Capı́tulo 4 O Tensor das tensões As forças que as moléculas exercem umas sobre as outras são geralmente forças de alcance muito curto em comparação com as dimensões dos corpos de que essas moléculas fazem parte e que se apresentam à nossa experiência macroscópica. Assim, essas forças podem mesmo considerar-se de alcance nulo. Isto é, as forças que as partı́culas dos corpos macroscópicos exercem entre si apresentam-se como forças de contacto. Os corpos existentes exercem acções mútuas somente através das partes que se tocam. 4.1 O vector tensão Consideremos uma superfı́cie infinitésimal no seio dum meio contı́nuo (ou separando dois meios distintos). Seja dS a área dessa superfı́cie. A resultante df das forças que as partı́culas situadas dum dos lados da referida superfı́cie exercem sobre as partı́culas situadas do outro lado é, evidentemente, proporcional a dS (se dS duplicar, duplica df , se dS triplicar, triplica df ). Temos pois df = tdS. (4.1) A tensão t é constante em cada ponto, independente de dS, desde que a orientação da superfı́cie não varie. Para outra superfı́cie elementar, na vizinhança da anterior, mas com orientação diferente, já o coeficiente entre a força que se exerce através da superfı́cie e a área da superfı́cie toma um valor diferente. Isto é, a tensão t é função da orientação da superfı́cie a que se refere. Essa orientação é definida pela normal n̂ à superfı́cie. É costume considerar a tensão t que as partı́culas que estão do lado para o qual aponta a normal n̂ exercem sobre as partı́culas que estão do outro lado e designar essa tensão por t(n̂), df = t(n̂)dS (4.2) Pergunta-se: como é que t(n̂) varia com n̂? Para encontrarmos a resposta a esta pergunta consideremos um tetraedro elementar, constituı́do por uma superfı́cie arbitrária que intersepte um triedo de referência com origem no ponto que se deseje considerar e definido por três eixos ortogonais, de versores ê1 , ê2 e ê3 . Seja dS a área da face do tetraedro que intersepta os três eixos. Seja dSi a área da face normal ao versor êi . O elemento de superfı́cie dS1 é, evidentemente, a projecção de dS sobre o plano 42 coordenado definido pelos versores ê2 , ê3 , e analogamente para dS2 e dS3 . Designando por n̂ a normal exterior a dS, o ângulo de dS com dS1 é evidentemente igual ao ângulo das respectivas normais, n̂ e ê1 . x3 ^n ^ e ^ 3 e 2 ^ e 1 x2 x1 Figura 4.1: Tetraédro em equilı́brio Isto é, dSi = (n̂ · êi )dS (4.3) Estando o tetraedro elementar em equilı́brio, a resultante das forças que o meio exterior exerce sobre o meio interior é evidentemente nulo. Pode haver forças de volume, mas sendo proporcionais ao volume, são infinitesimais de ordem superior e devem desprezarse em comparação com as forças de superfı́cie, que são proporcionais à superfı́cie (o coeficiente entre o volume e a superfı́cie dum poliedro tende para zero com as dimensões do poliedro). Sobre o tetraedro exercem-se as seguintes forças: t(n̂)dS sobre dS, e t(−êi )dSi sobre dSi . Escrevemos t(−êi ) e não t(êi ) porque se trata da tensão que a parte de fora exerce sobre a parte de dentro e é −êi o versor que aponta para fora. Visto que a resultante das forças é nula, podemos escrever t(n̂)dS + 3 X t(−êi )dSi = 0 (4.4) t(−êi )(n̂ · êi )dS = 0 (4.5) i=1 e, visto que dSi = n̂ · êi dS, vem t(n̂)dS + X i 43 dividindo por dS, t(n̂) = − X t(−êi )(n̂ · êi ). (4.6) i Daqui se segue que t(n̂) = −t(−n̂), o que está de acordo com o princı́pio da igualdade da acção e da reacção e que nos permite escrever X t(n̂) = t(êi )(n̂ · êi ). (4.7) i Esta equação resolve a questão posta: para conhecermos t(n̂) para um n̂ arbitrário basta-nos conhecer 3 valores particulares de t(n̂), as quantidades t(ê1 ), t(ê2 ) e t(ê3 ). Este resultado é muito importante. Seja n̂ · êi = ni então t(n̂) = 3 X t(êi )ni . i=1 Este resultado é uma consequência do teorema da quantidade de movimento: se o tetraedro elementar está em equilı́brio a resultante das forças que actuam sobre ele é nula. 4.2 Construção do tensor das tensões Decompondo o vector t(êi ), 3 X σij êj (4.8) 3 X tj (n̂)êj (4.9) 3 X σij ni t(êi ) = j=1 e o vector t(n̂) t(n̂) = j=1 temos de (4.7) tj = (4.10) j=1 Note-se o significado de σij : é a componente segundo êj de t(êi ). As quantidades σij são em número de nove e constituem um tensor. Problema: Provar que as quantidades σij constituem um tensor. 44 Resolução: a) Método indicial No sistema S temos tj = X σij ni . (4.11) X 0 σkm n0k . (4.12) i No sistema S temos 0 t0m = k Note-se que as quantidades tj ou são componentes dum vector e as quantidades ni ou n0k são componentes dum vector de orientação arbitrária (t é a tensão através duma superfı́cie de orientação arbitrária definida pela normal n̂) t0m Então temos t0m = X αmj tj n0k = j X αki ni , (4.13) i ou seja, X 0 σkm n0k = onde usámos tj = i αmj tj = j k P X XX j αmj σij ni , i σij ni , ou ainda XX XX 0 σkm αki ni = αmj σij ni i k j (4.14) (4.15) i Esta igualdade tem de verificar-se qualquer que seja a orientação de n̂. Fazendo n1 = 1, n2 = 0, n3 = 0, vem X X 0 σkm αk1 = αmj σ1j . (4.16) j k Fazendo n1 = 0, n2 = 1, n3 = 0, vem X X 0 σkm αk2 = αmj σ2j . (4.17) Fazendo n1 = 0, n2 = 0, n3 = 1, vem X X 0 σkm αk3 = αmj σ3j . (4.18) j k j k Portanto , X 0 σkm αki = X αmj σij (4.19) j k qualquer que seja i. Multiplicando ambos os membros por αgi e somando em ordem a i vem XX XX 0 σkm αki αgi = αmj σij αgi . (4.20) i i k 45 j Usando a condição de ortogonalidade X αki αgi = δkg (4.21) i temos finalmente X 0 0 σkm δkg = σgm = XX i k αgi αmj σij . (4.22) j Portanto, as quantidades σij são componentes dum tensor. b) Método matricial Sejam t, n, T as matrizes (matrizes colunas ou matrizes quadradas, conforme os casos) que representam os vectores t e n e o tensor σij no sistema S. Sejam t0 , n0 , T 0 as matrizes que representam as mesmas quantidades no sistema S 0 . Então t̃ = ñ T, t̃0 = ñ0 T 0 (4.23) t0 = αt, n0 = αn, (4.24) t̃0 = t̃α̃, ñ0 = ñα̃. (4.25) Ora logo, Portanto, t̃0 = t̃α̃ = ñ0 T 0 = ñα̃ T 0 = ñ T α̃, (4.26) ñ T α̃ = ñα̃ T 0 . (4.27) isto é Sendo n arbitrário podemos escrever T α̃ = α̃ T 0 . (4.28) Multiplicando à esquerda por α e usando a condição de ortogonalidade αα̃ = I, vem T 0 = αT α̃. (4.29) que corresponde à lei de transformação de um tensor. 4.3 Expressão da força de tensão por unidade de volume Consideremos uma superfı́cie fechada, com a forma de um paralelepı́pedo rectângulo de faces paralelas aos eixos x1 , x2 e x3 , situada num meio contı́nuo. Queremos determinar a resultante das forças que o meio exterior exerce sobre o meio interior. Comecemos por considerar as forças exercidas segundo a direccção do eixo dos x1 , primeiro nas faces perpendiculares a x1 46 x2 σ11( x1 ) σ11 ( x 1 +dx 1 ) dx1 x1 x x1 x 1 +dx 1 3 Figura 4.2: Cubo em equilı́brio dF1 (1) = σ11 (x1 + dx1 ) dx2 dx3 − σ11 (x1 ) dx2 dx3 = ∂σ11 dx1 dx2 dx3 ∂x1 Sobre as faces perpendiculares a x2 , temos dF1 (2) = σ21 (x2 + dx2 ) dx1 dx3 − σ21 (x2 ) dx1 dx3 = ∂σ21 dx1 dx2 dx3 , ∂x2 e sobre as faces perpendiculares a x3 ∂σ31 dx1 dx2 dx3 . ∂x3 Somando a três contribuições, e dividindo por dV = dx1 dx2 dx3 obtemos para a força por unidade de volume na direcção do eixo x1 dF1 (3) = σ31 (x3 + dx3 ) dx1 dx2 − σ31 (x3 ) dx1 dx2 = 3 ∂σ11 ∂σ21 ∂σ31 X ∂σi1 dF1 = + + = . f1 = dV ∂x1 ∂x2 ∂x3 ∂x i i=1 Procedendo de um modo semelhante para as outras componentes, obtemos ∂σ12 ∂σ22 ∂σ32 dF2 f2 = = + + dV ∂x1 ∂x2 ∂x3 dF3 ∂σ13 ∂σ23 ∂σ33 f3 = = + + , dV ∂x1 ∂x2 ∂x3 ou ainda 3 X ∂σij . fj = ∂xi i=1 Vectorialmente poderia escrever-se f= 3 X ∂t(êi ) i=1 47 ∂xi . (4.30) 4.4 4.4.1 Condições de Equilı́brio Condições de equilı́brio local Consideremos um dado meio material em equilı́brio. Seja dV = dx1 dx2 dx3 um volume elementar no seio desse meio. Sobre dV actuam além das forças de tensão, forças volúmicas tais como a força da gravidade. Representemos as forças volúmicas que actuam na unidade de massa por F e por ρ a densidade do meio material. A condição de equilı́brio local, a resultante das forças que actuam sobre dV é nula, pode ser expressa através da equação ∂σij + ρFj dV = 0 (4.31) ∂xi ou, visto que dV é arbitrário, ∂σij + ρFj = 0. ∂xi 4.4.2 (4.32) Condições de equilı́brio dos momentos das forças Além do equilı́brio de forças, é também necessário impor que o momento resultante das forças aplicadas seja nulo. Devemos tomar em conta a contribuição das tensões e das forças volúmicas, como a força da gravidade. Consideremos primeiro o momento das forças de tensão sobre um cubo de material de arestas dx1 , dx2 , dx3 e volume dV = dx1 dx2 dx3 . Os binários que contribuem para para a componente do momento das forças na direcção do eixo x3 , são os indicados na figura. x2 σ 21 dx1 σ 12 σ 12 dx2 x1 σ 21 x3 Figura 4.3: Tensões que contribuem para M3 48 Temos, assim M3 = (σ12 dx2 dx3 ) dx1 − (σ21 dx1 dx3 ) dx2 = (σ12 − σ21 ) dx1 dx2 dx3 . De um modo semelhante obtemos para as outras componentes da resultante dos momento das forças de tensão aplicadas M1 = (σ23 dx1 dx3 ) dx2 − (σ32 dx1 dx2 ) dx3 = (σ23 − σ32 ) dx1 dx2 dx3 . M2 = (σ31 dx2 dx3 ) dx1 − (σ13 dx1 dx2 ) dx3 = (σ31 − σ13 ) dx1 dx2 dx3 . ~ v | ∼ ρF dx1 dx2 dx3 d` O momento correspondente à força de volume é da ordem |M onde d` é o braço da força e é da ordem de grandeza de dxi . Os comprimentos dxi são infinitesimais e, por isso, o momento das forças volúmicas é uma ordem de grandeza inferior ao momento das forças de tensão e por isso podemos desprezá-lo em relação a esta últimas. Concluı́mos que ~ = 0 → M1 = 0, M ou ainda σ12 = σ21 , 4.4.3 , M2 = 0, M3 = 0. σ13 = σ31 , σ32 = σ23 . O tensor das tensões é simétrico. Condições de Fronteira As forças de tensão num dado material são de um modo geral resultantes da aplicação de forças exteriores sobre a sua superfı́cie. Representamos por P a força exterior por unidade de área sobre a superfı́cie. Por outro lado sobre a superfı́cie actuam também as forças de tensão t(−n̂) onde n̂ é a normal à superfı́cie exterior. A fronteira está em equilı́brio se a resultante das forças que actuam sobre ela se anularem i.e. se PdS + t(−n̂)dS = 0 (4.33) P = t(n̂). (4.34) ou Projectando segundo os diferentes eixos obtemos Pi = 3 X σji nj . (4.35) j=1 Se sobre a fronteira não actuarem forças exteriores a condição de equilı́brio reduz-se a 3 X σji nj = 0. (4.36) j=1 Se impusermos as condições de equilı́brio a uma superfı́cie de separação de dois meios materiais temos 3 3 X X (2) (1) (4.37) nj σji , nj σji = j=1 j=1 (1) σji , (2) σji representam as componentes do tensor das tensões sobre a superfı́cie, onde respectivamente, nos meios 1 e 2. 49