca que ela se dá na relação da estrutura com o acontecimento. Desse modo, é válido
lembrar o fato de que a mesma autora (2002) reconhece que um discurso é sempre
atravessado por suas condições sócio-históricas de produção, que geram a historicidade
própria do discurso.
Portanto, a partir da materialidade da superfície lingüística, manifestam-se processos
ideológicos que destituem os processos interlocutivos e intersubjetivos de qualquer ilusão de
objetividade e neutralidade, revelando os processos políticos e históricos que lhe são
constitutivos.
A leitura e a formação do leitor crítico em perspectiva discursiva
Não poderíamos falar sobre as relações entre a leitura e a construção da cidadania, sem
retomarmos a afirmação do grande educador Paulo Freire (1983): “A leitura do mundo
precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A
compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações
entre o texto e o contexto”.
Conforme podemos perceber, para Freire, há um movimento dialético entre leitura e
transformação social. O leitor é alimentado pelos fatos do mundo e pelos fatos do texto, fatos
iminentemente discursivos, e é desafiado a retornar ao mundo e buscar a transformação de
suas condições materiais de existência.
É importante notarmos que o educador não se refere à qualquer leitura, mas àquela que
estabelece as relações entre o texto e o contexto. Freire reconhece, portanto, a historicidade da
materialidade textual e da dinamicidade dessa relação, pondo, assim, em destaque a
importância das condições de produção do discurso do qual o texto é portador e dos elementos
da memória social por elas acionados, conceitos sobre os quais discorreremos a seguir.
Nessa perspectiva, a transformação social que deve suceder a leitura, somente se torna
possível porque o leitor da palavra e do mundo, lê além da palavra, reconhecendo na
linearidade da formulação do discurso, outros dizeres, que apontam para sentidos outros,
recuperados pelas relações interdiscursivas e que permitem perceber nas tramas do discurso,
as relações de poder da sociedade capitalista que constituem a linearidade da unidade textual.
Nessa perspectiva, há um elemento que não pode ser desconsiderado no processo de
leitura: a criticidade, já que segundo Silva (2002, p. 26): “pela leitura crítica o sujeito abala o
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mundo das certezas (principalmente da classe dominante), elabora e dinamiza conflitos,
organiza sínteses, enfim combate assiduamente qualquer tipo de conformismo, qualquer tipo
de escravização às idéias refletidas pelo texto”.
Em função do exposto, somos levados a insistir no fato de que o processo de formação
do leitor passa necessariamente pelo desenvolvimento de sua capacidade de leitura. Disso
resulta, inescapavelmente, o pressuposto de que a formação do leitor/cidadão crítico é, ao
mesmo tempo, compromisso e necessidade da escola pública em função de seu papel
enquanto instância transformadora das relações sociais.
Contudo, devemos considerar, em consonância com Silva (2002, p. 27) que “As
competências de leitura crítica não aparecem automaticamente: precisam ser ensinadas,
incentivadas e dinamizadas pelos estudantes, desde as séries iniciais, a fim de que
desenvolvam atitudes de questionamento perante os materiais escritos”. É exatamente na
implementação esses gestos de questionamento quanto ao que se lê que entendemos ser
relevante que se considerem as contribuições do dispositivo teórico-metodológico da AD.
Considerações finais
Em virtude do que expusemos até este ponto, temos condições de afirmar que o
resgate das relações entre a materialidade lingüística do texto e a sua exterioridade
constitutiva parece ser a principal contribuição dos estudos discursivos para o ensino de
língua materna, principalmente no que tange às práticas de leitura.
Não se trata, assim, de cogitar a possibilidade de fazer das teorias da AD tema das
aulas de Língua Portuguesa, mas de insistir no fato de que quando se apropriam de seus
conceitos, os educadores têm condições de ampliar o processo de leitura, avançando para
além da neutralidade das unidades textuais e desvelando as relações sociais, as lutas de classes
e os jogos de interesse que os constituem.
Entendemos que é exatamente o desvelamento desses aspectos constitutivos de todo
texto que se pode conduzir o educando a um processo de compreensão mais ampla das
práticas socias que se efetivam pela linguagem e a partir dela, possibilitar-lhe o conhecimento
da dimensão mais ampla dessas relações no âmbito da sociedade capitalista, marcada pela
injustiça e pela desigualdade social. Por meio do acesso a esses elementos determinantes na
formulação dos textos, postos em relação com suas condições materiais de existência, o aluno,
enquanto cidadão, pode buscar possibilidades de intervenção nessa mesma sociedade, como
forma de superar coletivamente a sua própria condição de explorado.
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Dessa forma, pode-se vislumbrar possibilidades de ação que, a partir da formação de
alunos que se efetivem na posição de leitores/cidadãos críticos, ultrapassem os limites de sua
própria alienação e rompam com as práticas que propiciam situações como esta descrita por
Almeida (2001, p. 16)
Pobres falantes! Seu trabalho não tem palavras, apenas ferramentas e isolamento. É
um trabalho mecânico, infeliz, repetido, ao lado dos companheiros, mas longe
deles. Sua conversa é com a máquina, a enxada. Em pequenos intervalos,
permitem-lhes abrir a boca para comer a ração diária que mal lhes repõe as energias
para durar aqueles trinta ou trinta e cinco anos que lhes deu a graça de ter nascido
do lado errado do rio.
Chegando em casa, esse falante, esgotado, mal ouve as palavras domésticas ditadas
pela TV ou gritadas pelos filhos, o rebanho doméstico, peças de futuras reposições.
Se tem sorte, chega cedo, pode ouvir a vida nas novelas, no mundo dos auditórios.
Ele, ela, pobretões, podem ouvir. De posse do instrumento língua, eles não podem
usá-lo integralmente.
Esse falante retratado por Almeida, pode ser tomado como representação geral da
classe trabalhadora brasileira cujos filhos freqüentam as escolas públicas e têm suas
dificuldades apontadas pelas conhecidas avaliações nacionais e internacionais de leitura. Os
lamentáveis resultados que esses estudantes protagonizam é exatamente resultado dos
processos de exclusão social e discursivo de que têm sido vítimas ao longo da história.
Portanto, a Análise do Discurso, enquanto teoria de base materialista, pode contribuir
com a implementação de novos processos de leitura que permitam a implementação de novas
práticas sociais em que o leitor do mundo e da palavra seja igualmente sujeito do seu dizer e
produza a necessária transformação da realidade “naturalmente” estabelecida da qual são
vítimas.
Não se trata, reiteramos, de desprezar o minucioso trabalho realizado pelos estudiosos
da Lingüística Aplicada, mas de fornecer-lhe subsídios sobressalentes para que coletivamente
se implementem práticas cada vez mais significativas de leitura.
REFERÊNCIAS
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que pode a análise do discurso oferecer ao ensino de