Curso Online A Escola no Combate ao Trabalho Infantil
Professora Mary Del Priore1
Vídeo Aula 12
A Infância como Construção Histórica – Séc. XVI, XVII e XVIII
O Estatuto da Criança e do Adolescente vai completar vinte anos3 e muitos
professores, pensadores e educadores devem estar se perguntando, neste momento, para
que serviu este Estatuto e qual é a situação da criança brasileira hoje.
Eu, na qualidade de historiadora, gostaria de lembrar que esta situação que nós
vivemos hoje, foi construída ao longo de mais de quinhentos anos de história. Assim, a
nossa receptividade ou a nossa pouca simpatia ao Estatuto, passa, também, por estes
quinhentos anos de história que nos ensinaram e que modelaram a maneira da gente ver a
criança brasileira.
Seria bom começar lembrando, por exemplo, que falar em criança ou falar em
infância é assunto realmente muito atual. Durante quase 550 anos, a criança não foi
preocupação nem das autoridades, nem dos médicos e muito menos dos professores. Se
nós quiséssemos olhar realmente para trás, ao longo da nossa história, nos perguntando
por que foi assim, eu começaria com as primeiras embarcações das carreiras das Índias,
que traziam portugueses para o nosso litoral e passavam por aqui, antes de se dirigirem às
Índias. Nestas embarcações, entre 10% a 20% da tripulação era formada por crianças
abandonadas, que eram recolhidas nas cidades portuárias portuguesas e que trabalhavam
de graça, ou seja, faziam um trabalho quase escravo no seio destas embarcações.
É interessante que nós temos neste fato uma certa perspectiva de que esta
dessensibilização nasce do entrelaçamento de algumas situações que percorrem a nossa
história, e que são feitas de três fatores:
1. O trabalho infantil,
2. A ausência ou pouca valorização da educação (do professor ou da escola),
3. O abandono de crianças.
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Mary Del Priore é historiadora com doutorado em História Social e pós-doutorado em História da América
e do Brasil.
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Foram feitas apenas as adaptações necessárias à transposição do texto falado para o texto escrito.
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A presente aula foi gravada em 2009, pouco antes do Estatuto da Criança e do Adolescente completar 20
anos. As informações sobre história da infância e adolescência no Brasil continuam atuais.
Estas crianças vinham no bojo destas embarcações, porque eram abandonadas, e
muitas delas foram recrutadas logo no início, pelos primeiros educadores que nós tivemos
no Brasil que eram os padres jesuítas.
Os jesuítas resolveram misturar a colonização do Brasil com o processo de
catequização e para isso precisavam fundar escolas. Para cada igreja construída, uma
escola, mesmo que fosse de palhoça e capim ao lado da igreja. Estas crianças
portuguesas abandonadas, que vinha para cá, tinham que funcionar como os chamados
“meninos língua”. Esta expressão vinha do fato de que estes meninos, por serem jovens,
crianças pequenas, aprendiam muito rapidamente o falar Tupi, eram capazes de se
comunicar com as crianças indígenas e atraíam estas crianças indígenas para as escolas
jesuíticas.
Uma escola que obviamente repetia um pouco toda a agenda educacional da
Europa naquele momento, ou seja, uma alfabetização por “decoreba”, com uma profunda
preocupação com a educação moral das crianças.
Podemos ver que abandono e trabalho já marcam de forma emblemática a relação
que se tinha com crianças. Some-se a isso outro problema muito importante que nós
vamos ter, que é a questão da escravidão no Brasil. Poucos professores sabem, mas dos
viajantes africanos que atravessavam o Atlântico e que desciam num porto importante
como o do Rio de Janeiro, sendo vendidos no Mercado do Valongo, 4% eram população
infantil. Eram crianças com menos de dez anos e ao longo de um ano estas crianças eram
imediatamente separadas dos seus pais, e aos quatro ou cinco anos, tão logo elas se
pusessem de pé, eram intimadas a fazer pequenos serviços, sendo rapidamente iniciadas
no trabalho.
Para se ter uma idéia de como a escravidão foi dura com as crianças escravas, aos
oito, nove ou dez anos estas crianças já aparecem nos testamentos ou inventários que nós
temos, do século XVIII ou XIX, com uma profissão definida. “Maria – costureira”, “João –
Pastor”, “Benedito - Aprendiz de Alfaiate”... O próprio aprendizado da criança escrava para
o trabalho também foi uma constante. Logo depois que a família real portuguesa vem para
o Rio de Janeiro e ai se instala, nós temos uma proliferação da fundação de escolas para
crianças de elite, e também a proliferação de escolas cuja finalidade era ensinar a criança
escrava algum tipo de aprendizado ou profissão. Era uma espécie de embrião da escola
técnica, que fizesse com que este escravo ganhasse mais dinheiro e remunerasse melhor
o seu senhor.
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Além das crianças escravas, das crianças que não tinham educação e vinham
trabalhar em escolas jesuíticas, ou das que participaram de todas as viagens ultramarinas,
junta-se à história de nossas crianças um outro fenômeno que nós temos também no
período colonial, e que é muito impressionante, que é o de abandono ou disposição de
crianças enjeitadas.
As Santas Casas de Misericórdia tiveram um papel fundamental nesta questão e eu
tenho certeza que muitos professores, sobretudo nas grandes capitais como Recife,
Salvador, Rio de Janeiro ou São Paulo, conhecem as famosas rodas que ficavam nos
muros das Santas Casas onde as crianças eram colocadas. Havia um sininho do lado de
fora, que a mãe badalava, ela virava a roda para o interior da Santa Casa e as crianças
eram recolhidas do outro lado.
Dom Pedro I, numa das visitas que fez à Santa Casa de Misericórdia do Rio de
Janeiro, ficou absolutamente impressionado com o número de crianças enjeitadas, que
eram ali colocadas, e com o nível de sobrevivência dessas crianças, que era baixíssimo.
Eu diria que esta dessensibilização que nós temos em relação à criança brasileira
nasce não só desse passado de muito trabalho, de muito abandono e de falta de educação,
mas também de um fenômeno que muitos educadores que trabalham no interior conhecem
bem, que são os altos índices de mortalidade infantil.
Essa presunção de que a criança morrendo muito pequenina iria se transformar num
anjo, e nós temos vários viajantes do século XIX, que mostram enterros de anjinhos, com
as crianças todas paramentadas, deitadas em bandejas, adornadas com fitas e flores, essa
presunção consolava as mulheres que tinham famílias muito grandes e que viam os seus
filhos partirem em muito baixa idade, levados pela morte, ou muitas vezes levados pelo
trabalho, pois as crianças eram deslocadas para trabalhar em outras regiões.
O século XIX foi um século importante, porque foi um século onde a educação
passou a ter alguma importância no Brasil, sobretudo entre as elites. A vinda da família
real, volto a dizer, multiplicou o interesse pela educação, sobretudo pela educação
feminina.
Nós vamos ver que muitos estrangeiros, sobretudo imigrantes franceses e ingleses,
fugindo das guerras européias, ou porque eram adeptos de Napoleão que havia caído,
migram para o Brasil e tentam instalar aqui estabelecimentos que oferecessem uma
agenda mais diversificada, para meninos e meninas brasileiros, mas era exclusivamente
para as crianças da elite.
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Um viajante que passou pelo Rio de Janeiro em 1820, tem uma frase muito
interessante sobre a educação feminina. Ele diz que “as meninas brasileiras iam para a
escola aprender piano, a falar um pouquinho de francês, a fazer alguns passos das danças
inglesas que estavam na moda e para aprender a descascar gostosamente uma laranja”.
Esta era a agenda educativa para as meninas, enquanto para os meninos era uma agenda
que mirava mais aspectos matemáticos, que dessem aos meninos uma qualificação melhor
do que aquela que seria dada para as meninas.
Eu lembro que no Brasil sempre houve uma política brutal de controle da leitura dos
jovens, e este é um fenômeno que também vai cobrar a sua conta um pouco adiante na
nossa história de educação, uma vez que nós tínhamos a Santa Inquisição perseguindo as
leituras proibidas, perseguindo uma série de autores importantes que na Europa eram
corriqueiramente lidos.
No início do século, na Argentina, com Sarmento, nós já vamos ter a proliferação de
escolas públicas, o que aqui no Brasil vai chegar bem mais tarde. No século XVIII só para
dar um exemplo, depois da expulsão dos padres jesuítas que eram, por assim dizer, os
grandes educadores, nós vamos ter, a partir de 1772 a tentativa de formar a instrução
pública para um maior número de crianças. Mas basta uma visita ao arquivo da Cúria
Metropolitana de São Paulo, por exemplo, para a gente se dar conta de como o professor
de instrução pública era desvalorizado, Os salários não chegavam jamais, os professores
eram pagos com sacos de farinha, sacos de mandioca, sacos de milho ou com frangos.
Eles não tinham bibliotecas, educavam na mesma sala crianças de idades diferentes, sem
nenhum suporte institucional e sem nenhum apoio da própria sociedade, que preferia ver
as crianças trabalhando, porque achavam que o trabalho era melhor formador do caráter
da criança do que a própria escola.
A escola não vai ter um grande apoio no século XVIII e menos ainda no século XIX,
em que a escola passa a ser sinônimo de uma escola de elite. Para terminar, vale lembrar
que muitos dos nossos afro descendentes que foram escravos, tiveram oportunidade de
ler, aprender a contar e ter familiaridade com os números, graças aos seus senhores. Era
muito comum, no interior do Brasil, que numa grande mesa dentro das fazendas, as Iaiás,
as Sinhás, aquelas velhas matronas que tocavam as suas fazendas, fizessem sentar à
volta da mesa, escravas mulheres, as chamadas “Escravas de Dentro” e ensinassem estas
escravas a ler e a escrever junto com suas filhas. Nós temos vários depoimentos deixados
neste período, primeira metade do século XIX, virada da segunda metade, dando conta
deste esforço de educação.
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Vamos ter bem claro que, pelo menos até o final do século XIX, o abandono de
crianças, o trabalho infantil e a questão da falta de educação, ou seja, o pouco prestígio da
escola, acabaram por criar uma enorme dessensibilização em torno da nossa infância. A
criança era um trabalhador braçal como outro qualquer, e tinha que sobreviver graças a
suas artes, à sua inventividade e à sua criatividade sem grande apoio da sociedade.
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