“O JONGO DA CASA GRANDE”
Alessandra Ribeiro Martins1
RESUMO: Neste artigo, apresentamos um breve registro da experiência da Comunidade
Jongo Dito Ribeiro e de sua atuação política frente à Casa de Cultura (AFRO) Fazenda
Roseira, localizada na periferia da cidade de Campinas-SP. Considerando que o conflito é
parte integrante da vida social e que o esforço intelectual deve voltar-se para a compreensão
de sua expressão nos contextos urbanos contemporâneos, dado que o Brasil é um país que
possui persistentes desigualdades sociais e econômicas, analisamos como uma comunidade
jongueira, patrimônio imaterial do sudeste, defende, protege e articula com seus pares para a
defesa de uma casa de cultura e para o fortalecimento da identidade afro-brasileira, de modo a
realizar através de suas ações uma nova política no panorama cultural.
PALAVRAS-CHAVE: jongo, patrimônio imaterial, política cultural, identidade negra e
memória.
O Jongo
Assim como as demais obras do homem, os espaços urbanos são produções culturais
sujeitas a diferentes apropriações. É através de um permanente processo de criação e
reapropriação que o homem transforma o ambiente em que vive, ao mesmo tempo em que
estabelece as bases para criações futuras. O uso material do passado é a essência da cultura e é
aquilo que, por sua vez, transforma o material cultural em patrimônio.2
Para compreendermos a Comunidade Jongo Dito Ribeiro, e suas ações junto à Casa de
Cultura Fazenda Roseira e sua parceria com diversos grupos do segmento afro da cidade de
Campinas e Região Metropolitana, é fundamental entender o conjunto de ações e estudos do
qual participa este patrimônio imaterial.
O jongo ou caxambú é um patrimônio imaterial cultural brasileiro, reconhecido pelo
1
Historiadora graduada e Mestre Urbanista POSURB - Programa de Pós Graduação em Urbanismo - Bolsa
CAPES Pontifícia Universidade Católica de Campinas - [email protected]. Vale ressaltar que a mesma
é jongueira da Comunidade Jongo Dito Ribeiro, do qual esse artigo reflete também relatos de sua experiência
quanto acadêmica e liderança desta comunidade.
2
DURHAM, Eunice - “Cultura, patrimônio e preservação”, texto n. 2. In: ARANTES, Antonio A (org)
Produzindo o passado. São Paulo: Brasiliense, pp.23-24 . (1984)
1
IPHAN em 2005 e presente na região sudeste, predominantemente no Rio de Janeiro. Um dos
primeiros trabalhos desenvolvidos sobre jongo, cujos praticantes consideram como o “pai do
samba”3 , foi o realizado pela folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro, e lançado em
1984 nos Cadernos de Folclore, um ano após seu falecimento.
Este trabalho, resultado de mais de dez anos de estudo, pôs em cena uma manifestação
dos ex-escravos, a qual a autora analisa como uma manifestação do segmento “folclore”,
termo este que denominava um saber tradicional preservado pela transmissão oral entre os
camponeses. Desde o final do século XVII e início do XIX, intelectuais românticos
valorizavam de forma positiva a cultura popular em um momento em que as representações
sobre ela se intensificaram. Estes intelectuais foram responsáveis pela elaboração de uma
concepção das tradições populares como ingênuas e anônimas, que mais tarde foi adotada
pelos folcloristas, seus continuadores, ao buscarem no Positivismo emergente um modelo para
interpretá-las.
Quando no século XIX o termo folclore é criado, a modernização capitalista
encontrava-se a todo vapor e os intelectuais dispostos a estudar manifestações populares não
pensavam em voltar ao passado como os românticos, pois, de forma central, entendiam o
progresso enquanto avanço tecnológico.4 Com base neste projeto iluminista, acreditavam
numa relação entre a crença e a ciência, nas formas de organização social e de produção que
teriam a ordem, a disciplina, a obediência e a submissão como principais elementos.
Foi neste contexto que brasileiros iniciaram seus estudos sobre folclore no final do
século XIX. Tais estudos estavam diretamente ligados à questão da “identidade nacional”.
Porém, a busca por salvar o que pertencia ao passado era acompanhada pelo desejo de
esquecê-lo no que havia de conflituoso. Ao se dirigirem às manifestações negras, por
exemplo, calavam-se diante da realidade da escravidão, com seus conflitos e diferenças nas
relações entre senhores e escravos, como exemplo, os estudos de Sílvio Romero, voltados às
manifestações populares, demonstram claramente o dilema vivido nas obras deste período.
A origem do jongo encontram-se em debate por intelectuais das áreas do folclore,
3
Essa afirmação é demonstrada e discutida no CD-Livro desenvolvido pelo Grupo Cultural Jongo da Serrinha
em 2005, ao narrar a história do Jongo e a forma em que o Morro da Serrinha do Rio de Janeiro recebeu seus
primeiros jongueiros no período pós-abolição. Pela ausência da inserção no trabalho livre, muitos descendentes
de escravos viram na favela uma possibilidade de reconstrução social e de moradia. Fato também ocorrido em
São Paulo e demais regiões, quando os bairros periféricos surgiram do alojamento dos negros retirados dos
centros das cidades.Maiores discussões específicas sobre o assunto em ROLNIK, Raquel – A cidade e a lei_legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. FAPESP. Studio Nobel, 3. ed. São Paulo. p.59-92.
4
ROMERO, N. Silvio – Romero: trechos escolhidos por Nelson Romero. Rio de Janeiro. Agir, 1959.
2
antropologia, história e sociologia. Para Pedro Simonard5, a produção acadêmica a respeito do
Jongo constitui duas correntes antagônicas. A primeira, mais recente, afirma que o jongo se
configura como uma entre as múltiplas manifestações culturais resultantes do contato entre a
cultura escrava, gestada no século XIX na antiga área cafeeira do sudeste brasileiro, e a
cultura dos proprietários de terras e senhores de escravos. Para a segunda, ele é originário da
região de Congo-Angola e chegou ao Brasil com os negros bantos que, escravizados,
trabalharam nas lavouras e na mineração.
A prática do jongo consiste em uma manifestação cultural em que três elementos são
essenciais: os pontos, a dança e os tambores. Os pontos concentram todos os saberes do jongo
e, ao misturar metáforas e dialetos da língua banto, possibilitaram uma comunicação entre os
negros escravizados, numa expressão de origem mista, persistente até aos dias atuais. A
dança, ao animar as rodas de jongo, torna-se um desafio à parte entre o casal que dança ou ao
dançarino que se insere num passo solto no meio da roda. Os tambores, que são fabricados, na
maioria das comunidades, ainda de modo artesanal, carregam em si um “grande significado”
de vínculo com os ancestrais.
O caxambú era uma oportunidade de se cultivar o comentário irônico, frequentemente
cínico, acerca da sociedade dentro da qual os escravos constituíam um segmento importante,
dentro desse contexto, os jongos eram canções de protesto, reprimidas, mas de resistência.
Tais práticas eram ligadas ao trabalho rural, nos eitos e nas áreas de mineração, que chegaram
ao século XX nesses chamados vissungos, que são os cantos de tradição banto em língua
africana ouvidos nos serviços de mineração. Essas cantigas, com "evidente teor religioso",
relatavam o cotidiano dos negros no garimpo. Um gênero que expressa
uma parte do
processo histórico vivido pelos negros no Brasil, quando foram logo após a abolição da
escravidão em 1888 obrigados a deixar as plantações e integrar-se nas cidades, especialmente
no Rio de Janeiro.
O que pudemos verificar pelos debates intelectuais foi que todo processo sofre
transformações, readequações e mudanças no decorrer do tempo, processo este que ocorre
com o jongo e com diversas outras manifestações populares praticadas por representantes
sociais que se renovam e são influenciados pelas problemáticas do cotidiano. Nesses quase
cinquenta anos passados dos registros da folclorista Ribeiro (1984), o jongo sobreviveu em
sua plenitude, fazendo com que novos aspectos fossem inseridos, novos contextos e caminhos
5
SIMONARD, Pedro – A Construção da Tradição no Jongo da Serrinha: uma etnografia visual do seu processo
de espetacularização. Rio de Janeiro, tese de (doutorado), UERJ, 2005.
3
fossem realçados.
O escravo saiu de cena e entrou o trabalhador livre que, diante de outras dificuldades,
não usa o jongo para articular fugas, saber das senzalas vizinhas e, nem mesmo, para somente
se divertir. Hoje, o jongo assume uma postura política e articuladora de grande importância
para os guardiões dessa tradição e para seus novos interlocutores.
O jongo é tema atual na universidade através de estudiosos renomados, é Patrimônio
Cultural Imaterial e passa pelo processo de Salvaguarda. Estes processos ampliam sua área de
atuação, movem verbas patrocínios e rendem títulos. Também elevam seus praticantes à
posição de agentes culturais, de modo a proporcionar trabalho aos seus detentores através de
projetos e apresentações artísticas e possibilitar a transformação social de suas comunidades.
Movimentos e ações se confrontam na manifestação do Jongo, não apenas como memória de
um passado, mas como agente vivo e presente, que obtém resultados movidos pelo desejo de
comunidades que anonimamente resistiam e se vêem hoje em meio a políticas que retiram
suas práticas da marginalidade e colocam-nas no “centro do palco”.
A Comunidade Jongo Dito Ribeiro em Campinas – SP
A cidade de Campinas sempre conteve em si várias cidades. Em cada região, uma
forma de organização espacial diferente, somada às políticas públicas, deu origem a um povo
que se encontra e desencontra na vasta cidade.
Com ênfase no ano de 2000, jovens da região noroeste, periferia de Campinas,
estavam em processo de ebulição e questionamentos devido vários fatores e políticas culturais
que fomentavam questões sobre sua afro-brasilidade e sua identidade. Mudanças na região
despertavam um desejo pela busca por seu pertencimento e por lugares próprios com direitos
e acesso a oportunidades de trabalho, moradia, boa saúde, educação com qualidade e direito
de igualdade.
É nessa atmosfera que a Comunidade Jongo Dito Ribeiro renasce às suas antigas
tradições quase esquecidas e, em homenagem ao ancestral Benedito Ribeiro, retoma sua
tradição do Jongo. Firma-se como comunidade através de rituais aprendidos pelos
ensinamentos dos jongueiros velhos e pela família Dito Ribeiro, que transita em outros
universos religiosos e culturais. Fundamental na manutenção e vivência do jongo é fomentar a
rede de lembranças e memórias culturais e de tradição que permeiam a Comunidade Jongo
Dito Ribeiro.
4
Os mais velhos têm um papel importantíssimo nesta trama de lembranças e memórias,
que formam uma rede entre grupos e comunidades, já que, como moradores da cidade de
Campinas, presenciaram amplamente as transformações do tempo e com elas guardam suas
lembranças que se abrem em caixas de memórias.
Ciente ou não, essa comunidade se reconhece enquanto coletivo, com a necessidade de
se reinventar e se mobilizar em prol da obtenção de seus objetivos, criando pequenas ações,
que se tornam espaços efetivos de trocas, parcerias e fortalecimento de sua identidade negra e
de políticas culturais para gestão de espaços e administração de sua própria trajetória, sem que
nesse processo haja fortes influências de pesquisadores e intelectuais que não fossem da
própria comunidade.
A Comunidade Jongo Dito Ribeiro, que recebe o nome do ancestral jongueiro
Benedito Ribeiro, aqui entendido ancestral como o mentor referencial desta manifestação no
grupo familiar, se apresenta como coletivo de jongueiros, praticantes da dança do jongo,
formados por um grupo de pessoas e familiares, que reconstitui a manifestação do Jongo em
Campinas/SP através de rodas com toque, canto e dança, com o objetivo de compartilhar e
continuar com essa cultura ancestre de resistência e ao mesmo de estratégia.
Colocando-se como missão reconstituir a cultura ancestral do jongo, nos mais diversos
espaços, para todas as pessoas de diferentes credos, etnias e idades, prioriza as comunidades e
grupos que atuam no universo da cultura afro brasileira. Descreve como objetivos a história
do jongo em Campinas, de modo a possibilitar que a manifestação cultural seja expandida e
respeitada nas suas mais variadas formas, utilizando como elementos para atingir esse
resultado a descontração, alegria, afeto, boas energias, paciência com o momento individual
de cada um, melhoria da autoestima, mudança do indivíduo de dentro para fora, autonomia e a
preservação do toque, canto e dança praticados na Comunidade.
O ano de 2008 foi um marco para o aprofundamento da relação da Comunidade Jongo
Dito Ribeiro com a região noroeste. Neste ano, a Associação do Jongo Dito Ribeiro, de gestão
compartilhada entre os próprios praticantes, protagonizou, junto a outras organizações
parceiras, a organização de um novo espaço de encontro, educação ambiental e cultura afro: a
Casa de Cultura Fazenda Roseira, localizada no bairro Jardim Roseira.
Trata-se do casarão sede da Fazenda Roseira do Campo Grande, um prédio do final do
século XIX que se tornou um equipamento público em 2007 por conta do loteamento da área
da antiga Fazenda, e que, a beira da destruição e depredação, foi ocupada e gestada pela
Associação do Jongo Dito Ribeiro, com demais parceiros, para a realização de suas
5
atividades, estreitamento dos laços com a comunidade. Simbolicamente, a Casa de Cultura
Fazenda Roseira remonta essas ancestralidades dos negros e que desenvolveram o trabalho
escravo e que possibilitam a releitura deste espaço e fortalece as raízes desta comunidade, na
contradição do próprio termo: “antes o jongo acontecia nos terreiros das senzalas e hoje ele
está no terreiro da casa grande”.
O Jongo da Casa Grande - Casa de Cultura (AFRO) Fazenda Roseira
A afirmação da identidade negra possibilita novas ações e dessas ações podemos
perceber movimentos dos jongueiros e parceiros deste espaço, como o processo de
Requalificar esta antiga fazenda do período colonial, a Fazenda Roseira, em Casa de Cultura
do segmento Afro localizada na periferia da cidade de Campinas/SP.
As transformações advindas da chegada de novos investimentos imobiliários
descobrem antigos conflitos sobre o espaço urbano e suas múltiplas identidades, provocados
pelas diferenças sociais, culturais e étnicas perpetuadas ao longo do processo histórico da
comunidade negra brasileira.
Dado que em Campinas ainda não há uma política pública cultural de preservação do
patrimônio imaterial da cultura afro-brasileira, a intervenção da Comunidade Jongo Dito
Ribeiro, apoiada por outros movimentos sociais e culturais da região, em especial os do
segmento cultural afro, foi fundamental para a preservação da sede da Fazenda Roseira,
contrapondo-se à pilhagem do casarão por parte dos antigos proprietários.
Desde agosto de 2007, a antiga sede de Fazenda Roseira tornou-se Equipamento
Público Comunitário e a Comunidade Jongo Dito Ribeiro, com apoio de demais entidades
parceiras, unidas na busca da Requalificação Urbana deste espaço, transforma-o em Casa de
Cultura, um espaço privilegiado para análise dos conflitos, dilemas e ações que passaram a
envolver as comunidades do entorno.
Essa forma como a Comunidade Jongo Dito Ribeiro e suas parcerias se articulam para
fazer da Fazenda Roseira uma Casa de Cultura Afro pressupõe ações e atividades tendo como
fio condutor a lei 10639/03 que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro
Brasileira, sendo importante atentar ao fato de que a maioria dos grupos, comunidades,
movimentos, redes sociais e ambientais, religiosos de matrizes africanas envolvidos
diretamente nessa ação fazem parte de uma forte rede pré-existente à ação desenvolvida na
Fazenda Roseira.
6
O fato destes grupos e redes situarem-se em sua maioria “do outro lado da cidade”
tornou perceptível a Rodovia Anhanguera como uma divisa, de um lado infra-estrutura,
equipamentos públicos de cultura, esporte e lazer com qualidade, melhores escolas e do outro
lado as ausências e carências acarretadas pela má distribuição pública e do poder aquisitivo
gerado pelos diferentes moradores de cada localidade. Este fator ampliou massivamente a
territorialidade dos “que mais precisam” frente aos “sempre privilegiados”. Deste grande lado
da cidade de Campinas, as dificuldades como ausências de infra-estrutura, tratamentos de
esgoto, transporte e outros de ordem pública sempre foram maiores e mais lentamente
resolvidos do que os do outro lado da Rodovia Anhanguera, que até recentemente concentrava
a classe média e alta, bem como praticamente todos os recursos de lazer e entretenimento,
como de serviços.
Essas buscas e ações ligaram outros movimentos sociais pertinentes com demandas
que transcenderam a própria territorialidade, espaços, bairros e até as divisões administrativas
e macrozonas estabelecidas. Um exemplo interessante é o Arraial Afro Julino, evento anual
promovido pela própria comunidade Jongo Dito Ribeiro, que mostrou que a transversalidade
era possível.
Até o ano de 2007, esse evento que atraía mais de 3500 pessoas por ano já era uma
forma interessante demonstrar essas ações. O evento fazia com que as atividades saíssem do
Jardim Roseira (região noroeste) e fossem para Barão Geraldo (região sudoeste), local de
realização do Arraial, provocando a inserção afro cultural em outro espaço da cidade, não o de
origem, e possibilitando novas relações entre grupos antes desconhecidos. Ao mesmo tempo,
aproximava dificuldades comuns para articulação de ações efetivas, transformando e
tranversalizando o cenário cultural local e da cidade como um todo.
O reconhecimento da necessidade de políticas afirmativas para a população negra, a
própria implementação da Lei 10639/03 que promove como obrigatoriedade do ensino da
História e Cultura Afro Brasileira a lei 11645/08 que contempla a mesma obrigatoriedade às
questões indígenas, os debates e implantação do Software Livre – ampliando as redes e
articulações de maneira global, o PROUNI – Programa Universidade Para Todos, as cotas na
Universidade, a implementação dos Pontos de Cultura, um investimento efetivo às
manifestações e ações culturais, diversas secretarias específicas para discutir e pensar
políticas diferenciadas para essa diversidade cultural nacional, o reconhecimento, ainda em
“guerra”, das terras quilombolas e tantas outras, que poderíamos citar aqui como políticas
públicas inclusivas dos “menos favorecidos” possibilitaram que a invisibilidade social
7
aparecesse de modo escancarado e firmaram e afirmaram uma novo quadro nacional, positivo
aos movimentos, que passam através de sua cultura construir novas demandas políticas.
Neste processo, os movimentos articulam-se, buscam sua identidade e sob gestão da
comunidade jongueira fazem da sede da Fazenda Roseira uma referência agregadora da
cultura afro-brasileira dentro da cidade de Campinas, criando conexões para além das
territorialidades delimitadas.
Para Kabenguele Munanga, em rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade
nacional versus identidade negra (2004), a questão da identidade está sempre em processo e
os traços constitutivos dela são escolhidos entre os demais elementos comuns aos membros
do grupo: língua, história, território, cultura, religião, situação social. Segundo este autor,
esses elementos não precisam estar reunidos para deflagrar o processo identitário, pois as
culturas em diáspora têm de contar apenas com aqueles que resistiram ou que conquistaram
seus novos territórios.
Os debates acerca do conceito de “quilombo” e da luta pelo território se expressam na
placa de identificação na entrada da Casa de Cultura Fazenda Roseira, denominada “quilombo
urbano” pelos jongueiros. Trata-se do resultado de uma nova interpretação, mais condizente
com a realidade vivenciada pelos descendentes de escravos que foram desprovidos dos meios
de manutenção da vida. Assim, as comunidades remanescentes de quilombos e alguns grupos
urbanos referem-se à noção de quilombo para designar um legado, uma herança cultural e
material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um
lugar específico e a uma cultura específica.
A garantia das terras de quilombo é uma forma de reparar a população negra pelos
abusos cometidos contra ela, que há muito tempo vem sendo expropriada dos seus
instrumentos de manutenção da vida. Primeiramente, essa expropriação ocorreu na África,
quando foram retirados de suas terras. Depois, nas fazendas, com a sanção da Lei Áurea e da
Lei de Terras de 1850, em que o escravo recém liberto, sem bem algum, não tinha como ter
acesso à terra. Atualmente, pelas pressões dos especuladores imobiliários, a população negra
vem sofrendo uma terceira expropriação.
Mudam-se os atores, mas não cessa a opressão.
A opção pela consolidação da identidade negra na construção da Casa de Cultura
Fazenda Roseira, quanto espaço coletivo articulado entre diversos grupos afins, representantes
de diversas classes e categorias, reflete o reconhecimento dos envolvidos na busca da
consolidação de políticas efetivas para os descendentes de africanos e também da necessidade
8
de lutar pelo território que estava sendo ameaçado, o território da Fazenda Roseira.
Há pessoas na comunidade que se consideram descendentes de outros grupos étnicos.
Porém, os que assumem a identidade negra na consolidação desse processo embasado pela
Lei 10639/03 estão assumindo, principalmente, a dimensão política dessa identidade e
percebendo a sua ação através dos toques de seus tambores. Trata-se de uma solidariedade
que se forma em torno de uma luta comum.
Assumir essa identidade não significa apenas a tentativa de garantir o território, mas
também travar uma batalha ideológica contra os estereótipos criados para inferiorizar a
população negra.
Conclusão
“O direito à cultura pressupõe o gozo dos direitos civis como das manifestações livres
do pensamento, como o direito de ir e vir, e, portanto, de acesso livre aos diferentes territórios
da cidade.”6 O espaço é um elemento fundamental da identificação dos cidadãos com a
cidade, e é por meio das lembranças dos lugares que as nossas experiências se fixam na
memória, conforme lembrado por Pierre Nora. Na nossa sensibilidade, pertencer a uma nação,
a um estado e a uma cidade não é apenas uma condição legal, mas também compartilhamento
de experiências e de vivência dos lugares.
Há poucas décadas verifica-se uma transição significativa na forma de compreender o
patrimônio. Sobre as particularidades e os propósitos implícitos no direito ao patrimônio
constituído, Ramon Gutierrez traça algumas considerações sobre o impacto verificado no
campo patrimonial pela abertura que propiciam as alterações do conceito de patrimônio
histórico cultural.
Essa delineia uma ruptura com a visão histórica reducionista respaldada por
uma historiografia oficial que converte em patrimônio bens de origem
aristocrática, religiosa, bélica ou estatal. Nessa nova concepção de
patrimônio há a inclusão do cultural e das ' dimensões testemunhais do
cotidiano e os feitos intangíveis'.Superam-se as legislações que reconheciam
os bens por sua antiguidade e são transcendidas as fronteiras que limitavam o
ingresso ao status de patrimônio às edificações oficiais e igrejas. E, ao
mesmo tempo, as obras arquitetônicas deixam de ser vistas como objetos
isolados e tornam-se relevantes os conjuntos urbanos e territoriais e também
a contextualização tanto física como social e cultural destes.7
6
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo. Editora UNESP, 2001.
GUTIÉRREZ, Ramón. Direito ao Patrimônio Construído. In: O Direito à Memória. Patrimônio histórico e
cidadania. São Paulo: Secretaria municipal de Cultura/DPH, 1992.
7
9
Hoje na maioria das cidades a questão que se coloca perante o patrimônio cultural das
áreas requalificadas é a perda de seu significado anterior, uma vez que a maioria dos projetos
seguiu uma fórmula indiferente aos usos e sentidos que mantinham com a população local. E,
se esses projetos buscaram tornar os espaços atrativos para o mercado imobiliário e turístico,
a dimensão pública, entendida como possibilidade de interação entre diferentes, perde o
caráter democrático e inclusivo.
A segregação sócio-espacial, associada ao sentimento de insegurança e de intolerância
resultante da criminalização e da estigmatização de certos grupos sociais, fragmentou o uso
dos espaços. Essa segmentação, que parece contradizer a ideia de espaço aberto a todos, existe
de fato e é reforçada em contextos de grandes desigualdades e de tensões sociais onde os
diferentes grupos sociais tendem a se apropriar dos espaços revelando antigos e novos
conflitos.
A atual noção de patrimônio cultural, em substituição à de patrimônio histórico e
artístico, nos revela a incorporação das manifestações culturais e imateriais dos diversos
grupos sociais que compõem a sociedade brasileira, possibilitando uma efetiva aproximação
entre o patrimônio e o cotidiano dos habitantes das cidades e suas identidades, para a
construção e consolidação de políticas culturais em novas perspectivas. A atual noção
também fomenta que esse agente cultural praticante seja o mesmo agente da transformação
política, porque alia a sua prática às demandas e ações para a transformação de sua própria
realidade.
A experiência em curso da Comunidade Jongo Dito Ribeiro e sua inserção na gestão e
fomento da cultura negra, identidade e produção junto à Casa de Cultura Fazenda Roseira
provoca e nos leva a refletir sobre a prática do jongo e sua articulação para outros “terreiros”,
além do espaço da prática. Essas experiências difusas junto a uma série de acertos, trocas e
mediações de cunhos políticos, para além da preservação da manifestação do jongo,
promoveram e promovem mudanças profundas que colocam a comunidade em uma ampla
rede de diálogos e possibilidades.
Em pleno curso do século XXI, com todas as diferenças de modo de articulação,
jongueiros e jongueiras usam seus conhecimentos ancestrais para além da roda de jongo,
praticando no terreiro da vida sua tradição, através da união das pessoas, grupos, parceiros e
ampla diversidade sócio-cultural no ritmo dos toques dos tambus de seus corações, para que
juntos iniciem uma efetiva transformação na sociedade contra as opressões contemporâneas.
10
Ao mesmo tempo, garantem o privilégio da continuidade de um dos maiores bens que
podemos acumular: a certeza de que a resistência contra a segregação e a luta pelo direito à
igualdade de oportunidades efetivamente é um direito de todos.
Nesta perspectiva, a Casa de Cultura (AFRO) Fazenda Roseira –
reflete o
amadurecimento da comunidade jongueira em Campinas, que a partir do pertencimento
comum consegue distanciar-se das particularidades e das questões partidárias e dar um passo
a frente, pela construção de um Projeto Sócio-Cultural, Educacional e Ambiental para a
afirmação, formação e pela valorização da cultura afro brasileira em sua mais ampla
diversidade.
Referências Bibliográficas
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo. Editora UNESP, 2001.
DURHAM, Eunice -“Cultura, patrimônio e preservação”, texto n. 2. In: ARANTES, Antonio
A (org) Produzindo o passado. São Paulo: Brasiliense, pp.23-24, 1984.
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Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Secretaria municipal de Cultura/DPH, 1992.
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11
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Nova Fronteira, 1990.
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“O JONGO DA CASA GRANDE” Alessandra Ribeiro