A VIAGEM DO EMIGRANTE DOS TEMPOS DA VELA AO SEGUNDO PÓS-GUERRA COM PARTICULAR ATENÇÃO À PARTIDA DO PORTO DE TRIESTE de Francesco Fait Para nós observadores do século XXI a viagem do emigrante possui uma importância particular, de tudo, já perfeitamente presente às milhões de pessoas que nas décadas e séculos passados foram protagonistas ou testemunhas e aos observadores que lhe precederam. Não a caso, no período que ficou conhecido como “grande emigração transatlântica”, entre 1871 e 1914, existia o costume de esticar um fio do convés do navio à terra firme, o qual se arrebentava no momento em que o navio se distanciava do cais para levar a sua carga de emigrantes ao oceano. Era uma simbologia forte e evidente, apesar de, na realidade, não totalmente representativa, seja porque amiúde os emigrantes eram viajantes experientes e sagazes que arrebentavam e emendavam o fio várias vezes (basta pensar a Golondrinas e Birds of Passage, que se movevam sazonalmente entre a Europa e as Américas), seja porque frequentemente o embarque acontecia em portos estrangeiros, em terras nas quais o viajante não haviam nenhum vínculo, e então nestes casos o fio já havia sido arrebentado centenas e milhares de quilômetros atrás, talvez em qualquer estação ferroviária rumorosa e cheia de gente. Sem contar que a viagem pelo mar, a travessia transoceânica, era só um segmento da viagem do emigrante, que teve e teria tido outras fases igualmente importantes no percurso de casa ao porto de embarque, na permanência no próprio porto e então, no desembarque acontecido, no mesmo modo, de novo em porto e finalmente ainda em viagem até o destino final. Porém, continua de qualquer forma inegável que a travessia oceânica seja embebida de um peso simbólico tendendo a caracterizar-la como o ápice e o emblema da experiência emigratória. As viagens, viagens por mar para fins emigratórios, em fundo se assimilham todas nos paradigmas que as compõem, ao ponto que poderiam ser fatas análises diacrônicas a partir do período da vela ao segundo pós-guerra fazendo um confronto e comparando-os, por exemplo, a gênese da decisão de partir ao invés da alimentação, ou o pernoitamento a bordo, ou então o alojamento uma vez alcançado o porto de desembarque. A presente contribuição tentará recontar tais paradigmas sobretudo com respeito ao período mítico da viagem do emigrante, incluindo as últimas décadas de 1800 e os primeiros anos de 1900, com particular atenção a situação do porto de Trieste, que na primeira década do século XX teve um papel muito significante para o tráfego emigratório europeu às Américas (e que foi notável também no período entre as duas guerras com respeito às partidas dos hebreus para a Palestina e de um certo interesse particular para a emigração italiana assistir do segundo pós-guerra). Foram utilizadas fontes diversas, que se referem à bibliografia científica, à documentação arquivada, à análise de prosas de escritores, às recordações autobiográficas daqueles que haviam atravessado o oceano como emigrante. Não é este o lugar para uma reflexão historiográfica sobre as fontes mas um elemento chama atenção já à primeira vista: a viagem com fins emigratórios era interpretada em modo muito diverso de quem o analisava com respeito a quem o vivia, e não era só uma questão de diferença de padrão cultural. Assim sendo, por exemplo, Georges Guyan comentava em 1898 a visão de frotas de emigrantes italianos em movimento: “Os emigrantes são mandados tão distante, em terras incultas, para preparar-las, de maneira que depois, em um segundo momento, sejam trabalhadas e as regiões nas quais terminam aglomerados, são ainda mais inóspitas, poderíamos dizer, ainda mais selvagens que as partes remotas da Itália que foram as suas demoras anteriores; e, entre o ponto de partida e aquele de chegada, essa gente atravessou a civilização contemporânea como o viajante apressado atravessa um oásis, vindo das regiões do deserto mais distante. È gente destinada a não usufruir da civilização intra vista per um momento; os emigrantes não são iniciados a ela, não participam, senão completamente em modo passivo, isto é, na medida em que são vítimas.” 1 O escritor francês no parágrafo apenas citado descrevia pelo menos dois tòpoi emigratórios: o emigrante visto como vítima e a antinomia civilização/nãocivilização, tòpoi sobre os quais se poderia discutir. No primeiro caso se pode observar como não é tão óbvio dar ao imigrante o estereótipo do despreparado 2. No segundo emerge com certa prevenção e pressa no subdividir o mundo em zonas geográficas, incluindo-as ao grupo da civilização ou àquele contrário e no negligenciar que até nas zonas identificadas como civis existiam espaços, outrossim vastos, de marginalidade, também sendo aceita a observação que o emigrante entrava em contato com uma civilização somente “vislumbrada”, com a qual haveriam contato a distância, permanecendo fatalmente confinados nos vagões ferroviários de terça e quarta classe somente para serem transferidos em pousadas ínfimas, dispersas nas periferias das grandes cidades, ou naquelas estruturas frequentemente perigosas e imundas que eram a casa do imigrante. Porém podem parecer muito diferente da imagem apenas descrita as valutações de alguns que a experiência emigratória tinham vivido realmente, obtendo uma visão mais astuta e desencantada, que pode derivar ao mesmo tempo da proximidade e distância aos eventos narrados (proximidade por terem sido protagonistas e distância pelo tempo decorrido entre o evento da imigração e o momento da recordação), mas também, provavelmente, da luz refletida do sucesso substancial da experiência emigratória, quando o sucesso aconteceu. Em fundo, a vida a bordo através do oceano não era nada mais do que uma fotografia do que acontecia em terra firme. Se nascia , se adoentava, se morria: “Muitas mulheres eram... quase no fim e partivam igualmente, talvez convencidas de economizar na viagem ou economizar no parto, porque não custava nada; a verdade era que as crianças pequenas menores de 6 meses ou menores de um ano não pagavam nada, estavam com a mãe. Em cada viagem nascia um, dois; um ou dois... bem, sempre bem, sempre bem. Nenhuma criança jamais morreu. Em vez disso, em cada viagem morriam um ou dois homens, talvez idosos, talvez tristes, não sei que coisa tinham.” 3 1. A citação é transcrita de Giuseppe D'Angelo, Il viaggio, il sogno, la realtà. Per uma storia dell'emigrazione italiana in Venezuela (1945 – 1990), Edizione del Paguro, Salerno, 1995, p. 10. 2. A este propósito foi observado como a escolha inicial dos emigrantes era muito frequentemente mais estratégica do que geralmente se possa pensar: “Os acontecimentos depois de chegar ao novo mundo valiam quase sempre para provar que, juntamente a uma parte 'irreflexiva' e alcançado definitivamente o seu destino, a maior parte dos emigrantes, era residente in pectore que naquele passo não era desprovida de um próprio projeto e colocava em prática, antes e depois da partida da Europa , uma série de movimentos estratégicos, de maneira alguma ingênua, mirados a realização, através da valorização de poucos recursos (solidariedade familiar e parental, instituições mutualísticas étnicas, redes de relações interpessoais, etc.), de resultados satisfatórios.” Fonte: E. Franzina, Traversate, Le grandi migrazioni transatlantiche e i racconti italiani del viaggio per mare, Editoriale umbra, Foligno, 2003, p. 27. 3. Texto retirado das memórias de Lucia Nebbiolo Gonella, piemontese, que em 1901 emigrou em Argentina recém-nascida, atravessando várias vezes o oceano até 1960, ano no qual reentrou na Itália para residir definitivamente em Gênova. Fonte: C. Lupi, “Trenta giorni di macchina a vapore”. Appunti sul viaggio delgi emigranti transoceanici, “Movimento operaio e socialista”, N.3, setembro-dezembro 1983, p. 479 A decisão de partir A decisão de partir, de deixar a própria casa, de iniciar a viagem, possui razões que remontam a situações de necessidade ou de desconforto: miséria, desemprego, exploração, impostos excessivos, usura, conjuntura do clima ou do mercado. Situações profundas, enraizadas, insolúveis em breve tempo, que em um certo ponto porém parecem ser resolvidas jogando a carta da emigração. Sobre a escolha de emigrar e sobre a meta decidida, pelo menos na primeira fase da “grande emigração”, os intermediários, os mediadores, os funcionários da emigração, os representantes das companhias de navegação possuem um papel fundamental e se tornam imediatamente os destinatários da polêmica anti-emigratória, imediatamente dedicada a descreverlos como perturbadores sutis e desonestos e, de reflexo, a descrever o futuro emigrante como autômatos privados de discernimento: “Por toda a parte estão espalhados personagens que sentem o cheiro da miséria e da insatisfação e oferecem o bilhete de embarque àqueles desgraçados que querem abandonar a pátria, ou lhe instigam a vender a casa, ou as propriedades rurais e a terra, para obter o dinheiro da viagem. Os médicos que estudam o poder da sugestão poderiam fazer observações certeiras sobre os emigrantes, para ver como uma idéia introduzida no cérebro pode agir quase sem uma participação da consciência sobre a vontade do homem. A fome, a fraqueza, o abatimento exaltam a manipulabilidade e tornam mais fácil a sugestão. O vetor estende a mão a estes miseráveis para levantarlos e emprega toda a arte do seu trabalho para impressioná-los, para interessar-los, para jogar nos seus cérebros a idéia da redenção. Uma vez obtida a promessa ele faz com que ela seja mantida: sustentando-os se titubeantes, conduzindo-os em frente mesmo quando davam um passo para trás.”4 A propaganda, o advertising emigratório, foi em cada caso um fenômeno vasto, complexo e estruturado, bem além do clichè do recrutador turvo e enganador, da qual a figura em todos os casos foi somente a ponta do iceberg, ou seja, o elo da corrente mais perceptível e percebido pelo emigrante, e próprio por isso submetido frequentemente a recriminações e represarias dos descontentes e delusos. 5 4. A. Martellini, Il commercio dell'emigrazione: intermediari e agenti, em P. Bevilacqua, A. De Clementi, E. Franzina (coordenado por), Storia dell'emigrazione italiana. Partenze, Donzelli, Roma, 2001. p.293. Algumas vezes, aqueles que induziam a emigração eram pessoas insuspeitáveis, como aconteceu em Cavenzano (Campolongo al Torre, Udine) onde a falar foi o padre durante uma homilia dominical em 3 de novembro de 1878, na qual, “tendo como pretexto o argumento da homilia 'sobre os Faraós' disse que aqui também existiam faraós que davam a entender ao povo que nas Américas deveriam lutar contra serpentes e contra a febre amarela. As serpentes, disse ele, são elas que se alimentam do pobre povo para sustentar o seu lobo; e a febre amarela é aqui, onde eu desde quando sou pároco enterrei entre 7 e 800 indivíduos dos quais pelo menos 600 mortos de pelagra, como posso comprovar dom os meus registros. … Não creditem, disse, que eu estou aconselhando vocês a emigrarem; mas ao invés de morrer de pelagra será sempre melhor tentar a América; a menos que os seus patrões não mudem o sistema, para não chegar ao ponto de conduzir os bois sozinhos e arrastar o arado.” Fonte: F. Cecotti, D. Mattiussi, Un'altra terra, un'altra vita. L'emigrazione isontina in Sud America tra stroria e memoria (1878 – 1970), Centro de Pesquisa e Documentação Histórica e Social “Leopoldo Gasparini”, Gorizia, 2003, pp.18-19. 5. Se vede por exemplo nas linhas que seguem, nas quais Francesco Sartori, um agricultor vêneto, fala sobre as boas-vindas reservadas aos intermediários em Marselha, em novembro de 1877, que haviam prometido um embarque em um navio a vapor que se revelou no fim das contas um navio a vela: “Chegaram os traidores de Marselha. De P..., C... e T... E nós em cerca de 100 pessoas os encurralamos e queríamos matar todos os três. Uma confusão, extraordinário assim.” Fonte: E. Franzina, Merica! Merica! Emigrazione e colonizzazione nelle lettere dei contadini veneti e friulani in America Latina (1876 – 1902), Cierre Edizione, Verona, 1984, p.79. A partir do terço quarto do século XIX foram os países de imigração a criar canais de comunicação com a Europa, frequentemente mandando seus agentes além do oceano. Brasil e Argentina ofereciam condições atraentes (respectivamente passagem gratuita, aquisição imediata dos direitos civis, repatriação gratuita para viúvas, órfãos e trabalhadores inválidos e alojamento gratuito em hotel para emigrantes por alguns dias com viagem gratuita em direção ao interior do país) predominantemente na Itália e na Europa Meridional. No caso dos Estados Unidos, a propaganda e a venda de terras para produção e cultivo, que se endereçou principalmente a Grã Bretanha e Europa Setentrional, foi organizada por vários estados como Texas, Virginia ou Califórnia, mas também por companhias ferroviárias como a Illinois Central, a Kansas Pacific, a Missouri Pacific, a Union Pacific. Foram utilizadas técnicas publicitárias avanzatas e persuasivas, sobretudo feita pelas companhias ferroviárias que invadiram estações, hotéispara emigrantes e pontos e portos de embarque e de desembarque com material de todos os tipos e em alguns casos mais além com exposições itinerantes, organizaram pequenos albergues nos lugares de destinação como primeira assistência, incentivaram os recém-chegados a escrever para casa esperando assim obter novas adesões.6 Na Itália, a controlar o recrutamento dos emigrantes, foram, antes da lei de 1901, as grandes agências, geralmente localizadas em cidades litorâneas, como as genovesas Colajanni, Laurens, Gondrand ou as napolitanas Ciamberini, Rocco Piaggio e Raggio, as quais foram obrigadas porém pela mesma lei a transferir esta gestão às companhias de navegação. A estrutura das agências antes e das companhias depois era pulverizada em uma rede verdadeiramente maciça, que obviamente cresceu junto com o desenvolvimento quantitativo do tráfego emigratório: em 1892 os mediadores eram cerca 5.000, em 1895 7.000, em 1901 10.000 e em 1911 13.000.7 Sobre o tipo de pessoa que se dedicava a tal atividade não havia diferença substancial entre a situação precedente e aquela sucessiva à lei de 1901, que tinha abolido a figura da agência de emigração para confiar também a fase do recrutamento ao vetor, ou seja, à companhia de navegação. Se tratava em todos os casos de pessoas que tinham um certo prestígio ou credibilidade social, uma certa cultura, além de um discreto grupo de ocasiões nas quais podiam mostrar tais dotes: prefeitos, secretários municipais, párocos, professores primários, autoridades municipais, marechais da polícia aposentados, barbeiros, comerciantes. 8 Avaliar o impacto e o sucesso da propaganda sobre a decisão de emigrar é nos dias atuais muito difícil. A grande quantidade de material que restou para a posteridade (anúncios em jornais, panfletos, brochuras, folhetos) poderiam induzir a superestimar o peso e o papel, enquanto que parece realmente que, passada a fase inicial na qual as únicas informações sobre o mundo ao qual se aspirava eram aquelas fornecidas por quem tinha interesse em alistar mão-de-obra e passageiros, fossem mais credíveis as notícias que chegavam de parentes e conhecidos que a emigração haviam já vivido ou estavam vivendo. E frequentemente os canais da comunicação se tornavam então as cartas, documentos caracterizados de uma evidência comunicativa que a publicidade – frequentemente e notoriamente abusiva ou mesmo enganadora – de certo não possuía. Quem as escrevia conhecia a situação, seja em pátria que no novo mundo, e não devendo vender nenhuma passagem podia ser considerado sincero e honesto nas valutações.9 _______________________________________ 6. P. Taylor, The Distant Magnet. European Migration to the USA, Eyre & Spottiswoode, Lodon, 1971, pp 76 – 79. 7. A. Martinelli, Il commercio dell'emigrazione …, cit., p. 297 8. Op. Cit., p. 301. 9. É sempre necessário, porém levar em conta que existem também cartas por assim dizer inspiradas, seja no senso emigracionista que no senso anti-emigracionista, nos quais eventos desconfortáveis eram ocultados o deformados por várias razões; no primeiro caso, por exemplo, para receber o dinheiro pela intermediação e no segundo para favorecer os ambientes próximos aos proprietários de terras que temiam o êxodo dos agricultores das suas terras. A viagem antes da viagem, a escolha do porto, o pernoite e o embarque no navio Muito frequentemente o emigrante, logo após ter deixado a terra dos antepassados, alcançava o porto de embarque em trem, provando no “vapor terrestre” aquelas condições de imundice, super lotação e promiscuidade que caracterizariam as fases sucessivas da viagem. Teodorico Rosati, um especialista em saúde marítima, em 1908 lançava acusas contra a sociedade ferroviária italiana que “concedendo aos emigrantes o desconto de 50% na tarifa ordinária, ensacava aqueles desgraçados em vagões de quarta classe, fazendo-os viajar mais lentamente que os trens de carga, e dando até a preferência de trânsito aos trens com gado.” 10 Acontecia sempre que os emigrantes na sua viagem de trem devessem trocar de vagão em estações em países dos quais não conheciam a língua, e hoje se encontram nos arquivos históricos, em maio a documentos seqüestrados das autoridades policiais, mapas manuscritos nos quais estão marcados os nomes das localidades onde efetuar as trocas de trem para chegar ao porto de embarque. 11 Informações que poderiam ser dadas também por representantes das diversas companhias de navegação localizadas nos pontos mais freqüentados, os quais faziam notar a sua afiliação com distintivos ou peças de vestuário decoradas com as cores sociais das respectivas sociedades. Para o emigrante era já iniciada a aventura em um território desconhecido, para decifrá-lo era forçado ás vezes a confiar nos conselhos e nas experiências de gente nunca antes vista, que não raramente se revelava fanfarrão, trapaceiro o ainda pior, e podiam realmente terminar muito mal por terem acreditado em pessoas erradas. Não era um caso, de fato, que nos terminals ferroviários das cidades litorâneas estariam como sentinelas, a ajudar os órgãos competentes, representantes de sociedades humanitárias, como a San Raffaele, ou – presença documentada na estação de Trieste nos primeiros anos de 1900 – da Liga Contra o Tráfico das Brancas. A respeito da escolha do porto de embarque ao qual destinar o emigrante, não se tratava decerto de uma questão sobre a qual fosse dado um modo ao interessado de pronunciar-se; muito claro deste ponto de vista um documento não reconhecido (mas produzido no ambiente da Câmara de Comércio de Trieste, então – somos em 1913 – cidade do império austro-húngaro), no qual se pleiteava uma norma sobre a emigração que canalizava integralmente o grandioso movimento nacional no porto de Trieste: “Somente na Áustria, onde o respeito da liberdade individual não é muito marcado em outros campos, se opõem [à fixação por lei da obrigação de servir-se do porto de Trieste para os emigrantes austríacos]: 1. que não é lícito realizar violência à livre escolha da via de embarque da parte do emigrante, 2. que a viagem via Trieste há uma duração maior, 3. que os meios de transporte disponíveis em Trieste não são suficientes para cobrir todo o movimento migratório do país. Não será difícil de minar estas objeções. Não é o emigrante a escolher o porto de embarque, mas as companhias de navegação as mesmas que segundo as indicações do grupo aumentam ou abaixam os preços de passagem em modo de equalizar o número de emigrantes transportados por cada sociedade à quota atribuída nos acordos internacionais; mas a multidão inumerável de agentes, mediadores e intermediários de todos os gêneros que exploram o emigrante ignorante e analfabeto fazendo-o viajar cegamente, frequentemente com longos giros viciosos.”12 ___________________________________ 10. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, Vallardi, Milão, 1908, p.69 11. Um mapa muito bonito desse tipo se encontra reproduzido em F. Cecotti, D. Mattiussi, Un'altra terra, un'altra vita … , cit., p.25 12. Arquivo do Estado de Trieste, Câmera de Comércio, arquivo 155, posição 305-05 Eis então a situação do mercado internacional dos embarques dos emigrantes delineada com eficácia, esta era dominada por um cartel de empresas que reunia companhias de navegação inglesas, holandesas, alemãs, francesas e norte americanas, que de fato determinavam o tráfego emigratório entre a Europa e o Canadá e os EUA. O cartel subdividia preventivamente entre os participantes zonas de influência e portos de partida, escalas e destinos. Quanto entre a programação e a realidade se realizavam descartes se aplicava uma tarifa de compensação em virtude da qual as sociedades que haviam trabalhado mais do que o devido eram obrigadas a dar uma parte do próprio lucro àquelas que, ao contrário, haviam sido penalizadas. 13 A influenciar na fixação dos percentuais confiados às diversas companhias nos vários portos não era só a força contratual das próprias companhias, sendo frequentemente determinantes com respeito às decisões, algumas vezes somente anunciadas, dos governos. É então neste sentido provável que a dar uma quota relevante das emigrações Westbound para os Estados Unidos à companhia triestina Società Austriaca di Navigazione (mais conhecida simplesmente como Austro Americana) e assim com respeito ao porto de Trieste, não haviam sido irrelevantes, as prospectivas de uma “nacionalização” da emigração austríaca que seria portanto partida toda da capital do Litoral Austríaco. Trieste soube assim conquistar nos primeiros anos de 1900 a quota de 4% da emigração continental em direção ao Estados Unidos, o que a permitiu de colocar-se em nono lugar na classificação relativa aos anos 1908 – 1913. 14 A importância da escala triestina teria crescido ainda mais, havendo já sido previstas para o futuro percentual maior que o dobro (precisamente de 7 % depois de primeiro de maio de 1915 e de 10 % para o período incluso entre o primeiro de janeiro de 1919 e 31 de dezembro de 1929), se não se fosse intrometido o início da primeira guerra mundial a zerar os tráfegos emigratórios. Uma vez fora do trem, os emigrantes haviam o problema do pernoitamento até o momento ao qual seriam embarcados, e a situação era diferente de acordo com a cidade e o país ao qual haviam tido a sorte de terem sido endereçados. Na Itália, já antes de 1901, a permanência antes do embarque era por lei responsabilidade do mediador, com o objetivo de eliminar o costume de afluir os emigrantes furtivamente com larga antecedência com respeito à data de partida para assim fornir a vasta rede de operadores econômicos que tiravam vantagem das suas permanências na cidade. Do ponto de vista infra-estrutural, não existiam os hotéis ou casa dos emigrantes, mas somente as pousadas autorizadas, que em 1905 eram a Nápoles 87 (com 2400 camas), em Gênova 33 (720 camas), em Palermo 25 (770 camas), em Messina 18 (341 camas). 15 ___________________________________ 13. E. Franzina, Traversate..., cit., p. 40. A prática dos cartéis, que era permitida do direito internacional e se realizava à luz do dia: servia para evitar formas de concorrência, ditas “a faca”, que haviam no passado causado danos enormes às companhias. A Hamburg-Amerika Linie avia iniciado em 1885 fazendo um acordo com as companhias britânicas para reduzir o volume dos tráfegos destas últimas companhias a Hamburgo em troca de um abandono alemão de Gutemburgo. Depois, em 1888, foi feito um acordo entre as companhias alemãs e a Red Star Line da Antuérpia. Em 1892, estas companhias, juntamente com a HollandAmerika Linie, fundaram o assim chamado “grupo do atlântico norte” - North Atlantic Steamship Association – com o intuito de fixa algumas regras para a publicidade comparativa e as quotas dos tráfegos futuras em proporção às divisórias de 1880. Em 1908 foi a Cunard Line a promover um cartel com as outras companhias com a idéia de fixar as tarifas e repartir os fluxos emigratórios. Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, …, cit., p. 95. 14. G. Russo, Emigrazione transoceanica e trasporti marittimi dal porto di Trieste, “Bollettino dell'emigrazione”, N.2, 1919, p.4. A classificação é a seguinte: Nápoles 156.125 passageiros em média ao ano; Brema 150.249; Gênova 126.897; Hamburgo 115.676; Havre 73.752 (a média se refere porém ao período 1908 – 1912); Antuérpia 69.697; Roterdã 47.229, Fiume (atualmente Rijeka) 25.616, Trieste 25.391. Parece evidente portanto que, à luz do tráfego de dimensões colossais que se deu nos anos precedentes à primeira guerra mundial 16 – anos nos quais a liderança nas partidas para as Américas foi concedida dos portos da Europa setentrional àqueles italianos – grande parte dos emigrantes se dispersavam nas cidades portuárias confiando-se à estalajadeiros abusivos. Estes terminavam por formar um verdadeiro e próprio lobby, capaz de obter em 1907 em Nápoles o fechamento de uma casa do emigrante que poderia ter hospedado 900 emigrantes,17 de induzir a cidade a uma greve geral quando, quatro anos depois, para enfrentar uma epidemia de cólera, as autoridades sanitárias preparam um posto de saúde para emigrantes.18 Os portos italianos eram deficitários também de outras infra-estruturas necessárias às operações de embarque: basta citar o caso de Gênova que por grande parte de 1800 se serviu de um atracadouro, Ponte Calvi, privo de construções ou barracas, e apenas entre os anos 1877 e 1890, no âmbito de ampliar as estruturas portuárias, um atracadouro propositalmente construído (Ponto Federico Guglielmo) foi destinado somente ao tráfego de passageiros e foi erguida a Estação Marítima, dotada de dois edifícios utilizados para controles e serviços (alfândega, consultas médicas, lojas, latrinas) separados por um barracão capaz de proteger do sol e das intempéries os passageiros em espera. 19 Muito diversa a situação nos portos alemães, como Hamburgo, onde existiam adicionalmente um condomínio para os emigrantes que se estendia “sobre uma área de 25.000 metros quadrados concedido gratuitamente pelo Estado por 25 anos à Hamburg-Amerika Linie”, com tantas lojas, locais de culto e de entretenimento, ou como Brema, onde haviam preferido evitar a centralização e logo utilizar as pousadas, “50 pousadas para 3.775 emigrantes, e se necessário também para mais de 5.000”, cada uma das quais constituía um “alojamento bom sob qualquer aspecto e funcionando em modo impecável”.20 Em Trieste, a sociedade líder do mercado local da emigração, a Austro Americana,21 ao contrário ______________________________________ 15. A. Molinari, Porti, trasporti e companie, em P. Bevilacqua, A. De Clementi, E. Franzina (editado por), Storia dell'emigrazione italiana. Partenze, cit., p. 251 16. Em 1913, ano no qual o tráfego atingiu o seu ápice, os volumes de tráfego foram: Nápoles:209.835; Gênova: 138.166; Palermo: 62.745; Messina: 6.367. Fonte: A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, ci., p. 247. 17. G. Rossoli, L'assistenza sanitaira all'emigrazione di massa verso le Americhe (1880-1915), em “Sanità, scienza e storia”, N. 2, 1986, p. 187. 18. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p.252 19. A. Gibelli, Emigranti, bastimenti, transatlantici. Genova e la grande ondata migratoria, in P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por), Transatlantici, Scenari e sogni di mare, Skira, Milão, 2004, p. 200. 20. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e dei marinai, cit., pp. 47-48. 21. De 1903, ano em qual foi ativado o serviço de transporte além do oceano de emigrantes pela Cunard Line no porto de Trieste, até 1914, ano em que tal serviço foi interrompido por conta da explosão do conflito, a Austro Americana, embarcou 83% dos emigrantes e as concorrentes Cunard Line e Canadian Pacific Railway respectivamente embarcaram 14,7 e 2,3% dos 220.312 passageiros de terça classe que tiveram como destino: 73,5% em direção ao Estados Unidos, 22.1% para América do Sul e 4,4% para o Canadá. Fonte: A. Kalc, Prekooceansko izseljevanje skozi Trst 1903 – 1914, em “Zgodovinski časopis”, ano 46, 1992, n.4, pp. 484 e 489. das concorrentes na praça, escolheu seguir o modelo do porto de Hamburgo, munindo-se de uma casa do emigrante,22 que foi várias vezes visitada por autoridades, sanitárias e de segurança pública, que produziram continuamente documentos preocupantes e alarmantes. Em março de 1905 interveio uma guarda sanitária da Prefeitura de Trieste que iniciou o seu relatório notando que para os mil e duzentos viajantes em partida com o piróscafo Gerty, faltavam colchões, sendo disponíveis “600 colchões novos e 300 colchões em uso sobre piróscafos”. Assim prosseguia o elenco das irregularidades: “ Uma parte dos emigrantes não recebe nem ao menos uma coberta para a noite [..] Os emigrantes se cortam os cabelos [assim no original Nota do autor] ou se raspavam a barba nos dormitórios [..] Nos dormitórios por causa da massa de pessoas, por causa de muito lixo acumulado, pelo barro que existe em todos os ambientes, sem que ninguém se preocupe em deixar aberta pelo menos uma parte das janelas há um fedor insuportável [..] São unidos 2 ou 3 assim chamados leitos e sobre eles fazem dormir 5 – 6 pessoas [..] Os banheiros são mantidos pessimamente”.23 Em abril de 1906 foi registrado um caso de varíola, que foi pretexto para o relatório de um médico do Hospital civil, que escreveu entre outras coisas: “... o espaço disponível é somente para no máximo 700 emigrantes e os irmão Cosulich colocam lá mais de 1.000. As macas são muito próximas umas das outras; e estão presentes até nos corredores. Até os refeitórios deixam muito a desejar, não existem lixeiras estáveis, o lixo é simplesmente empilhado no quintal onde permanece por muitos dias e no fim são entregues aos agricultores (!). Sendo assim, um local onde se considera um fluxo extraordinário de emigrantes (100 recém-chegados por dia) constitui um permanente perigo. E a prova foi obtida precisamente com este caso de varíola – que pode infectar sabe-se lá quantos indivíduos, aglomerados como senão naqueles ambientes. A casa de boas-vindas não é dotada de nenhum aparato de desinfecção a vapor; em certas cidades onde fluem tantos emigrantes tudo é melhor organizado; cito Marselha, Gênova, Nápoles e etc.!”. 24 ____________________________________________ 22. Para tal fim adquiriu um edifício que foi projetado em 1980 e materializado logo depois. Se encontrava no distrito periférico de Servola, de frente para o mar, e era uma bela construção localizada no centro de uma área verde. As dimensões em planta eram 38 x 50 metros e era constituído de um porão, dois andares superiores mais um terceiro andar no sótão. O proprietário era a Sociedade dos Amigos da Infância e servia para dar alojamento a colônias de crianças, frequentemente com doenças pulmonares, fazendo-as gozar dos benefícios dos banhos de mar. Em 1893 em todo o edifício haviam quatro salões destinadas a dormitórios, dois deles capazes de hospedar “15 meninos” e duas capazes de hospedar “15 pagantes”. Em agosto de 1894 os técnicos da Sociedade projetaram a preparação de outros dois grandes quartos no sótão. Em 1913 a Casa do emigrante sofreu enormes mudanças: aumento do edifício, ao qual foi adicionado 3 andares, e a usa destinação exclusiva a dormitórios, capazes de dar descanso a 3000 emigrantes, e adicionando outros dois edifícios destacados, os quais combinados como pavilhões de isolamento e outro de refeitório. A nova Casa do emigrante não pôde quitar as suas tarefas por alguns meses, em um primeiro momento por causa da explosão da guerra e da conseqüente cessação dos fluxos emigratórios e em um segundo momento, a partir de outubro de 1916, sendo destinada a um hospital auxiliar. O edifício em questão existe ainda hoje, embora reestruturado recentemente. Se encontra na Via Italo Svevo 15 e hospeda uma escola. Fontes: Prefeitura de Trieste, Área de Planejamento Urbano, Arquivo de desenho técnico, desenho 6536 e Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, Seção IV, 566/13. 23. Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, exibição 22.502/1905, 1/9-2/1905. 24. Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, exibição 25.129/1906, 4/4-1/1906. Outros casos de varíola na Casa do emigrante da Austro Americana se deram em 1913. O problema sanitário foi levantado ainda, continuamente, tanto até forçar a Austro Americana a substituir a prática de lotar além da medida a Casa do emigrante e a procurar locais suplementares, utilizando “também próprias embarcações que serviam de albergues provisórios em mar: um albergue flutuante, que não permite que os emigrantes proliferem na cidade e sejam hospedados no centro da cidade, trazendo tanto perigo para a nossa saúde pública”.25 Resta o fato que a questão sanitária ligada a passagem na cidade de milhares de emigrantes por ano era de extrema urgência, sobretudo para uma cidade que, como Trieste, revelava em matéria de saúde e higiene um sofrimento surpreendente. A cidade havia crescido em modo desproporcional naquela década entre os recenseamentos de 1900 e 1910, dando vida a um aumento demográfico de mais de 50.000 habitantes, mensurável na ordem de 28,5%, enquanto o sistema de esgoto e aquele fornecimento de água restavam totalmente inadequados. A situação habitativa era desastrosa, somente em parte aliviada pelo programa de edificação de casas populares confiado ao Instituto Municipal de Habitações Mínimas. Entre as classes populares imperava a tuberculose, o alcoolismo, a pobreza e a decadência. E se difundiam as epidemias, como o tifo e a varíola, que em 1913 registrou 15 casos mortais.26 Portanto parece hoje que fosse freqüente o medo que entre os passageiros de terceira classe existissem portadores de infecções capazes de funcionar como estopim e infectar alojamentos populares, “aluga-leito” ou mesmo a Casa do emigrante. Os lugares de recuperação para os emigrantes são sempre descritos, em documentos históricos, que se ocupam de questões que interessam a burocracia sanitária, e de quem os escreve a distância de anos em uma prospectiva de reconstrução histórica, como péssimos e portanto investidos de reprovação. E é certamente possível seguilos em caráter “concentracionais”, basta pensar somente ao fato que vinham posicionados o mais próximo possível às estações ferroviárias para evitar ou reduzir ao mínimo relacionamentos e contatos com os residentes até a partida do navio. Mas ocorre sempre ter presente o fato que foi muito pior aos emigrantes que terminavam naqueles portos privos de infra-estrutura dedicadas à eles, obrigados a mover-se em grupos à mercê de contágios e pessoas mal-intencionadas, para depois acamparem sobre os bancos a esperar o navio compondo aquelas imagens de uma multidão indefesa e desesperada que foram tantas vezes descritas. Chegava finalmente o momento do embarque, precedida das fases de preparação do navio, que decerto deveriam parecer misteriosas a quem as via pela primeira vez: o vai-e-vem de trabalhadores que efetuavam manutenções e preparação de bordo, dos “coffinanti” que derrubavam o conteúdo dos seus cestos enormes nos funis para o carvão. E, finalmente, acontecia o embarque através do passadiço, símbolo e prelúdio daquela “realidade líquida” que teria sido para todos a base de apoio do navio na fase de passagem do velho ao novo mundo.27 ______________________________________ 26. Em dezembro de 1913 a Prefeitura confiou um estudo sobre as causas da difusão do tifo a um cientista trazido propositalmente de uma outra cidade. O relatório não foi de maneira alguma tranqüilizante, resultando inexistentes ou insuficientes todas aquelas “instituições geralmente elencadas no conceito de 'saneamento higiênico'. Estas são: uma boa canalização, um distanciamento ideal dos lixões e das imundices, uma provisão irrepreensível de água, o controle do mercado de alimentos, o melhoramento das más condições de moradias”. Algumas circunstâncias resultavam particularmente alarmantes, como por exemplo “o fato, que na peixaria, além da água de Aurisina [ou seja do aqueduto público] foi canalizada a água do porto, depois de ser feita uma simples depuração. Ora, aquela água marinha foi colhida a somente 150 metros da saída de alguns canais da cidade e é exposta além de tudo a contínua poluição dependendo do movimento dos navios.” Fonte: W. Prausnitz, Parere del Prof. Prausnitz sulle condizioni igieniche di Trieste in nesso all'epidemia di tifo, Graz, 1913, Arquivo General da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, Seção V, 1913/2-3697. A travessia Antes do advento dos navios a vapor, os emigrantes viajavam a vela. Se tratava de travessias que frequentemente se transformavam em verdadeiras e próprias odisséias, e não é a caso que se referiam aos navios a vela, na metade de 1800, chamando-os Coffin Ships. Eram embarcações que efetuavam transportes mistos, pessoas e mercadorias (como farão também depois, por décadas, os navios a vapor). Por quanto diz respeito à direção da Europa à América setentrional, no trajeto Westbound, transportavam, além de passageiros, também ferro, tecidos, vidro, tijolos e produtos químicos e ao retorno, no trajeto Eastbound, algodão, tabaco, trigo, gado e porcos.28 Os emigrantes zarpavam da Havre para Nova Orleans, de Brema para Baltimor, de Liverpool para Nova Iorque, Quebéc e Boston, dividindo a viagem com vacas, ovelhas, porcos, à mercê dos ventos, das correntes, das geleiras. Sendo aleatória a duração da viagem, era muito difícil para os passageiros calcular as provisões e o dinheiro de qual munir-se, o que os deixavam expostos à fome o aos truques da tripulação que conheciam perfeitamente o mecanismo e os abusam ás vezes dando conscientemente notícias erradas no momento do embarque.29 Nos tempos da vela não demorou muito para se improvisar vetores para os emigrantes, bastava ter um veleiro de dimensões médias; o investimento poderia ser até modesto mas, reciprocamente, o frete era muito elevado: em 1851 o frete por emigrante era páreo ao custo por tonelada de um veleiro. 30 Muito frequentemente a partir da improvisação nasciam situações críticas. De uma dessas, que se refere a cidade de Trieste, restaram pistas nos arquivos porque foi de uma gravidade tal para ter sido objeto de interesse da parte das autoridades judiciárias e da polícia da cidade, então capital do Litoral Austríaco. Em 1888 dois banqueiros triestinos, Isacco e Giuseppe Morpurgo, alugaram três navios a vapor do Lloyd Austriaco, o Helios, o Orion e o Medusa, que zarparam de Trieste respectivamente em 25 de outubro, 25 de novembro e 27 de dezembro, todos os três diretamente ao Brasil com as suas cargas de emigrantes do território de Trieste e do Reino da Itália.31 A tentativa dos irmãos Morpurgo de dedicar-se continuamente e definitivamente ao tráfego de emigrantes teve um fim frustrante por uma série de fatores concomitantes, primeiro de tudo uma ação penal por seus danos feita pela polícia austríaca e a proibição de instituir agências de emigração a Trieste emitido da autoridade local do Litoral Austríaco em janeiro de 1889. Mas foi uma tentativa notável, que na primeira viagem teve um epílogo muito interessante, com um contingente de cerca duzentos triestinos que, desembarcando em uma localidade diferente a respeito daquela acertada, reagiram a delusão produzida pela mudança das promessas e a realidade com uma série de reivindicações e __________________________________________ 27. G. Carosio, Navi da emigranti, em Lamerica! 1892 – 1914 Da Genova a Ellis Island: il viaggio per mare negli anni dell'emigrazione italiana, Sagep, Genova, 2008, p.80. 28. P. Taylor, The distant Magnet, cit., p. 107. 29. M. A. Jones, Transatlantic Steerage Conditions. From Sail to Steam, 1819 – 1920, em B. Flemming Larsen, H. Bender, K. Vein (Editores), On distant shores. Proceedings of Marcus Lee Hansen Immigration Conference, Aalborg, Denmark, June29 – July 1, 1992, The Danes Worldwide Archieves, 1993, p. 68. 30. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p. 242 31. A reconstrução da história dos triestinos repatriados se encontra no Arquivo do Estado de Trieste, sede do Litoral, Atos Gerais, b. 481, f. 1.604. exigências, às quais na subscrição dos contratos, o intervento do cônsul austríaco e enfim o repatriamento à Trieste, via Gênova em um navio inglês, que os permitiu de tornar a casa em 14 de janeiro de 1889, dois meses e meio depois da partida. O comportamento recalcitrante e pouco remissivo tomado no Brasil pelos triestinos poderiam ser um convite a reflexão sobre o esteriótipo do emigrante como sujeito passivo, abandonado à uma corrente que era incapaz de controlar. A passagem entre a era da vela e aquela a vapor poderia ser desempenhado na vida e na experiência de Andrea Gagliardo, um agricultor genovês que desde 1847 até 1888 embarcou 14 vezes para a América. De algumas das 14 viagens restaram traços escritos no Arquivo Ligure da Escritura Popular que se encontra na Universidade de Gênova, o que permite confrontos interessantes. Existem duas notas sobre um seu manuscrito autobiográfico, separados entre eles por pouco mais de uma década, que fixam com clareza exemplos de transformações epocais na história das emigrações internacionais: “1847. Brigantino Bettuglia de Gênova a Nova Iorque. 57 dias. 1861. Vapor Etna de Liverpool a Nova Iorque. 17 dias.” 32 Se trata de uma verdadeira revolução, que se investiu sobre as variáveis principais da viagem do emigrante, ou seja, o porto de embarque, o tipo de embarcação e a duração da viagem. Não apenas os navios a vapor haviam suplantado os navios a vela, 33 se abriu uma nova fase que em breve se tornou uma epopéia: havia chegado o tempo dos desafios tecnológicos e construtivos entre as grandes companhias de navegação (Cunard Line, White Star Line, Hamburg-Amerika Linie, Norddeutscher Lloyd …, as mesmas que se colocavam na mesa para repartir as fatias do mercado dos tráfegos emigratórios criando os cartéis), que se empenharam com todos os seus recursos e energia para construir o maior, mais veloz e mais luxuoso navio. Foi o período dos gigantes do mar, dos desafios para rasgar a Fita Azul do concorrente, dos recursos pesados a serviço do progresso da indústria marítima. Mesmo se, ocorre observar, do ponto de vista da viagem do emigrante, os grandes transatlânticos representavam a excelência, o pico, as exceções, enquanto a extra-grande maioria dos circulantes continuou a ser constituído de navios velhos, lentos e espartanos. Foi assim que os emigrantes encontraram-se a dividir a viagem com os “passageiros de classe”, onde na definição é subentendida o cardinal primeira. E é uma categorização tão forte que permanece ainda hoje no linguajar para definir alguma coisa refinada, algo que se diz, justamente, de classe. Nascia uma dicotomia perene que se nutria de oposições: tantíssimos os passageiros na terceira classe, poucos na primeira; pouquíssimo espaço para o necessário, muito para o desnecessário; atração pelo destino final, consciência vaga ou nula da sua existência e essência;34 a viagem como fim ou distração e a viagem como obrigação para a sobrevivência ... ______________________________________________ 32. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p.237 33. A alternação aconteceu com uma certa cautela: os navios antes foram em ferro para depois tornar-se nos anos oitenta de 1800 em aço (e diminuir 15% do peso). Munidos de uma única hélice, mantiveram mastro e vela em caso de avaria, cautela rendida excessiva após a difusão de cascos com duas hélices. Quase contemporaneamente se iniciou a utilizar a eletricidade a bordo, que logo permitiu às embarcações de adotar frigoríferos e eliminar portanto a necessidade de transportar gado vivo para ser abatido durante a navegação, o que trouxe todos os benefícios do ponto de vista sanitário. Fonte: P. Campodonico, Dal Great Eastern al Queen Mary. Nascita di un mito moderno, in P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por), Transatlantici. Scenari e sogni da mare, cit., pp. 26 e 30. 34. A consciência do destino muitas vezes variava de acordo com a nacionalidade dos viajantes: “[...] the Germans have maps in their pockets and point out just the place of their several O alojamento a bordo dos emigrantes nos navios a vapor podia acontecer, como nos tempos da vela, em navios que carregavam também mercadorias (e em tal caso as paradas nos portos eram particularmente trabalhosas porque deviam organizar os dormitórios em estruturas modulares que vinham várias vezes montadas e remontadas) ou então, nos transatlânticos, juntamente aos passageiros de segunda e terça classe. Segundo observadores contemporâneos, a melhor solução não era nenhuma das duas, mas uma terceira, ou seja a construção de piróscafos dedicados somente aos emigrantes. De fato, as naves mistas não andavam bem depois de serem readaptadas sobre a base da “engenhosidade especulativa com regulamento a mão” e os transatlânticos muito menos pois viciados das circunstâncias que “era muito dar à eles a comodidade e o luxo das classes, porque todos os cuidados [poderiam] deveriam ser endereçados à população esfarrapada formada pelos emigrantes.”35 Para reconstruir a vida de bordo no decorrer da viagem são ainda muito úteis os guias do emigrante, sempre pródigo de conselhos e advertências. 36 Mas existem também outras fontes, que executavam a mesma função com tons menos paternalistas e com mais afeto e participação, como as cartas que quem havia já emigrado mandava à casa, para beneficiar os parentes e amigos que estavam para empreender-se a viagem. Eis um exemplo, tirado de uma carta de 1902 de Konstanty Butkowski aos pais, na qual, em referimento à próxima ida para América do irmão Antoni, o jovem escrevia: “Queridos pais … vos informo que mandei uma passagem para o navio a Antoni … Esperem de recebe-la logo … E lembre-se, Antoni, não mostre os seus documentos a ninguém, exceto nos portos em que deve mostra-los … E se receber logo a passagem, não espera, mas venha imediatamente … E mande-me um telegrama da Castle Garden. Não pagará muito, e eu irei à estação ferroviária. Porte com você quinze rublos, bastarão, e troque rapidamente em dinheiro prussiano. E quanto ao vestuário, traga os piores que tem, mais ou menos 3 camisas velhas, que você possa ter uma muda sobre a água. E quando atravessar felizmente a água então jogue fora todas aqueles trapos. Não traga nada com você, exceto aquilo que você veste. E não use nem ao menos bons sapatos, ma tudo da pior qualidade. Quanto a comida, traga um pouco de pão seco e muito açúcar, e cerca de um quarto de álcool, e um pouco de carne seca. Depois, traga algumas cebolas, mas não traga queijo … E seja prudente com o dinheiro em todos os portos. Não fale com nenhuma garota sobre a água. … “37 _______________________________________ destination” enquanto “the Polish emigrants […] do not understand where they are going […] because it is all 'America'.” Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, cit., p. 66. 35. T. Rosati, Assitenza sanitaria degli emigrati e marinai, cit., p. 72. 36. Eis um exemplo: “[O emigrante] A bordo não faça ruído, tenha um comportamento sério e respeitoso com todos, especialmente com as mulheres; não moleste os outros, não suje o pavimento, ao descamar a pele, tenha cura da sua pessoa, lave-se, penteie-se, troque frequentemente de roupas, não jogar, não compre alimentos além daqueles disponíveis a bordo; seja respeitoso, educado e leia algum livro instrutivo e pelo menos, para não ficar no ócio, se sabe ler pouco, se exercite na leitura para se aperfeiçoar. Nos dias de mar agitado não se exponha no convés, nas escadas, nas escotilhas, para evitar desgraças. Se possui crianças com você, vigie-as atentamente, cuide rigorosamente da sua limpeza. Para qualquer reclamação contate o Real Comissário viajante, que se encontra a bordo do piróscafo, e na sua falta, o médico de bordo faz a sua vez.” Fonte: Manuale per l'istruzione degli emigranti, Comissário Geral da Emigração, Roma, 1925, p.126. Muito interessantes os temas que vinham tocados na carta em forma de advertências: não vestir boas roupas (que as condições da viagem renderiam inúteis por serem usados noite e dia, pela contaminação com líquidos orgânicos – fezes, urina e vomito próprio e dos companheiros de viagem – e pelo efeito do pó de carvão que envolvia como uma nuvem os navios em viagem) 38; não vestir sapatos bonitos (que seriam roubados durante a noite); levar comida calórica e fácil de conservar (que serviria a integrar a refeição ou a substituí-lo quando o passageiro houvesse sofrido de mal de mar); ser prudente em cada porto com o dinheiro e não falar com as garotas (para evitar de cair em engano ou em fraudes, que evidentemente eram ás vezes também camufladas por intrigas de fundo sentimental). Nas cartas dos emigrantes se encontrava muito frequentemente a recomendação de ter cuidado com a própria bagagem de mão.39 Enquanto com os pertences colocados no bagageiro do navio, restava só esperar que não se realizassem furtos nas várias passagens de mão dos pacotes, furtos que não eram de fato infrequentes. Eis os lamentos de um emigrante, confiada a uma carta escrita do Brasil em 1889: “Não é raro o caso que […] o emigrante resta privo do volume de bagagem que exportou da Europa, que são raríssimos aqueles que chegavam felizes a Colonia. À um deles, não há muito tempo, que se lamentava que havia perdido todos os seus baús, teve a resposta que não devia lamentar-se, que objetos de vestuário existem também aqui. Duas esposas, casadas pouco antes de vir aqui, tinham guardado as coisas no criado-mudo e chegando em São Paulo o encontraram cheio de carvão. Os furtos que eram cometidas impunemente nos portos de Santos e Rio de Janeiro, com respeito às bagagens dos emigrantes, são inacreditáveis e eu precisaria de um quaderno inteiro para relatar todos os particulares.” 40 Ao que diz respeito às bagagens de mão, nos papéis arquivados se encontram não raramente, documentos capazes de ilustrar as suas consistências. Se tratam de verbais redigidos em forma de inventário do comandante o dos oficiais superiores em caso de óbito do proprietário. 41 ______________________________________ 38. O pó de carvão criava um tipo de névoa, motivo pelo qual os projetistas dos navios da época do vapor escolheram a pintura de cor preta. Eis um outro testemunho sobre os efeitos do carvão: “Não te digo que névoa de carvão que havia ao redor. Estávamos todos assim pretos e como fazia calor, porque é uma terra quente, não sei, todos suados e escorria a gota branca na pele preta.” Fonte: Trenta giorni di maccina a vapore..., cit., p.477. 39. Também Karl Rossmann, o emigrante kafkiano embarcado em um navio da Hamburg-Amerika Linie diretamente para Nova Iorque, considerava muito a sua bagagem, ao ponto que, durante a viagem, no dormitório havia “... por cinco noites continuamente suspeitado de um pequeno eslovaco que dormia duas beliches além da sua, à esquerda, temendo que mirasse a sua bagagem. Karl temia que o eslovaco espera somente que ele no fim, vencido pelo cansaço, se adormecesse para puxar as malas com um lungo bastão com o qual brincava ou fazia pequenas acrobacias durante o dia.” Fonte: Franz Kafka, Il fochista, em Racconti. Descrizione della tragedia dell'uomo moderno, Biblioteca Universale, Rizzoli, 1991. 40. Carta de Francesco Costantin, Colonia Angelica, São Paulo-Brasil, 8 de junho de 1889, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p.174. 41. Eis um, redigido ao leprosário de San Bartolomeo nas redondezas de Muggia em 3 de julho de 1911 para se responsabilizar dos efeitos da defunta Maria Soldan, galega, morta por cólera asiática. A senhora tinha 28 anos, morava em Nova Iorque e viajava em companhia dos quatro filhos que foram confiados a uma estrutura assistencial triestina. A sua bagagem de emigrante continha: No caso apenas citado na nota de rodapé se entende que a azarada súdita austrohúngara era uma viajante habitual das circunstâncias que era dotada de louças e talheres para fazer as refeições. Aos emigrados que não eram assim cientes e previdentes, o necessário vinha alugado no momento da primeira refeição com a obrigação de restituir na chegada eventuais objetos danejados o perdidos. A refeição acontecia de maneira diferente dependendo se o navio possuía ou não um refeitório. Os navios das companhias italianas eram desprovidos de refeitórios (foi introduzida uma experimentação apenas em 1906, a bordo do piróscafo Roma que fazia a rota entre Gênova e Buenos Aires, mas iniciaram a difundir-se muito mais tarde e com notável resistência por causa do espaço que vinha ocupado com a sua presença, subtraindo-o das beliches),42 e as refeições vinham servidos através da formação de um grupo de seis pessoas, das quais uma retirava a comida também para os outros e esta tinha o dever de distribuí-lo segundo critérios de igualdade.43 Eis um exemplo do funcionamento de tal sistema: “Bom, somos a bordo, fizemos logo amizade com uma pequeno grupo de homens que procuravam amigos para fazer um grupo de cinco para comer. Porque não tinham mesas e cadeiras, as pessoas comiam sentadas no chão. Então dissemos: “Sim, nós somos em dois”, “Nós somos aqui”, “Se nos aceitam ficamos felizes”. Aqueles lá beatos e felizes também nos deram o número para comer, que era como uma bacia para a sopa ou macarrão, uma bacia mais baixa para a comida, um prato de lata fundo para todos (tudo lata, é?), uma colher e um garfo, faca não. Os homens tinham os canivetes, e então o usavam, eram eles que cortavam. E beber... o copo naturalmente de lata com alça, senão queimava... Bom aquele café! Seria porque eu nunca tinha bebido, enfim... café, nada de leite... leite somente para as crianças até dez anos, para mim o davam ainda. E para o lanche uma sopinha... passava a enfermeira com... É, era necessário fazer fila na porta da cozinha. A cozinha era lá no alto, na parte de dentro. O homem encarregado do vinho, o homem encarregado da sopa e da comida, faziam um pouco de fila, pegavam as coisas, depois vinham para nós e cada um havia já encontrado um cantinho. Se tinham encontrado um cantinho nas cordas, sobre um banco qualquer, muitos traziam as espreguiçadeiras, não muitos mas muitos enfim.”44 Com referência à quantidade de comida que vinha administrada aos emigrantes devemos retornar a um fenômeno já mencionado, ou seja, sobre o comportamento muito frequentemente tomado pelos membros da tripulação que chegavam a administrar doses menores dos alimentos com respeito ao previsto com o objetivo de complementar o deficit com a venda de porções subtraídas da carga do navio ou mesmo introduzidas ilegitimamente da terra de maneira premeditada. ________________________________________ “5 colheres comuns; 3 garfos comuns; 1 canivete; 1 prato de lata,1 espelhim; 3 pentes; 9 copos de vidro variados; 1 pacote de chá; 1 escova para roupas; 43 peças de vestuário para crianças; 23 peças de vestuário feminino; 3 lenços; 4 pedaços de fita colorida; 1 toalha; 3 toucas para crianças; 5 pedaços de tecido variado; 1 cinto feminino; 2 pares de sapatos de crianças; 4 pares de sapatos de mulher; 3 pedaços de sabão; 1 manto pequeno; 38 pedaços de retalhos; 1 baú; 1 mala; 1 saco; 3 cadeados para a bagagem; 1 porta-moeda contendo 2 passagens para bagagens e 1 passagem Nova Iorque – Trieste, 2 anéis de ouro, 35 ¼ dólares.” Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Governo Marítimo, b. 860, fascículo 5.494 de 1913. 42. G. Rosoli, L'assistenza sanitaria all'emigrazione di massa …, cit., p.204 43. Critérios que eram muitas vezes virtuais, sem manifestar-se em comportamentos efetivos, sendo fatalmente destinados a prevalecer os passageiros fornidos de dinheiro que aceitavam de corromper os homens da tripulação, as mulheres jovens que aceitavam de utilizar a sua graciosidade, os homens robustos e prepotentes. Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, cit., p.138 44. Trenta giorni di macchina a vapore …, cit., p.476 No que diz respeito à qualidade dos alimentos, essa devia ser geralmente dita como muito discutível. Nesse propósito ocorre registrar o estupor de alguns observadores com a visão de que fossem nojentos os emigrantes em termos de gostos alimentares. Escreveu também Robert Louis Stevenson, que em 1879 tinha viajado a bordo do Devonia de Glasgow a Nova Iorque, misturando-se frequentemente durante o dia aos emigrantes (mas dormindo de qualquer maneira em uma cabine de segunda classe): “Houve alguém que estava assim próximo de morrer de fome na sua casa, que saltou sobre o navio, digamos, com o diabo nos calcanhares; para eles era tudo maravilhoso, e o nosso o navio mais esplendoroso. Mas a maior parte era profundamente descontente. Eu me surpreendi ao ver que possuíam gostos tão delicados, visto que vinham de um país em condições desastrosas como a Grã Bretanha, e muitos de Glasgow que, comercialmente falando, era a morte, e eram desocupados a tanto tempo. Eu também vivia quase exclusivamente, como eles, de pão, mingau e sopa, e achei o todo, se não de luxo, ao menos decente. Mas estes trabalhadores gritavam enfaticamente o seu protesto. Não era “comida para seres humanos”, era “bom para os porcos”, era “uma vergonha”. Muitos viviam quase exclusivamente de biscoitos, outros das suas provisões pessoais, e alguns pagavam a mais para ter porções melhores.” 45 O pernoitamento a bordo acontecia nos dormitórios, salões que poderiam conter até algumas centenas de pessoas, um verdadeiro caos, permanentemente sujas, úmidas, infestadas de germes, bactérias e parasitas, impregnados de um fedor para o qual os médicos de bordo cunharam o neologismo “fedor de emigrante”. 46 A área dos salões era realmente irrespirável por muitos fatores entre eles a temperatura, o ácido carbônico e o vapor de água causado pela respiração, os produtos tóxicos voláteis frutos da secreção dos corpos, a presença de fezes e urina e vômito, não retidos pelo mal de mar, que ninguém se preocupava em remover do pavimento e das vestes.47 Os dormitórios dos emigrantes eram divididos por sexo: até uma certa idade os meninos podiam estar com as mãe naquele reservado as mulheres, para passarem sucessivamente àquele dos homens. Ao pôr-do-sol acontecia a separação e nos diários de bordo dos piróscafos poderia calhar de ler que algumas vezes uma manobra causava preocupação à tripulação. De fato, não eram raros os casos nos quais eram os próprios núcleos familiares a ver com maus olhos a divisão, preferindo se misturar com os parentes – mesmo que fosse do sexo oposto – que a proximidade com desconhecidos do mesmo sexo. 48 ____________________________________________ 45.L. Stevenson, Emigrante per diletto, Einaudi, Turim, 1987, p.15 O motivo do emigrante que se lamenta desproporcionalmente a respeito dos desconfortos foi sublinhado também por uma colega do escritor escocês, Amy Allemand Bernardy, autora em 1913 de um livro intitulado L'Italia randagia attraverso gli Stati Uniti, que dizia: “A bordo não é sempre verdade que o emigrante seja sempre vítima. Mas pelo quanto se lamentam, setenta e cinco vezes para cada cem estava pior a sua casa e estará pior na sua casa nova.” Fonte: E. Franzina, Traversate. Le grandi migrazioni transatlantiche …, cit., p. 64 46. A. Molinari, Le navi di Lazzaro … cit., p. 157. Do mesmo teor outras vozes, como aquela já ouvida de Teodorico Rosati: “bem quem não viu um dormitório de emigrantes em ação, digamos, não sabe em que coisa se transforma depois de alguns dias estes leitos. O emigrante ali se deitava vestido e calçado, o usa como depósito de sacos e malas; as crianças ali deixam urina e fezes; e ainda vomitam; todos, de uma maneira ou de outra, o reduzia, depois de alguns dias, a uma casa de cachorro.” Fonte: T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p.91 47. A Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit., p. 17-18. 48. M.A. Jones, Transatlantic Steerage Conditions …, cti., p. 67 Era delicadíssima em qualquer caso o posicionamento em bordo das garotas que viajavam sozinhas, muito frequentemente, assediadas, molestadas o até mesmo violentadas sexualmente por outros emigrantes, mas sobretudo por membros da tripulação.49 Não era raro de fato os comandantes dos navios serem obrigados a intervir contra os seus subalternos, como fez, por exemplo, o comandante do piróscafo Argentina em viagem em 1925 de Trieste a Nova Iorque, que no diário de bordo invocou “os procedimentos adequados da parte da Capitania do Porto” da cidade giuliana contra 5 fogueiros e 4 carvoeiros senhor de ter arrombado noite a dentro uma porta de comunicação com a idéia de acessar os dormitórios dos emigrantes.50 O governo da nave não era de qualquer forma simples da exercitar para o comandante que detinha a responsabilidade e que devia supervisionar as atividades de centenas, ás vezes milhares, de emigrantes e ao mesmo tempo ter em mãos as intemperanças dos membros da tripulação. Não era infrequente o caso que os segundos envolvessem os primeiros agitando-os com pretextos; assim acontecia, por exemplo, a bordo do piróscafo Sofia em viagem entre Trieste e o Brasil em 1923, onde membros da tripulação induziram os emigrantes a um protesto organizado contro a qualidade da comida, uma macarronada definida “nojenta”.51 Particularmente intratáveis e ingovernáveis eram os fogueiros, que de propósito mantinham frequentemente baixa a pressão das caldeiras com o objetivo de diminuir a velocidade e condicionar o comandante, que se via obrigado a obedecer aos pedidos e reivindicações – podemos imaginar a contra gosto – para não causar atrasos. O caso dos membros da tripulação que, apenas tocado o porto de chegada, se confundiam com a multidão na área de desembarque sem deixar pistas era tão freqüente que fez surgir a suspeita que não se tratavam de desertores, como vinham indicados nos diários de bordo dos navios que abandonavam arbitrariamente, mas sim de emigrantes que tinham escolhido um meio de viajar menos desconfortável e promíscuo e mais trabalhoso dos seus “colegas”. Não é uma hipótese da excluir que em princípio existisse um acordo com o comandante do navio, que podia ser induzido a fechar os olhos por causa da dificuldade de alistar o pessoal para o trabalho braçal e também pelo fato que a última parte do pagamento de cada desertor não era feita, tornando-se uma economia de despesas a disposição das companhias e talvez até – querendo pensar mal – do próprio comandante. 52 ________________________________________ 49. O fenômeno era tão difundido ao ponto do Congresso dos Estados Unidos em 1860 votou uma lei que punia com um ano de cárcere e uma substanciosa multa pecuniária comandantes e oficiais que, como acontecia sempre, circundavam as passageiras com promessas de matrimônio para depois abandoná-las no porto de destino. Ana Herkner, inspetora de uma comissão americana sobre a emigração, em 1908 atravessou por 3 vezes o Atlântico como uma emigrante qualquer e referiu um contexto de ausência total de legalidade e respeito para com as mulheres. Do momento da partida as mulheres não acompanhadas perdiam qualquer foma de privacidade, sendo continuamente molestadas pelos membros da tripulação: quando se vestiam o se despiam nos dormitórios onde qualquer um podia ter acesso; ao ar livre, nas pontes, onde stewards, bombeiros, marinheiros, e outros homens da tripulação endereçavam à elas comentários vulgares e passavam até, não raramente, às vias de fato. Fonte: M. A Jones, Transatlantic Steerage Conditions …, cit., pp. 70 e 75-76. 50. Arquivo do Estado de Trieste, Diário de bordo do piróscafo Argentina, livro um, Diário geral e de contabilidade, N. 1.611, p. 15, 22 de outubro de 1922. 51. Arquivo do Estado de Trieste, Diário de Bordo do piróscafo Sofia, livro um, Diário Geral e de contabilidade, N 1.361, pp. 69-70, 2 de agosto de 1923. 52. Em certos casos os abandonos arbitrários eram em cada viagem números. Só para fazer um exemplo, se via o caso do piróscafo Presidente Wilson do qual, durante a viagem partida da Trieste Do ponto de vista sanitário, o navio era um lugar patogênico por excelência, como evidenciado das estatísticas italianas elaboradas pelo Comissariado Geral da Emigração entre os anos 1903 e 1925. As patologias que se difundiam a bordo mudavam de freqüência e de intensidade dependendo se a viagem era para a América setentrional ou meridional e se era a viagem de ida ou de volta. Ao que diz respeito à América do Sul, nas viagens de ida prevaleciam sarampo, malária e sarna, enquanto nas viagens de retorno tracoma, tuberculose e sarampo. Com respeito aos Estados Unidos, nas viagens de ida predominavam sarampo, malária, pneumonia, nas viagens de retorno, tuberculose, sarampo e alienação mental. As tipologias das doenças registradas nas viagens de ida são diferentes de acordo com os destinos, também devido ao sistema de controle dos vários países, que haviam malhas mais ou menos estreitas de acordo com as diversas legislações. Malhas que eram estreitíssimas no caso dos Estados Unidos, especialmente depois que foi instituída, com o intuito de limitar o quanto possível os rejetos por motivos sanitários no porto de desembarque e os conseqüentes, dolorosos, procedimentos de repatriamento, a figura do médico americano que examinava os emigrantes nos portos de embarque. 53 As estatísticas do Comissariado Geral da Emigração nos fornecem os dados de mortalidade durante a travessia entre os anos 1903 e 1935. Também neste caso devemos distinguir as viagens de ida e de volta e os destinos das proveniências, além de obviamente o ano de referência. Para as viagens de ida para a América do Norte os picos se deram em 1918, 1917 e 1922 (com taxas de 1,2, 0,7 e 0,6 por mil, respectivamente); para a América do Sul os picos se deram em 1920, 1921 e 1922 (com taxas de 0,7, 0,6 e 0,6 por mil). Para a viagem de retorno, os picos, decididamente em aumento, se deram para a América do Norte em 1918, 1917 e 1916 (com 3,15, 2,9 e 2,1 por mil, respectivamente) e para a América do Sul em 1919, 1921 e 1903 (com taxas de 1,8, 1,8 e 1,7 por mil). 54 Vítimas privilegiadas das patologias de bordo eram as crianças, que sucumbiam ao sarampo que de todas as outras doenças, por causa da superlotação, da falta de lugares para quarentena, da pouca eficácia do serviço sanitário e, no caso dos bebês, do fato que por culpa do estresse da travessia as mães perdiam o leite. A agravar os quadros clínicos já comprometidos contribuía muito frequentemente a naupatia, o mal de mar, condição que é sempre invocada nas histórias dos emigrantes: “Se o tempo é favorável vai tudo bem, mas é difícil fazer uma viagem tão longa sempre com bom tempo. Não encontro palavras adequadas para descrever-lhes por inteiro a perturbação a bordo do piróscafo, os choros, os rosários e as bestemias daqueles que fizeram a viagem involuntariamente, em tempos de tempestade. As ondas assustadoras que se erguiam em direção ao céu, e depois formavam vales profundos, o navio apanhou da poupa a prua, apanhou dos lados. Não lhes descreverei os espasmos, os vômitos (com reverência) e as contorções dos pobres passageiros que __________________________________________ em 22 de dezembro de 1923, nas escalas dos portos de Nápoles, Algéria e Nova Iorque e Boston “desertaram” em tudo 83 homens da tripulação. Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Diário Náutico do piróscafo Presidente Wilson, livro um, Diário geral e de contabilidade, N. 1.014. 53. O médico americano era um verdadeiro e real pesadelo para os emigrantes: “Em pé ao lado da passagem de uma porta que dava acesso à ponte de embarque, entre um guarda da polícia e um outro, mastigando um charuto e qualquer cigarro, este cérebro da medicina olha, toca, empurra e rejeita os emigrantes que se metem em fila um atrás do outro e um rigor extremo é reservado às doenças dos olhos, e ele gira as pálpebras de todos, um à um, alí ao ar livre, no meio da poeira, alternando este exercício digito-oftálmico com qualquer trago que, de tanto em tanto, dá em seu charuto que queima com dificuldade.” Fonte: T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p. 47 54. Reformulação dos gráficos presentes em A. Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit., pp. 143-144. ainda habituados a estes cumprimentos. O dia em que o mar é tempestuoso, poucos são aqueles que vão pegar comida, o chefe do refeitório podeira deixar de tocar o sino.”55 A descrição de tempestades e temporais é presente com altíssima freqüência também nos diários de bordo escritos pelos comandantes, que não economizavam palavras em descrições detalhadas com particular atenção às condições do mar e às repercussões sobre a carga do navio. Havia uma razão precisa para tanto interesse pelas condições climáticas: se tratava de anotações feitas para aliviar a responsabilidade do vetor no caso em qual a mercadoria sofresse qualquer dano através da demonstração que havia sido feito de tudo o possível para evitá-los. 56 No curso da navegação havia sempre o risco de acidentes ou mesmo de naufrágios. Aconteceram naufrágios famosos e alguns mesmo célebres, sobre os quais não seria o caso de discorrer. Fazemos uma exceção para o mais notório de todos ao ponto de ser transformado em proverbial, aquele do Titanic, e somente como observação digo que apesar dos emigrantes terem sido a “extra-grande” maioria dos passageiros, foram muito poucos os que se salvaram. Na época dos fatos explodiram polêmicas ferozes em mérito, e alguns disseram que a causa de tantas mortes foram as suas próprias aversões em abandonar o navio, porque não poderiam acreditar que o navio não era inafundável, porque não queriam deixar a bordo as malas, porque eram alojados em posições tais para poder alcançar as pontes superiores somente com muito atraso. 57 A socorrer os náufragos da capitânia do White Star Line foi um piróscafo da concorrência, o velho e golpeado Carpathia da Cunard Line, que percorria a rota da Fiume (e Trieste) a Nova Iorque e, encontrando-se a cerca de 40 milhas do local do desastre com os seus 740 emigrantes a bordo e 325 homens da tripulação, lançou o S.O.S. para o Titanic. O capitão Rostron não exitou a lançar o navio além dos 17 nós (velocidade que se dizia ter sido alcançada somente em testes) e depois de 4 horas de corrida louca no oceano cheio de icebergs alcançou e salvou os sobreviventes, 712, dos quais um morreu a bordo por hipotermia.58 ______________________________________________ 55. Carta de Francesco Costanti, Colonia Angélica, São Paulo – Brasil, 8 de junho de 1889, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p. 174. 56. Eis um exemplo: “Nas tardes o mar piorava muito e imprimia ao piróscafo fortíssimos movimentos bruscos. Frequentemente o navio era golpeado pelo mar. Frequentemente a hélice saía fora d'água e a máquina sofria agitações acentuadas assim como o navio.” Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Diário Náutico do piróscafo Belvedere, Livro um, Diário geral e de contabilidade, N. 1.623, p. 75, 26 de setembro de 1922. 57. P. Campodinico, Dal Great Eastern al Queen Mary. Nascita di un mito moderno, em P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por), Transatlantici. Scenari e sogni di mare, cit., p. 51. 58. Carlo Gerolimich, que foi comandante do Austro Americana confiou às linhas de um de seus livros a receita de como evitar um desastre como aquele do Titanic: “Várias propostas foram expostas para defender os navios dos icebergs que desciam à deriva no caminho de Nova Iorque:mas nenhum deles teve até hoje aplicação prática. … Mas, entanto, o único modo para proteger-se das geleiras errantes é a atenta e ininterrupta vigilância: e quando a névoa envolve o navio o melhor é confiar nas graças de Deus e diminuir o máximo possível a velocidade. Quem não é fatalista dificilmente se conforma com o primeiro remédio, e quem tem pressa não aceitará por nada o segundo...” Fonte: C. Geromolimich, Manuale pratico del capitano e armatore, Ettore Vram, Trieste, 1915, pp. 395-396. Mas na travessia oceânica não haviam somente doenças, lutos, tragédias, enganos, opressões, misérias. Ás vezes se passava o tempo com serenidade se não até mesmo divertindo-se, graças a passatempos organizados, como os fogos de artifício descritos por De Amicis,59 ou ao passar pela linha do Equador fazer o batismo dos emigrantes que pela primeira vez se encontravam no outro hemisfério, ou espontâneos como as danças ao som de pequenas orquestras improvisadas. Muito vívidas as recordações de uma emigrante, das quais as histórias de quando era uma criança já nos foram úteis, sobre o modo no qual, os peixes e os pássaros que acompanhavam o piróscafo podiam com a sua companhia oferecer um divertimento aos pequenos passageiros: “Ah, as gaivotas, quantas gaivotas! Nunca vistos, naturalmente. Voavam aqui e lá pedacinhos de qualquer coisa, porque lhes davam pouco. Não é como hoje que ela tira da sala de jantar um cesto de pão. Então o tinham um pouco em contato, é? Mas em resumo, as crianças... Porque os cozinheiros, os camareiros, jogavam os restos, não sei, e então aquelas gaivotas! E então os peixes que voavam, para nós pequeninos! Voavam dos cardumes de pequenos peixinhos que pareciam feitos de prata, nos seguiam. E depois dos peixinhos... o que eram, aqueles, espertos, são espertos … os golfinhos. E depois uma vez, foi no Mafalda, que batemos naquela baleia lunga 14 ou 15 metros, a dividimos em dois. Coitada! Chorávamos todos: era em pedaços. O comandante poderia ter evitado... mas, não sei.”60 Terra!, o desembarque, hotéis para emigrantes, as viagens depois da travessia A visão da terra era um momento mágico da vida de bordo, o sinal que alguma coisa estava para mudar, que a sua sorte havia mudado, e de fato eram comemorados com gritos de júbilo: “Quando depois de um longa navegação de 30 dias finalmente o dia 11 de janeiro de uma bela manhã se iniciou a ver as montanhas do Brasil e naquele momento todos nós começamos a gritar e viva e viva a América ...”61 Era a América, finalmente, os emigrantes se espremiam nas grades de proteção, as crianças vinham erguidas sobre os ombros, todos se lavavam, os homens se barbeavam, as crianças eram vestidas pelas mães com as suas melhores roupas para encontrar com os pais, a gente se interrogava sobre as perguntas que seriam feitas no desembarque e quem havia já vivido a experiência emigratória dava ____________________________________________________________________ 59.“Quando se acenderam as primeiras tochas, se ouviu um estouro e viva, e foram vistas mil e seiscentos rostos iluminados, uma vasta multidão de gente paradas nas escotilhas e nos parapeitos, agachadas no teto das tavernas e das gaiolas, agarrados aos mastros, pendurados nos cabos, em pé sobre cadeiras, sobre as colunas, sobre barris, sobre os lavatórios; e como não tinha mais nenhum palmo vazio sobre o convés, e também os bordos da embarcação eram escondidos por tantas pessoas, assim toda aquela multidão parecia suspensa no ar, e que voava lenta sobre o mar, como um enxame de espectros.” Fonte: E. De Amicis, Sull'Oceano, Oscar Mondatori, Milão, 2004, cit., p.153 60. “Trenta giorni di macchina a vapore.” …, cit., pp. 477 61.Carta de Gio Batta Mizzan ao irmão, Boca do Monte – Santa Maria, Rio Grande do Sul – Brasil, 17 de março de 1878, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p. 81 Um outro testemunho, desta vez literária, vem de Oceano de Alessandro Baricco: “Aquele que primeiro viu a América. Em todas os navios existe um. E não precisa pensar que sejam coisas que acontecem por acaso, não... e muito menos por uma questão de dioptrias, é o destino, aquele. Aquela é a gente que sempre teve aquele instante estampado na vida. E quando eram crianças, você podia olhá-los nos olhos, e se olhava bem, já lá via, a América, já pronta a exultar, a escorrer pelos nervos e sangue e sei lá, até o cérebro e de lá à língua, até por fim, dentro do grito (GRITANDO), América, existia já, naqueles olhos, de menino, toda a América.” conselhos. Mas a viagem não tinha acabado, outras provas esperavam os emigrantes, particularmente severas para quem estava para atracar nos Estados Unidos através do porto de Nova Iorque. Até 1891, os imigrantes apenas chegados a Nova Iorque eram recebidos e examinados em Castle Garden, mas a partir do ano seguinte entrou em função Ellis Island, estrutura gigantesca, eficientíssima e perfeita para as suas funções e dimensões, que peneirava em cada ano, centenas de milhares de imigrantes. Em 1907, o ano do recorde, foram controlados mais de um milhão de emigrantes, em só dia daquele ano foram 11.747.62 A estrutura, que se encontrava sobre uma ilha na baia de Nova Iorque, na foz do rio Hudson, a duas milhas de Manhattan, foi projetada em 1897 e era constituída de vários edifícios, 36, onde trabalhavam mais de 500 pessoas, ás quais se juntaram em 1901 o General Hospítal Building. Sobre todos dominava o Main Building, com três andares, divididos respectivamente do baixo ao alto em depósito de bagagens, sala de registro, consultas médicas , sala de entrevista, e dormitório. Os navios a vapor eram muito grandes para poder atracar e então os passageiros de terceira classe eram transferidos a Ellis Island a borde de tender , não raramente depois de uma espera que podia durar até dias inteiros, mas de qualquer maneira, não antes que um médico do Immigration Service tivesse acertado através de uma visita médica a bordo que não existissem epidemias e que as normas do direito marítimo e da navegação fossem respeitadas. 63 Depois de uma breve entrevista os passageiros de primeira e segunda classe podiam desembarcar sem outras formalidades, enquanto os emigrantes deviam descer com as bagagens de mão que deviam entregar com o próprio nome ou se analfabetos, com um símbolo de reconhecimento. Deviam então submeter-se à Line Inspection que substituiu, a partir de 1905, o exame médico não mais realizável devido ao grande tráfego de passageiros. Os imigrantes deviam desfilar de maneira que os médicos que os observavam pudessem perceber anomalias físicas evidentes. Depois vinha o exame do Eyeman, que verificava se o recém-chegado não era infectado com o tracoma utilizando uma ferramenta especial, um tipo de fórcipe que servia para levantar as pálpebras e era muito incômodo e doloroso. Quem se encontrava em condições clínicas suspeitas era marcado sobre as vestes com um traço de giz, segundo um código que a cada letra correspondia uma patologia ou uma parte do corpo, para ser encaminhado a uma visita suplementar que,64 onde ao final se fosse diagnosticada uma doença infecciosa ou deficiência mental, teria determinado o repatriamento forçado às custas da companhia de navegação da qual o rejeitado se era servido para fazer a viagem de ida. 65 Então, depois da realização dos controles sanitários era o momento da inspeção legal, que __________________________________________ 62.G. Rocchi, La selezione degli emigranti a Ellis Island, em Lamerica! …, cit., p.112 63. Ibidem. 64. Estas eram as correspondências entre as letras e os déficits encontrados: B – dor nas costas, C – Conjuntivite, CT – tracoma, E – Olhos, F – Rosto, FT – pés, G – garganta, H – coração, K – hérnia, L – manco, N – pescoço, P – físico e pulmões, PG – gravidez, SC – couro cabeludo, S – arteriosclerose, X – suspeita de doença mental, X (cursiva) – doença mental confirmada. Fonte: N. Di Paolo, Ellis Island. Storia, versi, immagini dello sradicamento, ISLA – Instituto de Estudos Latinoamericanos Pagnai, Cidade do Sol, Nápoles, 2001. 65.Para obter a diagnose definitiva de doença mental vinham feitas aos candidatos perguntas de lógica muito simples dentro da Mental Room, do tipo “é manhã ou tarde, quantas patas tem um cachorro, quantas tem um cachorro e uma vaca juntos” e em geral era pedido ao examinando de inserir algumas figuras geométricas no lugar certo dentro de uma moldura. Para levantar suspeitas aos examinadores bastava muito pouco. Era suficiente dar a impressão de ser excêntrico no modo de vestir, excessivamente gentil, impaciente, imprudente, nervoso, imperativo, rir e sorrir muito, ser vulgar, gritar, falar a baixa voz ou trêmula, chorar, ser perplexo... Fonte: G. Rocchi, La selezione degli emigranti a Ellis Island, em Lamerica! … , cit., p.116 se realizava através de perguntas voltadas para verificar que, com base na lei da imigração de 1907, os candidatos ao ingresso no País não fossem desprovidos de dinheiro (deveriam ter pelo menos 25 dólares ou, em caso contrário, uma referência e endereço de um amigo ou parente que garantia assistência em caso de necessidade) e não fossem e em direção à locais onde, em naquele momento, segundo as autoridades americanas não havia necessidade de não-de-obra. A permissão vinha também negada a quem, frequentemente ingenuamente acreditando em tal modo de poder impressionar favoravelmente os examinadores, declarava de ter já um trabalho que o esperava ou mais além de ter já estipulado um contrato.66 Para quem emigrava para a América Latina, as verificações no desembarque eram muito menos meticulosas, e os emigrantes eram acolhidos em estruturas ão muito diferentes das pousadas ou dos albergues para emigrantes já experimentados nos portos de embarque, as casas de imigração ou as Hospedarias de Imigrantes. Eis um judicio de como se apresentava a Hospedaria de Santos, Brasil, nos primeiros anos do 1900: “[...] um grande estabelecimento constituído de um complexo de grandes quartos, separados por quintais e reunidos por passagens cobertas, onde os emigrantes estavam por três ou quatro dias antes de ir à parte interna. Aqui faziam os contratos de trabalho com os famosos fazendeiros. Na Hospedaria os emigrantes tem alojamento e comida gratuitos; mas qual alojamento e qual comida! O leito não é nada mais do que uma esteira sobre a terra nua, e a comida é pão e sopa. As condições higiênicas deste local são tão carentes, tanto para ser comentada nas publicações oficiais do país.”67 Uma vez desembarcado e acomodado de maneira provisória, o emigrante percorria o último segmento da sua viagem, que chegava assim ao final: a pé, em caroça, em barcos, em navios de acordo com o destino, do estado das vias de comunicação do país, da disponibilidade de dinheiro. Em muitos casos se prolongava por dias e dias uma viagem que devia ser avertida como interminável: “... antes das 12 antes do dia chegamos ao porto do 'Rio Zanero' nasceram 3 morreram 7 … Depois do 'Rio Zanero' fomos em rumo à 'Santa Caterina' e depois a Rio Grande e depois fomos à 'Porto Alegro' e depois a Rio Pardo descemos em terra mas toda a navegação por mar até ali durou 42 dias, aqui em Rio Pardo paramos por 6 dias e depois colocamos nas carroças as bagagens, as mulheres e as crianças e quem queria entre os homens caminhava mas de Rio Pardo até 'Santa Maria Bocca di Monti' tínhamos atravessado pradarias selvas e bosques, fizemos comida no acampamento sob as tendas mas a nossa 'navegação' nas carroças durou 15 dias, a comida era suficiente para todos: matávamos um boi por dia sopa e pão eram suficientes o café abundante, no final chegamos todos em um bosque onde se viam 'ramos e céu' ali todos estávamos desesperados e não sabíamos o que fazer, no fim eu e outros três amigos de Belluno começamos a caminhar em direção à Santa Maria que era distante 6 horas para procurar uma colônia o que tivesse terra disponível, finalmente depois de vários dias de caminhada encontramos diversos pontos onde segundo nós a terra custava muito, mas rodando e procurando finalmente encontramos uma boa colônia …” 68 _______________________________________________________________________ 66. A. Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit., p. 54 67. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p. 154. 68. Carta de Gio Batta Mizzan ao irmão, Boca do Monte – Santa Maria, Rio Grande do Sul – Brasil, 17 de março de 1878, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., pp. 81-82. Partidas dos emigrantes do porto de Trieste entre as duas guerras e no segundo pós-guerra O período da “grande emigração” se concluiu em 1914, com a explosão da prima guerra mundial. Com o conflito terminado, os movimentos emigratórios deram sinal de melhoramento, e a cidade de Trieste que parecia ter todas as credencias para tornar a ter um papel em primeiro plano graças à um vetor de antes da guerra, a Austro Americana, que havia no meio tempo mudado ração social e se chamava Consulich Socità Triestina di Navigazione. A Consulich parecia favorecida pelos próprios recursos, entre os quais uma frota de muito respeito e uma ótima rede comercial capaz de ser facilmente reativada, sem contar outros fatores como a exclusão do mercado de duas sociedades líderes como a Hamburg-Amerika Linie e Norddeutscher Lloyd, que tiveram os seus navios requisitados durante a guerra. A situação era porém muito mudada do ponto de vista internacional por causa da destruição do império austro-húngaro e o nascimento dos estados sucessores, e haviam nascidos novos, perigosos concorrentes, como por exemplo Gdansk, que gozava de uma boa posição geográfica e da proteção do governo polaco que pressionava, segundo algumas fontes, o próprio consulado de Nova Iorque a negar os vistos aos emigrantes que declaravam o desejo de repatriação através do porto de Trieste. 69 Nos anos 20 Trieste se tornou o porto de embarque para os aliyà, termo hebraico que significa subida e indica a vontade dos hebreus pela diáspora dos emigrantes na antiga terra de Israel com o propósito de estabelecer-se permanentemente. Tal fluxo emigratório foi em qualquer forma muito numeroso, da ordem de, segundo alumas avaliações, 150.00 pessoas. 70 E se desenvolveu substancialmente em duas fases: uma inicial que teve como protagonistas prevalentemente hebreus sionistas de nacionalidade polaca, e uma segunda que viu ao invés, prevalecer hebreus alemães ou de outros países que caíram no domínio nazista.71 As viagens vinham gestidas e organizadas do Lloyd Triestino e em certos casos, diário de bordo sanitário emergiam situações das quais deviam reinvocar as viagens dos emigrantes da época da vela o da primeira fase do vapor, antes que fosse difundido a bordo o uso de sistemas de refrigeração dos alimentos: “Colocar os animais à bordo é um fato muito deplorável que acontecia constantemente nos piróscafos desta sociedade, que fazem o serviço nas linhas do Mar Negro e nas costas da Ásia Menor. […] A sociedade armadora os tirava o máximo de interesse, porque os animais compensavam pelo frete, o capitão do navio tinha um percentual sobre cada animal, assim colocavam estes animais em qualquer espaço disponível, não solo na estiva, mas também nos espaços cobertos.” 72 Até o segundo pós-guerra a cidade giuliana (Trieste) teve um papel de uma certa importância nas partidas de navios de emigrantes, de um tipo inédito em respeito ao passado, emigrantes desta vez assistidos, ou seja emigrantes que o Estado incentivava a partir. As partidas aconteciam na Estação Marítima, praticamente da Piazza Unità, não mais no anonimato, no desinteresse ou no alívio com os quais haviam acontecidos antes de 1914 em Servola, mas em meio a uma multidão de parentes e ___________________________________ 69. Arquivo do Estado de Trieste, Governo Marítimo, b.876, f.IV. 70. A. Ancona, S. Bom (editado por), Trieste la porta di Sion. Storia dell'emigrazioe ebraica verso la terra di Israele (1921-1940), Alinari, Firenze, 1998, p.29. 71. M. Bercich, Il comitato di assistenza agli emigranti ebrei di Trieste (1920-1940): flussi migratori e normative, in “Qualstoria”, N. 2, dezembro 2006, p.23. 72. Op. Cit., p.50. Amigos que estavam no atracadouro a dizer adeus, chorar, acenando com lenços. Agora, era a vez dos triestinos e istrianos partirem, prevalentemente para a Austrália, mas também para os Estados Unidos e o Canadá. E era a primeira vez. Eis como Giani Stuparich contou uma destas partidas nas colunas do “Il lavoratore”: “Tudo o coração da cidade era lá, naqueles despedidas, naquelas recomendações, naqueles adeus: todo o temperamento do povo triestino se exprimia naquelas manifestações de um povo que sabe ser espirituoso também entre lágrimas, vivaz na desgraça. 'I và, i và e noi restemo … sempre alegri e mai passion'(Eles vão, vão e nós ficamos … sempre alegres e nunca tristes)', dizia um jovem operário com os olhos lúcidos e a boca amarga. 'Andé fioi, feghe onor a Trieste! (Vão garotos, façam honra a Trieste!' , recomendava um outro velho operário. E uma velha senhorinha! Era lá, escorada pelos parentes, e continuamente perguntava se Rico era a bordo, e onde estava, e se tinha o seu cachecol vermelho no pescoço, se se despedia, se sorria, e se a travessia até lá embaixo seria boa; não quis se mover de lá nem quando o navio partiu e se distanciou ao mar aberto; a gente começou a se dispersar entre comentários e lamentos; 'nonina, la se movi! (senhorinha, mova-se!)' mas a velha non se decidia e , com o rosto em lágrimas, continuava a repetir: 'Cossa che me toca veder! (Que coisa devo ver!)' 73. ________________________________________________ 73. Giani Stuparich, Trieste emigra, “il Lavoratore”, 1 de agosto 1955.