Viagem Agnès Levécot or vezes o elevador da Bica espera por mim, mas, normalmente, eu é que espero por ele. Aliás, eu espero esperar, porque é quando tudo acontece! Ele está ali, parado, e eu, com o pé mais levezinho possível no intuito de não perturbar o curso normal das coisas, subo o degrauzinho que me separa da terra firme e sentome no banco da frente. Não porque queira ver melhor a paisagem mas sim porque vou ficar mesmo atrás do guarda-freio de camisa azul, silueta imprescindível ao cenário da minha viagem. No banco de trás, disfarçando a curiosidade acerca do intruso, duas moradoras já de idade comentam o tempo e as minudências do dia-adia: “Hoje não está muito calor, e nem comprei quase nada, mas o hábito, sabe ...! - Pois é! Mas olhe que no outro dia ... quando é que foi... ?” Entra um casal de turistas, Guide du Routard em riste, com o indicador servindo de marcador na página “Bairro Alto”, bermudas ao xadrez, meias brancas e ténis Le Coq Sportif, que procura aliviar a sua consciência turística perguntando desesperadamente pelo revisor e pelas modalidades de pagamento. Os minutos passam intemporais. E apesar de eu ter encontro marcado ao meio-dia no Cais do Sodré, só desejo que o guarda-freio continue a inquerir sobre a ementa do dia na taberna da esquina : a incerteza da demora dá mais um saborzinho especial à viagem. Olho em frente e vejo, enfeitando as linhas verticais das fachadas pontuadas de varandas, lençóis, toalhas, camisas e outras roupas flutuando e proclamando a vida íntima do bairro. Moradores sobem e descem, de sacos de plástico abarrotados na ponta dos braços. Dois rafeiros, cujo pêlo reflecte a curiosidade do seu focinho, estacionam ilegalmente em cima dos carris. E uma senhora, engomada da cabeça aos pés, sai da Casa dos Botões Bonitos respondendo já de fora : “Está bem, logo venho buscá-los!” Será que a senhora não podia trazer já os botões na mala? Lá, bem no fundo, armando-se em fronteira entre o de cima e o de baixo, a casa amarela, menos psicanalítica do que a do João César Monteiro, namora o rio que flutua por cima dos telhados. Vejo tudo em planos fotográficos sucessivos. P LATITUDES n° 5 - avril/mai 99 E sinto. Sinto que os carris descem a encosta e desaparecem não sei para onde. A distância e o tempo desvanecem, não têm forma, não se deixam medir e estou como num espaço absoluto e num tempo indefinido. E sei que existe aqui uma vida alheia que não me pertence. “Pronto! Está na hora !” Será que tem horário mesmo? E o homenzinho azul salta para dentro do elevador e se insere no ecrã das minhas sensações. Tira do bolso um prego gigante que enfia num buraco do chão. Pisa-o com ar importante de quem decide do orçamento da nação, e a máquina anuncia a partida com um arrepio metálico. Começa então a deslizar vagarosamente deixando que a inquisidora e grisalha senhora de bata às listas floreadas, de trás de umas sardinheiras viçosas e nacionalistas que ela finge estar regando, fiscalize o movimento de sobe e desce do bairro. Mal iniciou a descida, o carro toca repreensivo e trava bruscamente a fim de evitar a carrinha dos correios que sobe a contra-mão. “Tenha paciência, mas assim não passa” diz o olhar reprovador do guarda-freio para o carteiro atrevido. - Passar, passa! diz o outro. - Não passa, não senhor! -’Tá bem, pronto!” E a carrinha vermelha entala-se entre uma parede cor-de-rosa desbotado e a caixa amarela do elevador. Voltamos a descer. Travessa do Sequeiro com as suas escadinhas e o santinho de azulejo vigiando a casa da minha amiga que deixou temporariamente frustrada a curiosidade dos vizinhos. Travessa da Laranjeira. Um rosto enrugado assoma a um postigo “Bom dia”. “Olá, Senhor Alberto!”, responde singelamente o guarda-freio. “O filho dele já voltou?” pergunta a senhora de óculos grossos que vai ao meu lado. “Acho que não, pelo menos, não o tenho visto.” E a vida corre, e o elevador desliza ignorando a travessa da Portuguesa. Uma voz esganiçada e gasta chama pelo maquinista “Ó Senhor Manuel, tenho que falar consigo! - Que é Rosinha, quer casar comigo?” indaga ele! Abranda na Travessa do Cabral toda engalanada ainda dos Santos Populares. Um toque de campainha imperativo acompanhado do baque surdo do salto do condutor e o garrafão encosta-se para o lado. É quando um halo de luz ilumina a calçada e o olhar do viandante mergulha no sossego convidativo do Largo de Santo Antoninho. Debaixo das acácias, sentados à mesa duma tasca e imitando as personagens do Pátio das Cantigas, dois velhinhos de camiseta engomadinha contam os passageiros do elevador com ar perito de quem sabe apreciar o passar da vida. Lembro-me então quantas vezes me apeteceu ficar neste lugar para gozar a calma tão irreal e tão fora do tempo. Mas não me convenço : o meu lugar é no elevador, o meu papel é passar, sentir-me-ia intrusa turvando a harmonia bairrista daquele recanto. Por isso, o carro eléctrico segue e penetra na sua casinha asseada de azulejos brancos. Então cumpro o ritual : pico o bilhete, como se isso me perdoasse a culpa de ter perturbado a vida do bairro e me autorizasse o regresso à realidade da minha vida. Renascem então as saudades daqueles instantes intensos e luminosos, daquela transparência esquecível do sentir que nunca mais se esquece: enquanto Ele existir, voltarei a subir e a descer no Elevador da Bica só pelo prazer de navegar entre um mundo e outro, de estar onde não estou e de não ser o que sou Lisboa, Agosto de 1998 Lisboa das colinas 55