Uma visão pessoal da crise
Confissões de um Diretor de Risco
Por que os bancos tornaram-se tão expostos às vésperas da crise de crédito? Um diretor
de risco de um grande banco internacional - alguém cuja função é assegurar que a
empresa não tome riscos desnecessários - explica pelas suas próprias palavras.
Em janeiro de 2007, o mundo parecia que não tinha riscos. No início do ano reuni minha equipe
em um encontro externo para identificar os nossos cinco principais riscos para os próximos
doze meses. Nós éramos pagos para ponderar sobre as possíveis deteriorações que
pudessem ocorrer no mercado, mas naquele instante era difícil imaginar de onde poderiam vir
os problemas. Eram quatro anos de queda nos “spreads” no crédito, com uma taxa de juros
baixa, com uma carteira de empréstimos virtualmente sem inadimplência e níveis
historicamente baixos de volatilidade. Era o ambiente de risco mais benigno que eu já havia
visto em 20 anos.
Como administradores de risco, nós éramos responsáveis pela aprovação das propostas de
crédito e das transações que nos eram submetidas pelos executivos e operadores da linha de
frente do banco. Nós também monitorávamos e reportávamos o nível de risco do portfólio de
ativos do banco e estabelecíamos limites para as posições com risco de crédito e mercado.
A possibilidade de que a liquidez pudesse subitamente desaparecer era sempre um ponto
relevante na nossa lista de preocupações, mas o que nós víamos era o mercado cada vez mais
líquido, nenhum sinal ao contrário. Os investidores institucionais, os “hedge funds”, as
empresas de “private equity” e os fundos soberanos estavam todos à caça de alternativas de
investimento. Por isso, os “spreads” de crédito estavam se reduzindo. “De onde seria que a
crise de liquidez viria?”. Alguém questionou nesse encontro. Ninguém pôde dar uma boa
resposta.
Olhando retroativamente, vemos que nós deveríamos ter prestado mais atenção para os
primeiros sinais de que haveria problemas. Nenhuma crise surge de repente, há sempre dicas
e advertências se você conseguir interpretá-las corretamente. Foi um soluço no mercado
estruturado de crédito em maio de 2005 o sinal mais forte do que estaria por vir. Naquele mês,
os títulos de dívida da General Motors perderam o grau de investimento e foram rebaixados
para a categoria “junk” pelas agências de “rating”. Como esses títulos eram largamente
utilizados nas carteiras de créditos estruturados, o rebaixamento provocou um grande reboliço
no mercado.
Como a maioria dos bancos, nós possuímos uma carteira de diferentes “tranches” em CDOs
(collateralised-debt obligations), que eram pacotes de instrumentos financeiros lastreados em
ativos. Nosso negócio e estratégia de risco era comprar um conjunto de ativos, principalmente
títulos de dívida, colocarmos no nosso balanço, estruturá-los em CDOs, para finalmente
distribuí-los aos investidores finais. Nós éramos mais ávidos para vender as “tranches” que não
tinham o grau de investimento e a nossa aprovação de risco para essas posições era
condicionada à eliminação dessas posições na nossa carteira. Nós permitíamos que as
posições de ativos com classificação AAA e Super-senior (melhor ainda que AAA) ficassem no
nosso balanço, apoiados no pressuposto de que o risco de “default” estava protegido para as
“tranches” de maior risco que teriam que absorver quaisquer perdas prévias.
Em maio de 2005 mantínhamos “tranches” com classificação AAA, esperando que elas
aumentassem o seu valor, vendíamos as “tranches” que não tinham grau de investimento,
esperando que os preços dessas caíssem. Do ponto de vista de um administrador de risco, isto
era perfeito: Tínhamos uma posição comprada em ativos com baixo risco e uma posição
vendida em ativos com maior risco. Mas aconteceu justamente o contrário, os ativos AAA
tiveram o seu preço reduzido e os preços dos que não eram grau de investimento subiram, o
que resultou em perdas quando nós marcávamos a mercado as nossas posições.
Isto era inteiramente contra-intuitivo. Explicações sobre porque isto tinha ocorrido eram
confusas e baseadas em complicadas correlações cruzadas entre as “tranches”. Em essência,
esse resultado inesperado tinha sido o reflexo de um movimento dos investidores que estavam
com posições vendidas em ativos que não tinham grau de investimento, produzindo uma alta
dos preços, e uma venda generalizada das “tranches” com menor risco, mesmo as que
possuíam uma classificação AAA.
Essa mini-crise de liquidez foi retomada em grande escala no verão de 2007. Mas nós
falhamos porque não conseguimos tirar as conclusões corretas. Como gerentes de risco, nós
deveríamos ter insistido que todas as “tranches” estruturadas, não somente as que não tinham
grau de investimento, deveriam ser vendidas. Mas não acreditávamos que os preços dos ativos
AAA pudessem cair mais do que 1%. Uma queda de 20% em ativos com praticamente nenhum
risco de default parecia inconcebível, embora eventualmente isso pudesse ocorrer. O risco de
liquidez não foi avaliado suficientemente bem e o mercado o considerasse em pequena
margem antes da crise.
Como caímos nessa situação onde montamos posições de negociação tão amplas? Houve
algumas circunstâncias que, se levadas em conta, nos ajudariam a responder a questão. Como
é frequentemente o caso, tudo ocorreu tão gradualmente que se tornou quase imperceptível.
Lutando a última batalha
O foco no gerenciamento de risco era no portfólio de empréstimos e no clássico risco de
mercado. Os empréstimos que eram ilíquidos eram contabilizados pela taxa histórica na
carteira de investimentos ao invés de serem marcados a mercado como na carteira de
negociação. A análise de crédito rigorosa para o cálculo da provisão dos empréstimos era
fundamental. Os riscos dos empréstimos e os clássicos riscos de mercados eram geralmente
bem compreendidos e regularmente revistos. As ações, títulos do governo, o mercado de
câmbio e seus derivativos eram bem gerenciados na carteira de negociação e monitorados em
base diária.
A lacuna no nosso gerenciamento de risco foi aberta gradativamente ao longo dos anos com o
crescimento das negociações com produtos de crédito, como as “tranches” em CDOs e outros
instrumentos lastreados em ativos. A avaliação desses instrumentos ocupava uma posição
incômoda entre o risco de mercado e o de crédito. O departamento de risco de mercado nunca
tomou a responsabilidade pelo gerenciamento, acreditando que esses produtos fossem
primariamente instrumentos de risco de crédito. Já o departamento de risco de crédito
acreditava que eles deveriam ser administrados pela área de risco de mercado, já que
estavam contabilizados na carteira de negociação.
O crescimento explosivo e a lucratividade do mercado estruturado de crédito transformaram
isso em um grande problema. A nossa administração de risco foi tímida. Nós estabelecíamos
os limites em cada categoria de risco, mas de outro lado deixamos a cargo das mesas de
operação a definição dos esquemas. Tínhamos duas hipóteses que nos custaram muito.
Primeiro, pensamos que todas as posições marcadas a mercado na carteira de negociação
receberiam atenção imediata, no momento em que as perdas ocorressem, pois os ganhos e
perdas eram registrados imediatamente. Segundo, nós assumimos que se o mercado
enfrentasse dificuldades, nós poderíamos facilmente ajustar e liquidar as nossas posições,
especialmente as com ativos de “rating” AAA e AA. Nosso foco estava sempre concentrado na
parcela da carteira que não tinha grau de investimento, especialmente os papéis dos mercados
emergentes. As crises anteriores na Rússia e América Latina tinham deixado um profundo
temor quanto aos choques súbitos de liquidez e à elevação nos “spreads” no crédito.
Ironicamente e cristalinamente, nessa crise de crédito os títulos dos mercados emergentes
tiveram uma performance melhor do que as dos ativos de crédito do Ocidente.
Nós também confiamos nas agências de “rating”. É duro imaginar agora, mas a reputação dos
“ratings” dos títulos divulgados pelas agências era tão alta que se o departamento de risco
tivesse alguma vez atribuído um “rating” pior do que o das agências, a nossa avaliação seria
prontamente questionada. O pressuposto assumido era de que as agências de risco
simplesmente teriam o melhor conhecimento para a avaliação.
Nós estávamos dessa forma confortáveis com os ativos com grau de investimento e estávamos
nos debatendo com o elevado número de negócios. Éramos tão lentos para vender os ativos
com melhor “rating”, pois necessitávamos pouco capital para bancá-los, não havia cobrança
por liquidez, era muito baixa a inadimplência e, até havia uma pequena margem positiva para
manter os ativos e financiá-los no líquido mercado de interbancário e de “repos”.
Gradualmente, as estruturas foram se tornando mais complicadas. Elas eram mantidas na
carteira de negociação, dado que muitos evitavam o processo rigoroso de crédito aplicado na
carteira de investimentos, se isso fosse feito poderíamos ter identificado algumas das
fraquezas.
A pressão no departamento de risco para manter e aprovar as operações era imensa. A
psicologia tinha um grande papel nas relações. O departamento de risco tinha uma linha de
reporte para o conselho para preservar a sua independência. Esse tipo procedimento foi
sublinhado pelos reguladores que acreditavam que isso era essencial para o objetivo de
análise e cálculo do risco. Entretanto, esta separação prejudicava o nosso relacionamento com
os executivos e operadores que tínhamos que monitorar.
Desmancha-prazeres
Nos olhos desses profissionais, não estávamos ganhando dinheiro para o banco. Pior ainda,
nos tínhamos o poder de dizer não e desse modo impedir que os negócios fossem feitos. Os
operadores nos viam como um obstáculo para ganharem maiores premiações. E eles não se
sentiam felizes quanto a isso. Algumas vezes o relacionamento entre o departamento de risco
e as linhas de negócio terminava em fortes discussões. Eu frequentemente recebia ligações
dos meus próprios gerentes de risco antecipando que um operador mais graduado iria me ligar
para queixar-se da recusa de uma operação. Na maioria das vezes, as áreas de negócio não
aceitavam um não como uma resposta, especialmente quando os lucros das operações eram
grandes. Críticas de que não éramos comerciais, que não tínhamos senso construtivo e
éramos obstinados não eram incomuns. É justo afirmar que nem sempre o departamento de
risco ajudava na sua causa. Ainda que nossos gerentes dominassem fortemente as técnicas
analíticas, não eram necessariamente bons comunicadores e homens de venda. Explicações
diplomáticas para as razões da não aprovação das operações não eram o nosso forte. Os
operadores ficavam frequentemente enfurecidos com a forma como a reprovação da operação
era efetuada.
Na raiz de tudo, entretanto, estava – e ainda está - uma falha impregnada no processo de
tomada de decisão. Ao contrário dos processos judiciários, onde é permitida a defesa dos dois
lados, nos bancos há sempre um viés para um lado das posições. As linhas de negócio eram
mais concentradas na aprovação das transações do que em identificar os riscos de suas
propostas. Os fatores de risco tomavam apenas uma pequena parte das apresentações e
sempre eram minimizados. O que tornava difícil desencorajar as operações. Se um gerente de
risco dizia não, imediatamente ele entrava em rota de colisão com as linhas de negócio. As
decisões de tomada de risco, desse modo, inclinavam a dar sempre o benefício da dúvida para
os tomadores de risco.
Como resultado, o senso comum coletivo sofria. Frequentemente nas reuniões, nossas
reações viscerais como administradores de risco eram negativas. Mas era difícil apontar em
argumentos duros e concisos as razões para a recusa da operação, principalmente quando
você opõe-se a um time que tinha trabalhado semanas na proposta que você só recebeu à
uma hora do início do encontro. Ao final, com a pressão para a geração de lucro e um
ambiente de mercado tranqüilo, ainda que de forma relutante, nós concordávamos com
algumas transações.
Através do tempo nós acumulamos um balanço de ativos negociáveis que permitiam pouca
margem para erro. Nós mantínhamos um portfólio muito grande de ativos de baixo risco que se
mostraram de alto risco. Um pequeno movimento de preços em um montante de bilhões de
dólares poderia se traduzir em elevadas perdas com a marcação a mercado das posições. Nós
pensávamos que tínhamos focado corretamente nos ativos que não eram grau de investimento
e que eram poucos em nossa carteira. Nós não tomamos a devida atenção para o acúmulo de
ativos com melhor “rating”, mas potencialmente ilíquidos. Não tínhamos considerado totalmente
que 20% de um grande número podem produzir mais perdas do que 80% de uma pequena
parcela.
Gols e Goleiros
O que temos, nós como administradores de risco e a indústria financeira, a aprender com a
crise? Algumas respostas vêm à mente. Uma lição é voltar para o básico, analisar as nossas
posições por tipo, tamanho e complexidade, antes e depois de ter feito o “hedge” das mesmas.
Não assumir que os “ratings” estão sempre corretos e se estão, que os mesmos podem mudar
rapidamente.
Uma outra lição é contabilizar propriamente em duas formas o risco de liquidez. Uma é
aumentar a alocação capital interna e externa para posições de negociação. Há tão poucas
quando comparadas com as de posições de investimento e necessitam ser sempre
reecalibradas. A outra é reutilizar esquemas de reservas de liquidez. Isso até agora tem
recebido pouca atenção da indústria financeira. Através do tempo as práticas de contabilização
pelo valor justo têm eliminado as reservas de liquidez, quando elas eram consideradas a só
permitir um ajuste suave dos ganhos. Entretanto, em um ambiente em que uma parte cada vez
maior do balanço é composta por ativos negociáveis, seria mais sensível voltar a utilizar
reservas de liquidez cujo tamanho seria determinado conforme a complexidade do ativo
subjacente. Isso seria melhor do que questionar todo o princípio da contabilização pela
marcação a mercado, como alguns bancos estão fazendo.
Por último, mas não menos importante, mudar a percepção e o posicionamento dos
departamentos de risco dando a eles mais importância. A melhor maneira para fazer isso seria
encorajar que mais operadores tornassem administradores de risco. Infelizmente, a tendência é
outra, os bons administradores de risco terminam nas linhas de frente, enquanto os bons
operadores e executivos, uma vez na linha de frente raramente seguem um outro caminho. Os
administradores de risco necessitam ser vistos como bons goleiros: sempre no jogo que
ocasionalmente podem estar no centro do jogo, como na hora da batida de um pênalti.
Isso é difícil alcançar porque a profissão que exercemos é um portfólio de risco com uma
posição vendida de uma opção sem limite de perda, mas com limite de ganho. Esta é a posição
que todo bom administrador de risco sabe que ele precisa evitar a qualquer custo. Uma
empresa sábia necessita ter isto em mente quando tenta persuadir o seu melhor quadro a
tomar uma opinião em uma tarefa crucial.
Artigo publicado na revista Economist em 7 de agosto de 2008. Tradução livre de Everton P.S. Gonçalves, assessor
econômico da ABBC- Associação Brasileira de Bancos.
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