DEZ ANOS DEPOIS: COMO VAI VOCÊ, RIO DE JANEIRO? - ano 3 - nº 5 - março 2003
A ciclotimia crônica
Zuenir Ventura
Jornalista e escritor
Nesses últimos dez anos _ da chacina da Candelária ao massacre de Tim Lopes; de
Vigário Geral aos recentes atentados a bomba e incêndios de ônibus _ uma espécie de ciclotimia
crônica tem feito com que, no Rio, a cada sensação de alívio se siga uma de pânico. “Logo agora
que parecia estar melhor”, costuma-se lamentar diante das rebordosas que se sucedem. Se há
um surto mais agudo, chama-se o Exército na crença de que tudo será resolvido.
Tempos de altos e baixos, de avanços e recuos. Um dia, a esperança; no outro, a depressão
_ isso quando o pessimismo não predomina, como tem acontecido ultimamente. Uma resposta
negativa vem acompanhando as perguntas que os visitantes estrangeiros nos fazem ou que
nós mesmos nos fazemos com freqüência: O Rio melhorou ou piorou? De 1993 para 2003 o
que mudou?
A primeira impressão é de que tudo piorou. O tráfico mudou de escala, passou a apelar
para ações terroristas, ampliou seus limites, estendeu seus domínios, rompeu com antigos laços
de solidariedade que mantinha com as comunidades, perdeu o respeito às instituições, declarou
guerra à polícia e está conseguindo manipular a população das favelas nas batalhas do asfalto.
“Tá tudo dominado”, como eles dizem.
A febre chegou a tal ponto, a um grau tão elevado que o termômetro não serve para
registrar o verdadeiro estado do paciente, mesmo quando melhora. Os índices de violência
perderam a credibilidade, seja porque costumam ser manipulados politicamente pelas
autoridades, seja porque a sensação térmica é o que acaba contando: assim eu sinto, assim é.
Essa violência subjetiva, feita de sensações, pode estar provocando tantos estragos no modo
de ser da cidade, na sua auto-estima, quanto a violência objetiva, real. Um cidadão que saia de casa
achando que será assaltado, ainda que não seja, sofre o mesmo estresse de expectativa do assaltado,
“apenas” com a vantagem de ser poupado do trauma do desfecho. O que será psicologicamente
mais desgastante: a violência ou a percepção da violência? Ela ou o pânico que inspira?
É uma história antiga, mas que começou a ficar mais visível nos anos 90, exatamente
em 1993, quando as chacinas de oito meninos de rua na Candelária e de 21 moradores em
Vigário Geral, as duas executadas por policiais, se transformaram em marcos da violência.
De um dia para o outro, famosos cartões postais do Rio como o Pão de Açúcar e o Corcovado
INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE
deram lugar a dois anti-símbolos, que passaram a correr o mundo em forma de fotos:
meninos com o rosto coberto por cobertores para não serem reconhecidos e 21 caixões
estirados na rua da favela chacinada.
Nesse ano, chocado como toda a cidade, desembarquei em Vigário Geral procurando
resposta para a pergunta que toda a sociedade se fazia: “como explicar tanta violência?”. O
resultado foi o livro “Cidade partida”, que em forma de crônica, uma “crônica noir”, registrava
um fenômeno ainda pouco estudado: o “apartheid social”, para usar uma expressão então
pouco usada.
“Desde a reforma de Pereira Passos”, dizia o texto a certa altura, “e passando pelos
planos Agache e Doxiadis, a opção foi sempre pela separação, senão pela simples segregação.
A cidade civilizou-se e modernizou-se expulsando para os morros e periferia seus cidadãos de
segunda classe”.
Relendo o que escrevi, escreveria tudo de novo, ou quase tudo: “Ao empurrarem as ‘classes
perigosas’ para os espaços de baixo valor imobiliário, as ‘classes dirigentes’ não perceberam que
as estavam colocando numa situação estrategicamente privilegiada em caso de confronto _
como nem os bárbaros do século V tiveram para derrubar o Império Romano (...) Os nossos
bárbaros já estão dentro das muralhas e suas tropas detêm as melhores armas e a melhor posição
de tiro”. A experiência relatada no livro mostrava que “nenhuma operação de força fará sentido
se a expulsão da minoria delinqüente não se fizer acompanhar de uma ação de cidadania que
incorpore socialmente a massa de excluídos”.
Depois do choque inicial das chacinas, veio a rotina. A última década do século XX foi
de banalização da violência. Por ter-se transformado em cultura, a Cultura da Violência, e essa
talvez tenha sido a construção mais nociva desse período, não se pode isolá-la como se faz com
um vírus: ela é difusa e onipresente, tem seus costumes e comportamentos, códigos e práticas
morais. A agressividade gratuita e a crueldade vêm tornando-se um padrão e um valor entre
nós: os pit-boys, os filhos de famílias abastadas que se divertem espancando homossexuais, os
motoristas que matam por um arranhão no carro, as torcidas organizadas, o prazer quase erótico
da porrada, o gosto mórbido de sangue.
Nem tudo, porém, piorou durante esse tempo em que perdemos a ilusão e a inocência.
É bem verdade que o tiroteio entre os governantes continua, entre os que entram e os que
saem. A culpa é sempre do outro. O estado de beligerância generalizado, uma espécie de
guerra permanente, foi incorporado pelo discurso de certas autoridades. No Rio, já se viu
secretário de Segurança ameaçar bandidos com a morte (“se tiver que morrer que morra”) e
prefeito sugerir a execução de presidiários (“mata quem tiver que matar”). Em vez de propostas
de políticas públicas, o estímulo à matança.
Em compensação, bem ou mal, a sociedade vem adquirindo a consciência de nossa tragédia
social. Acabou-se o tempo do repasse, sabemos que somos responsáveis. Nunca tantos
DEZ ANOS DEPOIS: COMO VAI VOCÊ, RIO DE JANEIRO? - ano 3 - nº 5 - março 2003
movimentos sociais _ ongs, igrejas, associações _ trabalharam tanto quanto agora pela inclusão
e contra a violência. Os exemplos são muitos, mas um tem para mim valor emblemático: o
AfroReggae. Surgido nos escombros da chacina de Vigário Geral, o grupo cultural e social
conhecido inclusive internacionalmente, vem disputando com o tráfico os jovens das favelas
cariocas, fornecendo-lhes um futuro. Em dez anos, ele fez mais pela incorporação social dos que
se encontram em situação de risco do que todas as operações de repressão policial.
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