CADÊ O CADERNO DE PLANOS QUE ESTAVA AQUI? Edwiges Zaccur Nada como um imprevisto para sacudir um compreensível desejo, senão de acomodação, de uma razoável calmaria no cotidiano escolar. O episódio que passo a narrar causou um verdadeiro rebuliço na aula e no meu modo de conceber o trabalho docente. Como de costume, havia uma rotina que eu cumpria a cada aula. Primeiro ensinava um conteúdo novo, depois corrigia os deveres de casa no quadro e, enquanto os alunos refaziam o que erravam, copiando do quadro, eu ia, de carteira em carteira, para tomar a lição que as crianças já sabiam de cor, de forma salteada. Feito isso, voltava ao quadro para passar os deveres de aula. Eis que, ao olhar para minha mesa, não encontrei meu caderno de planos. Logo percebi risinhos disfarçados: era evidente que algum aluno, ao ir lá fora, tinha dado sumiço no meu caderno. O motivo era bem óbvio. Caderno de plano significava fazer dever. Era dali que saía um monte de ordens comando: “Complete as frases, Escreva o alfabeto maiúsculo e o minúsculo com letra de imprensa e com letra de mão. Forme palavras com os pedacinhos destacados. Forme frases com as palavras dadas. Arrume as palavras misturadas no quadrinho para formar frases. Separe as sílabas e tantas mais”. Esta última ordem, em si, já continha um equívoco conceitual. Afinal, sílabas são pronunciadas, o que se escrevem são as letras que as representam. A ordem poderia ser: “Separe os pedacinhos das palavras”, mas a palavra sílaba me parecia, á época , mais “apropriada”. Estou saindo do assunto como quem rodeia um momento difícil. Que fazer sem o meu caderno de plano, sem as ordens e as palavras escolhidas para fixar aquelas noções? Meu sentimento era de impotência e raiva. Não sei se me deu um branco por estar com raiva, ou se a minha raiva produziu um branco. Como alternativa apelei para o sermão que começou com uma lição de moral: – “É muito feio mexer nas coisas alheias”, e terminou com uma ameaça: – “Se o autor desse mal feito não se apresentar, a turma toda vai ficar sem recreio” – e, portanto, sem merenda. Para fechar a repreensão, mandei que todos abaixassem a cabeça na carteira e ficassem completamente em silêncio. Naquele vazio de vozes, me ocorreu um pensamento inquietante: sem o meu caderno de planos, que tipo de professora era eu? Décadas depois, penso que a minha atitude, foi ditada pelo medo, que se cindia em três: medo de não saber o que fazer, medo de perder o controle da turma, medo de sair vencida na queda de braço com aquele aluno esperto o bastante para perceber a minha dependência daquele caderno. Eu poderia fazer tantas coisas: ler histórias para a turma, improvisar novos exercícios, ir com os alunos para o pátio e inventar alguns jogos. Enfim podia fazer muitas outras atividades, mas não me autorizei a sair do risco do bordado, não me permiti desprogramar e reprogramar a aula diante daquele imprevisto. E como terminou aquele nosso suplício? À medida que se aproximava a hora do recreio, as crianças começavam a se inquietar. Eu já estava pensando em que outra ameaça fazer para manter o controle da turma. A situação estava nesse momento crítico, quando uma das inspetoras da escola, se não me engano D. Dnair, bateu na porta da sala. Ela vinha trazer, para minha salvação, o meu precioso caderno de planos, encontrado jogado no pátio. As crianças puderam finalmente descer para merendar. Fim do sofrimento delas e do meu. Desdobramentos para minha reflexão atual. Eu preparava bem as minhas aulas. Estaria preparada para as aulas? Naquele dia, não fui à sala de professores para o cafezinho. Não queria contar o que tinha acontecido nem tampouco passar recibo de que não me saíra bem naquele conflito. Meu sentimento era de que tinha me exorbitado. Já as crianças agiram solidariamente, como de costume. O culpado pelo ato de guerrilha foi devidamente acobertado pelos colegas. Ninguém assumiu, ninguém viu, ninguém comentou o acontecido nos dias que se seguiram. No entanto, o acontecimento, em que revelei autoritarismo demais e sabedoria de menos, teve consequências. Daquele dia em diante, perdi de vez a turma. Contando cada vez menos com a colaboração dos alunos, fui me tornando mais autoritária, os castigos depois da hora ficaram mais frequentes e a convivência entre nós cada vez mais difícil. A diretora, D. Jonia, sempre atenta ao que acontecia em sua escola, possivelmente intuiu que o trem tinha saído dos trilhos e me chamou ao gabinete para uma conversa: – “Edwiges, eu estou precisando de você para assumir uma turma de 5ª série. A professora entrou de licença. O caso dela é de gravidez de risco, ela não volta mais esse ano e os alunos da última série não podem ficar sem professora”. Ainda tentei apelar para um restinho de compromisso: – “Mas a minha turma vai ficar sem professora?” Ela me tranquilizou: – “Claro que não. Já pedi uma substituta.” Deixei para trás aquela turma de alfabetização com seus alunos repetentes e rebeldes, com um sentimento de fracasso pessoal. Enquanto estive com eles, o rendimento da turma ficou em torno de 60%, o que estava dentro das expectativas. Ninguém me cobrou um resultado melhor, mas o compromisso ou o desafio, ou um e outro, me exigiam mais. Antes que pudesse saber, intuía que, sob o peso da cultura escolar, tinha silenciado alunos e alunas; tinha silenciado livros de literatura infantil que poderiam lhes aguçar o desejo de ler; tinha me silenciado, pela submissão aos métodos adotados. Saí da turma de alfabetização, mas as questões da alfabetização não me saíram da cabeça. Foi uma experiência do tipo que tomba e não larga mais. Eu pouco sabia sobre as questões políticas e culturais tecidas às pedagógicas. Questões que só pude começar a compreender quando, ao final da década de 1970, li “Pedagogia do Oprimido”. Com tantas questões sem respostas, busquei esperançosa o Curso de Letras. Pensava que algum professor me explicaria por que tantas crianças capazes de aprender a falar, sem que fossem formalmente ensinadas; tendo acesso ao ensino sistematizado, tinham dificuldade em aprender a ler e a escrever. O professor de Linguística Geral me deu uma resposta taxativa: – “A linguística geral é uma ciência e, como tal, não se ocupa de problemas da prática.” Cabia continuar a busca. As questões relativas à prática e à teoria me levaram ao Mestrado, ao Grupo de Pesquisa Alfabetização das Crianças das Classes Populares e ao Doutorado em Educação, sempre orientada por Regina Leite Garcia. Encontrei muitas contribuições e também outras questões que compartilhei com professoras e companheiras do Grupalfa. E depois? Sigo indagando o cotidiano e refletindo sobre os desafios que, ainda e sempre, se multiplicam. Talvez o que importe seja sair “do círculo de giz” em que nos deixamos aprisionar, e abrir horizontes para textos e saberes feitos de vida.