PROCRUSTES E A ORTOGRAFIA Rosa Maria Martelo (in Cão Celeste, nº 1, pp. 8-‐10, 2012) Após décadas de tentativas frustradas, é significativo que só recentemente se tenha tornado possível a implementação do Acordo que, alegadamente, deverá sustentar uma ortografia unificada nos países de língua portuguesa. Foi preciso esperar por este tempo em que vivemos, no qual o controlo e a normalização assumem a dimensão de uma doença degenerativa. Procrustes, o mítico torturador que oferecia hospedagem aos viajantes para depois os mutilar por excederem o tamanho do leito que lhes destinava, ou para, sendo eles demasiado pequenos, lhes aplicar um fatal estiramento, tornou-‐se a figura emblemática de uma mundividência que alastra escuramente sobre o nosso quotidiano. Grelhas, esquemas e formatações (sem relação evidente com as vidas que pretendem gerir e controlar) reinam, neste mundo soturno, como reinava Procrustes: cinicamente, sem respeito pelo que é específico ou diferente, padronizando, nivelando, sujeitando tudo a uma assustadora mesmidade. Há nisto um paternalismo cínico, escandalosamente funcionalista, redutor e atentatório da liberdade, que se esconde sob a capa de uma eficiência cujo propósito cada vez mais parece descolar da verdadeira vida que queremos viver. A máquina produtiva que impõe metas, estratégias, objectivos e faz alastrar a todos os campos da vida uma normalização que desumaniza, essa absurda máquina produtiva, trabalha para quem? Não, certamente, para os que nela trabalham, porquanto a distribuição da riqueza produzida é escandalosamente injusta e o valor do trabalho vem sendo reduzido a muito pouco. E é chocante vivermos num país que apresenta o terceiro maior índice de desigualdade nos rendimentos dos trabalhadores a tempo inteiro dos países da OCDE. A este nível, curiosamente, não são perceptíveis quaisquer preocupações de nivelamento, tanto mais que a situação se repete há anos. Bem pelo contrário, as leis parecem 1 refazer-‐se para melhor garantir a manutenção das diferenças. E também já desesperamos perante a desigualdade decorrente do modo como a justiça portuguesa continua a deixar margem aos especialistas do adiamento até à prescrição, assim permitindo distinções onde, aí sim, elas não deveriam existir. Foi preciso que este estranho mundo florescesse (passe o uso, absurdo neste contexto, do verbo “florescer”) para que a implementação do novo Acordo Ortográfico se tornasse possível, pois a sua razão de ser é excessivamente normalizadora e unificadora, quando a riqueza da língua portuguesa está na diversidade – coisa que, de resto, nenhum acordo político poderá, alguma vez, suster, suspender, ou sequer disfarçar. A prova disso vê-‐se na impossibilidade de este Acordo Ortográfico conseguir efectivar a tão desejada (mas por quem?) unificação. As numerosas grafias facultativas agora consignadas atestam a ineficiência do Acordo e, logo, a inoperância da matriz unificadora que lhe deu origem. Para que serve ele, afinal? A tendência fonética que orientou o novo Acordo Ortográfico minimiza a diversidade geográfica, civilizacional e cultural dos países de língua portuguesa, num gesto pateticamente funcionalista, e despreza o critério etimológico que ainda era significativamente considerado no acordo de 1945, votando as palavras a uma mudez histórica lamentável. E tanto mais lamentável quanto a etimologia continua muito presente em línguas com as quais os falantes do português estão frequentemente em contacto, como o inglês, que é hoje a língua internacional por excelência. De resto, nem a manutenção da dimensão etimológica nem a existência de variantes na ortografia impediram o inglês de se tornar a segunda língua não nativa mais falada no mundo. A difusão de uma língua não depende da ortografia, mas das relações culturais, sociais e económicas que através dela se estabelecem. E, aí sim, haveria, e há, muito a fazer pela língua portuguesa e pela sua divulgação. Presente em quatro continentes, o português é uma das línguas mais faladas a nível mundial, o que deixa antever que não poderá senão evoluir para variantes progressivamente diferenciadas. E, assim sendo, menos ainda se entende esta imposição, que fatalmente virá a revelar a sua impotência perante a ductilidade e 2 a adaptabilidade próprias de uma língua viva. Pensar-‐se que este acordo poderá alguma vez neutralizar o que distingue o português escrito nos diferentes continentes, que é a diversidade lexical, a evolução semântica diferenciada de algum do léxico comum e a sintaxe, parece simplesmente absurdo. E convirá não esquecer que aquilo que nos distingue não tem que nos separar: antes nos integra numa rede de culturas riquíssima e multímoda. Riquíssima, precisamente por ser multímoda. O gesto, político, que subjaz ao acordo é lamentável porque, sendo ineficiente nos seus objectivos niveladores, tem consequências para um património que nos pertence a todos. E é ainda mais lamentável porquanto essas consequências, e a certos níveis também a sua imprevisibilidade, foram atempadamente assinaladas por especialistas que não mereceram a atenção que lhes era (é) devida. Não se vislumbra nas alterações agora introduzidas na ortografia do português europeu nenhuma relação com a eventual necessidade de responder a uma evolução de carácter linguístico que a pudesse justificar. Muito pelo contrário, a tendência do português europeu para o enfraquecimento das vogais não acentuadas é olimpicamente ignorada (muito simplesmente, porque não existe no português do Brasil), embora ela exigisse a manutenção das chamadas consoantes “mudas”, que assumem função diacrítica relativamente à vogal que as precede, ao mesmo tempo que registam a etimologia das palavras. Em lugar de ter em conta a nossa tendência para o enfraquecimento das vogais – e não é credível o argumento utilizado, de que a ortografia não produzirá efeitos sobre a oralidade –, o novo Acordo introduz (muitas) desnecessárias e confusas homografias. Para quê? Com que vantagem? No sentido de evitar a ambiguidade decorrente da homografia, Herberto Helder não tem hesitado em recorrer, na sua poesia, a formas de acentuação não consignadas. Devemos agora seguir-‐lhe o exemplo, para que se perceba que este Acordo não funciona? O que o poeta nos mostra é que o rigor do pensamento tem relação efectiva com a ortografia. E que esta não é inconsequente. Para a poesia, a proliferação de palavras homógrafas decorrente deste Acordo representa um empobrecimento particularmente grave, pois nem sequer o 3 recurso ao contexto de comunicação, tantas vezes referido pelos proponentes da nova ortografia, o pode colmatar. “O Acordo mutila o pensamento”, denunciou José Gil. E a questão fundamental é mesmo esta: porque a ortografia agora imposta é mais pobre, confusa. A transformação ortográfica de “pára-‐quedas” em “paraquedas”, por exemplo, induz a leitura de um sentido que a palavra não contempla, ilustrando o tipo de mutilação conceptual denunciada por José Gil. Caro leitor, “para para pensar nesta conceção de ortografia” (não há gralhas, não, apenas segui o AO90). Parece-‐te legítimo persistir em tamanha concessão ao desastre? Tentativa falhada de unificar ao nível do que não tem unificação possível, o novo Acordo Ortográfico é mais um efeito da perversa obsessão reguladora e normalizadora que (des)norteia o poder no mundo em que vivemos. A língua portuguesa, que é grande e vária, encarregar-‐se-‐á de ir desfazendo o acordado – e de provar que a presente tentativa de unificação ortográfica é tão gravosa quanto inútil. Mas, no imediato, fica a pobreza de uma resolução que não merece respeito porque desrespeita o nosso património linguístico, cultural e civilizacional. 4