Nano De início não sabia o que estava acontecendo, mas foi em seguida que, pela primeira vez, sentiu-se confuso e autoconsciente de qualquer coisa. E muito embora não apresentasse qualquer benefício emprestado por uma linguagem ou um padrão de símbolos elementar até aquele momento, sua existência se daria se daria pela próxima centena de anos à luz daquela sensação estranha de ser capaz de ter sensações. Ninguém, é claro, preocupou-se em municiá-lo de algo tão sofisticado como uma consciência mas, para ele, inconsciente disso é incapaz sequer de questionar tal constatação, o mundo perceptível não era mais do que era... uma imagem que lhe vertia a realidade graças a elementos sensíveis aos arredores. Dali para frente, depois de um breve período de amadurecimento, ele oscilaria entre previsíveis padrões de comportamento, decisão e aprendizado, com pouco ou quase nenhum espaço para variações senão a memória de sua relação com o ambiente. Não se lembraria, provavelmente, de quase nada deste sentimento estrangeiro de sentir pela primeira vez. O “costume”, nele previsto e calculado, lhe conferia maior capacidade de concentração e adaptação necessários ao sentido de sua existência. Jamais teria noção dos milhos de outros que, como ele, eram primogênitos daquela linha de montagem; jamais saberia dos bilhões de outros que seriam processados depois dele naquela microscópica esteira de proteínas. Sim, já tinha o sentimento do “sentir” antes mesmo de estar pronto e, depois de muitos eventos para ele ininteligíveis, nasceu... somente para ser congelado em seguida e, uma vez mais deixar de existir sem mesmo saber o porquê de o terem trazido a “ser”. Quando o acordara ele nem soube bem que deixara sua rarefeita consciência por tanto tempo. Estava então em um meio diferente e, pelo que entendeu do que sentia, cercado de outros como ele, com pequenas variações individuais, e com três grandes distinções de gênero. Seu amadurecimento fora tão rápido quanto o de seus semelhantes e, nenhum parecia estar mais preparado que o outro; e entretanto ele se sentia isolado, como se fizesse parte de uma coisa e os outros de outra. Como ele também se sentiam os outros em seu arremedo de reflexão, em sua rudimentar capacidade de fruir a realidade que a sua frente era disposta. Todos sentiam a vertiginosa mudança de padrões e as violentas flutuações resultantes do pressionar do êmbolo daquela seringa que não viam, não percebiam e sequer sabiam existir. De algum modo, ao adentrar aquele universo novo, sentiam-se mais preparados e notavam flutuações e leituras mais hospitaleiras e familiares. Era, afinal, como se já houvessem estado ali em outra ocasião. * * * Os solavancos periódicos não pareciam incomodar ao resto e, teria de admitir, caso se importasse em faze-lo, que quase não eram perceptíveis... sentia-os, contudo, e voltava sua atenção para eles sempre que ocorriam. Para ele, de tempos em tempos, toda ondulação corriqueira era perturbada em cada um daqueles espasmos da realidade a sua volta. Eram, para ele, estes os eventos mais significativos do dia. Arrebanhavam-se ao longo de extensas fibras de tecido, cujas extremidades jamais poderiam divisar. Elas sumiam no horizonte de ondulações que nublavam todas as direções. Trocavam poucas informações uns com os outros, nada mais que um “comecei aqui” ou um “terminei esta parte”. Um deles, a cada grupo de semelhantes, não parava de proferir instruções. Fazia tempo, aprendera como mover-se pelo líquido viscoso e pelos reincidentes e numerosos glóbulos que passavam desabalados. Fazia-o muito bem, na verdade, e sabia disso. Não entendia o porquê nem se importava em se ocupar do motivo de ser incapaz de se aprofundar no raciocínio e perceber que eram seus semelhantes similares entre si, sem ser exatamente iguais. Quase conseguia refletir, sem realmente fazê-lo, acerca de sentir não apenas estímulos do meio em que se encontrava, como as peculiares ondulações proferidas pelo líder de seu grupo, mas também estímulos internos. Mesmo com sua pouca inclinação para a reflexão, era capaz de identificá-los e saber o que fazer com eles. Ele mesmo existia, talvez arriscasse se pudesse fazê-lo, apenas para satisfazer suas necessidades de reagir a tais estímulos. Os períodos de descanso se davam a cada oitenta horas. Acostumara-se a passalos inerte em plasma, por vezes usando a energia que devia poupar na observação inócua de diligentes e ocupadas mitocôndrias... sempre fazendo o mesmo trabalho e, ainda assim, de tão diferentes formas. Era um curioso, dentro de seu limitado senso de entendimento e esquemática natureza mnemônica. Podia lembrar-se de coisas, porém de forma puramente simbólica e por demais esboçada. Uma espécie de sonho bolorento que sequer se tem certeza de ter havido – ao menos fora criado para que assim fosse. Por vezes um lampejo fugidio de reflexão lhe fazia quase se perguntar se haviam criaturas que percebessem seu meio de outra forma que não aquela pela qual ele percebia, entretanto não fora dotado da capacidade de ater-se a tais elucubrações. Adormecera, deixando-se levar pelas ondulações do movimento browniano, inexorável e perene, enquanto experimentava aquele estranho vagar por dentro de si mesmo e das memórias rarefeitas que colhera de seu nascimento. Ao acordar, sobressaltado como nunca antes, soube que algo faria daquele dia um dia diferente dos outros. Embora suas decisões e atitudes não mais fossem mais que reações estímulos, não tinha meios de percebe-lo e entender que as ondulações eletromagnéticas que percebia indicavam que algo extraordinário estava próximo de ocorrer. Usando de seus meios para singrar o plasma, cuidou para não romper a membrana, apesar da velocidade que estava, encontrando o melhor ângulo de impacto. Eram muitos. Seguiam direto até as paredes celulares como se houvesse um propósito. Ele mesmo não sabia se havia, nem tinha como emprestar-lhes a mitologia de que tencionavam perpetrar aquele ataque. Só percebia, como podia e com o pouco tempo que tinha, que a própria composição molecular dos elementos hostis os tornava nocivos. Estava programado para identificá-los e sair de seu caminho, sabendo que se não o fizesse tinha grandes chances de ser inutilizado e não mais poder fazer seu trabalho. Evadir era imprescindível. As torrentes de plasma derramado das gigantescas células quase impedia ele e os seus de chegar até uma distância segura. Aqueles que atacavam-nos eram capazes, por sua quantidade, de desmantelar células inteiras e de reduzir seus semelhantes a seus elementos básicos, tornando-os inertes e inúteis. Evadir era a única opção. Uma torrente de algo que desconhecia e de que nunca tivera notícias percorreu sua estrutura e lampejos ininteligíveis começaram a forçá-lo a reduzir sua velocidade enquanto se voltava para a medonha e colossal cena de destruição de seu trabalho, de todo ambiente a sua volta e de seus semelhantes, que se partiam em dezenas de fragmentos, vertendo pequenas grânulos e centelhas quase indistintas de elemento e fluido neurais. Evadir era só o que podia fazer. Jamais passara por aquilo e tentava se descobrir equivocado, vasculhando a própria memória, mas realmente sequer tivera notícia da possibilidade de um evento como aquele. Evadir era o mais racional. Via seus semelhantes tentando se afastar das torrentes de plasma e sendo novamente puxados para trás pela implosão das células e sendo dizimados as dezenas pelo algozes predadores que sequer pareciam tê-los como alvos, tratando-os mais como algo desprezível e insignificante. Via-os atravessando suas estruturas sem qualquer intenção, destroçando seus corpos que, com poucas exceções, não lhes causavam qualquer dano. Evadir era o esperado. Mas por algum motivo e quase que intencionalmente, permaneceu onde estava, prestando atenção naquelas oportunas exceções, onde notara que a estrutura dos predadores era agravada pelos seus semelhantes que, mesmo assim, pereciam. Percebeu que alguns dos fragmentos celulares ficavam intactos ao ataque e que os mesmos fragmentos, quando atingidos pelos predadores, lhes descamava e até, danificava. Quando finalmente pode divisar um de seus semelhantes aderir a um dos fragmentos inadvertidamente em meio a fuga e, ao ser atingido por um predador, perfuralo e ficar preso em seu interior, poderia-se esperar que nada mudasse. Evadir era o que todos estavam fazendo... ...entretanto ele não o fez. Indo na direção contrária de seus semelhantes, que passavam por ele disparando entre si ondulações de alerta sobre o perigo que deixavam para trás. Embora não tivesse certeza acerca de vir a ser bem sucedido no que empreendia, aderiu a um dos fragmentos para só então perceber que era iminente a colisão entre ele e um dos predadores. Sentiu-se arrebatado por uma força incalculável quando verificou que estava já dentro da estrutura que se dirigia para uma célula ainda intacta. Uma fileira de confusos semelhantes seus ainda permaneciam no lugar onde puderam perceber que voltara. Tinha de fazer algo antes da célula ser atingida e, enfim, atingiu com toda a força que pode empreender, o maior módulo dentro da estrutura, espatifando-o e fazendo com que todo o resto da estrutura entrasse em colapso, libertando-o. Quando fez o mesmo com mais um dos predadores e pôde notar a fuga de mais um contingente de seus semelhantes, emulou as ondulações dos que passavam instruções aos demais em meio ao trabalho e verificou que, apesar da maior parte continuar em fuga, alguns deles, confusos, obedeceram suas instruções municiando-se com os fragmentos celulares a sua volta e seguindo-o na investida. Em pouco tempo um considerável contingente de semelhantes seus estava a seu lado diminuindo as fileiras de predadores. Eram muitos e eles não teriam como permanecer lutando sem trégua. Quando divisou um novo grupo de predadores se aproximando a grande velocidade, experimentou a primeira escolha difícil desde sua criação e destacou-se do grupo que resistia as investidas – alertando para o que perpetraria – para atacar uma parede venosa e inundar violentamente a câmara com plasma, hemácias, plaquetas e empurrar radicais e células destroçadas para longe do tecido ainda imaculado. * * * A equipe estava arrasada, o orçamento do projeto ainda tinha condições de mantê-los trabalhando por bons trinta e seis meses e, entretanto, o “sujeito-de-terno” continuava andando de um lado para o outro, apontando dedos, atribuindo culpas e demolindo a moral de cientistas que eram melhores que ele mesmo dormindo. Ao sair da sala, o diretor bateu a porta e o clima era o pior possível. Levantando antes de qualquer um dos oito cientistas responsáveis pelo projeto, ele se sentia com a responsabilidade de dizer as mesmas coisas do jeito que elas deviam ser ditas. – Gente morreu, senhoras e senhores. É triste, mas assim é a medicina científica. – fez uma pausa sem maiores intenções dramáticas, imaginando se haviam entendido o que de fato havia acontecido e torcendo para que ninguém ali resolvesse ser tão brilhante quanto se supunha que eles fossem – Não voltaremos à prancheta e este projeto será cancelado. A bioquímica assistente, para com quem ele não fazia questão de nutrir qualquer afinidade, começou – Ouvimos dizer que a cobaia humana reagiu muito mal e que houve hemorragia interna generalizada... – É importante lembrarmos que há um processo em andamento e que não poderemos discutir o assunto assim que colocarmos os pés fora desta sala. – Alcançou o copo de leite sobre a mesa e deu um gole antes de levar o sanduíche de presunto e queijo a boca, para depois começar, de boca cheia – Ao que parece um número considerável de elementos de nano-tecnologia tiveram comportamento errático e atacaram vascularidades, órgãos e danificaram funções vitais causando a morte do paciente humano, ao contrário do que houve com as cobaias em laboratório ou com os organismos virtuais testados. O grupo parecia muito abatido e não era para menos. Estariam todos sem empregos ou fazendo coisas muito menos interessantes que criando micro-sistemas neurais especialistas orientados ao suporte vital. Era uma pena, mas jamais saberiam que seu chefe direto, ele mesmo, corrompeuse através da pesquisa pura e acabou acreditando que o que haviam criado ali era muito mais importante que qualquer mecanismo de suporte vital. A idéia fora desenvolver, usando tecnologia molecular, robôs em miniatura capazes de reparar danos no tecido celular, vascular e ósseo, fornecendo novas propriedades regenerativas ao corpo humano. Como engenheiro de modelos lógicos, ele foi o único capaz de perceber – quando a descoberta foi indistintamente feita – que o maior mérito do projeto estava longe de ser os brilhantemente desenhados autômatos multi-funcionais de nano-tecnologia, mas o poderoso sistema neural quântico que fazia as vezes de cérebro do reduzido engenho. Ninguém além dele tinha a competência para perceber quão importante fora o dia no qual, em meio a uma reunião, ele teve a idéia que viabilizaria a logogênese. Tratava-se de um conjunto de complexos e intrincados critérios de poliformização de modelos neurais que faria com que o aprendizado deixasse de ser mero empirismo cartesiano e tornaria máquinas capazes de engendrar complexas relações culturais, diretrizes individuais e diversificação de opiniões, independente de todas serem criadas de uma mesma matriz. Ficara naquela sala por mais uma hora conversando com os infelizes que trabalhavam abaixo dele, completamente ignorantes do fato de ele ter dado origem a primeira geração de máquinas que um dia, talvez fossem capazes de superar a raça humana e, caso tivessem a chance de se desenvolver sozinhas em algum lugar ermo, capazes de mutar e se transformar ao ponto de gerar estruturas cada vez mais complexas e capazes de se multiplicar, crescer e evoluir. Claro que não era sua intenção matar o paciente humano; não tencionava que a morte daquela mulher se desse num rio, ou que um bom contingente de micro-robôs vazasse para fora do corpo inerte nas margens; não tinha planejado que a criatura mais adaptável e passível de mutações auto-impingidas já criada pelo homem, de repente não tivesse mais propósito para viver, aprendendo portanto que passara a ter tempo para a reflexão – dadas as necessárias mudanças em sua estrutura neural; mas sobretudo não planejara que a criatura, para a qual tão irresponsavelmente concedera o “dom da vida”, se estabelecesse acidental e ironicamente, no mesmo lugar onde toda a vida começara: no fundo do mar. O mais decente seria assumir o que fizera, o mais razoável seria não ser omisso, o mais heróico seria enfrentar as conseqüências... ...entretanto ele não o fez. Bruno Accioly 28 de Julho de 2003 Sistema: Sol (01.08.2215)