ANA RUBIA MARÇAL TUÃO BRITO JUNÇÃO E TRADIÇÕES DISCURSIVAS: UMA ABORDAGEM NO DOMÍNIO DA AQUISIÇÃO DE ESCRITA CUIABÁ-MT 2014 1 ANA RUBIA MARÇAL TUÃO BRITO JUNÇÃO E TRADIÇÕES DISCURSIVAS: UMA ABORDAGEM NO DOMÍNIO DA AQUISIÇÃO DE ESCRITA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, para Exame de Qualificação, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de Concentração: História e Descrição do Português Brasileiro. Orientação: Profa. Dra. Lúcia Regiane Lopes-Damasio. CUIABÁ-MT 2014 2 AGRADECIMENTOS Primeiramente não poderia deixar de mencionar aquele que tornou tudo possível para mim, Deus. Também preciso agradecer a meus pais por todo apoio e carinho em minhas decisões. Agradeço do fundo do coração ao meu marido, Sérgio Silva Brito, que suportou os momentos de ausência de sua esposa em função deste trabalho, mas que ainda assim me apoiou e se manteve paciente ao meu lado. Agradeço ainda a profa. Dra. Eladyr Maria Norberto da Silva, que me apresentou ao mundo da pesquisa e que sem ela eu não teria bagagem intelectual suficiente para adentrar no programa de mestrado. Agradeço ao prof. Dr. Danie de Jesus por acreditar que eu conseguiria e por todo apoio moral. Agradeço por fim a minha orientadora que é uma pessoa maravilhosa e que me ajudou muito durante todo este trabalho. 3 RESUMO TUÃO-BRITO, Ana Rubia Marçal. Junção e Tradições Discursivas: uma abordagem no domínio da aquisição de escrita Este trabalho, desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (GPEL/CNPq processo 400183/2009-9), tem por objetivo central descrever e analisar o comportamento sintático, semântico e pragmático dos mecanismos de junção, em contexto de aquisição de Tradições Discursivas da escrita (TDs). Partindo da hipótese geral de que os mecanismos de junção podem ser tomados como elementos sintomáticos para se chegar a uma classificação das diferentes TDs, procura-se identificar, no comportamento desses mecanismos, possíveis reflexos de mesclas de TDs, visando, portanto, a obtenção de conclusões acerca das características dos textos e da tradição em que se inserem. TDs são formas padronizadas de dizer/escrever que ultrapassam a historicidade das línguas particulares, i. e., uma mesma TD permeia diversos idiomas. Quando dizemos/escrevemos algo para alguém, não dizemos/escrevemos somente seguindo as regras sintáticas e gramaticais da língua e a norma linguística de um determinado grupo, mas o fazemos segundo uma tradição. A escolha dos juntores, como foco da pesquisa, fundamenta-se em outros trabalhos já desenvolvidos, em que os mecanismos de junção são tomados como elementos sintomáticos para a classificação e caracterização das TDs. O corpus da pesquisa é constituído por 50 textos extraídos do Banco de dados sobre aquisição de escrita infantil, constituído para subsidiar as pesquisas do GPEL. Os resultados da análise quantitativa mostram que o escrevente, na fase de aquisição da escrita, faz uso, principalmente, de juntores menos complexos, como é o caso do juntor e, e de justaposição de orações. Juntores mais elaborados, no que tange à arquitetura sintático-semântica mobilizada, como, por exemplo, mesmo que e ao invés de, apresentam mais baixa recorrência. Os resultados da análise qualitativa mostram: (i) que os escreventes fazem uso não prototípico de certos juntores, inferindo acepções mais abstratas a partir daquelas mais concretas, em um esquema prioritariamente, embora não exclusivamente, paratático. O juntor e, por exemplo, possui prototipicamente acepção de adição nas orações paratáticas, entretanto, é alta a frequência de seus usos mais abstratos até mesmo permitindo a inferência de acepção de contraste; e 4 (ii) que os escreventes mesclam diferentes TDs a fim de produzir textos que atendam à situação enunciativa. Para tanto, constatam-se aspectos da heterogeneidade constitutiva da escrita, em usos de mecanismos de junção que sinalizam a mescla de TD, revelando traços de oralidade, mas também de letramento. Palavras-chave: tradição discursiva, juntores, aquisição de escrita 5 ABSTRACT TUÃO-BRITO, Ana Rubia Marçal. Linking clauses and discursive traditions: a focus in the area of acquisition of writing This paper, developed under the Research Group on Language Studies (GPEL / CNPq 400183/2009-9 process) has the main objective to describe and analyze the syntactic, semantic and pragmatic techniques of linking clauses behavior in the context of acquisition of Discursive Traditions of writing (TDs). Starting from the general hypothesis that the mechanisms of junction can be taken as symptomatic elements to arrive at a classification of different TDs, seeks to identify the behavior of these mechanisms, possible consequences of blends of TDs, thus aiming at obtaining conclusions about the characteristics of texts and tradition to which they belong. TDs are standardized to say/write beyond the historicity of particular languages, i. e., the same TD permeates many languages. When we say/write something for someone, do not say/write only following the syntactic and grammatical rules of the language and the linguistic norm of a particular group, but we do according to a tradition. The choice of linking clauses as the focus of research is based on other work already developed, in which the linking techniques are taken as symptomatic for the classification and characterization of TDs elements. The research corpus is composed of 50 texts extracted from the database on the acquisition of child writing, constituted to support the research of GPEL. The results of quantitative analysis showed that the child in the acquisition phase of writing, uses, especially less complex linking clauses, as is the case of linking and, and juxtaposed sentences. More elaborate linking clauses, touch upon the syntactic - semantic architecture mobilized, for example, even though and in spite of, have lower recurrence. Results of the qualitative analysis show: (i) that children are not prototypical use of certain linking clauses, inferring more abstract meanings from those more concrete, in a scheme primarily, though not exclusively, paratactic. The linking and, for example, has prototypically purposes in addition paratactic sentences, however, is the high frequency of its uses even more abstract, allowing infer meaning of contrast, and (ii) that children blend different TDs to produce texts that meet the enunciative situation. To do so, its find constitutive aspects of 6 heterogeneity of writing on uses of the junction mechanisms that show TD, revealing traces of orality, but also literacy. Keywords: discursive tradition, linking clauses, acquisition of written 7 LISTA DE ESQUEMAS Esquema 1 Filtro da produção textual p. 21 Esquema 2 Evocação p. 24 Esquema 3 Tradição textual e história da língua p. 30 Esquema 4 Modelo bidimensional de análise da junção p. 60 Esquema 5 Esquema do eixo vertical p. 61 Esquema 6 Cruzamento dos eixos sintático e semântico p. 66 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Figura 2 Figura 3 Continuum de gêneros textuais de Marcuschi Representação da oralidade e escrita por meio de produção e concepção discursiva Macroestrutura do universo semântico das relações oracionais p. 35 p. 37 p. 65 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 Gráfico da frequência no eixo vertical-sintático p. 78 Gráfico 2 Gráfico da frequência token dos juntores p. 79 Gráfico 3 Gráfico 4 Gráfico da frequência token das relações semântico-cognitivos Gráfico da frequência token – relações semânticocognitivas e parataxe e hipotaxe p. 79 p. 80 8 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Níveis linguísticos p. 18 Quadro 2 Níveis e domínios linguísticos p. 20 Quadro 3 Representação da perspectiva dicotômica p. 32 Quadro 4 Quadro 5 Distribuição de quatro gêneros textuais de acordo com o meio de produção e a concepção discursiva Continua parataxe, hipotaxe e subordinação p. 38 p. 63 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Tabela 2 Tabela 3 Tabela 4 Tabela 5 Frequência token dos mecanismos de junção Frequência dos juntores e, e também, e daí, e e depois no domínio paratático Frequências de justaposição no domínio paratático Frequências de porque, por isso no domínio paratático Frequências de aí, aí depois, daí no domínio paratático p. 78 p. 82 p. 96 p. 100 p. 103 Tabela 6 Frequências de mas no domínio paratático p. 108 Tabela 7 Frequências de depois no domínio paratático p. 112 Tabela 8 Frequências de ou no domínio paratático p. 115 Tabela 9 Frequências de senão no domínio paratático p. 116 Tabela 10 Frequências de então no domínio paratático p. 118 9 Tabela 11 Frequências de primeiro no domínio paratático p. 123 Tabela 12 Frequências de agora no domínio paratático p. 125 Tabela 13 Tabela 14 Tabela 15 Tabela 16 Frequências de às vezes, em seguida, já que, só que, também no domínio paratático Frequências de quando e sempre quando no domínio hipotático Frequências de porque e por no domínio hipotático Frequências de para que e para no domínio hipotático p. 128 p. 134 p. 137 p. 139 Tabela 17 Frequências de se no domínio hipotático p. 142 Tabela 18 Frequências de senão no domínio hipotático p. 145 Tabela 19 Frequências de depois no domínio hipotático p. 146 Tabela 20 Frequências de gerúndio no domínio hipotático p. 147 Tabela 21 Frequências de ao invés de, enquanto, mesmo que no domínio hipotático p. 150 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................12 I. Apresentação..........................................................................................................12 II. Proposta de trabalho..............................................................................................12 III. Organização do trabalho.......................................................................................15 PARTE I: Pressupostos teóricos............................................................................17 CAPÍTULO 1 – Tradição discursiva........................................................................18 1. Historiando TD.......................................................................................................18 2.Conceituando TD....................................................................................................20 3. Relacionando TD e mudança linguística................................................................29 4. TD uma relação com a fala e com a escrita...........................................................31 4.1. Fala e escrita: uma visão dicotômica.......................................................32 4.2. Fala e escrita: uma visão do continuum tipológico..................................34 4.3. Fala e escrita: uma visão da heterogeneidade........................................39 Em suma....................................................................................................................42 CAPÍTULO 2 – Aquisição de escrita.......................................................................45 1. O processo histórico-cultural de aquisição de escrita............................................45 2. Um tratamento da aquisição de escrita..................................................................46 3. O Sujeito e suas escolhas......................................................................................49 4. O papel do Outro....................................................................................................50 Em suma....................................................................................................................54 CAPÍTULO 3 – Mecanismos de junção...................................................................56 1. Um enfoque funcionalista dos mecanismos de junção..........................................56 2. (Inter)dependência tática........................................................................................60 3. Relações semânticas.............................................................................................63 11 Em suma....................................................................................................................67 PARTE II: Universo da pesquisa e procedimentos metodológicos.....................68 PARTE III: Uma experiência de análise..................................................................76 CAPÍTULO 1 – Análise quantitativa........................................................................77 CAPÍTULO 2 – Análise qualitativa...........................................................................81 2.1. Domínio paratático....................................................................................81 2. 2. Domínio hipotático.................................................................................133 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................152 REFERÊNCIAS........................................................................................................156 12 INTRODUÇÃO I. Apresentação Neste trabalho, intitulado “Junção e Tradição Discursiva: uma abordagem no domínio da aquisição de escrita”, propomos um enfoque específico nos mecanismos de junção, em contexto de aquisição de Tradições Discursivas da escrita (TD, daqui em diante), a fim de descrever e analisar o funcionamento sintático, semântico e pragmático desses mecanismos, nesse universo textual em que o escrevente está iniciando sua jornada de aquisição do modo escrito da língua. A escolha da junção como foco da pesquisa proposta aqui se fundamenta na hipótese de Kabatek, confirmada em vários de seus trabalhos (cf. KABATEK, 2005), acerca do aspecto sintomático dos mecanismos de junção na configuração de TDs, ou seja, a hipótese da correlação entre TD e junção, fundamentada, inicialmente, a partir de um afunilamento da perspectiva dos estudos de Biber (1988), que propunham uma gama maior de fatores, multidimensionais, textuais e linguísticos (tempo/aspecto, advérbios, pronomes, formas nominais, subordinação/coordenação, relação token/type, entre outros), observáveis na caracterização e/ou comparação de gêneros textuais, assim como fundamentada em outros trabalhos, como, por exemplo, os de Raible (2001; 1992 apud KABATEK, 2005) que, da mesma forma, recorrem à análise das técnicas de junção, em diferentes textos, para classificá-los. Em outras palavras, trata-se de um estudo que, ao abordar textos diversos de crianças, em processo de aquisição de escrita, caracteriza-os como tradições discursivas, que se mesclam, e analisa seus mecanismos de junção. Assim, ao contrário da análise multidimensional de Biber, sugerimos, na linha de Kabatek, uma análise centrada em elementos que se mostram sintomáticos da configuração de diferentes TDs e que permitem, ao mesmo tempo, reunir e comparar quantidades maiores de textos. II. Proposta de trabalho O tema “Junção e Tradição Discursiva: uma abordagem no domínio da aquisição de escrita” caracteriza-se por colocar, no centro de investigação, o comportamento dos elementos juntivos em diferentes TDs, especificamente no contexto de aquisição de língua em sua modalidade escrita. 13 Esse tema inédito, em sua proposta de correlação do domínio da junção, a partir de seus correlatos linguísticos de natureza sintático-semântica e pragmática, à perspectiva da TD, propõe a realização da descrição e análise do comportamento das técnicas de junção em TDs distintas que flagram o momento em que o sujeito encontra-se envolvido no processo de aquisição de língua em sua modalidade escrita, ou seja, em um momento especial para a observação da relação entre sujeito e linguagem. Por um lado, essa proposta de trabalho encontra reforço no fato de que, segundo Kabatek (2008, p. 8-9), se, em meados do séc. XX, o objetivo da linguística funcional era modificar o exagero estruturalista, hoje, se trata de colaborar, cada vez mais, com a modificação de um monolitismo que parte da suposta existência de uma – e só uma – gramática representativa de cada língua em cada época, monolitismo reanimado por modelos atuais e por uma linguística de corpus na qual se supõe que a variação textual não passa de um problema de quantidade e que, a partir de um certo tamanho da amostra, a variação se “‘esfuma’ no nada do ‘ruído’ estatisticamente relevante”. Mas, de acordo com o autor, quando olhamos a história das línguas e descobrimos uma grande diversidade de textos e fenômenos linguísticos, em vez de buscar “textos mais representativos” (difíceis de serem encontrados a partir de critérios objetivos), poderíamos simplesmente aceitar a existência de tradições textuais diferenciadas. Esta é a hipótese forte da teoria das TDs, usada aqui para o recorte teórico-metodológico do objeto de estudo: a hipótese de que uma língua não apresenta só variação no nível dos dialetos, socioletos ou estilos, mas também de acordo com as tradições de textos, isto é, que esses não só combinam elementos formais, características de gênero ou tipo textual, mas condicionam ou podem condicionar a seleção de elementos procedentes de diferentes sistemas. Destacamos, com Kabatek, que se isso é assim na história das línguas, será assim também na sincronia, que, desse modo, se reconsidera a partir da perspectiva histórica e não ao inverso.1 Por outro lado, a proposta de trabalho é reforçada também pela indicação, ainda de Kabatek (2008, p. 10), da sintaxe como uma das áreas mais indicadas para a consideração coerente da questão da TD. Os estudos desenvolvidos nesse âmbito, entretanto, são ainda restritos, principalmente à romanística alemã. Nessa 1 Adotamos, de acordo com o autor e na mesma linha de LOPES-DAMASIO (2011), a concepção coseriana (cf. 1979) de sincronia, diacronia e história. 14 direção, consideramos que as TDs podem ter influência direta sobre âmbitos distintos da sintaxe, havendo TDs mais “centrais” e outras mais “marginais” nessa relação. Este trabalho pode contribuir, nesse sentido, com a caracterização das TDs em relação a esses padrões. Esta proposta de trabalho está direcionada, portanto, por uma hipótese geral relacionada à possibilidade de os elementos juntivos serem tomados como “sintomáticos” de diferentes TDs (cf. KABATEK, 2008, 2005, 2004). De acordo com essa hipótese, a noção de constituição de TDs, em contexto de aquisição de TDs da escrita, pode ser pautada pelo funcionamento dos mecanismos de junção tomados como possíveis índices de TDs e de mescla de TDs. À luz dessa hipótese, a pesquisa se propõe a responder à seguinte pergunta: Como é realizado o emprego dos mecanismos de junção, em diferentes TDs, durante o processo de aquisição de TDs na modalidade escrita da língua? A fim de responder a essa pergunta, direcionada pela hipótese acima, o objetivo geral da pesquisa é descrever e analisar o comportamento sintáticosemântico e pragmático das técnicas de junção, empregadas em TDs distintas, a fim de comprovar a hipótese de que os juntores são elementos “sintomáticos” (cf. KABATEK, 2008, 2005, 2004, VINCIS, 2009), capazes de realizar sinalizações desse tipo. Esse objetivo geral desdobra-se nos seguintes objetivos específicos: (1) descrever e analisar as técnicas de junção, nos diferentes tipos abordados de TDs, em contexto de aquisição de TDs da escrita, a partir das relações lógico-semânticas e da interdependência existente entre as porções componentes da oração complexa, na perspectiva de Halliday (1985) e Raible (2001, 1992, apud KABATEK, 2005), conforme especificações apresentadas na seção de pressupostos teóricos deste trabalho; (2) identificar peculiaridades dos textos e, assim, indícios linguísticos da existência de TDs e mesclas de TDs; e (3) a partir das peculiaridades, destacadas em (2), baseadas na descrição analítica, apresentada em (1), prosseguir às relações possíveis no que tange ao processo de constituição de TDs no âmbito da aquisição de TDs da escrita. 15 III. Organização do trabalho Este trabalho, além desta Introdução e das Considerações finais, está organizado em três PARTES, a saber, PARTE I: Pressupostos teóricos, PARTE II: Universo da pesquisa e procedimentos metodológicos, PARTE III: Uma experiência de análise. A PARTE I, Pressupostos teóricos, é composta por três Capítulos. No Capítulo 1, intitulado “Tradição Discursiva”, apresentamos considerações de natureza teórica em relação a esse domínio conceitual, partindo de uma historicização que prepara para a definição do conceito. É abordada também a relação entre TD e a mudança linguística, uma vez que a análise dos dados estará pautada em uma visão da língua concreta e dinâmica, em contínuo processo de mudança e de “fazimento”, e a relação entre TD e Fala e Escrita, em que apresentamos três visões acerca da relação fala/escrita: a dicotômica, a do continuum tipológico e a da heterogeneidade constitutiva da escrita. O percurso expositivo auxilia-nos na tarefa de tornar claros os motivos que nos levam à adoção da terceira perspectiva como base para este trabalho. No Capítulo 2, intitulado “Aquisição de escrita”, apresentamos um processo de apropriação da construção do modo escrito de enunciação da língua materna, dando especial atenção ao Sujeito, às suas escolhas e ao papel do outro, nestas escolhas. No Capítulo 3, “Mecanismos de junção”, apresentamos, por fim, uma abordagem funcionalista de concepção e análise dos fenômenos caracterizáveis como relativos à junção de porções textuais, no que tange à arquitetura sintática e à semântica. Para isso, o enfoque recai sobre a interdependência tática e as relações semânticas. Na PARTE II, Universo da pesquisa e procedimentos metodológicos, são apresentados, respectivamente, o corpus investigado e o método usado para a realização da análise. Para a apresentação do corpus serão expostas as propostas de produção dos textos que o constituem, bem como exemplos de textos produzidos pelos alunos. A PARTE III, Uma experiência de análise, constitui-se de dois Capítulos voltados para as análises quantitativa e qualitativa dos textos, conforme os objetivos do trabalho e a metodologia, apresentados anteriormente. É nesta parte do trabalho que serão desenvolvidas as etapas de descrição e análise a fim de responder à 16 pergunta de pesquisa e lançar luz sobre o fenômeno escolhido, confirmando ou refutando nossa hipótese. Cada um dos Capítulos que compõe as Partes deste trabalho colabora para a construção das Considerações finais, que, longe de constituírem Conclusões, podem ser caracterizadas como um ponto final que abre margem para muitas outras pesquisas subsequentes. 17 PARTE I: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 18 CAPÍTULO 1 TRADIÇÃO DISCURSIVA 1. Historiando TD Tradição Discursiva (doravante TD) é um conceito relativamente novo para os estudos da linguística no Brasil. Tem sua origem na linguística românica alemã, principalmente a partir dos estudos de Eugenio Coseriu (1979). Deve-se ter cautela nos estudos envolvendo TD; seu caráter inédito tem ocasionado euforia, pois o conceito tem sido chave de solução para muitos fenômenos linguísticos, mas também equívocos, uma vez que há certas desconfianças relativas ao seu próprio entendimento equiparado ao entendimento já dado às questões textuais no âmbito da linguística do texto, dos estudos da pragmática, da análise do discurso, por exemplo. Entretanto, uma das justificativas para as pesquisas envolvendo TD é a de que os estudos acerca das TDs são fundamentais para uma abordagem histórica da língua, dado que estudar uma língua é estudar a história dos textos dessa língua. Nessa direção, as TDs transcendem as línguas, enquanto idiomas históricos. Para que se possa compreender esse conceito, devemos entender sua origem. Eugenio Coseriu (1979) propõe três níveis linguísticos, conforme esquema abaixo: Quadro 1: Níveis linguísticos NÍVEL UNIVERSAL HISTÓRICO INDIVIDUAL/PARTICULAR Fonte: COSERIU (1979) TIPO DE SABER ATIVIDADE DE FALAR LINGUA HISTÓRICA PARTICULAR DISCURSO SABER ELOCUCIONAL SABER IDIOMATICO SABER EXPRESSIVO Ao nível universal, corresponde a capacidade antropológica do homem de produzir fala. Nesse nível, a linguagem é considerada, portanto, como “atividade do falar”, sem distinções de ordem histórica. No nível histórico, temos a língua enquanto herança histórica particular; é nesse nível que os falantes atribuem sentido às coisas do mundo por meio dos signos linguísticos. Ou seja, estamos falando, por exemplo, de Inglês, Português, Francês etc. Esse nível é considerado como o da “língua histórica particular”, 19 entendida enquanto sistema e norma, incluindo suas variedades. Aqui, norma não é equivalente à prescrição, mas a usos “normais” de uma determinada língua, em uma determinada comunidade linguística. Por fim, ao nível individual/particular corresponde o produto final do ato comunicativo. É nesse nível que se concretiza a significação do nível histórico, e o temos a partir de uma finalidade comunicativa. Trata-se, pois, do enunciado. O falar é, dessa forma, sempre individual. Por um lado, é individual porque é sempre realizado por um indivíduo, ou seja, não é um ato em coro; por outro, o é porque acontece em uma determinada situação. É importante destacar, neste ponto, que, segundo Kabatek (2005, p. 160), ainda baseado em Coseriu (1988, p. 70-71), estamos nos referindo, em primeiro lugar, à atividade de falar, tomada em si mesma, e não ao seu produto. Sendo assim, para a denominação desse ato individual, tomado em uma determinada situação, além do próprio termo “discurso”, em alemão, usa-se também o termo “texto”. Após os estudos de Eugenio Coseriu, surgiram diferentes trabalhos, na linguística de texto, principalmente nos anos 60 e 70. Assim, no início dos anos 70, nasce uma linguística textual como disciplina própria. Nessa disciplina, estudavamse as diferentes características dos textos. Segundo Kabatek (2005, p.153), diferentes campos no estudo da textualidade foram identificados. Esses postulados foram importantes para expandir o estudo histórico da língua: (i) a textualidade é descrita segundo os elementos linguísticos que estão presentes em cada texto (por exemplo, elementos lexicais e elementos sintáticos); (ii) a textualidade é descrita levando-se em conta seu conteúdo (micro e macroestrutural, padrões gerais, como textos descritivos, técnicos etc.); (iii) a situação de inserção do texto é considerada, pois determinadas situações exigem determinados tipos de textos; (iv) a função ou finalidade comunicativa define o tipo do texto. Nessa direção, Brigitte Schlieben-Lange (1983, apud KABATEK, 2005, p.154) afirma que “existe uma história dos textos que independe da história da língua e o estudo histórico da língua deve considerá-lo”, e apresenta a proposta de uma pragmática histórica, que também ofereceu fundamentos para o que mais tarde seria 20 chamado TD. Posteriormente, surgem os trabalhos de Peter Koch e Wulf Oesterreicher (1997, apud KABATEK, 2005, p.154) e Kabatek (2008, 2006, 2005) que reduplicam o nível histórico coseriano, concebendo a definição de TD. 2. Conceituando TD Como mostrado no esquema 1, a cada um dos níveis coserianos está relacionado um tipo de saber. Segundo Koch (2008), há um problema no que Coseriu chama de “saber expressivo”, que é atribuído ao nível individual do discurso. Esse problema se deve ao fato de que, na verdade, o discurso é “um lugar de aplicação do saber linguístico, [...] como cada discurso é único e o saber implica a possibilidade de reprodução, saber e discurso são incompatíveis” (KOCH, 2008, p. 54). O saber expressivo carrega, portanto, toda a nossa capacidade de comunicação, de (re)produzir textos a partir de tradições já existentes. Vale salientar aqui que essas tradições existem independentemente do idioma utilizado. O nível histórico abarca, então, tanto as línguas históricas, quanto as tradições históricas do falar, ou seja, as TDs. Para chegar ao enunciado, ao texto materializado, o objetivo comunicativo/a intenção passa pelo nível histórico, duplicado, o que quer dizer que passa, concomitantemente, pelo filtro da língua histórica particular, ou seja, seu sistema e norma, e pelas TDs. Dessa forma, há aí o que podemos chamar de idiomático e há também as funções textuais que possibilitam a identificação de padrões textuais. Diante dessa argumentação, Koch (2008, p.54) propõe um novo esquema relativo aos níveis e domínios linguísticos: Quadro 2: Níveis e domínios linguísticos DOMINIO TIPO DE REGRA REGRAS UNIVERSAL ATIVIDADE DE FALAR ELOCUCIONAIS LINGUA HISTÓRICA REGRAS HISTÓRICO PARTICULAR IDIOMATICAS TRADIÇÃO REGRAS DISCURSIVA DISCURSIVAS NÍVEL INDIVIDUAL/PARTICULAR Fonte: KOCH (2008, p.45) DISCURSO Assim, foi reduplicado o nível histórico incluindo-se a TD. Nesse nível, há o domínio da língua histórica particular, a que pertencem, portanto, as regras 21 idiomáticas, de acordo com o sistema e as normas de uma língua, e há as TDs, a que correspondem as regras discursivas, caracterizando a historicidade dos textos. A historicidade da TD, nessa perspectiva, é diferente da língua histórica. Por exemplo, a carta, como TD, é praticada, enquanto tradição textual, em diferentes línguas históricas particulares. Esse aspecto justifica a duplicação do nível histórico coseriano para a inserção do domínio das TDs, ajudando a esclarecer o fato de que não há um tipo específico de regra, no nível discursivo, que corresponde ao ambiente em que os falantes/escreventes aplicam todos os tipos de regras. Assim, por exemplo, quando encontramos alguém pela manhã, cumprimentamos a essa pessoa com “bom dia”: ...essas expressões repetidas em situações de cumprimentos são consideradas tradições discursivas, já que a intenção comunicativa encontrou solução não só no acervo gramatical e lexical do português, mas também em uma tradição, ou seja, um ‘modo de dizer’ que extrapola as regras da língua (CHIARELLI, 2009 p.1). Essa simples saudação perpassa o nível universal, já que somos dotados de condições antropológicas para que seja possível “falar”; o nível histórico, ou seja, uma língua histórica, a qual abrange um sistema e uma norma linguística própria; e, finalmente, uma TD, que orienta os aspectos de textualidade, segundo a situação vivenciada e a historicidade do texto. Dizer “eu te cumprimento” seria aceitável, no entanto, há uma tradição textual que nos orienta como dizê-lo. Chega-se, afinal, ao ato comunicativo concreto: “bom dia”, “good morning”, “bon jour” etc. No domínio da TD, temos, portanto, a consideração da linguagem e do homem em seus aspectos sócio-históricos, uma vez que são consideradas as regras “externas” da língua. Até chegar ao ato comunicativo concreto, que é o discurso, passamos por três filtros, como ilustra o esquema a seguir: Objetivo Comunicativo Língua (sistema e norma) Tradição Discursiva Enunciado Esquema 1: Filtro da produção textual Fonte: KABATEK (2005, p.155) 22 Precisamos esclarecer, agora, a situação da relação entre TD e língua, e a posição da TD na teoria da linguagem. Para isso, vamos especificar o conceito de historicidade, baseando-nos em Coseriu, que diferencia (cf. KABATEK, 2005b, p.161, apud LOPES-DAMASIO, 2011, p.68): (i) a historicidade linguística (historicidade da língua dada); (ii) a historicidade enquanto tradição de tipos de textos e/ou de determinadas formações textuais; (iii) a historicidade genérica, no que tange a “uma pertença à história”. Em (i), temos a historicidade da língua enquanto língua histórica particular, em outras palavras, trata-se da própria historicidade do homem. Segundo LopesDamasio (2011, p.68) “a língua é a história de uma comunidade internalizada no indivíduo. É a forma primária do ser comunitário e pressuposta para outras tradições culturais”. A pesquisadora ainda diz que ao indivíduo é possível a recriação da língua dentro de si após a aquisição da linguagem, pois, essa historicidade, condicionada por meio de alteridade, é própria apenas da língua como língua particular na condição de técnica dada historicamente. A historicidade, em (ii), enquanto tradição de tipos de textos, ou formações textuais, em contrapartida, diz respeito a todas as manifestações culturais que se repetem, inclusive as linguísticas. A linguagem, nesse aspecto, é como um objeto cultural disponível à comunidade para repetição, evocação. Trata-se de textos que estabelecem uma relação de tradição com outros textos. “A recorrência de formas textuais compreende uma escala contínua que evidencia marcações de tradições mínimas até chegar a uma completa fixidez do texto” (LOPES-DAMASIO, 2011, p.69). O terceiro tipo de historicidade é o que diz respeito aos eventos individuais, que acontecem uma única vez e que, portanto, não se repetem; por isso, o texto é situacional. Essa terceira forma de historicidade poderia ser deixada de fora na questão da tradição linguística e textual, mas, não o é porque ocupa lugar central na pesquisa filológica tradicional, e porque, ainda que um texto seja individual, suas características funcionais e formais servem como modelo para outros textos. Assim, um determinado texto pode ser visto dentro da historicidade em (ii) (cf. KABATEK, 2005b, p.164-165, apud LOPES-DAMASIO, 2011, p.69). Com base nessas explicações, podemos, segundo Lopes-Damasio (2011, p. 70), (i) reforçar a singularidade e a precedência da historicidade linguística, que não 23 pode ser situada no mesmo nível de outras historicidades e tradições; (ii) justificar que a situação adequada da TD sob a perspectiva teórico-linguística é ponto de partida para descrever o que as TDs realmente são e como devem ser. Balizando-se nessas explicações, Oesterreicher (1997, apud LOPESDAMASIO, 2011, p.71) define TD como moldes normativos, convencionalizados, que guiam a transmissão de um sentido mediante elementos linguísticos em sua produção e recepção. Certos usos linguísticos podem estar fortemente correlacionados ao tipo de texto, uma vez que existem fórmulas fixas, estruturas relativamente estáveis ou propriedades convencionalizadas que se repetem em determinado gênero particular (cf. OESTERREICHER, 1997; LOUREDA LAMAS, 2006, apud SANTOS LOPES, 2012, p.40). Nessa direção, em uma conceituação embrionária, poderíamos entender TD como formas tradicionais de produzir textos, desde formas simples como “bom dia” até formas mais complexas como os gêneros, por exemplo. Contudo, há algumas condições para que possamos conceituar, de fato, TD. A primeira é a de que uma TD é precisamente discursiva, ou seja, repetições que não são linguísticas não devem ser consideradas. A segunda é a de que, mesmo que a repetição contenha elementos linguísticos, nem sempre será uma TD (cf. KABATEK, 2005, p. 157-158). As palavras “contenha”, “repetição” e “uma”, são pronunciadas e/ou repetidas inúmeras vezes, num texto qualquer, no entanto, não formam uma TD por si só. É válido deixar explicado que, contudo, existem TDs formadas por uma só palavra. A palavra “oi”, por exemplo, forma sozinha uma TD, uma TD de saudação. Outro exemplo é o emprego do pronome de tratamento senhor/senhora. Ora, não há nenhum impedimento gramatical que nos impeça de dizer você para uma pessoa mais velha; no entanto, existe uma tradição sociocultural que nos orienta a usar senhor/senhora. Na perspectiva adotada aqui, uma estratégia de tratamento como senhor/senhora é evocada por uma situação concreta que se repete [...]: a situação evoca outros encontros semelhantes em que se pronuncia a mesma estratégia (cf. SANTOS LOPES, 2012, p.44). Santos Lopes (2012) ainda nos apresenta o exemplo do tratamento Vossa Excelência que é usado no discurso parlamentar, e que, mesmo sendo empregado, muitas vezes, com palavras injuriosas para destratar um opositor, também seria uma TD por evocar um discurso que unifica os políticos como pertencentes a um mesmo grupo cultural. 24 A terceira condição, que é a mais complexa, postula que o lado textual de uma TD não pode ser explicado sem a contrapartida que o evoca, ou seja, é preciso considerar a evocação da TD a partir de uma constelação discursiva. Kabatek (2005) representa essa terceira condição no esquema a seguir: Texto1 Situação1 Texto2 Situação2 Esquema 2: Evocação Fonte: KABATEK (2005, p. 158) Neste esquema, o eixo horizontal representa a evocação, e o eixo vertical, a repetição. Temos uma situação1, por exemplo, amigos se encontrando ao anoitecer. Essa situação evoca a saudação “boa noite” – texto1. Em um outro dia, essa mesma situação se repete – situação2, sendo ou não outros os atores, ainda assim haverá a evocação do texto “boa noite” – texto2. “Quando as mesmas situações são sempre realizadas com as mesmas ações linguísticas, formam-se modelos, regularidades” (cf. BENDEL 1998, p. 12 apud CASTILHO DA COSTA, 2011, p. 150). É interessante observar que, ainda que o falante não produza o texto, a situação existe, portanto, existe também a evocação. Neste caso, o silêncio completa o esquema em caso de ausência de um dos quatro elementos. “O silêncio adquire significado precisamente em relação a uma TD evocada, mas não enunciada” (KABATEK, 2005, p.159). Kabatek ainda afirma que o contrário também é válido, uma vez que um texto dito fora de seu contexto evocará a situação correspondente, gerando um estranhamento. Por ser um termo amplo e generalizante a todos os elementos históricos designáveis e relacionáveis com um texto, Kabatek (2005) propõe uma definição mais geral de TD, insistindo sobre o fato de que não se trata de um sinônimo de gênero, pois, “os gêneros são tradições de falar, mas nem todas as tradições de falar são gêneros”; nem de tipo textual etc., mas de um conceito amplo que inclui todo tipo identificável de tradição do falar, também subgêneros ou tradições dentro de um mesmo gênero: 25 Entendemos por Tradição discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou de falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação com qualquer finalidade de expressão ou com qualquer elemento de conteúdo cuja repetição estabelece um laço entre atualização e tradição, isto é, qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos 2 linguísticos empregados (KABATEK, 2005, p. 159). A partir dessa conceituação de TD decorrem algumas questões, a serem discutidas, e algumas consequências. A primeira questão é a de que, apesar de haver uma relação entre TD e referência, existem textos independentes de uma inserção pragmática concreta. Na evolução das línguas, vão sendo criados textos autônomos com seus próprios contornos extralinguísticos, que internalizam a evocação já apresentada acima, ocorrendo que o plano textual e a realidade extralinguística se fundem (KABATEK, 2005, p. 160). Outra questão é a relação entre TD e as variedades linguísticas (diatópicas, diastráticas e diafásicas).3 Às vezes, uma variedade linguística pode funcionar como TD, principalmente se for uma variedade diafásica. No entanto, uma TD não é o mesmo que uma variedade. O saber a respeito das variedades é que é repassado por meio das TDs Há ainda consequências a serem precisadas, que derivam da definição de TD. Uma delas é o fato de uma TD ter ela mesma o valor de signo e, assim, comunicar mais do que um texto sem tradição. Segundo Kabatek (2005, p.161), “por isso, uma TD é mais do que um simples enunciado; é um ato linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação etc., mas também relaciona esse texto com outros textos da mesma tradição”. Lopes-Damasio (2011, p.72), nesta perspectiva, afirma que um texto, que possui determinada finalidade 2 Entendemos por Tradición discursiva (TD) la repetición de um texto o de una forma textual o de una manera particular de escribir o de hablar que adquiere valor de signo próprio (por lo tanto es significable). Se puede formar em relación com cualquier finalidad de expresión o con cualquier elemento de contenido cuya repetición establece un lazo entre actualización y tradición, es decir, cualquier relación que se puede establecer semióticamente entre dos elementos de tradición (actos de enunciación o elementos referenciales) que evocan una determinada forma textual o determinados elementos lingüísticos empleados (KABATEK, 2005, p.159). 3 Entendemos que diatópica é a variação linguística regional, ou seja, uma mesma língua, que é falada de forma diferente dependendo da localidade; diafásica é uma variação que pode ocorrer nas falas de uma mesma pessoa, ou seja, a pessoa muda seu jeito de falar dependendo da situação, por exemplo, se está em um ambiente formal ou informal; e diastrática é uma variação que acontece em determinados grupos sociais, por exemplo, políticos, advogados, bandidos etc. 26 expressiva, pode conter, de acordo com a TD em que se inscreve, mais elementos do que os estritamente necessários para que se cumpra sua finalidade expressiva, ou, ao contrário, menos elementos. A autora ainda cita o exemplo da fórmula “era uma vez” que não acrescenta nenhum conteúdo proposicional ao texto que segue, mas que, no entanto, o insere em uma tradição. A segunda consequência é a de que uma TD não é um texto que se repete sempre da mesma forma. Ainda que não se acrescente um novo conteúdo proposicional, como no exemplo do “era uma vez”, as TDs estabelecem uma relação entre o texto e outros textos já ditos/escritos, tratando-se, assim, de maneiras de falar/escrever cuja função é transmitir uma informação que supera o conteúdo proposicional e o próprio valor modal, uma vez que não derivam da enunciação atual, mas da relação que estabelece entre essa enunciação e outras anteriores (LOPES-DAMASIO, 2011, p.72). Assim, uma TD pode ser, além de texto, uma combinação particular de elementos. Origina-se disso sua composicionalidade paradigmática e sintagmática. A composicionalidade paradigmática refere-se à simultaneidade de referências a uma variedade de TDs em uma mesma porção de texto. Já a sintagmática diz respeito ao fato de que muitos textos não são homogêneos, ocorrendo, assim, uma sucessão de diferentes TDs ao longo de um mesmo texto. Há ainda uma ressalva a se considerar; se a composicionalidade paradigmática são várias TDs sendo referidas simultaneamente, em um mesmo texto, então, pode-se acreditar que existam possibilidades de transformação de uma TD: As TDs são transformadas ao longo do tempo, e podem mudar totalmente até se converterem em outra realidade totalmente diferente da inicial. A variabilidade de uma TD pode ser sancionada socialmente (KABATEK, 2005, p.161). Apesar de existirem TDs fixadas (como é o caso de TDs no âmbito religioso, por exemplo), há os casos em que ocorre a transformação de TDs mediante a variabilidade expressiva dos falantes em casos como os de inovação oral, por exemplo, redes sociais, bate-papos, entre outros, menos evidentes. Kabatek (2008, p.9-10, apud LOPES-DAMASIO, 2011, p.73) deixa claro que o objetivo principal do conceito de TD é a ampliação da teoria da linguagem, representando a inclusão da tradição nos estudos linguísticos em todos os aspectos 27 em que possua relevância, como, por exemplo, tradição de textos concretos e suas repetições, tradição de formas textuais, de elementos designativos, de lugares, de tópicos etc. São distinguidos, ainda, três enfoques para compreender a abrangência da consequência da admissão das TDs nos estudos linguísticos (cf. KABATEK, 2005c, p.34, apud LOPES-DAMASIO, 2011, p.74). O primeiro diz respeito a fatores históricos que levam à criação ou adoção de novas TDs. Segundo o autor, quando constelações históricas são produzidas, fazem supor que há a necessidade de se criar, ou adotar uma nova TD, e, da mesma maneira, averiguar que circunstâncias históricas levaram à criação de TDs já existentes em determinada época. O segundo enfoque é referente à descrição das características particulares das diferentes TDs. Conforme Kabatek (2005c, p.37-38, apud LOPES-DAMASIO, 2011, p.74), há uma lista de fatores que podem ser descritos a fim de determinar a inserção de um texto em uma determinada TD: (a) conteúdo expresso no texto; (b) constelação pragmática em que aparece; (c) seu possível vínculo institucional; (d) sua relação com outros textos e com diferentes línguas. Há, ainda, traços propriamente linguísticos e textuais que caracterizam que tipo de TD está sendo usado no texto, como: (A) a quantidade e a variedade do léxico empregado; (B) a relação typen-token; (C) o tipo de léxico; (D) a unidade ou diversidade morfológica; (E) as técnicas sintáticas e transfrásticas empregadas; (F) a relação entre as diferentes partes do texto; (G) a disposição textual. “Todos esses fatores formam conjuntos identificáveis e próprios de diferentes TDs” (LOPES-DAMASIO, 2011, p.74). É importante salientar: a importância da metodologia empregada nos estudos que levam em conta as TDs, ou seja, a consequência metodológica é muito importante para o planejamento da busca de elementos comparáveis entre as diferentes TDs. Nesse sentido, em vez de estabelecer largas listas de características de diferentes TDs, o que torna difícil a comparação, parece mais apropriado escolher alguns elementos sintomáticos para chegar, por essa via, a uma classificação coerente das diferentes TDs (Kabatek, 2005b, p.38-39, apud LOPESDAMASIO, 2011, p.75).4 O terceiro enfoque relaciona as TDs com a história da língua. Conforme Lopes-Damasio (2011), diferente da evolução da língua, da mudança linguística, é a 4 Corroborando com o autor, elegemos como elementos sintomáticos, para o nosso trabalho, os juntores, que possuem a função de unir proposições. 28 questão dos textos que estão inscritos nessa língua e, consequentemente, as respectivas tradições às quais esses textos pertencem. E é essa visão que predomina nas escolas linguísticas em que o que prevalece basicamente é a autonomia da língua em face dos textos, ou ainda, a preexistência da língua como sistema que torna possível a criação de textos, os quais são, por sua vez, inseríveis em diferentes tradições. O objetivo de Kabatek (2005c, p.39-40 apud LOPESDAMASIO, 2011, p.75) não é negar que exista a possibilidade de haver áreas do sistema linguístico em que haja certa autonomia, mas, sim, reafirmar que existe a necessidade de detalhar “qual área é autônoma”. O autor exemplifica, apoiando-se no caso da autonomia da sintaxe, como é postulado nos estudos gerativos, afirmando que nessa área também é preciso detalhar “qual sintaxe” é autônoma. Para esse questionamento, o autor fundamenta-se em estudos que identificam áreas da sintaxe – principalmente da sintaxe complexa – relacionáveis com as TDs em uma língua.5 Desse modo, fica evidente a relação entre TD e história da língua, e entre TD e língua, de um modo geral, pois a fixação que ocorre nos momentos em que novas tradições são criadas possibilita explicar fenômenos como a ampliação do léxico e a elaboração sintática. Nessa perspectiva, Kabatek (2005c, p.41 apud LOPES-DAMASIO, 2011, p.76) assume três considerações. A primeira diz que uma linguística histórica que considere as TDs tem condições de dar conta da inovação das TDs, pois pode abordar os momentos em que novas TDs são criadas, ou ainda, quando já existem e são adotadas por outras línguas. A segunda consideração do autor é sobre a adoção do conceito de TDs por uma gramática histórica, que terá condições de flagrar acontecimentos que ocorrem por detrás das grandes linhas evolutivas aparentes de uma língua. Lopes-Damasio (2011, p.76) exemplifica essa terceira consideração com o fenômeno da perda. Segundo a autora, a diferenciação das TDs permitirá observar que a perda não é uniforme em todas as TDs, mas que determinado elemento perde-se em algumas TDs e, no entanto, pode se manter em outras. A terceira e última consideração desse aspecto postula que podem ocorrer 5 O autor chama a atenção para os esquemas sintáticos presentes nas diferentes TDs castelhanas do século XIII, nos quais é possível identificar, por um lado, elementos talvez “autônomos”, que podem ser descritos independentemente das TDs em que se inserem, como seria o caso da ordem dos constituintes ou do lugar correspondente aos clíticos, e, por outro, tendo em conta fatores como os tipos de subordinação ou as orações adverbiais, elementos não autônomos, ou seja, que permitem a afirmação de diferenças segundo as distintas TDs (cf. KABATEK, 2008, 2005a, 2005b, 2005c apud LOPES-DAMASIO, 2011. p.75). 29 mudanças nas próprias TDs, por serem construções multifacetadas, que estão dispostas a um dinamismo contínuo. 3. Relacionando TD e mudança linguística Como as TDs permeiam todas as línguas, ao serem passadas de uma língua para outra, elas carregam consigo interferências da língua de origem. Quando evocamos uma TD, não evocamos só a forma, o contato com o conteúdo da outra língua é inevitável. Segundo Kabatek (2003, p.7), “a interferência atua como uma das possíveis formas de inovação linguística e pode originar, portanto, mudanças na língua”. E, ainda conforme esse autor, “a adoção de uma nova tradição discursiva cria necessidades expressivas novas, o que não necessariamente se cumpre com a simples introdução de elementos estrangeiros, mas, muitas vezes, com a criação de novos”. Para que seja possível desenvolver o conceito de mudança linguística, é necessário retomarmos as ideias de Coseriu (1958, p.78 - 80, apud KOCH, P. 2008, p.56), que apresenta uma distinção fundamental entre inovação, adoção e difusão. Para Coseriu, há inovação quando um falante cria um fato linguístico novo no nível que já conhecemos como individual/particular. A inovação em si não ocasiona mudança na língua, mas é preciso haver inovação para haver mudança. Os outros falantes adotam, então, esse fato linguístico inovador e o difundem em sua própria comunidade linguística. Acontece, dessa forma, a chamada mudança linguística. Não se pode desconsiderar o fato de que a adoção de um ato linguístico novo interfira nos níveis e domínios do linguístico apresentados no esquema 2 deste trabalho. Já sabemos que a inovação acontece no nível individual/particular do discurso, que se baseia nas regras idiomáticas e elocucionais. Regras idiomáticas que, apesar de serem preexistentes, não são imutáveis, e regras elocucionais que permitem ao falante os métodos criativos. Resta-nos ainda compreender como, então, se desenvolvem os processos de adoção e difusão. Existem duas possibilidades de entender como isso ocorre: (i) há uma intervenção no domínio histórico da língua, ou seja, quando a inovação se inicia no discurso atual e, como um fato novo, é inserida na comunidade linguística e adotada pelos falantes, até que se funde a essa comunidade (KOCH, P. 2008, p.56-57); (ii) um pouco mais realista, 30 esta segunda possibilidade propõe a divisão da língua particular em variedades e, da mesma forma, a comunidade linguística em subcomunidades. Segundo Kabatek (2005, p.163), o que se busca, ao estudar a história de uma língua, não são as mudanças da língua, mas as mudanças da língua dos textos de diferentes épocas, considerados representativos dos estados concretos dessa língua: T1 T2 T3 T4 Tn L1 L2 L3 L4 Ln Esquema 3: Tradição textual e história da língua Fonte: KABATEK (2005, p. 163) Lopes-Damasio (2011, p.82-83) propõe que, para resolver a problemática de que diferentes TDs podem influenciar na diacronia dos fatos linguísticos, deve-se estudar a história da língua a partir dessas diferenças, ou seja, realizar um estudo menos monolítico e que possibilitará constatar: (i) em qual TD uma inovação foi criada com relação aos aspectos focalizados; (ii) como essa inovação se difunde por meio das TDs; (iii) onde existem resistências aos processos de inovação/mudança. Assim, em consequência dessa primeira revisão, segundo a autora, toda mudança linguística deixa de ser vista como um processo linear, e passa a ser concebida como um complexo que esconde, debaixo do que em trabalhos com grande corpora aparece como uma linha, textos em que a mudança pode estar mais avançada que em outros. Conforme Lopes-Damasio (2011, p.83), desta forma escapa-se da problemática visão da mudança linguística como um processo que acontece a partir da manipulação de uma “mão invisível”,6 que, ainda que válida como metáfora no âmbito de uma teoria da mudança voltada para o nível abstrato da língua, é inútil como explicação no âmbito da língua concreta. 6 Essa teoria foi defendida por Helmut Lüdtke (1986) e, posteriormente, pelo germanista Rudi Keller, que explica, em trabalho bastante difundido, que gira ao redor da questão da consciência do falar, a mudança linguística como um processo da “mão invisível”, no qual uma soma de atuações individuais leva a um resultado não intencionado pelos indivíduos, como se os falantes fossem guiados por uma mão invisível (KABATEK, 2000, p.57 apud LOPES-DAMASIO, 2011, p. 83). 31 Assim, ainda conforme a autora, o conceito de TD é imprescindível para que se compreenda adequadamente graus e itinerários de habitualização na mudança linguística. 4. TD – uma relação com a fala e com a escrita Nesta seção, apresentaremos brevemente três grandes perspectivas a respeito da relação fala/escrita: visão dicotômica, continuum tipológico e heterogeneidade, importantes para a compreensão da nossa concepção de língua, bem como para a sustentação das relações entre TD e aquisição de escrita. Segundo Oesterreicher (1997), as TDs fazem uma ligação entre os parâmetros formais, a expressão e as variedades linguísticas, ao se levar em conta os diferentes tipos de situações comunicativas. Sendo assim, as TDs determinam a escolha das formas linguísticas e variedades, uma vez que as características linguísticas são típicas de determinadas TDs. Ainda segundo esse autor a escrita tornou-se imprescindível nas sociedades quando a literatura atingiu um grau de complexidade em que a repetição cerimonial não era mais suficiente. A coerência social passou, então, a ser guardada também através de textos e não mais apenas de ritos. É sabido, contudo, que há um aumento considerável da complexidade de processos comunicativos em sociedades com uso da escrita, o que leva à proliferação e à diferenciação de TDs (OESTERREICHER, 1997). Entretanto, essa afirmação parece superestimar a escrita. Sendo assim, até que ponto está correto “alimentar” essa superestimação? Em outras palavras, até que ponto as relações entre fala e escrita são importantes para a própria aquisição do modo escrito de enunciação? Na linha de Oesterreicher (1997), a aquisição do conhecimento discursivotradicional mostra que as TDs são abstrações que levam a processos comunicativos de identificação, habituação e legitimação. Dessa forma, devemos acrescentar mais um ingrediente nessa relação: para além da fala e escrita, numa sociedade movida pelos modelos de escrita institucionalizados, somam-se, também, as tradições de textos. Vejamos agora como a relação da fala/escrita é percebida nas três perspectivas distintas acima mencionadas, a fim de abrirmos expectativas acerca dessa tríade: fala, escrita e TD. 32 4.1. Fala e escrita: uma visão dicotômica Koch (1997, p. 32) apresenta um quadro que mostra como a visão dicotômica é elaborada: Quadro 3: Representação da perspectiva dicotômica FALA ESCRITA Contextualizada Descontextualizada Implícita Explícita Redundante Condensada Não-planejada Planejada Predominância do “modus pragmático” Fragmentada Predominância do “modus sintático” Incompleta Completa Pouco elaborada Elaborada Pouca densidade informacional Densidade informacional Predominância de frases curtas, simples ou coordenadas Pequena frequência de passivas Predominância de frases complexas, com subordinação abundante Emprego frequente de passivas Poucas nominalizações Abundância de nominalizações Menor densidade lexical Maior densidade lexical Não-fragmentada Fonte: KOCH (1997, p. 32) Diante desse esquema, poder-se-ia acreditar que fala e escrita podem ser vistas de forma polarizada, podendo, até mesmo, serem representadas como: FALA versus ESCRITA, pois são consideradas, sobretudo, a partir de um enfoque numa caracterização que destaca diferenças entre essas duas modalidades, de uma forma dicotômica. Essa perspectiva oferece um modelo primário que originou grande parte das gramáticas pedagógicas que se acham em uso hoje em dia. Indica dicotomias estanques com divisão entre forma e conteúdo, divisão entre língua e uso, em que a língua é concebida como sistema de regras, o que levou o ensino de língua ao ensino de regras gramaticais (MARCUSCHI, 1997, p.128). Segundo Assis (2005), com relação às atividades pedagógicas associadas à avaliação da escrita escolar, ainda é grande a quantidade de ações que se baseiam, 33 equivocadamente, na crença de que há características específicas de textos escritos decorrentes dos traços pertinentes à modalidade em que são produzidos e, quase sempre, opostas àquelas consideradas típicas dos textos orais. Uma conclusão, bem conhecida, a que se chega por meio da visão dicotômica é a que atribui à fala uma complexidade menor, e uma maior complexidade à escrita. Essa tendência dicotômica se apoia em pressupostos que defendem que existam propriedades intrínsecas à escrita, que são desvinculadas do seu contexto/processo de produção, e, ainda, que a escrita seja superior à fala, um aspecto que também se atribuiria aos grupos que a dominam (ASSIS, 2005, p.6). Segundo Hilgert (2000, p. 18), “essa caracterização é evidentemente idealizada, pois, além de não contemplar a correlação das duas modalidades entre si, considera cada uma um fenômeno monobloco, estático e homogêneo”. Na visão dicotômica, há os estudos de Goody (1997, apud ASSIS, 2005, p.6), que associam o desenvolvimento do pensamento abstrato à escrita; Ong (1982, apud ASSIS, 2005, p.6), para quem a escrita, ao contrário da fala – restritiva, subjetiva, simples, tradicional – potencializa a condição de ser ciente, uma vez que obriga a processos mentais mais complexos; Olson & Hildyard (1983, apud ASSIS, 2005, p.6), que entendem que textos escritos tendem a ser mais cuidadosamente planejados e expressam conjuntos formais de conhecimento. Para Marcuschi e Dionísio (2007), entretanto, não há justificativa para a supremacia da escrita sobre a oralidade, pois ambas têm um papel importante a cumprir. São, na verdade, atividades discursivas complementares que não estão em competição, uma vez que cada uma tem sua história e seu papel na sociedade. Assis (2005), corroborando Marcuschi e Dionísio, aponta que, para os estudos citados, as características consideradas são frutos da observação da escrita desvinculada das práticas discursivas nas quais a escrita está efetivamente integrada. Koch (1997, p. 32) defende a ideia de que a visão dicotômica de fala e escrita já não deve mais ser vista como satisfatória no campo dos estudos linguísticos. O que ocorre, na verdade, segundo essa autora é que: (i) nem todas essas características são exclusivas de uma ou de outra dessas modalidades; (ii) essas características foram estabelecidas a partir de um parâmetro de escrita ideal (ou seja, busca-se olhar a língua falada por meio de uma gramática projetada para a escrita), o que levou a uma forma preconceituosa de ver a fala, que já foi comparada 34 à linguagem rústica das sociedades primitivas ou à das crianças em fase de aquisição de linguagem. Segundo ela, verifica-se, na verdade, textos escritos que se situam, num continuum, mais próximo ao polo da fala conversacional (bilhetes, cartas informais, textos de humor, por exemplo), e textos falados que se aproximam do polo da escrita formal (conferência, entrevistas profissionais dentre outros). Tannen (1982, apud LINS, 2007, p.2) admite que existam peculiaridades inerentes a cada uma dessas modalidades, no entanto, assegura que as estratégias da língua oral podem ser encontradas num texto escrito, da mesma forma que podem ser encontradas estratégias da escrita num texto oral. Na opinião dessa teórica, as diferenças formais se dão em função do gênero e do registro linguístico e não em função da modalidade. Outros teóricos nos deixaram dados com suas comparações entre a oralidade e a escrita para um estudo mais contundente do continuum em que se situam os diversos tipos de gêneros textuais: Chafe (1982) o faz, levando em consideração um envolvimento maior ou menor dos interlocutores; Halliday (1987 e 1989), discutindo a complexidade estrutural das modalidades; Britton (1975), demonstrando que as diferenças dos gêneros se fundam nas suas condições de produção; Biber (1988), descrevendo as dimensões significativas de variação linguísticas, a relação entre os gêneros e o contínuo tipológico nos usos da língua (LINS, 2007, p. 2). 4.2. Fala e escrita: uma visão do continuum tipológico Oesterreicher (1997), ao estudar a problemática escrita/oralidade, verificou que as condições de produção de enunciados levam a estratégias e formas de verbalização históricas e discursivo-tradicionais. Segundo ele, existem parâmetros que correspondem a tais tipos de condições de produção. Esses parâmetros estão distribuídos em dois polos; proximidade e distância comunicativa. Ao polo da proximidade comunicativa, pertencem a privacidade, a forte contextualização, a proximidade espacial e temporal dos interlocutores, a espontaneidade e o desenvolvimento livre do tema. Já ao polo oposto, estão relacionadas a distância comunicativa, a publicidade, a baixa contextualização, a distância espacial e temporal dos interlocutores e a reflexão. A realização de discursos em um determinado meio (fônico ou gráfico) deve-se a essas condições de produção. O 35 autor aponta que assim como existem condições para a produção de um discurso, as TDs também podem ser caracterizadas em relação a níveis de proximidade e distância comunicativas. Outros estudos como os de Oesterreicher surgiram para tentar justificar a relação fala/escrita. Marcuschi, na linha desse autor, retomou a hipótese de Biber (1988, apud BOTELHO, 2004) para trabalhar a ideia de continuum tipológico. É importante, neste momento, compreender a distinção que existe para Marcuschi, entre fala/escrita e oralidade/letramento. Para Marcuschi (1997), fala/escrita concernem duas modalidades de uso da língua e oralidade/letramento apontam duas práticas sociais. Nas palavras do próprio Marcuschi (1997, p.126): A fala seria uma forma de produção textual-discursiva oral, sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano. A escrita seria, além de uma tecnologia de representação abstrata da própria fala, um modo de produção textual-discursiva com suas próprias especificidades. A oralidade seria uma prática social que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais que vão desde o mais informal ao mais formal e nos mais variados contextos de uso. O letramento, por sua vez, é o uso da escrita na sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o indivíduo que é analfabeto, mas sabe o valor do dinheiro, sabe o ônibus que deve tomar, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas e sabe muita outra coisa, mas não escreve cartas, nem lê jornal, até o indivíduo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemática. (...) letramento distinguir-se-ia de alfabetização, podendo, eventualmente, envolvê-la. Conforme Marcuschi (1997, p.136), as “diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois polos opostos”. O gráfico a seguir exemplifica o esquema dessa postura adotada por esse autor: Figura 1: Continuum de gêneros textuais de Marcuschi Fonte: Marcuschi (1997) 36 Neste gráfico, podemos observar que tanto a fala, quanto a escrita se dão em dois contínuos, ou seja, há dois domínios linguísticos (fala/F e escrita/E) e, nestes domínios, temos os gêneros textuais (G). Cada extremidade deste gráfico representa o gênero prototípico de sua modalidade. Por exemplo, uma conversação espontânea seria o GF1, como um texto genuinamente oral, não sendo permitido, portanto, compará-lo a GE1, que se trata de produção genuinamente escrita, como uma publicação acadêmica por exemplo. Hilgert (2000, p. 21-22) apresenta algumas conclusões acerca dessas considerações: unicamente enquanto modos de expressão (fônico ou gráfico) textual, a fala e a escrita encontram-se em uma relação estritamente dicotômica; estabelecidos, entretanto, em uma perspectiva conceptual, os gêneros de texto, dos falados aos escritos, e dos escritos ao falados, distribuem-se ao longo de um continuum tipológico; (a) inicialmente, há uma relação de proximidade no caso dos textos prototípicos (conforme gráfico acima GF1 e GE1), entre o meio e a concepção correspondente; porém, na medida em que ocorre um distanciamento dos polos prototípicos para os extremos opostos, essa relação, nos limites de cada plano do continuum, vai sendo reduzida até que se estabeleça uma nova afinidade com o plano oposto; (b) os textos são definidos na correlação vertical dos dois planos e não isoladamente em seu plano horizontal, o que permite identificar que, à extrema esquerda, estão os textos conceptualmente falados, ainda que se apresentem medialmente escritos (os bilhetes, por exemplo) e, à extrema direita, estão os textos conceitualmente escritos, mesmo que se apresentem medialmente falados (exposições acadêmicas, por exemplo); (c) um mesmo movimento que ocorra nos dois planos horizontais, em direção ao centro do gráfico, indicará o reconhecimento de um tipo de texto, em uma visão conceptual, “equilibradamente” marcado pela fala e pela escrita, como por exemplo, os textos noticiosos de jornais e revistas (na escrita) e dos noticiários de televisão e rádio (na fala). É possível, por meio da ideia de continuum tipológico, observar que a fala e a escrita compõem um mesmo sistema linguístico e que por isso mesmo não são 37 estanques, ainda que seus processos de produção e seus meios de produção, poderíamos dizer, suas bases semióticas, sejam distintos(as). Conforme Marcuschi (2007), há muitos aspectos sob os quais os textos se entrecruzam e até constituem domínios mistos, como os casos, por exemplo, de uma aula expositiva e de um noticiário de TV. No primeiro, apesar de tratarmos como um evento puramente oral, este foi elaborado a partir de leituras e anotações do professor, num primeiro momento de sua concepção, e, em seguida, de exposições originais deste mesmo professor. No caso do noticiário de TV, trata-se de textos originalmente escrito, mas que o receptor só recebe oralmente. Podemos, a partir desses exemplos, ter uma ideia das relações mistas dos gêneros a partir do meio e da concepção das modalidades. Para Marcuschi (2007, p. 38), há uma “impossibilidade de situar a oralidade e a escrita em sistemas linguísticos diversos, de modo que ambas fazem parte do mesmo sistema da língua”, ou seja, apesar de ambas serem concretizadas a partir de uma única “gramática”, existem especificidades que demonstram diferenças contundentes do ponto de vista semiológico, sugerindo, assim, que a escrita não representa fala. O gráfico a seguir nos dá uma ideia das relações mistas dos gêneros a partir de algumas premissas: meio e concepção. O gráfico representa então que: “a” é o domínio do tipicamente falado – oralidade (meio e concepção). Na ponta oposta a “a”, temos “d” que marca o tipicamente escrito. Então, “b” e “c”, representam os domínios mistos. a Concepção (oral) b meio (sonoro) meio (gráfico) c d Concepção (escrita) Figura 2: Representação da oralidade e escrita por meio de produção e concepção discursiva Fonte: MARCUSCHI (2007) Considerando as oposições, sonoro X gráfico como meios de produção (bases semióticas, o som e o traço), e oral X escrito como concepção discursiva, 38 Marcuschi (2007) situa, no domínio tipicamente oral, a produção “a” e, no domínio tipicamente escrito, a produção “d”. Fica, então, claro que “a” e “d” se opõem, uma vez que representam gêneros distintos (“a” é sonoro e oral, ou seja, é concebido como texto que deve ser materializado por meio do som, ao passo que “d” é gráfico e escrito, ou seja, é concebido como texto que deve ser materializado por meio do traço/gráfico). As produções “b” e “c”, por sua vez, estão no domínio misto/híbrido, visto que se misturam (“b” é gráfico e oral, ou seja, corresponde a um texto concebido via oralidade, mas que se materializa na escrita, e “c” é sonoro e escrito, ou seja, corresponde a um texto que concebido via escrita, mas que se materializa por meio do som). A fim de esclarecer essa descrição, o autor toma os seguintes gêneros como exemplos: conversação espontânea, artigo científico, notícia de TV e entrevista publicada em revista, e os dispõem no Quadro 4, considerando as variáveis do gráfico representado na Figura 2. Quadro 4: Distribuição de quatro gêneros textuais de acordo com o meio de produção e a concepção discursiva Gêneros textuais Conversação espontânea Artigo científico Notícia de TV Entrevista publicada em revista Meio de produção Sonoro X X Concepção discursiva Gráfico Oral Escrita X X X X X X Domínio a d c b Fonte: MARCUSCHI ( 2007, p. 40) Analisando os dados do Quadro 4, fica evidente que: • A produção do domínio “a” – conversação espontânea – é prototípica da oralidade por ser um texto tipicamente oral, visto que é sonoro e concebido oralmente; • A produção do domínio “b” – entrevista publicada em revista não é prototípica nem da escrita nem da oralidade por ser um texto misto, já que é gráfico apesar de concebido oralmente; • A produção do domínio “d” – artigo científico – é prototípica da escrita, uma vez que é um texto tipicamente escrito, é gráfico e escrito; 39 • A produção do domínio “c” – notícia de TV – também não é prototípica, é mista, pois é sonoro apesar de escrito. Assim, no continuum tipológico, ocorre uma eliminação da dicotomia estrita e uma sugestão de uma diferenciação gradual ou escalar (MARCUSCHI, 1997, p.139), que pode ser denominada de “dicotomização metodológica”. Conforme essas considerações, Hilgert (2000) afirma que fala e escrita apontam gêneros de textos moldados por uma lista de traços que os identificam como sendo texto falado e texto escrito em maior ou menor grau, e não mais como textos dicotomicamente antagônicos. 4.3. Fala e escrita: uma visão da heterogeneidade Outra perspectiva que trata da relação fala/escrita é a que focaliza as questões destacadas sob a ótica da heterogeneidade. Segundo Corrêa (2004, 2007, apud LONGHIN-THOMAZI, 2011, p.227), fala e escrita são modos de enunciação que estão relacionados à circulação dos sujeitos pelas práticas sociais, que são historicamente estabelecidas, existindo entre essas práticas uma indissociabilidade que permite a apreensão de características de enunciados falados na produção escrita, não apenas e unicamente nos textos/gêneros considerados “mistos” ou “híbridos” a partir da concepção da dicotomização metodológica, tal como acabamos de apresentar, mas em quaisquer pontos do sugerido continuum. Corrêa (2007) sustenta a ideia de que existe a presença do falado no escrito, mas que isto não marcaria apenas uma relação entre duas tecnologias diferentes. Marcaria, na verdade, a relação entre dois modos de enunciação que se constituem mutuamente. Assim, são encontrados elementos dessa constituição tanto na fala quanto na escrita. A esse respeito, Corrêa (2001, p.142 apud CHACON, 2005, p.78) diz que “o próprio ato de escrever é sempre produto do trânsito do sujeito escrevente por práticas sociais orais/faladas e letradas/escritas”. O que caracteriza para esse autor o fato de a heterogeneidade da escrita ser o encontro das práticas orais/faladas e letradas/escritas. Para que possamos melhor compreender a maneira como Corrêa percebe o funcionamento da escrita, apresentamos agora uma síntese dos trabalhos de Corrêa, elaborada por Capistrano (2010, p.176-177): 40 (I) Fala e escrita são vistas como modos de enunciação ligados às práticas de oralidade e de letramento. Essa afirmativa incita a levar em conta que fala e escrita, ao mesmo tempo em que são fatos linguísticos, também são práticas sociais. Com essa delimitação, o autor questiona a visão segundo a qual a escrita poderia ser resumida a sua base semiótica, e posiciona-se no sentido de compreendê-la em seu processo de produção; (II) Marcas de fatos ligados à enunciação oral presentes em enunciados escritos constituem indícios do modo heterogêneo de constituição da escrita. Partindo de uma revisão crítica a trabalhos que parecem defender uma dicotomia radical entre o falado e o escrito, e, tomando como um ponto de partida trabalhos que veem nessa dicotomia apenas um recurso metodológico, Corrêa sustenta a ideia de que a heterogeneidade não é uma característica que se marca na escrita, ou principalmente nas escritas que não se enquadram no “padrão” de escrita, mas, sim, uma característica da escrita, constitutiva e interior a ela. (III) A escrita vista em seu processo de produção. Assumindo a escrita enquanto processo, e não como produto, assume-se ainda que o caráter heterogêneo da escrita não está limitado ao seu material significante, mas, na verdade, propaga-se para outras dimensões que constituem o processo de sua produção. (IV) A relação oral/falado e letrado/escrito é sempre vista a partir da relação sujeito/linguagem. Corrêa tem descoberto as representações que o escrevente faz da relação oralidade/escrita, pelo fato de o escrevente ser parte fundamental do processo de apreensão da oralidade pela escrita. Essa descoberta é conseguida por meio de análise de vestígios linguísticos que possibilitam assinalar “pontos de ruptura da cadeia discursiva que denunciam a circulação do escrevente pela imagem que ele faz da (sua) escrita, evidenciando a heterogeneidade que os (a ele e a sua escrita) constitui”. 41 (V) A circulação dialógica do escrevente e/ou a imagem que o escrevente faz da escrita são sempre consideradas como parte de um imaginário socialmente partilhado. Em outras palavras, Corrêa valoriza a representação que o escrevente faz da (sua) escrita, do interlocutor e de si mesmo, objetivando apreender não a representação que o escrevente faria, individualmente, da sua escrita, mas, sim, “uma representação adquirida do grupo de que faz parte, da escola que frequenta, do vestibular que presta...” (CORRÊA, 2004, p. XXXIV apud CAPRISTANO, 2010, p.177). Capristano (2010, p. 178) percebe com isso que o modo heterogêneo de constituição da escrita se faz em duas vias distintas e interligadas: (i) é um modo de projetar a escrita do ponto de vista de sua produção (nos diferentes e inúmeros enunciados escritos produzidos pelos escreventes, aprendizes ou não). Ou seja, é a heterogeneidade da escrita imputada pela representação que percebemos exposta no registro da atividade discursiva do escrevente; e (ii) é um modo de projetar a escrita do ponto de vista da sua recepção. Ou seja, a heterogeneidade possibilita a mesma representação, só que agora justificada pela presença do modo heterogêneo de constituição da escrita, nas práticas sociais das quais os escreventes participam (escolarizadas ou não). Com isso, supõe-se que a escrita com que os escreventes têm contato, nas práticas escolarizadas ou não, teriam a mesma natureza heterogênea. Para Capristano (2010, p. 179), existem duas formas de detectar a heterogeneidade que constitui a escrita inicial. Uma delas é observar, em um mesmo enunciado, fatos linguísticos que denunciam diferentes formas de circulação do escrevente pelos modos de enunciação falado e escrito. A outra é a partir também da análise de um único fato linguístico, mais uma vez marcando as diferentes maneiras de circulações do escrevente pelos modos de enunciação falado e escrito, agora colocando em foco fatos linguísticos que constituiriam efeito de entrelaçamentos entre o falado e o escrito, entrelaçamentos que conforme Chacon (2005): (...) dizem respeito à ocorrência simultânea de duas tendências de localização da escrita pelo sujeito aprendiz: na direção da relação 42 que a criança estabelece (...) com o que imagina ser a gênese da escrita – supostamente a capacidade da escrita de representar integralmente o falado (...) e na direção da relação que a criança estabelece com a (...) reprodutibilidade de uma prática, na medida em que se coloca em (...) relação com o que imagina ser o institucionalizado para sua escrita (...) (CORRÊA, 2004, p. 294). Ou seja, trata-se de entrelaçamentos que marcam, na escrita inicial, a história da criança com (...) encontros entre o oral/falado e letrado/escrito (CORRÊA, 2004, p. 298). Assim, a heterogeneidade é, portanto, constitutiva da escrita; então, afirmar que a relação entre o falado e o escrito é uma questão de interferência seria como dizer que ambas as modalidades são puras (cf. CORRÊA, 1997, p.86 apud CHACON, 2005, p.79). Nas palavras de Chacon (2005, p.79) “a heterogeneidade constitutiva da escrita é explicada pela relação que o sujeito mantém com a linguagem, em seus diferentes modos de enunciação”. Assumir a heterogeneidade da relação fala/escrita não implica dizer que não existam diferenças básicas entre o funcionamento oral e escrito da linguagem, que nos impede de falar exatamente como escrevemos, ou de escrevermos exatamente como falamos. Fala e escrita possuem especificidades relacionadas às suas condições de produção. “Tanto a fala como a escrita são modos de representação cognitiva e social que se revelam em práticas específicas e condicionadas por um contexto sócio-cultural historicamente marcado” (SILVA, 2008, p.19). Assumimos a heterogeneidade da escrita como sendo a melhor maneira de embasar esta nossa pesquisa, pois, segundo Abaurre et alii (2002, p.35), não dá para aceitar que exista uma hipótese geral que proponha um caminho natural do oral para o escrito, uma vez que, do ponto de vista explicativo, é mais adequado interpretar o trabalho (texto escrito) da criança como motivado por razões locais, que surgiram no decorrer da tarefa de pôr no papel o seu “querer-dizer”, de forma clara para o interlocutor/leitor do seu texto. Em suma Tendo surgido a partir dos postulados de Eugenio Coseriu (1979) e dando origem a uma renovação nos estudos da história das línguas, TD ainda é um conceito novo nas pesquisas linguísticas no Brasil, embora já existam muitos trabalhos pelo mundo todo envolvendo esse conceito. 43 As situações vividas e recorrentes evocam atos linguísticos já formulados. Isso fica muito bem representado no esquema 2, elaborado por Kabatek (2005), a partir do qual ele explica a condição mais complexa para que se considere uma TD: o fato de que é preciso haver uma evocação e uma repetição. Ou seja, estão aí incluídas as outras condições primeiras, pois é preciso que haja uma repetição, mas que seja uma repetição discursiva; e, ainda, que sendo uma repetição discursiva, os elementos linguísticos estejam incluídos em uma constelação discursiva. A partir dos autores estudados, compreendemos TD como uma relação semiótica para com os enunciados. Quando temos uma intenção comunicativa, há uma evocação do molde e/ou padrões de “como dizer/escrever aquilo” e, assim, o emissor produz e o receptor decodifica segundo uma TD que traz, além de moldes, funções textuais completadas por funções idiomáticas. Porém, a cada nova situação, tem-se uma readaptação dessa tradição. Trata-se, dessa forma, de um conceito que une aspectos do que é caracterizado como “tradicional” e “discursivo”, conforme a novidade de cada acontecimento. Da definição apresentada por Kabatek (2005, p.159), resultam ainda questões, consequências e o surgimento do que o autor (2008) chama de composicionalidade paradigmática e composicionalidade sintagmática, que abrem precedentes para a discussão das chamadas transformação de TDs. Há ainda a relação das TDs com as mudanças linguísticas, que, na verdade, coloca as TDs no centro das mudanças, uma vez que é a partir da adoção de novas TDs que ocorre uma série de transformações nas línguas. As TDs permeiam as línguas históricas e com isso carregam conteúdos específicos que muitas vezes são adotados por outras línguas. Para a relação das TDs com a fala e a escrita, começamos pela apresentação de três perspectivas da relação fala/escrita. A visão dicotômica, a do continuum tipológico e a da heterogeneidade constitutiva da escrita. Na visão dicotômica radical, fala e escrita são entendidas como duas modalidades polarizadas e estanques. São consideradas, nesta perspectiva, as características e diferenças de cada modalidade separadamente. É também nessa vertente que se tem a falsa premissa de que, por considerar a escrita mais elaborada, rebuscada e complexa, esta se sobreponha à fala. “Adverte, porém, Marcuschi (1994, p. 2), apoiando-se em Rader (1982), que a autonomia semântica de textos escritos deve ser vista como utopia” (ASSIS, 2005, p.6), uma vez que, para os estudos apontados, as 44 características consideradas são frutos da observação da escrita desvinculada das práticas discursivas às quais está efetivamente integrada. A outra perspectiva que trata da relação fala/escrita é a de continuum tipológico, também conhecida como dicotomização metodológica. Nela, considera-se que, conforme Marcuschi (1997, p.136), a partir dos estudos de Oesterreicher, as “diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois polos opostos”. Ou seja, os gêneros discursivos, que são frutos da produção social de textos, estão distribuídos ao longo de um contínuo no qual temos duas polaridades: puramente escrito – puramente falado, mas também temos o meio e as distanciações entre esses pontos, onde se configuram os gêneros mistos/híbridos. Por exemplo, entrevista publicada em revista, que é elaborada a partir do oral, mas que está registrada por meio do gráfico; ou manchete de noticiário, elaborada por meio gráfico, mas que se propaga por meio oral. Corroborando com Koch (1997) e com Abaurre (et alii, 2002), que negam a existência de um caminho natural do oral para o escrito, assumimos, então, a heterogeneidade constitutiva da escrita, neste contexto de estudo de textos na fase de aquisição de escrita, por acreditar que, ao aprender a escrever, a criança está desenvolvendo outro modo de representação da língua, reconstruindo, assim, sua história com esta língua; mas, para isso, utilizando traços da oralidade, uma vez que, desde o seu nascimento, a criança circula por diferentes TDs mediadas pela oralidade. Os estudos das TDs são, portanto, de suma importância para a linguística histórica, dado que, quando se estuda uma língua, estudam-se os textos representativos de tais épocas, e todo texto está inserido em alguma tradição. Para encerrar, é imprescindível lembrar que, aqui, no contexto do presente trabalho, a “história” não é entendida como pertencendo apenas a recortes diacrônicos, numa perspectiva metodológica, tal como a proposta por Saussure, a partir de uma concepção de língua abstrata, mas é entendida como pertencendo a todo estado de língua, mesmo sincrônico, enquanto uma característica constitutiva da língua concreta. Esse destaque é de suma importância dado que nosso enfoque ilumina dados sincrônicos de textos que caracterizam o processo de aquisição de escrita. Dados esses entendidos como recortes da língua concreta e, por isso, histórica, segundo os pressupostos coserianos. 45 CAPÍTULO 2 AQUISIÇÃO DE ESCRITA 1. O processo histórico-cultural de aquisição de escrita Já foi apontado, em seção anterior deste trabalho, que adotamos a concepção de linguagem de Eugenio Coseriu e isso implica dizer que é uma visão sócio-histórica, em que a linguagem é entendida como interação humana, interlocução. Considerada como atividade, como trabalho, a linguagem, ao mesmo tempo em que constitui os polos da subjetividade e da alteridade, é também constantemente modificada pelo sujeito, que sobre ela atua (cf. ABAURRE, 1999, p.2). Baseando-se em Franchi (1987), essa autora assume que: A linguagem é ela mesma um trabalho pelo qual, histórica, social e culturalmente, o homem organiza e dá forma a suas experiências. Nela se produz, do modo mais admirável, o processo dialético entre o que resulta da interação e o que resulta da atividade do sujeito na constituição dos sistemas linguísticos, as línguas naturais de que nos servimos. Assume ainda que é: na interação social, condição de desenvolvimento da linguagem, que o sujeito se apropria[do] sistema linguístico, no sentido de que constrói, com os outros, os objetos linguísticos de que se vai utilizar, na medida em que se constitui a si próprio como locutor e aos outros como interlocutores. (FRANCHI, 1987, p. 12 apud ABAURRE, 1999, p.2). Abaurre (2011, p.168) discute um aspecto do desenvolvimento cognitivo que pressupõe que a linguagem é (re)construída no sentido de que a criança, enquanto ainda faz hipóteses sobre a linguagem oral, já começa simultaneamente a trabalhar na construção do modo escrito de enunciação da sua língua materna. Tratando, pois, de aprendizagem/aquisição de escrita enquanto alfabetização, nesse sentido, Brito (2007, p.2) entende que “a escrita, então, não deve ser considerada como mero instrumento de aprendizagem escolar, mas como produto cultural”. Esta mesma autora entende ainda que, “a alfabetização transcende a mecânica do ler e do escrever (codificação/decodificação), ou seja, a alfabetização é um processo histórico-social multifacetado, envolvendo a natureza da língua escrita e as práticas culturais de seus usos”. 46 É fundamental compreendermos que a aquisição não ocorre passivamente, não constitui uma memorização de formas (corretas) de grafar palavras, mas pressupõe e requer um processo ativo de aprendizagem (MORAIS, 2002, 1999 apud PEREIRA, 2011, p.275). Diante destes apontamentos, a escrita, então, deixa de ser vista como representação da língua por meio de signos linguísticos e torna-se, assim, uma prática social, um bem social indispensável, que toma como base semiótica o gráfico, principalmente se considerarmos as novas tecnologias de comunicação humana, redes sociais, chats, aplicativos de mensagens textuais etc. Ora, referir-se a esse fenômeno como aquisição, não implicaria dizer, então, que a criança se apropria de um sistema pronto, acabado. O que ocorre, na verdade, é um processo no qual, segundo a nossa concepção de linguagem, a criança vai se apropriando da construção do modo escrito de enunciação da sua língua materna. Isso vai ao encontro dos postulados apontados e de teorias como as de Vygotsky (1998 apud BRITO, 2007, p.2), as quais têm sido de grande valia no campo educacional, iluminando discussões sobre a aquisição da escrita, considerada como um sistema de signos socialmente construídos, e descrevendo o processo de apropriação da escrita como processo cultural, de caráter histórico e que envolve práticas interativas. Nas palavras de Abaurre: o programa de investigação sobre a aquisição da escrita é muito recente e está a exigir ainda muita reflexão sobre as próprias hipóteses a serem assumidas [...] Cabe notar, aliás, que o próprio termo com o qual se pretendem abarcar as pesquisas em questão, “aquisição da escrita”, não parece ser o mais adequado, dado que não se pressupõe simplesmente a existência de um sistema pronto a ser “adquirido” pela criança, mas sim, também com relação às atividades de leitura/escrita, a existência de uma relação de natureza muito mais complexa entre o Sujeito e a linguagem (1999, p.3). 2. Um tratamento da aquisição de escrita Trataremos agora da metodologia de investigação em aprendizagem de escrita, mais especificamente do paradigma indiciário. Diante da concepção de linguagem adotada neste trabalho, alcançam relevância o Sujeito e o outro que com ele interage, bem como os indivíduos que ocupam tais papeis, discursivos, em situações reais de interlocução. Partindo-se dessa visão, torna-se relevante a explicitação do paradigma indiciário de Ginzburg (1986), do quadro metodológico que colaborará para o 47 direcionamento das análises, uma vez que este é um paradigma epistemologicamente adequado para esse tipo de pesquisa: O paradigma indiciário [...] é um modelo epistemológico fundado no detalhe, no “resíduo”, no episódico, no singular, a partir do pressuposto de que, se identificados a partir de princípios metodológicos previamente definidos, os dados singulares podem ser altamente reveladores daquilo que se busca conhecer [...] (ABAURRE et alii, 2002, p.83).7 Não é recente a discussão sobre o estatuto teórico dos dados singulares em Ciências Humanas. Conforme Ginzburg (1986, apud ABAURRE et alii, 2002, p.14), um modelo epistemológico fundado no detalhe, no resíduo, no singular, já havia emergido silenciosamente no âmbito das ciências humanas, no final do século XIX, sem que houvesse uma preocupação com a definição de um paradigma de investigação epistemologicamente coerente com esses pressupostos. Ginzburg, então, se propõe a discutir exatamente esse paradigma, que chama de “indiciário”, assumindo como pressuposto que, visto que a realidade é opaca, deve-se contar com dados privilegiados – sinais, indícios – para decifrá-la, para descobrir regularidades que subjazem aos fenômenos superficiais. O trabalho a partir de indícios delineia algumas questões metodológicas, que dizem respeito: (i) aos critérios utilizados para identificar e selecionar dados que serão tomados como representativos do que se considera “singularidade reveladora” (uma vez que, em um sentido trivial do termo “singular”, qualquer dado diferente de outro dado é singular), o que será feito por meio da análise qualitativa; (ii) a concepção mesmo de “rigor” metodológico, que não pode, neste contexto, ser entendido no sentido galileano, no âmbito de paradigmas de investigação centrados nos procedimentos experimentais, na replicabilidade e na quantificação de resultados (ABAURRE, 1999, p.3). Mas, o que vem a ser essa singularidade de dados, e por que é importante para a nossa pesquisa? Segundo Abaurre, Fiad e Mayrik-Sabinson (2002, p.22), a aquisição da escrita é um momento particular de um processo mais amplo de aquisição da linguagem. O 7 É importante dizer que, em nossa pesquisa, o paradigma indiciário vai fundamentar a análise qualitativa de dados singulares, ou seja, pouco frequentes no corpus. Em outras palavras, iremos lançar mão desse método, em que é prioritária a análise e interpretação de dados singulares, em somatória com outro método, que também analisa o dado recorrente, medindo, inclusive, a sua frequência. 48 sujeito reconstrói a história da sua relação com a linguagem, por meio desse modo de enunciação que tem como base semiótica o “traço”, o “gráfico”. É, assim, exemplar, a flagrante diversidade manifesta nos textos espontâneos. Ainda segundo estas autoras: A contemplação da forma escrita da língua faz com que o sujeito passe a refletir sobre a própria linguagem, chegando, muitas vezes, a manipulá-la conscientemente, de uma maneira diferente da maneira pela qual manipula a própria fala. A escrita é, assim, um espaço a mais, importantíssimo, de manifestação da singularidade dos sujeitos (p. 23). Podemos encontrar, nos dados de aquisição, ocorrências únicas que, em sua singularidade, talvez não voltem a repetir-se jamais, uma vez que representam instanciações episódicas e locais da relação em construção, entre o sujeito e a linguagem (ABAURRE, FIAD, MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 18). Dados singulares, então, são aqueles que não aparecem com frequência nos corpora, mas que, ainda assim, dão indícios das manipulações possíveis na interação entre sujeito e linguagem, permitindo a identificação dos pormenores, das marcas individuais que permeiam as atividades humanas, incluindo as TDs. São aqueles que, embora não sejam recorrentes no córpus, são importantes para a análise, na medida em que podem revelar indícios para a interpretação de muitas outras ocorrências. Por isso, a análise não deixará de focalizar também os dados pouco recorrentes. Isso não quer dizer, no entanto, que não serão consideradas as regularidades, uma vez que é também a partir destas que se desvelam as singularidades. Abaurre (1999) e Abaurre et alii (2002) acreditam que a melhor forma para se trabalhar com o paradigma indiciário seja por meio de dados coletados naturalisticamente. Dados naturalísticos são aqueles que advêm de textos produzidos espontaneamente pelo sujeito em contextos e situações diferenciados, mas que têm a espontaneidade como traço característico. Conforme os autores, esse dados provêm de gravações em vídeos de diários longitudinais, rascunhos/primeiras versões de textos reescritos e também definitivos, registros da produção da escrita de um mesmo sujeito, representativas das suas atividades escolares e, também, da escrita espontânea que produziu em ambiente doméstico. 49 Nas palavras dos autores: “Acreditamos, assim, que cada texto espontaneamente produzido por uma criança pode sempre ser visto como fonte riquíssima de indícios sobre a relação sujeito/linguagem” (2002, p.22). Os dados naturalísticos interessam, para esses autores, uma vez que buscam flagrar o instante em que o sujeito demonstra, oralmente ou por escrito, sua preocupação com determinado aspecto formal ou semântico da linguagem (ABAURRE et alii, 2002, p. 21). Os dados de nossa pesquisa foram elaborados a partir de textos que fazem parte de um banco de dados sobre aquisição de escrita infantil, conforme especificaremos na PARTE II deste trabalho. O material selecionado para esta pesquisa, portanto, reúne produções textuais de alunos de uma escola pública, realizadas a partir da aplicação de propostas que visavam à obtenção de textos pertencentes a distintas TDs. Não se trata, portanto, do que as autoras vinham caracterizando como dados naturalísticos. Segundo Ferreiro (1988, apud ABAURRE et alii, 2002, p. 21), as listas de palavras e frases escritas e/ou lidas pelas crianças em situação experimental representam um conjunto de dados mais confiável do que os dados naturalísticos. Essa autora ainda argumenta, no interior do quadro teórico piagetiano, que a criança transforma palavras e frases escritas, em situações experimentais, em objeto de reflexão consciente; o que pode assegurar a formulação de hipóteses com as quais está operando em determinado momento de seu desenvolvimento cognitivo. Dessa forma, embora não estejamos focalizando dados coletados de forma naturalística e nem mesmo dados coletados de forma experimental, nos moldes da pesquisa de Ferreiro, os sujeitos foram, em contextos formais de ensino, estimulados à produção de “textos” que, do ponto de vista teórico, permitem ao investigador flagrar o instante em que o sujeito demonstra, por escrito, sua preocupação com aspectos distintos da linguagem. 3. O SUJEITO e suas escolhas Durante muito tempo, indícios preciosos de um processo de aprendizagem em curso, da representação da linguagem escrita, manifestado pelo sujeito no momento em que torna evidente a manipulação que faz da própria linguagem, eram considerados “erros” de escrita. Nesse período, foram travadas verdadeiras batalhas entre professores que apenas (e muitas vezes sem sucesso) “corrigiam”, e alunos 50 que tentavam desesperadamente tirar algum sentido de orientações que entravam em conflito com suas hipóteses (ABAURRE et alii, 2002, p.17). Houve, então, uma grande e salutar mudança a partir das pesquisas sobre aquisição de escrita de inspiração piagetiana. Entretanto, incorreu-se no erro de tentar transformar em método de ensino os resultados de uma pesquisa acadêmica séria. Uma das consequências desse erro tem sido a descaracterização dos sujeitos reais da aprendizagem, dos alunos que vivem, cada um a sua maneira, uma história diferente com a linguagem. Assim, é necessário que os alunos, sujeitos reais, sejam vistos em sua singularidade, por ser ela determinante da história também singular da aquisição da escrita de cada sujeito (ABAURRE et alii, 2002, p.17). Conforme nos relata Abaurre et alii (2002, p.17), durante muito tempo, o que perdurou foi a ideia de uma “gramática adulta”. O objetivo final da escrita era alcançar a escrita adulta. Assim, muitos pesquisadores teimavam em ver enunciados infantis como manifestações “imperfeitas” desse modelo de escrita. Tomada a gramática adulta como referência e ponto de chegada, eram então descritas as gramáticas infantis em termos de suas “faltas” e “imperfeições”, a partir da avaliação do progresso de aprendizagem com base no que ainda deveria ser aprendido. Em nossa pesquisa, as escolhas dos sujeitos não serão tratadas como “erros”, como “faltas”; ou seja, a análise não será feita a partir do “modelo de escrita do adulto”. Os dados serão analisados enquanto operações das crianças/sujeito sobre a/na escrita, a partir das hipóteses delas em relação ao funcionamento da língua (falada e escrita). “A escrita infantil possui uma lógica particular, resultante de suas experiências com o universo letrado, que não se coaduna com a lógica da escrita ortográfica” (BRITO, 2007, p.7). 4. O papel do OUTRO Deve-se considerar que há uma relação de mediação entre o sujeito e seu interlocutor. Esse interlocutor, seja ele físico ou representado, ganha status de referência para o sujeito em constituição. Cabe, então, perguntar como deve ser teoricamente avaliado o papel que esse interlocutor desempenha no processo de aquisição da linguagem (aqui observado a partir de sua relação com a escrita) de uma criança, ou seja, como esse interlocutor afeta e é também afetado por este processo (ABAURRE et alii, 2002, p.20). 51 Bakhtin (1992, apud SIMÕES, 2000, p.24) explicita teoricamente essa posição dialógica sobre a natureza da linguagem. Para ele, o diálogo é a unidade real da língua. Observando as situações de diálogo elaborado interativamente, percebe-se que há “polifonia”, que inúmeras vozes atuam no diálogo: a voz interna, a voz do outro, a própria voz...; vozes que são caracterizadas pelas convergências e divergências atuantes no discurso dialógico, e que propiciam mudanças de posição que o sujeito pode fazer, apreendendo, então, as múltiplas facetas da realidade em que vive. Bakhtin baseia essa construção no que ele chama de interação sócioverbal. A interação social de quem fala e com quem fala tem por expressão e produto a própria linguagem, acrescida do tópico do discurso. Em se tratando do papel do adulto letrado no processo de aquisição do modo escrito de enunciação da língua, Mayrink-Sabinson (2002, p.37-42) apresenta, em seu trabalho, duas teorias como explicativas para este processo: a psicogênese de Emília Ferreiro e o sociointeracionismo de Vygotsky. Apesar de admitir que o desenvolvimento da alfabetização ocorra, sem dúvida, em um ambiente social, Ferreiro ressalva que as práticas sociais, assim como as informações sociais, não são recebidas passivamente pelas crianças (...) que necessariamente transformam o conteúdo recebido (FERREIRO, 1987, p.24 apud MAYRINK-SABINSON, 2002, p.38). O trabalho de Ferreiro volta-se para mostrar as transformações efetuadas pelo sujeito nos “estímulos” oferecidos pelo ambiente, e que o sujeito age sobre esses estímulos a partir de esquemas assimiladores já construídos. Assim, para este sujeito piagetiano que não é individual, mas idealizado, universal, que passa por etapas na construção do conhecimento, o papel do interlocutor, do OUTRO, é visto como um elemento a mais no contexto social em que a construção do conhecimento sobre o objeto se dá. Não é, portanto, visto como constitutivo do processo de aquisição. Seu eventual papel mediador não é teoricamente explorado, assim como também não é explorado o papel do contexto (cf. MAYRINK-SABINSON, 2002, p.39). Já Vygotsky (1978, apud MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 39) atribui ao OUTRO o papel de interlocutor da criança, afirmando que a imitação e a instrução precedem o desenvolvimento. É o OUTRO que proporciona à criança aquilo que ela vai imitar, incorporar e, no momento do seu desenvolvimento, internalizar, 52 transformando e modificando como novo conhecimento. “É o adulto, já inserido nas práticas sociais, quem atribui sentido aos movimentos da criança, transformando-os em gestos. E este sentido é posteriormente incorporado pela criança” (p.40). O OUTRO vygotskyano aparece como um ser já pronto, estabilizado, e, ainda que seja previsto um movimento da criança no processo, esse OUTRO, que com ela interage, possibilita esse movimento, mas ele mesmo não se movimenta, uma vez que está preso em uma linguagem estável e já constituída (MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 41). Entretanto, Abaurre (et alii, 2002) propõem que, na verdade, ambos, sujeito e OUTRO, se movimentam na relação que envolve a aprendizagem de escrita. Explico com um exemplo extraído do texto de Mayrink-Sabinson:8 O evento a ser discutido faz parte de anotações da mãe-pesquisadora das interações de L. com a escrita e com adultos letrados, a partir de um ano de idade da criança. Esse trecho em específico trata-se de um momento em que a criança, já com quatro anos, nove meses e dez dias, estava envolvida na atividade de “escrever”, desenhando sequências de letras, pela manhã, enquanto esperava o ônibus que a levaria para a escola. Nessa época, era comum a criança colocar-se no papel de produtora de uma escrita, atribuindo ao adulto, com quem interagia, o papel de leitor dessa produção. Ela costumava perguntar: “o que eu escrevi aqui?” O adulto, por sua vez, tentava ler as sequências idiossincráticas de letras e costumava considerar só as partes que faziam sentido, lendo enfaticamente as “palavras da língua” que ocasionalmente apareciam no meio dessas sequências. Como exemplo, apresentamos um pequeno trecho da transcrição desse trabalho, onde M é a mãe e L, a criança: L: (L desenha a letra P) L: Oh! Eu escrevi a tia Pi! (mostrando a letra P que acabara de escrever) M: Não. Cê escreveu o pê, que é a letra da tia Pi, mas cê tem que fazer o i pra ficar Pi. L: Qual é o i? M: Aquela do pauzinho com o pinguinho. 8 O exemplo completo encontra-se no texto de Mayrink-Sabinson (2002, p.43-48), Um evento singular, que está incluso na obra: Cenas de aquisição de escrita o sujeito e o trabalho com texto, o qual faz parte de projeto do CNPq – A relevância teórica dos dados singulares da aquisição da linguagem escrita. 53 L: (L desenha letra i) Para L, a letra P estava cheia de sentido, ao que ela mesma afirma, Oh! Eu escrevi a tia Pi. Entretanto, esse sentido é negociado com o adulto, que não atribui, do ponto de vista letrado, significado algum ao que a criança grafou. Nesse momento, a criança precisa interagir com o adulto novamente para tentar buscar o sentido apontado por esse adulto. Segundo Mayrink-Sabinson (2002, p.47), é possível, a partir desse dado singular, identificar indícios de que ambos os sujeitos se movimentam: o adulto letrado, constituindo-se num OUTRO para o SUJEITO/criança, confronta-a, desencadeando uma busca por sentido, que podemos observar na tentativa de L de ver na letra P, que acabou de escrever, o “tia Pi”. Segundo Mayrink-Sabinson (2002, p.129-133), existem modos pelos quais o OUTRO interage com a criança e deixa marcas no seu texto. Como exemplo, tomemos os modelos de escrita que se constituem nessa interação. Certa vez, L estava escrevendo um texto em colunas, porque pouco antes tinha visto o texto de uma outra criança, em que a escrita se fazia em colunas. O texto visto “ecoa” na escrita de L. A mãe de L, então, escreve a continuação do texto, mas o faz preenchendo uma linha até o fim, e essa nova maneira de escrever “ecoa”, mais uma vez, na escrita de L (p.129). Aquilo que o adulto faz e diz tem repercussão no que a criança faz e diz, e o contrário também acontece, pois, ambos se movimentam: O adulto letrado constitui-se num OUTRO para o SUJEITO/criança, e esta, por sua vez, constituindo-se num OUTRO para o SUJEITO/adulto letrado. O que esses momentos mostram é que o SUJEITO/OUTRO está em constante movimento, seja ele um aprendiz de escrita em busca de autonomia ou um letrado já de muito tempo (MAYRINK-SABINSON, 2002, p.150). Há um processo geral de constituição da relação sujeito/linguagem, que inclui tanto a modalidade oral quanto a escrita. Esse processo se encontra na interlocução entre sujeitos que se constituem em OUTROS para seus interlocutores, que, por sua vez, os constituem em sujeito num movimento constante que implica em incorporação/tomada da palavra do outro ao mesmo tempo em que dela se afasta, contrapondo-se a ela para torná-la palavra própria (BAKHTIN, 1992, apud MAYRINK-SABINSON, 2002, p.41). 54 Em suma Definida nossa posição com relação à concepção de linguagem adotada neste trabalho, fica claro que, ao abordar o fenômeno de aquisição de escrita, não estamos falando da aquisição de um sistema pronto e acabado. O que ocorre é um processo de apropriação da construção do modo escrito de enunciação da língua materna, que tem por base semiótica o gráfico, o traço. Com relação a aquisição de TDs escritas, Longhin-Thomazi (2011, p. 225) defende que “a aquisição de tradições da escrita se faz de forma constitutiva com as tradições da oralidade e que essa constituição heterogênea fica particularmente clara quando se atenta às decisões no domínio da junção”. Nesta direção, a nossa concepção de aquisição, bem como o entendimento dado à noção de escrita, permitem dar sustentação teórica ao trabalho a partir da heterogeneidade da língua, em que as TDs, mediadas pela escrita, são adquiridas pelos sujeitos, a partir de moldes evocados de TDs mediadas pelo som, a fim de, de forma heterogênea, constituir esse novo modo de enunciação. É igualmente importante deixar esclarecido que, apesar de o paradigma indiciário de Carlo Ginzburg ter sido adotado, no caso desta pesquisa, como a melhor forma de se trabalhar com dados singulares por meio de uma análise qualitativa desses dados pouco frequentes, isso não quer dizer que tenhamos desconsiderado os dados recorrentes, uma vez que é a partir da recorrência que se observa a singularidade. Ou seja, iremos, em somatória com o paradigma indiciário, que analisa e interpreta qualitativamente os dados singulares, lançar mão de outro método que analisa também o dado recorrente, medindo, inclusive, a sua frequência. Ainda que Abaurre (1999) e Abaurre et alii (2002) acreditem que a melhor forma para se trabalhar com o paradigma indiciário seja por meio de dados coletados naturalisticamente; e que, Segundo Ferreiro (1988, apud ABAURRE et alii, 2002, p.21), as listas de palavras e frases escritas e/ou lidas pelas crianças em situação experimental representem um conjunto de dados mais confiável do que os dados naturalísticos, a nossa pesquisa não focaliza dados coletados de forma naturalística e nem mesmo dados coletados de forma experimental, nos moldes da pesquisa de Ferreiro. Privilegiamos os sujeitos que, em contextos formais de ensino, foram estimulados à produção de “textos” que, do ponto de vista teórico, permitem 55 ao investigador flagrar o instante em que o sujeito demonstra, por escrito, sua preocupação com aspectos distintos da linguagem. 56 CAPÍTULO 3 MECANISMOS DE JUNÇÃO 1. Um enfoque funcionalista dos mecanismos de junção Para iniciar esta seção, apresentamos a abordagem funcionalista para o tratamento que será dado aos mecanismos de junção, em estreita ligação à análise das frases complexas, neste trabalho. Para tanto, optamos por estabelecer um paralelo didático entre essa abordagem e a da gramática tradicional (GT, daqui em diante). Nesta direção, recuperamos a discussão desenvolvida por Carvalho (2004). Segundo a autora, muitos autores representantes da abordagem funcionalista da língua (HALLIDAY, 1985; MATTHIESSEN e THOMPSON, 1988; LEHMANN, 1988; GIVÓN, 1990; HOPPER & TRAUGOTT, 1993; GRYNER, 1995; CASTILHO, 1998; NEVES, 1999; DECAT, 1999, apud CARVALHO, 2004) e até mesmo representantes da linguística textual têm voltado sua atenção para a insuficiência de critérios semânticos empregados pela GT para distinguir orações coordenadas e subordinadas. A carência de uma teoria voltada para a descrição da língua concreta e consistente para uma reformulação dos conceitos tradicionais de coordenação e subordinação tem impulsionado o aparecimento de novas posturas por parte de alguns autores em relação a esse assunto (CARVALHO, 2004). Essa discussão gira em torno de uma reflexão sobre a GT: (i) até que ponto a GT, que é prescritiva e dicotômica, é suficiente para a fundamentação de uma análise descritiva dos mecanismos de junção. Prescritiva porque seu objetivo é, historicamente, o de apontar padrões de usos linguísticos, com uma nítida intenção sociológica. Dicotômica porque ela se restringe a dicotomizar dois tipos de relações sintáticas, as coordenativas e as subordinativas; (ii) até que ponto a análise dos aspectos semânticos da GT é suficiente para subsidiar a análise de dados como os de aquisição de escrita, por exemplo. Isso porque, na GT, há um rol de relações semânticas que são próprias apenas da coordenação, enquanto outras são próprias das subordinadas, todas elas prioritariamente levantadas a partir de 57 textos literários e ou modelos do português lusitano, muito distantes dos dados de aquisição de escrita; (iii) até que ponto a análise de vários tipos de construções sobre o único rótulo de “subordinadas” é suficiente para descrever, de fato, os dados encontrados. Isso para ressaltar que sob esse rótulo estão incluídas construções bem diferentes, como as adverbiais e as substantivas; (iv) até que ponto, se a abordagem tradicional foi desenvolvida para os limites da frase/oração, ela pode ser usada para fundamentar usos mais argumentativos e discursivos de mecanismos de junção. Isso pensando naqueles casos que estão associados, por exemplo, à condução do tópico discursivo, à argumentação etc. A fim de dar conta das reflexões que essas questões impõem, lançamos mão de uma abordagem funcionalista em nossas análises e destacamos que não se trata, simplesmente, de uma crítica à GT a partir de um outro lugar teórico, mas trata-se, sim, de olharmos para as questões que o estudo nos impõe e reconhecermos nelas objetivos de pesquisa e descrição linguística que são diferentes daqueles da GT. A respeito dessa abordagem Neves (1994, p. 109) aponta que: Qualquer abordagem funcionalista de uma língua natural, na verdade, tem como questão básica de interesse a verificação de como se obtém a comunicação com essa língua, isto é, a verificação do modo como os usuários da língua se comunicam eficientemente. Todo o tratamento funcionalista de uma língua natural põe sob exame, pois, a competência comunicativa. Isso implica considerar as estruturas das expressões linguísticas como configurações de funções, sendo, cada uma das funções, vista como um diferente modo de significação na oração. Os representantes da abordagem funcionalista explicam, de formas aparentemente distintas, as funções da língua. Por exemplo, Karl Bühler (apud NEVES, 1994), entende que a linguagem possui três funções hierarquizadas em cada enunciado: a função de representação, que caracteriza a linguagem como uma atividade tipicamente humana; a função de exteriorização psíquica; e a função de apelo. Segundo esse autor, essas funções apresentam-se no evento de fala, não são exclusivamente recíprocas, mas coexistem num mesmo evento em que uma pessoa informa a outra pessoa sobre algo. 58 Já Halliday (1985 apud NEVES, 1994) apresenta uma teoria não apenas extrínseca, mas também intrínseca, das funções da linguagem, em que a base organizacional sintática e semântica da estrutura linguística se forma a partir de uma pluralidade funcional. O autor propõe três (meta)funções da linguagem: a função ideacional, em que o falante e o ouvinte interpretam, representam (n)a língua segundo sua percepção do mundo real, o que inclui suas experiências, bem como suas cognições, percepções e reações; a função interpessoal, que é acionada pelo indivíduo falante quando este expressa o papel comunicativo que assume na relação entre si próprio e o ouvinte, demonstrando suas atitudes e julgamento pessoal. Nesta direção, a “função interpessoal é, pois, interacional e pessoal, constituindo um componente da linguagem que serve, ao mesmo tempo, para organizar e expressar tanto o mundo interno como o mundo externo do indivíduo” (NEVES, 1994, p. 111). E a terceira função, considerada instrumental para as outras duas, é a função textual. Esta função não se limita somente a propor relações entre as frases, mas, primeiro, à organização interna da frase, ou seja, seu significado enquanto mensagem em si mesma, e em relação ao contexto. É por meio desta função que a linguagem contextualiza as unidades linguísticas. Segundo Hoffman (1989, apud NEVES, 1994), a gramática funcionalmente orientada analisa a relação sistemática entre as formas e as funções em uma língua”. Para Halliday (1985, apud NEVES, 1994) na gramática funcional, a orientação é paradigmática, a interpretação da língua se dá como uma rede de relações, em que as estruturas são interpretadas a partir das relações. Halliday destaca ainda que a gramática funcional enfatiza variações entre línguas diferentes em torno do texto ou do discurso. Nas palavras do próprio Halliday, “a gramática é, afinal, o mecanismo linguístico que liga umas às outras as seleções significativas que derivam das várias funções da linguagem, e as realiza numa forma estrutural unificada” (1973, p.364 apud NEVES, 1995). Compreendemos, assim, que é deixado de lado um aspecto puramente sistêmico da gramática e considerado, principalmente, um aspecto funcional, ou seja, seu objetivo, são os usos da língua que dão forma ao sistema. Sendo assim, os componentes funcionais, supracitados, de Halliday, fundamentam o significado na língua, pois as línguas são organizadas em torno das duas metafunções principais: a ideacional e a interpessoal, e, ainda, da terceira metafunção, a textual, que está associada às outras duas. Então, cada elemento da 59 língua, pode ser explicado com referência à sua função no sistema linguístico total (NEVES, 1994), o que significa que, ao lançar mão de uma perspectiva funcionalista, linguística, colocamos, no lugar de uma visão dicotômica, uma outra, “contínua”, em que as relações não são nunca estanques. A escolha dos juntores como aspectos sintomáticos de TDs foi realizada por Kabatek (2005), em trabalhos em que o autor a apresenta como uma possível solução para o problema metodológico, envolvido no estudo da história de uma língua considerando as TDs. Essa solução apontada por Kabatek (2005) surge a partir da proposta de Douglas Biber (apud KABATEK, 2005, p.165), de Análise multidimensional, em que o estudioso parte da hipótese de que o que permite a identificação de uma TD é uma combinação particular de elementos em um texto. O método de Biber consistiu em analisar 67 elementos de 16 classes bem diversas como, por exemplo, tempo e aspecto, advérbios de tempo e de lugar, pronomes, perguntas, subordinação, preposição etc. A partir disso, os dados encontrados eram submetidos a uma análise fatorial que determinava os elementos que podiam correlacionar-se. Assim, resumida a metodologia de forma extremamente simplista, media-se a evolução dos diferentes fatores ao longo da história e em relação às diferentes TDs. A diferença do trabalho realizado por Kabatek (2005) em relação ao método de Biber é que Kabatek parte de um esquema cognitivo e sintático que reduz a quantidade de elementos analisados. Isso é feito a partir da teoria proposta pelo linguista alemão Wolfgang Raible (1992, 2001, apud KABATEK, 2005) que consiste na análise de elementos que relacionam os componentes proposicionais em um texto. “Raible chama ‘junktion’ uma dimensão universal da linguagem segundo a qual os diferentes elementos e as diferentes técnicas podem ser sistematizados para juntar ou combinar elementos” (KABATEK, 2005, p. 165-166). Conforme Kabatek (2005) e Vincis (2009, apud LONGHIN-TOMAZI, 2011), a determinação da TD a que pertencem os juntores pode ser realizada a partir da avaliação dos tipos de juntores empregados e da frequência relativa desse emprego. Dessa forma, os juntores tornam-se mecanismos sintomáticos de TDs. LonghinTomazi (2011) complementa, apontando que, além da frequência e do tipo de juntor serem importantes para esboçar a TD, também o é a complexidade das construções de junção, que pode ser avaliada tanto segundo o nível de dependência/integração, quanto segundo o nível de complexidade cognitiva das relações de sentido. 60 A esse respeito Raible (apud KABATEK, 2005) prevê um esquema em que há o cruzamento de dois parâmetros: um eixo sintático vertical, que descreve diferentes graus de integração (ou seja, desde uma simples justaposição até formas mais extremas como os casos de subordinação), e um eixo horizontal, em que estão representadas as relações semânticas expressas pelos mecanismos de junção, numa escala cognitiva de complexidade crescente (começando, assim, por uma simples adição neutra até formas mais complexas como concessividade etc). Complexidade crescente de relações semânticas Graus de integração Esquema 4: Modelo bidimensional de análise da Junção Fonte: Adaptado de Raible (2001) Partimos do esquema de Raible para fundamentar nossa análise. Faz-se necessário, portanto, compreender cada um dos eixos do esquema apresentado. 2. (Inter)dependência tática Focalizamos, neste trabalho, a proposta de gramática funcional de Halliday (1985 apud LOPES-DAMASIO, 2011), em que o autor põe em xeque a dicotomia entre coordenação e subordinação, partindo da ideia de que existem blocos enunciativos complexos, e que, na organização desses blocos, são conjugados dois eixos que definem suas realizações. Para Halliday, existe uma relação de “modificação” entre as orações, que corresponde ao mesmo aspecto usado para explicar a relação entre palavras em grupos verbais ou nominais. Essa relação de “modificação”, segundo Halliday (1985 apud LONGHIN-TOMAZI, 2011), pressupõe a não-discretude dos processos de junção e o cruzamento entre informações sintáticas e semânticas. Nessa direção, o conceito precisa ser refinado e enriquecido, a fim de explicar relações dentro da oração complexa, considerando alternativas sistemáticas ao longo de duas dimensões: (i) o tipo de interdependência (taxe); e (ii) a relação lógico-semântica. 61 Essas duas dimensões correspondem com aquelas apresentadas no esquema de Raible, sendo o eixo vertical o que representa a taxe, ou tipo de interdependência, e o eixo horizontal, as relações lógico-semânticas. Ao que Raible (apud KABATEK, 2005) chama integração, aqui denominamos de “interdependência”, pois a integração desse autor engloba, na verdade, as formas de interdependência de orações, propostas por Halliday (1985 apud LOPESDAMASIO, 2011), incluindo, portanto, a parataxe, a hipotaxe e o encaixamento, i. e, desde a justaposição, até formas extremas de interdependência, como a nominalização, passando por etapas de subordinação. A ordem do grau de interdependência dos juntores está representada no eixo vertical: - (inter) Padrões Dependência I II III IV V VI VII + (inter) dependência VIII Tipo de interdependência Exemplos Junção por justaposição (sem juntor explícito) Junção pronominal (relações dêiticas com a frase anterior) Junção por coordenação (com juntor explícito) Junção por subordinação (hipotaxe) Junção por subordinação (encaixamento) Junção com gerúndios e particípios Junção com grupos preposicionais João está doente. Não come nada. Junção com preposições [...] Por isso não come nada. [...] pois não come nada [...] João está doente porque não come nada. João falou que estava com febre. [...] não comendo nada [...] Por causa de jejum, João está doente. Por fome, João está doente Esquema 5: Esquema do eixo vertical de junção Fonte: (adaptado de KABATEK apud LOPES-DAMASIO, 2011) Temos então que a relação de modificação no eixo vertical: não é a única que pode ser obtida entre os membros de um complexo. Onde um elemento modifica o outro, o estatuto dos dois é desigual: o elemento modificador é dependente do modificado. Mas dois elementos podem ser unidos em uma colocação igual, na qual um não é dependente do outro (HALLIDAY, 1985, p. 195 apud LOPES-DAMASIO, 2011, p. 88). Quando elementos de mesmo estatuto estão ligados por mecanismos de junção, ou seja, quando o elemento inicial e o elemento seguinte são livres, no 62 sentido de que cada um tem seu funcionamento pleno, temos casos de parataxe. Dentre eles, quando não já presença de nenhum mecanismo de junção, ou seja, quando os elementos estão apenas dispostos lado a lado, temos casos de justaposição. Quando há a ligação de elementos de estatutos desiguais, quando o elemento dominante é livre, mas o dependente não o é, tratam-se de casos de hipotaxe. Nas palavras de Longhin-Tomazi (2011, p. 224), “se as orações são de mesmo estatuto, a construção é paratática; mas se os estatutos são desiguais, uma oração é modificadora e a outra nuclear, a construção é hipotática”. Nosso foco, nesse trabalho, limita-se à parataxe e hipotaxe, ficando de fora a relação de “encaixamento”, pois, segundo Lopes-Damasio (2011), citando Halliday (1985), a relação de “encaixamento” (embedding) não se enquadra no eixo tático, uma vez que, nessa relação, uma oração não compõe diretamente o enunciado do ato de fala. Para Halliday (1985), o encaixamento não corresponde nem à hipotaxe nem à parataxe, pois não equivale a um mecanismo de “relação” entre orações, mas sim de “constituência” de uma oração que está no eixo tático e que formará a frase complexa. É preciso ficar claro que não se propõe uma simples substituição da escala bipartida e dicotômica, coordenação > subordinação, uma vez que a concepção adotada não se compõe de termos discretos. Na verdade, mesmo que nesta pesquisa sejam descartados os casos de subordinação/encaixamento, obtém-se uma escala tripartida (parataxe >hipotaxe> subordinação/encaixamento) a partir do cruzamento entre dois pares: (i) parataxe e hipotaxe, a partir do parâmetro dependência; (ii) coordenação e subordinação, a partir do parâmetro integração. Para explicar essa proposta, Hopper e Traugott (1993, apud LOPESDAMASIO, 2011), a partir da combinação dos traços dependência e encaixamento, propõem um continuum em que, em uma extremidade, estão os casos de relações paratáticas (- dependência e - encaixamento) e, na outra, os casos de subordinação (+ dependência e + encaixamento). No meio desse continuum, estão os casos de hipotaxe (+ dependência e - encaixamento). O que determina a parataxe é, portanto, a relativa independência e a mínima integração entre as orações; a hipotaxe é determinada pela interdependência e por um grau intermediário de integração; e a subordinação, pela dependência total e a máxima integração entre as orações. Os continua de que falam Hopper e Traugott (1993, apud LOPES-DAMASIO, 2011) estão ilustrados abaixo: 63 Quadro 5: Continua parataxe, hipotaxe e subordinação PARATAXE HIPOTAXE SUBORDINAÇÃO Dependência - + + Encaixamento - - + PARATAXE (independência) HIPOTAXE SUBORDINAÇÃO (interdependência) (dependência) núcleo_____________________________________________________margem integraçãomínima_______________________________________integração máxima ligação explicita máxima ____________________________ligação explicita mínima Fonte: (HOPPER e TRAUGOTT, 1993 apud LOPES-DAMASIO, 2011, p. 92) 3. Relações semânticas Como foi apresentado no esquema proposto por de Raible (apud KABATEK, 2005), ao eixo vertical, dos níveis de interdependência, acrescenta-se um eixo horizontal, representativo dos graus de complexidade crescente das relações semânticas. Da mesma forma como os juntores estão inseridos no eixo sintático, vertical, também estão no eixo horizontal, segundo o tipo de relação que expressam no enunciado. Nesse eixo horizontal, está presente uma linearidade de representação das relações semânticas. Essa linearidade indica o grau crescente de complexidade cognitiva das relações. Kortmann (1997 apud LOPES-DAMASIO, 2011) propõe um mapa cognitivo, elaborado a partir do exemplo de moléculas tridimensionais em química. Nesse mapa, são observados caminhos distintos de mudança cognitiva, em que as relações entre domínios fonte e alvo, apesar de serem unidirecionais, podem ser distintas, assim sendo, são distintos também o grau de produtividade entre as categorias que configuram esses domínios. Esse autor afirma que algumas relações interoracionais recorrentemente servem como fonte de mudanças semânticas, da mesma forma que outras são, com mais frequência, alvo de tais mudanças. Kortmann elege o que acredita ser o domínio fonte mais conhecido e de maior produtividade, como sendo o domínio de TEMPO (por exemplo, when do inglês que dá origem à Condição; while que dá origem à Contraste ou Concessão; after ou since à Causa, e before que dá origem à Preferência). Outro domínio fonte que ele 64 elege como produtivo é o de MODO (que origina Comparação, Similaridade, Resultado etc.). Entre os domínios alvos mais produtivos estão Concessão, Contraste ou Preferência. Para justificar esse tipo de organização, Kortmann (1997 apud LOPES-DAMASIO, 2011, p. 99-100) relaciona-os a aspectos ontogenéticos e filogenéticos, observáveis nas línguas, que também sugerem uma ordem das relações interoracionais sobre um gradiente de complexidade cognitiva: (i) Algumas relações são tipicamente expressas por juntores como uma das diversas leituras circunstanciais possíveis, ao passo que outras são expressas por juntores monofuncionais, isso quer dizer que esse dois grupos de relações interoracionais diferem-se no ponto em que permitem enriquecimento interpretativo. Esse conceito traz foco à polifuncionalidade e ao enriquecimento pragmático, que são indicativos dos canais preferidos da mudança semântica e, consequentemente, conferem complexidade cognitiva crescente às relações expressas por alguns juntores; (ii) Manifestação na história da língua: os juntores locativos e temporais desenvolvem-se primeiro que os concessivos em inúmeras línguas; (iii) Com relação à (ii), a lista de juntores que estabelecem relações mais tardias permanece relativamente instável, pois itens novos são acrescentados às classes já existentes; (iv) Aquisição de primeira língua: em diversas línguas, temos estudos de aquisição de juntores, apontando a seguinte ordem: (1) Uso de juntores como, quando, por exemplo, com a finalidade de indicar tempo de forma geral; (2) Uso mais diferenciado de quando, permitindo leitura de tempo contingente e, depois, de condição, e aquisição de outros subordinadores adverbiais para expressar outras relações temporais; (3) Causa e Resultado seguidos por Propósito; (4) O juntor if, por exemplo, primeiro expressando Contingência, seguido por Condições, e só posteriormente expressando Condição hipotética e contrafactual; (5) Ao fim do desenvolvimento ontogenético estão os juntores contrastivos, e especialmente os concessivos. 65 Por meio da explicação desses fatos, fica exemplificado que o curso geral da aquisição linguística reflete o aumento de graus de complexidade cognitiva inerente às diversas relações circunstanciais desses juntores (LOPES-DAMASIO, 2011). Segundo Kortmann (1997 apud LONGHIN-TOMAZI, 2011a), do ponto de vista histórico, a mudança semântica é fortemente direcional, uma vez que os caminhos são condicionados a partir das relações polissêmicas entre os sistemas semânticos, com vistas ao aumento da complexidade. Assim, em estudo tipológico sobre gramaticalização de subordinadores adverbiais, esse autor propõe quatro grandes sistemas semânticos-cognitivos, dentro dos quais se desdobram conjuntos de relações com algum elo de parentesco, que ajudam a explicar os padrões de polissemia. Kortmann (1997 apud LOPES-DAMASIO, 2011) justifica a indicação de relações interoracionais dentro desses grandes sistemas a partir de similaridades semânticas entre as relações e, ao mesmo tempo, a partir de um grau suficiente de diferenças semânticas, que são capazes de diferenciá-los em sistemas distintos, ainda que sejam relacionados de alguma forma. Os quatro grandes grupos de que fala o autor são: Tempo (simultaneidade, anterioridade, posterioridade, contingência), Modo (modo, comparação, meio, proporção), Lugar e CCCC (causa, condição, contraste e concessão). Nessa direção, Kortmann (1997 apud LOPES-DAMASIO, 2011) apresenta um modelo do espaço semântico de relações interoracionais que ilustra afinidades e a relativa força dessas afinidades dentro dos quatro grandes sistemas e entre eles, segundo o mapa cognitivo: LUGAR CCCC TEMPO MODO Figura 3: Macroestrutura do universo semântico das relações oracionais Fonte: KORTMANN (1997 apud LONGHIN-TOMAZI, 2011b) 66 Segundo LONGHIN-TOMAZI (2011b, p. 153), “nas línguas europeias, as trajetórias que tipicamente levam à emergência de subordinadores adverbiais causais e condicionais são”: CAUSA< Simultaneidade, Anterioridade, Término, Modo, Similaridade; CONDIÇÃO< Contingência, Simultaneidade A partir da figura acima temos que: (i) todas as relações semânticas podem dar lugar a CCCC, mas não vice-versa; (ii) lugar e modo virtualmente não têm afinidades semânticas e ambos alimentam os demais sistemas; (iii) o sistema temporal é o canal de derivação mais importante para as relações CCCC (indicado pela espessura da seta) (KORTMANN, 1997 apud LONGHIN-TOMAZI, 2011b, p. 152). Segundo Lopes-Damasio (2011, p. 104), a vantagem em se projetar e adotar um mapa como o sugerido é a de que ele não apenas captura a macroestrutura do espaço semântico de relações interoracionais, como também favorece a formulação de restrições sobre a natureza da polissemia e direções possíveis da mudança semântica, tal como observada para juntores de base adverbial. Para especificar as relações lógico-semântica, sugeridas por Halliday (1985) e expostas no eixo horizontal de Raible (2001), propomos, a partir de LonghinThomazi (2011), uma organização das diferentes relações semântico-cognitivas entre orações que refletem, harmoniosamente com a proposta de Kortmann, uma escala crescente de: (i) complexidade cognitiva; (ii) discretude semântico-formal, e (iii) maior gramaticalidade (LOPES-DAMASIO, 2011). O esquema abaixo ilustra os Esquema 6: Cruzamento dos eixos sintático e semântico Concessão Contraste Finalidade Condição Causa Tempo Posterior Tempo Anterior Tempo Contingente Tempo Simultâneo Comparação Modo Alternância H P Adição cruzamentos dos dois eixos, sintático e semântico: 67 Em suma A GT pode ser considerada dicotômica porque se restringe a dois tipos de relações sintáticas, as coordenativas e as subordinativas. Já a fundamentação funcionalista percebe que a análise das especificidades de uso são mais importantes do que as classificações, bem como percebe que as relações entre um uso e outro são mais importantes do que as categorizações estanques. A análise centrada nos mecanismos de junção, nesta abordagem funcionalista, é subsidiada por um esquema em que se entrecruzam aspectos sintáticos, relativos aos graus de (inter)dependência tática, parataxe – incluindo os casos de justaposição – e hipotaxe, e aspectos semânticos, de acordo com uma escala de complexidade semântico-cognitiva crescente. Esse tratamento permite a realização de uma abordagem analítica funcional, não dicotômica e mais livre no que diz respeito às relações que podem ser estabelecidas entre a arquitetura sintática e sentidos observados. 68 PARTE II: UNIVERSO DA PESQUISA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 69 No que tange ao corpus, o universo da investigação será composto por 50 textos extraídos do Banco de dados sobre aquisição de escrita infantil, constituído para subsidiar as pesquisas do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (GPEL/CNPq processo 400183/2009-9), coordenado pelo Prof. Dr. Lourenço Chacon.9 As propostas de produção textual foram elaboradoras e aplicadas pela pesquisadora Cristiane Carneiro Capristano, na época pós-graduanda do IBILCE/ UNESP. O material selecionado para esta pesquisa reúne produções textuais de alunos de uma escola pública – Romano Calil – localizada na periferia da cidade de São José do Rio Preto-SP. As coletas foram realizadas, durante as aulas de Língua Portuguesa, com periodicidade quinzenal, ao longo dos anos de 2001 a 2002,10 a partir da aplicação de propostas que visavam à obtenção de textos pertencentes a distintas TDs, o que permite flagrar, entre outras coisas, aspectos de sua natureza composicional e não-homogênea, conforme os objetivos propostos para esta pesquisa. Os textos analisados neste trabalho foram produzidos por alunos da 1ª série do Ensino Fundamental a partir de 13 propostas apresentadas abaixo: Proposta 01 Tema: “Conhecimentos prévios sobre a audição” Descrição: Nesse dia, o pesquisador solicitou às crianças que respondessem às seguintes questões: (a) Como as pessoas escutam os sons?; (b) Como podemos ajudar uma pessoa e/ou criança que está com dor de ouvido? Essas questões foram repetidas várias vezes, a pedido das crianças, embora nem sempre elaboradas do mesmo modo. Proposta 02 Tema: “Relato da palestra sobre audição” Descrição: Nesse dia, as crianças assistiram a uma palestra sobre o funcionamento do sistema auditivo, realizada em sala de aula. Essa palestra foi ministrada por uma 9 Esse Grupo é composto por professores pesquisadores e seus orientandos associados a distintas Instituições brasileiras de Ensino Público e possui um subgrupo na UFMT, coordenado pela Profa. Dra. Lúcia R. Lopes-Damasio, no qual este trabalho se desenvolveu. 10 Os alunos foram acompanhados, portanto, durante as duas primeiras séries do Ensino Fundamental. 70 aluna do curso de Fonoaudiologia da Unesp/Marília. No seu desenvolvimento, foram utilizados recursos audiovisuais (tais como rádio), cartazes, livros, figuras, dentre outros materiais, para auxiliar as crianças a construírem um conhecimento básico sobre anatomia, fisiologia e patologias da audição. Logo após a palestra, o pesquisador solicitou às crianças que escrevessem para uma terceira pessoa (pai, mãe, tia, tio, irmão, avós etc.) o que haviam compreendido sobre a palestra. Proposta 03 Tema: “Carta para a Renata 01” Descrição: Nesse dia, antes de propor a atividade, o pesquisador perguntou às crianças se elas se lembravam da aluna do curso de Fonoaudiologia da Unesp/Marília que havia proferido a palestra sobre audição, no dia 18/04/2001. Após a confirmação por parte dos alunos, o pesquisador contou que havia conversado com a aluna e que esta havia lhe dito ter gostado muito da classe e estar com saudade dos alunos. Posteriormente, o pesquisador pediu às crianças que escrevessem uma carta para a palestrante, contando como estavam e quais eram as atividades que vinham desenvolvendo na escola. Proposta 04 Tema: “Carta para a Renata 02” Descrição: Nesse dia, o pesquisador levou uma carta da mesma aluna do curso de Fonoaudiologia da Unesp/Marília, que ministrou, no dia 18/04/2001, a palestra sobre audição. Esta carta foi enviada como resposta às cartas escritas pelas crianças na proposta dos dias 09 e 10/05/2001. O pesquisador pediu a uma das crianças que lesse a carta para a classe. No entanto, como a leitura pareceu insuficiente para o entendimento da carta, o pesquisador releu-a. No momento da produção do texto (resposta à carta), o pesquisador procurou lembrar às crianças da solicitação feita pela aluna na carta: contar como era a escola, o que elas estavam aprendendo e o que mais gostavam de fazer. Na E.M.E.F. Dr. Wilson Romano Calil, a professora responsável pela sala sugeriu que eles contassem: (a) sobre um teatro que estavam ensaiando, uma adaptação do conto de fadas O gato de botas; (b) sobre as aulas de educação física de que começariam a participar; e (c) sobre a aquisição de uma mesa de pingue-pongue. 71 Proposta 05 Tema: “O rato do campo e o rato da cidade” Descrição: Nesse dia, o pesquisador leu, duas vezes, a fábula O rato do campo e o rato da cidade11 e, posteriormente, pediu a uma das crianças que contasse, a seu modo, a história para seus colegas. Logo após, o pesquisador solicitou que as crianças escrevessem a história. Proposta 06 Tema: “A verdadeira história dos três porquinhos: diário de um lobo” Descrição: Nesse dia, o pesquisador, inicialmente, perguntou às crianças se elas conheciam a história Os três porquinhos. Em decorrência das respostas afirmativas, o pesquisador pediu a uma das crianças que a contasse para o restante da classe. Durante a narração, a criança enfatizou alguns aspectos da história, tais como a qualidade das casas construídas (palha, lenha e tijolos), o destino e a trajetória do lobo (“depois de assoprar as três casas ele resolve entrar pela chaminé e é surpreendido pelos porquinhos”). Logo depois, o pesquisador disse às crianças que aquela não era a verdadeira história dos três porquinhos, e acrescentou que havia encontrado o diário do lobo, no qual ele contava a verdadeira história.12 O pesquisador, após essas afirmações, leu-lhes a história e, por fim, perguntou se haviam gostado. Pediu, então, que escrevessem uma das versões da história ou criassem uma nova. Proposta 07 Tema: “Precisando de óculos?” Descrição: Nesse dia, o pesquisador perguntou, inicialmente, se as crianças gostavam de bichos e se tinham algum. Em seguida, disse-lhes que havia encontrado uma revista que continha uma reportagem descrevendo um animal que, com certeza, eles não teriam em casa: a anta. O texto13 foi lido duas vezes pela pesquisadora, que, posteriormente, solicitou-lhes escreverem aquilo que haviam entendido do texto. 11 FRANÇA, E.; FRANÇA, M. “O rato do campo e o rato da cidade”. In: Fábulas 1, São Paulo: Ática, 1996. 12 SCIESZKA, J.; SMITH, L. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1993. 13 JUCÁ, N.; BERGALLO, H. G. “Precisando de óculos?” In: Ciências hoje das crianças. 72 Proposta 08 Tema: “Dengue” Descrição: Nesse dia, o pesquisador, inicialmente, perguntou se as crianças conseguiriam guardar um segredo. Em seguida, distribuiu um panfleto educativo sobre a Dengue e, nesse momento, recomendou que nenhuma criança comentasse com as demais sobre o que havia recebido. Pediu, então, para que, individualmente, cada um lesse e olhasse o panfleto com atenção. Logo depois, o pesquisador recolheu o panfleto e solicitou às crianças que escrevessem sobre o assunto lido. Proposta 09 Tema: “Lista de compras 01” Descrição: Nesse dia, o pesquisador solicitou que as crianças escrevessem um texto no qual dessem orientações a uma terceira pessoa para fazer compras. Neste texto, as crianças deveriam: (a) escolher um supermercado e indicar a sua localização; (b) explicar quais produtos e a quantidade destes que a pessoa escolhida deveria comprar; (c) estabelecer a quantia que esta pessoa poderia gastar; e, por último, (d) indicar o lugar onde a pessoa deveria entregar as compras. Proposta 11 Tema: “Receita de bolo” Descrição: Nesse dia, o pesquisador levou um bolo. Ele perguntou, inicialmente, quais os ingredientes que as crianças acreditavam que eram utilizados para fazer aquele bolo. As crianças deram algumas sugestões e, em seguida, leu a receita do bolo Nega Maluca. Posteriormente, solicitou que as crianças escrevessem uma receita de algo que elas gostassem. Proposta 12 Tema: “Levantamento prévio sobre voz” Descrição: Nesse dia, o pesquisador solicitou às crianças que respondessem às seguintes questões: (a) O que é a voz? (b) O que você acha que é bom e o que você acha que é ruim para a voz? (c) Vocês conhecem alguém com problemas de voz? Essas questões foram repetidas várias vezes, a pedido das crianças, embora nem sempre elaboradas do mesmo modo. 73 Proposta 13 Tema: “Palestra sobre voz” Descrição: Nesse dia, as crianças assistiram a uma palestra, junto a outras crianças, sobre audição, ministrada por alunas (incluindo a bolsista) do curso de Fonoaudiologia da Unesp/ Marília. As palestrantes, além da apresentação oral sobre as características e os cuidados com a voz, realizaram um teatro de fantoches cujo enfoque foi os cuidados com a voz. A pesquisadora, logo após a palestra, solicitou que as crianças escrevessem sobre o que elas haviam compreendido. Proposta 14 Tema: “Cartão de natal” Descrição: Nesse dia, o pesquisador solicitou que as crianças produzissem um cartão de natal que seria enviado para as fonoaudiólogas que ministraram as palestras sobre audição e voz. A título de exemplificação, reproduzimos, na sequência, uma produção desenvolvida a partir da Proposta 04, “Carta para a Renata 02”: 74 A referência para cada ocorrência descrita e analisada é composta pelo número do texto produzido a partir de uma das propostas, separado por uma barra do número da proposta, conforme lista acima, separado por hífen do número do escrevente. Por exemplo: [01/01-06]. No que tange aos procedimentos metodológicos, como já foi destacado anteriormente, uma das questões centrais nos estudos das TDs é como estabelecer uma caracterização/delimitação das TDs a partir de uma perspectiva textual. A esse problema, várias respostas possíveis têm sido dadas (cf. KABATEK, 2005a, p. 164). A solução adotada, neste trabalho, consiste em buscar um compromisso entre “exaustividade” e “economia”, limitando a análise aos elementos considerados sintomáticos na identificação de TDs e mesclas de TDs. Dessa forma, seguimos o encaminhamento dado nos trabalhos desenvolvidos no âmbito do projeto B14 “Tradições discursivas das línguas românicas e análises quantitativas e pluridimensionais de corpus históricos”, do macroprojeto da Universidade de 75 Tübingen SFB441 “Estruturas de dados linguísticos” e focalizamos, nesta análise, os mecanismos de junção, considerando também a junção de termos. Ainda quanto ao método, será realizada uma abordagem qualitativa e quantitativa, operacionalizando a frequência token (cf. BYBEE, 2003), fazendo o levantamento quantitativo das ocorrências de cada juntor nos textos analisados e percorrendo, basicamente, três etapas principais, a fim de comprovar a hipótese de que “os mecanismos de junção são sintomáticos das TDs e mesclas de TDs”: (i) Seleção, a partir de uma análise qualitativa, de um total de 50 textos (representativos do primeiro ano letivo do Ensino Fundamental) do corpus em que ocorre a mescla de TDs relacionada ao processo de aquisição de TDs da escrita; 14 (ii) Mapeamento dos esquemas de junção dos textos, com a caracterização quantitativa e qualitativa dos juntores, baseada no cruzamento dos parâmetros sintático e semântico,15 conforme apresentados no Capítulo 4, Mecanismos de junção, da PARTE I, Pressupostos teóricos, deste trabalho; e, (iii) Descrição e análise desses mecanismos de junção, em concernência com a bibliografia pertinente e o detalhamento dos objetivos em função das hipóteses de trabalho. 14 Esse procedimento justifica o fato de não termos relacionado a proposta 10. Ou seja, nesta proposta, os textos produzidos pelos alunos não apresentaram mesclas de TDs. Sendo assim, a própria constituição do corpus da pesquisa já pode ser considerada como o resultado da primeira etapa do trabalho. 15 Os casos de ambiguidade ou polissemia serão sempre quantificados na categoria mais abstrata, no eixo horizontal. Por exemplo: se um determinado juntor permite leitura temporal e condicional, ele será quantitativamente considerado como condicional, que é a categoria mais abstrata. 76 PARTE III: UMA EXPERIÊNCIA DE ANÁLISE 77 CAPÍTULO 1 ANÁLISE QUANTITATIVA Nessa análise quantitativa, serão apresentados gráficos e tabelas referentes à recorrência dos usos dos juntores constatados nos textos do corpus analisado, levando em consideração o cruzamento dos parâmetros sintático e semântico. Como já foi explicado no Capítulo 3 – Mecanismos de junção, na PARTE I deste trabalho, consideraremos, na análise do eixo vertical, os casos de interdependência até o nível da hipotaxe, em que é possível a depreensão de um mecanismo de junção articulado a uma acepção semântica no complexo, no eixo horizontal. A Tabela 1, a seguir, apresenta a frequência token de cada mecanismo de junção, categorizado de acordo com os dois eixos, vertical (sintático) e horizontal (semântico): Tabela 1: Frequência token dos mecanismos de junção Adição Parataxe Hipotaxe E (84) ∅ (84) E também (16) Também (1) Que (1) Mas (2) ------ Alter Modo Comparaç Tempo Simultân Tempo Conting Tempo Anterior Agora (1) Às vezes (1) GER (1) Quando (2) Depois (1) Sempre quando (1) Primeiro (3) Ou (4) ---------- ----- GER (1) ---------- ------- ------- Enquanto (1) Tempo Posterior Parataxe Hipotaxe Ø(45) E (45) Aí (13) Aí depois (1) E daí (1) Daí (4) Então (1) E depois (14) Depois (4) Em seguida (1) Quando (1) Causa Que (2) E (27) Ø (20) Porque (14) Por isso (5) Agora (1) Já que (1) Então (1) Aí (2) Porque (6) Por (3) Que (1) GER (1) Condição Finalidade Contraste ------- Ø (1) Senão (2) Mas (4) E (5) Só que (1) Ø (2) Então (1) Ai (1) Quando (19) Se (8) Senão (2) Para que (1) Para (15) Ao invés de (1) Concessão -------- Mesmo que (1) 78 A partir da Tabela 1, destacamos a recorrência de uso de cada mecanismo de junção. Podemos perceber o uso de um determinado juntor com diferentes propósitos semânticos. Tomemos como exemplo o juntor e, que aparece em sua maioria com acepção de adição paratática (84 ocorrências), mas que também foi empregado como causa paratática (27 ocorrências), e contraste paratático (5 ocorrências). A Tabela também ajuda a visualizar a recorrência de diferentes tipos de juntores identificados na codificação de uma mesma relação de sentido, como é o caso, por exemplo, da codificação de tempo posterior em que foram encontradas ocorrências de ∅, e, aí, aí depois, daí, então, depois e em seguida, no campo da parataxe, e os juntores que, e, ∅, porque, por isso, agora, já que, então e aí na codificação de causa paratática. Algumas acepções foram codificadas unicamente em contextos em que foi constatada maior integração sintática, como os casos de modo, condição, finalidade e concessão que só ocorreram na hipotaxe. A maior recorrência de juntores aconteceu nas acepções que estão mais à esquerda do continuum, ou seja, aquelas que podem ser consideradas mais concretas, como, por exemplo, adição, em oposição àquelas que estão mais à direita, como é o caso da concessão. Podemos perceber, ainda, e este é um dado que merece nossa atenção, pela sua transparência, a maior ocorrência dos casos de parataxe, conforme também mostra o gráfico 1: 500 400 300 200 100 0 Parataxe Parataxe Hipotaxe Hipotaxe 417 69 Gráfico 1: Frequência no eixo vertical – sintático. Os usos de hipotaxe não chegam a um terço dos usos de parataxe nesta fase inicial de aquisição de escrita. Isso, talvez, se deva ao fato de haver, para os casos de hipotaxe, uma complexidade maior com relação a (inter)dependência dos termos. Ou seja, o escrevente opta por codificar diferentes relações semânticas – das mais 79 básicas e concretas até as mais abstratas – por meio de uma estratégia sintática que mantém a independência das orações, em termos estritamente formais. A recorrência de determinados juntores é bastante elevada nos textos analisados. Observando o gráfico 2, identificamos que os mecanismos de junção mais recorrentes são: e (161 ocorrências), Ø (152 ocorrências), quando (22 ocorrências), porque (20 ocorrências), aí (16 ocorrências), e também (16 ocorrências), para (15 ocorrências) e e depois (14 ocorrências): E ∅ E TAMBEM TAMBEM QUE MAS GER AGORA ENQUANTO AI AI DEPOIS DAÍ E DAÍ ENTÃO E DEPOIS DEPOIS EM SEGUIDA QUANDO AS VEZES SEMPRE QUANDO PRIMEIRO OU PORQUE POR ISSO JÁ QUE POR SE SENÃO MESMO QUE PARA QUE PARA SÓ QUE AO INVÉS DE 170 160 150 140 130 120 110 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Gráfico 2: frequência token dos juntores O gráfico 3 traz a frequência com que cada relação semântico-cognitiva foi constatada no corpus desta pesquisa: 190 180 170 160 150 140 130 120 110 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Adição Alternância Modo Comparação T. Simult T. Contig T. Anterior T. Posterior Causa Condição Finalidade Contraste Concessão Gráfico 3: frequência token das relações semântico-cognitivas 80 Há uma maior recorrência das acepções de adição (188 ocorrências), tempo posterior (130 ocorrências), causa (84 ocorrências), condição (29 ocorrências), finalidade ( 17 ocorrências) e contraste (17 ocorrências). Por outro lado, não foram constatadas ocorrências de juntores codificando a relação de comparação e as acepções de modo e concessão apresentaram ocorrências singulares. Neste gráfico 3, as acepções não estão diferenciadas em relação ao eixo vertical, se são codificadas via parataxe ou hipotaxe, tal como é ilustrado no Gráfico 4. Entretanto, ao comparar as relações semântico-cognitivas, diferenciando parataxe e hipotaxe, as frequências mais representativas das ocorrências não mudam, tal como se verifica em adição, tempo posterior, causa e constraste, todas mais recorrentes na codificação sintática no âmbito da parataxe. Apesar disso, o Gráfico 4 mostra que as relações de condição e de finalidade são codificadas mais frequentemente em complexos sintáticos identificados com a hipotaxe. Parataxe Hipotaxe Alt er Mo do Co mp ara ção Tem po Sim Tem ult po Co n Tem tin g po An ter Tem ior po Po ste rio r Ca usa Co nd içã o Fin alid ad e Co ntr ast e Co nce ssã o Ad içã o 200 190 180 170 160 150 140 130 120 110 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Gráfico 4: Frequência token – relações semântico-cognitivas e parataxe e hipotaxe 81 CAPÍTULO 2 ANÁLISE QUALITATIVA Antes de adentrarmos especificamente na análise qualitativa dos dados, vamos primeiramente retomar os objetivos que norteiam esta pesquisa. O nosso objetivo central é descrever e analisar o comportamento sintático, semântico e pragmático dos mecanismos de junção, em contexto de aquisição de TDs da escrita, e, para que isto seja possível, partimos da hipótese geral de que eles podem ser tomados como elementos sintomáticos para se chegar a uma classificação das diferentes TDs. Procuramos identificar, no comportamento desses mecanismos, possíveis reflexos de mesclas de TDs, visando, portanto, a obtenção de conclusões acerca das características dos textos e da tradição em que se inserem. Esta análise está organizada em duas seções, para a apresentação e exemplificação dos mecanismos de junção, agrupados de acordo com sua forma, sentido e função, lembrando que, ao analisarmos o papel dos juntores, seguimos sempre a escala cognitiva de complexidade crescente, na qual as relações de sentido que se encontram à esquerda são mais concretas, e as à direita, mais abstratas, bem como os parâmetros táticos para depreensão dos casos de parataxe e hipotaxe, conforme apresentados no Capítulo 3 da PARTE I deste trabalho. A apresentação das seções segue a ordem estabelecida pela frequência das ocorrências, depreendida na análise quantitativa. 2.1. Domínio Paratático Como já apresentado no Capítulo 3 deste trabalho – Mecanismos de Junção, entendemos por parataxe a relação de interdependência em que os elementos ligados são de mesmo estatuto, isto é, são elementos livres no sentido de que cada um tem seu funcionamento pleno. Veremos, agora, os usos dos mecanismos de junção analisados como pertencendo ao domínio paratático. O uso de E A Tabela 2 a seguir traz dados da análise tático-semântica das ocorrências de e, englobando os casos de e também, e daí e e depois e expondo, na linha 82 horizontal, as acepções de sentido, e, na vertical, as respectivas frequências do mecanismo tático, constatadas nessas ocorrências. Tabela 2: Frequências dos juntores e, e também, e daí e, e depois no domínio paratático E, E TAMBEM, E DAÍ, E DEPOIS Parataxe Adição Tempo Anterior E (83) E também (16) E (1) Tempo Posterior E (48) E daí (1) E depois (14) Causa Contraste E (26) E (3) Como mostra a Tabela 2, o juntor e, nesse universo de análise, é bastante polissêmico. Trata-se, no entanto, de uma polissemia pragmática, fortemente dependente de seu contexto de uso. Podemos perceber, também, que é recorrente o uso do juntor e com acepção aditiva paratática, e que seu uso menos frequente dá-se no sentido de contraste paratático. Há, portanto, uma confirmação da maior frequência dos usos mais concretos em relação aos mais abstratos. Apesar dessa predominância, devemos destacar a frequência significativa dos usos de e em contextos linguísticos que permitem inferência da relação causal, mais abstrata. Esse dado já pode ser analisado como um dos aspectos da tradição textual analisada (dados de aquisição de escrita), em que o escrevente opta por estruturas táticas simples, na codificação de acepções mais abstratas. Os usos do juntor e, com algum advérbio, também tiveram ocorrências significativas. A coocorrência de e com também corrobora a acepção aditiva, de acordo com a ênfase acrescida por esse advérbio; já a coocorrência, por outro lado, com depois, acarreta a acepção de tempo posterior. Comparando esses dados, sugere-se que à acepção mais concreta do juntor e, prevalece, nos casos de coocorrência, a acepção do advérbio com o qual ele funciona. Para ilustrar alguns desses aspectos, apresentamos o texto, em (01), elaborado a partir da proposta 2, “Relato da palestra sobre audição”, aplicada em abril de 2001. Nesse dia, as crianças assistiram a uma palestra sobre o funcionamento do sistema auditivo, realizada em sala de aula. Essa palestra foi ministrada por uma aluna do curso de Fonoaudiologia da Unesp/Marília. No seu desenvolvimento, foram utilizados recursos audiovisuais, tais como, rádio, cartazes, 83 livros, figuras, dentre outros materiais, para auxiliar as crianças a construírem um conhecimento básico sobre anatomia, fisiologia e patologias da audição. Logo após a palestra, o pesquisador solicitou às crianças que escrevessem para uma terceira pessoa (pai, mãe, tia, tio, irmão, avós etc.) o que haviam compreendido sobre a palestra. MAI HOJE EU APREDI COMO CUIDA DO OVIDO ITUDO MAIS É MUINTACOISA NÃO DAPRAIS PRICA PORQUE É COISA DIMAIS ITE UMA CORDINHA QUE SOBE ATE USELEPRU ETANBEI QUE TE TRÊS OSSINO Transcrição do texto (01) Texto original Foi solicitado, na proposta, que houvesse um receptor marcado, o que o escrevente cumpre ao direcionar o texto à sua mãe: MAI HOJE EU APREDI COMO/ CUIDA DO OVIDO ITUDO MAIS[...] (01) [01/02-12] (Mãe, hoje eu aprendi como cuidar do ouvido e tudo mais) Além da marcação de interlocutor, há, ainda, a marcação de tempo “hoje”, características que dão forma à TD relato. Entretanto, é encontrada uma mescla com a TD argumentativa, num trecho do texto em que observamos, também, característica de um diálogo face a face: É MUINTA COISA NÃO DA PRAIS | PRICA PORQUE É COISA DIMAIS (02) [01/02-12] (é muita coisa não da para explicar porque é coisa demais) O uso da justaposição, a repetição de termos nas construções “é muita coisa” e “é coisa dimais”, caracterizam a TD diálogo. As duas ocorrências do juntor e, presentes nesse texto, indicam adição paratática e aparecem grafadas de acordo com a sua realização fonética na fala, o 84 que representa um traço, ainda que bastante básico, da oralidade: da concepção de escrita do escrevente como uma “transcrição da fala”: (03) EU APREDI COMO| CUIDA DO OVIDO ITUDO MAIS [01/02-12] (eu aprendi como cuidar do ouvido e tudo mais) É COISA DIMAIS ITE |UMA CORDINHA QUE SOBE ATE |USELEPRU (04) [01/02-12] (é coisa demais, e tem uma cordinha que sobre até o cérebro) A forma e também, em fronteira de sentença, reforça o sentido de adição paratática, como já destacado e agora exemplificado em (05): TE |UMA CORDINHA QUE SOBE ATE |USELEPRU E TANBEI QUE TE (05) TRÊS |OSSINO [01/02-12] (tem uma cordinha que sobe até o cérebro e também que tem três ossinhos) As ocorrências do juntor e com acepção de tempo posterior paratático e causa paratática, e e daí com acepção de tempo posterior são retiradas de textos produzidos a partir da proposta 6, “A verdadeira história dos três porquinhos: diário de um lobo”, que foi aplicada em agosto de 2001. Nesse dia, o pesquisador, inicialmente, perguntou às crianças se elas conheciam a história d’Os três porquinhos. Em decorrência das respostas afirmativas, o pesquisador pediu a uma das crianças que a contasse para o restante da classe. Durante a narração, a criança enfatizou alguns aspectos da história, tais como a qualidade das casas construídas (palha, lenha e tijolos), o destino e a trajetória do lobo (“depois de assoprar as três casas ele resolve entrar pela chaminé e é surpreendido pelos porquinhos”). Logo depois, o pesquisador disse às crianças que aquela não era a verdadeira história dos três porquinhos, e acrescentou que havia encontrado o diário do lobo, no qual ele contava a verdadeira história. O pesquisador, após essas afirmações, leu-lhes a história e, por fim, perguntou se haviam gostado. Pediu, então, que escrevessem uma das versões da história ou criassem uma nova. O DIARIO DO LOBO A VERDADEIRA HISTORIA DOS 3 PORQUINHOS 85 ERA UMA VEZ UM LOBO EU ESTOU FAZENDO O BOLO DA MINHA QUERIDA VOVOZINHA E ESTAVA PESSIZANDO DE UMA XICARA DE AÇUCAR E FUI PEDIR PARA O MEU VIZINHO AÇUCAR PA MEU VIZINHO PORCO ACREDIRA QUE ELE CONSTRUIU UMA CASA DE PALHA EU FUI LÁ PARA PEDIR AÇUCAR O PORCO ME DISSE VAI EMBORA LOBO E SENTI UM ESPIRRO E ATIN E A CASA DERRUBO EO PORGO LÁ NO CHÃO MORTO DA SILVA EU FUI NA CASA DO IRMÃO DO PORCO ERA UM POUCO MAS ESPERTO FEZ UMA CASA DE LENHA E PEDI AÇUCAR PARA ELE ELE DISSE NÃO E ESPIRREI ATIN E A CASA DES MURONOU E O PORCO MOR REU. EU REPETI O PRATO EU FUI NO UTRO PORCO EU ESPIRRANDO ELE FALAVA E FIQUEI BRAVO E A POLICIA ME PRENDEO ME DA UMA XICARA DE AÇUCAR FIM. Transcrição do texto (02) Texto original Neste texto, há a TD história infantil (conto infantil), a qual engloba as TDs narração e diálogo. A própria expressão “era uma vez” é uma TD que, por sua vez, indica/marca outra TD, a narrativa que compõe a história, o conto infantil. Dessa forma, o texto do escrevente começa com a forma prototípica da TD esperada: “era uma vez um lobo”, e, em seguida, é inserido um discurso direto com marcas de diálogo: 86 (06) ACREDIRA QUE ELE | CONSTRUIU UMA CASA DE PALHA [02/06-06] (acredita que ele construiu uma casa de palha) O elemento destacado, em (06), marca claramente a presença do outro de forma interativa. O sujeito, que está em fase de aquisição de escrita, busca encontrar sentido naquilo que escreve, trazendo o outro para seu texto, ao mesmo tempo em que “o adulto letrado, constituindo-se num OUTRO para o SUJEITO/criança, confrontando-a com a ideia de que a escrita veicula sentidos e não simples sequência de letras [...] desencadeia a busca de sentidos” (ABAURRE et al, 2002, p. 47). Há, nesse texto, ocorrências de e com acepção de tempo posterior e causa, todas no campo da parataxe. Vejamos, primeiramente, as ocorrências que exemplificam os usos com acepção de tempo posterior. Em (07), existe uma sequencialidade temporal icônica entre as orações, já em (08), a relação de tempo não é icônica, mas marca uma posterioridade no tempo da narração, ou seja, tratase de uma relação mais textual-discursiva, que “engata” o discurso, conferindo sentido à história narrada: O PORCO ME DISSE VAI EMBORA LOBO E SENTI UM ESPIRRO |EATIN (07) [02/06-06] (O porco me disse vai embora lobo e senti um espirro e atchin) (08) [...] FEZ UMA CASA DE LENHA E PEDI AÇUCAR PARA ELE [02/06-06] (fez uma casa de lenha e pedi açúcar para ele) Ainda com relação a esta mesma proposta, o texto abaixo traz uma ocorrência de e daí, em (09): ÉRA UMA VEZ UM LOBO BOM EUTAVA FAZÉ NO UM BOLO PARA MINHA QUERIDA VÓVO EDAI EU FOI BOSCAR UM POCO DE AÇUCAR DAÍ EU BATI NA PORTA TU-TU-TUDAÍ EU AREPIER RATIM EU DERUBEI DAÍ FOI NA OTA CASA TU-TU-TU- RATIM QUEBO,- EU FOI NA CASA DE TIJOLO TU- TU TU RATIM DAÍ PORISO QUEEU FIQUE MAL FIM Transcrição do texto (03) 87 Texto original EUTAVA |FAZÉ NO UM BOLO PARA MINHA QUERIDA |VÓVO EDAI EU FOI BOSCAR UM POCO DE |AÇUCAR (09) [03/06-31] (eu estava fazendo um bolo para minha querida vovó e daí eu fui buscar um pouco de açúcar) Essa locução juntiva, formada por e + daí, reforça a inferência de tempo posterior. Conforme os trabalhos de Braga (2001) e Braga & Paiva (2003), a partir da forma fonte, que é o aí dêitico, seguindo o cline da gramaticalização, podem originar-se outros quatro usos, a saber: aí fórico, aí juntor, aí marcador discursivo e, aí clítico. Interessa para nós o uso de aí enquanto juntor. A esse respeito, Braga (2001) rotula três relações semânticas que o juntor aí pode sinalizar, a saber, contraste, causa e continuação/sequenciação temporal. Nas palavras da autora: “continuação compreende sequenciação temporal, reiteração e superposição de eventos”. Braga & Paiva (2003) completam essa afirmação dizendo que o uso prototípico do juntor aí, ou seja, o mais recorrente, é aquele que codifica sequenciação. É exatamente este o uso que exemplificamos em (09), em atuação conjunta com o juntor e. Por sua vez, as acorrências de (10) a (13) ilustram casos de e com acepção causal: EU ESTOU FAZENDO O |BOLO DA MINHA QUE RIDA VOVOZINHA E ESTAVA PESSIZANDO |DE UMA XICARA DE AÇUCAR E FUI PEDIR (10) PARA O MEU VIZINHO [02/06-06] (eu estou fazendo o bolo da minha querida vovozinha e estava precisando de uma xícara de açúcar e fui pedir para o meu vizinho) 88 ATINE A CASA DERRUBO EO PORGO LÁ NO CHÃO MORTO DASILVA (11) [02/06-06] (atchin! E [por isso] a casa derrubou e [por isso] o porco lá no chão morto da silva) ESPIRREI ATIN E A CASA DES MURONOU E O PORCO MOR |REU [02/06-06] (12) (espirrei, atchin! E [por isso] a casa desmoronou e [por isso] o porco morreu) ELE FALAVA |E FIQUEI BRAVO E A POLICIA ME PRENDEO (13) [02/06-06] (ele falava e [por isso] fiquei bravo e [por isso] a policia me prendeu) Essas ocorrências apresentam casos de causa-consequência, permitindo paráfrase por por isso, sendo o juntor e usado, portanto, como causa paratática. A leitura emerge de contextos, como os exemplificados, em que uma sequência de acontecimentos, no tempo, permite relacioná-los a fatos que ocorrem antes como causa de outros fatos determinados, que, por sua vez, ocorrem depois, numa relação de causa e efeito, que acompanha a sequência factual no mundo. Há, dessa forma, a partir da acepção de tempo posterior, mais concreta, a possibilidade de inferirmos a relação causal, mais abstrata. Os demais exemplos que serão apresentados foram extraídos de textos produzidos a partir da proposta 13, aplicada em novembro de 2001. Nesse dia, as crianças assistiram a uma palestra, junto a outras crianças, sobre audição, ministrada por alunas do curso de Fonoaudiologia da Unesp/Marília. As palestrantes, além da apresentação oral sobre as características e os cuidados com a voz, realizaram um teatro de fantoches cujo enfoque foi os cuidados com a voz. Foi solicitado, logo após a palestra, que as crianças escrevessem sobre o que elas haviam compreendido. eu escutei uma palestra da Cristiane e de quato meninas e de Renata e o meis pasado éla falou do ovido e Hoje ela falou comé que agente souta son pela boca tem o motorzinhos que é 89 labinrinto que sobe pelo pumãou mais tem os labinrinto e machucar o canínho e machuca toda agarganta é muito perigoso e pode atémorer tén uma caraso na garganta. A xiquinha todo dia ela fala com os animais éra a vaca o boi o pasarin e burro. Transcrição do texto (04) Texto original Esse texto apresenta-se em forma de TD relato, que, na verdade, é o que se espera a partir da proposta, mas também contém a TD narração, uma vez que a criança narra a história da Chiquinha (apresentada no teatro de fantoches). Aparece, ainda, a TD listagem, como ilustra o trecho abaixo, em que o escrevente apresenta alguns personagens da história em forma de TD, sob a configuração de sintagmas nominais: A xiquinha todo dia ela fala com |os animais éra a vaca o boi o pasarin e (14) burro [04/13-05] (a Chiquinha todo dia ela fala com os animais eram a vaca, o boi, o passarinho e o burro) 90 Encontramos, neste texto, ocorrências de e com acepção de contraste em (15), de causa, em (16) e de adição em (16), (17) e (18), todas no campo da parataxe: e o méis |pasado éla falou do ovido e Hoje |ela falou comé que agente souta son [04/13-05] (15) (e o mês passado ela falou do ouvido e hoje ela falou como que a gente solta o son) tem os labirinto e machucar |o canínho e machuca toda agarganta |é muito perigoso e pode atémorer [04/13-05] (16) (tem o labirinto e machucar o caninho e machuca toda a garganta é muito perigoso e [porque] pode até morrer) eu escutei uma palestra da Cristiane |e de quato meninas e de Renata (17) [04/13-05] (eu escutei uma palestra da Cristiane e de quatro meninas) (18) A xiquinha todo dia ela fala com |os animais [...] o pasarin e| burro [04/13-05] (A Chiquinha todo dia ela fala com os animais [...] o passarinho e o burro) As relações de contraste, ilustradas em (15), justificam-se pelo paralelismo sintático presente nos sintagmas adverbiais: “e o mês passado”, “e hoje”. É, portanto, fortemente dependente do contexto. Em (16), as duas primeiras ocorrências do juntor e apresentam acepção aditiva e ajudam a construir a relação de justificativa-explicação que segue, em “é muito perigoso e pode até morrer”. O último e é, portanto, o que possui acepção de causa paratática, permitindo paráfrase por porque. Segundo Paiva (1993), podemos justificar essa ocorrência como um caso de causa paratática e não hipotática, por se tratar, no plano discursivo de análise, de uma afirmação que faz com que o escrevente sinta a necessidade de acrescentar um adendo, em que explique, justifique sua realização. Ou seja, “É muito perigoso [afirmação], porque pode levar à morte [adendo/explicação da afirmação]”. No plano informacional de análise, trata-se de duas informações novas. Ou seja, o conteúdo informacional da oração x “É muito perigoso” e o da y, “porque pode levar à morte” são ambos apresentados, pela primeira vez, no texto. E, por fim, no plano prosódico, 91 podem ser constatadas duas unidades entoacionais, no trecho, cada qual equivalente a uma das orações, x e y, o que poderia ser codificado numa pausa, na leitura. A análise conjunta desses níveis permite, segundo Paiva (1993), justificarmos a ocorrência dessa relação causal no domínio da parataxe e não no da hipotaxe. Para finalizar esta seção, apresentamos o texto abaixo (texto 05), que também faz parte da proposta 13, destacando as ocorrências de e com acepção de adição, de tempo posterior e causa, todas, casos de parataxe. Eu lembro que tinha um que chamava – larinja – faringi – traqueia – quando gritamos as nossas cordas vocais começa bater uma na outra bem forte que pode até machucar – quando respiramos o ar passa pela faringi vai para o pumão para falar e depois ele sobe devolta passa pela faringi e só um dia uma menina chamada Chiquinha foi visitar seus bichos quando deu oi para o burro deu um bondia fino e ela perguntou nossa mas que voz Horrivel estou roco disse o burro e foi visitar a mimosa grito a mimosa bem forte e no caminho as duas irma de Chiquinha estava brigando e mando para com a briga e foi para a escola la o professor falou um monte de coisa e no caminho ela pensou no que o professor falou eu vou ajudar o burro a mimosa e suas irma. FIM Transcrição do texto (05) 92 Texto original Também compõem esse texto as TDs relato, narrativa e listagem. Nesse caso, o escrevente apresenta os dados da palestra em formato de lista, marcada pelo uso de hifens entre a justaposição de termos e orações, tal como ilustra a ocorrência (19): Eu lembro que tinha um que chamava - larinja -|faringi - traqueia - quando (19) gritamos as nossas cordas |vocais começa bater uma na outra [05/13-10] (Eu lembro que tinha um que chamava – laringe – faringe – traqueia-, quando gritamos as nossas cordas vocais começam a bater uma na outra) Nas ocorrências em (20) e (21), podemos perceber a presença do outro, aquele que contribuiu para a construção do texto da criança. Segundo MayrinkSabinson (2002), a linguagem é uma atividade constitutiva entre o sujeito e o outro, 93 pois para que o sujeito se constitua como tal é preciso vivenciar encontros e contrapontos com o(s) outro(s). Em (20), ecoa a presença das palestrantes, que, no caso, manifestou-se por meio da proposta de produção do texto: após a palestra sobre audição, as palestrantes solicitaram que as crianças escrevessem sobre o que haviam compreendido, ao que esse escrevente inicia seu texto com uma resposta a proposta, marcada pela construção “eu lembro que”, e finaliza o primeiro parágrafo com “é só”: (20) Eu lembro que tinha um que chamava [...] [05/13-10] (Eu lembro que tinha um que chamava [...]) (21) [...] passa pela faringi e só [05/13-10] ([...] passa pela faringe e só) Na ocorrência (22), encontramos mais um exemplo do juntor e com acepção de adição paratática de sintagmas nominais, e, de (24) a (26), mais exemplos em que está clara a acepção de tempo posterior icônico, permitindo a paráfrase por em seguida. Em (23), a coocorrência com o advérbio depois explicita essa relação de sentido de forma ainda mais imediata: (22) eu vou ajudar o burro a mimosa e suas Irma [05/13-10] (eu vou ajudar o burro, a mimosa e suas irmãs) quando Respiramos o ar passa |pela faringi vai para o pumão para falar e (23) |depois ele sobe devolta [05/13-10] (quando respiramos o ar passa pela faringe vai para o pulmão para falar e depois ele sobe de volta) (24) [...] estou roco disse |o burro e foi visitar a mimosa [05/13-10] ([...] estou rouco disse o burro, e foi visitar a mimosa) grito |a mimosa bem forte e no caminho as duas |irma de Chiquinha estava (25) brigando [05/13-10] (gritou a mimosa bem forte, e no caminho, as duas irmãs de Chiquinha estavam brigando) (26) mando |para com a briga e foi para a escola [05/13-10] (mandou parar com a briga e foi para a escola) 94 Existe uma diferença semântico-formal importante entre os usos apresentados como aditivos e os temporais. Nas ocorrências denominadas, desde o início da análise, de aditivas ou com acepção de adição, temos uma relação de adição neutra. Isso quer dizer que é possível, nessas ocorrências, a inversão da ordem das orações x e y (e z, se for o caso), sem prejuízo semântico para o complexo. Vejamos isso, em (22), ao alterar a ordem dos sintagmas coordenados: (22) eu vou ajudar a mimosa suas irma e o burro [05/13-10] (eu vou ajudar a mimosa, suas irmãs e o burro) Por sua vez, nas ocorrências denominadas, desde o início da análise, de temporais (anteriores ou posteriores), temos uma relação entre as orações em que a mudança da sequencialidade entre x e y não é permitida, exatamente porque se trata de uma sequência que imita a ordem de acontecimento dos fatos no mundo, por isso também chamada de icônica, ou, ainda, por se tratar de uma sequência que marca a temporalidade do/no texto, como um “gancho” discursivo. Vejamos o prejuízo semântico que ocorre se alterarmos a ordem dos sintagmas x e y, em (26), em que temos codificada uma ocorrência com acepção temporal icônica. Neste trecho, primeiro Chiquinha resolve a situação de desentendimento de suas irmãs, mandando que parassem com a briga, e só depois vai para a escola. A inversão da ordem das orações provoca prejuízos para a história que é narrada: (26) *foi para a escola e mando |para com a briga [05/13-10] (foi para a escola e mandou parar com a briga) As ocorrências (27) e (28) trazem e com acepção de causa paratática, permitindo paráfrase por por isso: quando deu oi para |o burro deu um bondia fino e ela perguntou |nossa mas (27) que voz Horrivel [05/13-10] (quando deu oi para o burro [ele] deu um bom dia fino e [por isso] ela perguntou: nossa, mas que vos horrível) no caminho as duas |irma de Chiquinha estava brigando e mando |para com (28) a briga [05/13-10] (no caminho as duas irmãs de Chiquinha estavam brigando e [por isso] mandou para com a briga) 95 Por fim, o texto 06, a seguir, traz um exemplo de e com acepção de contraste: RÉNATA PORFAVOR COLÓQUE OSEU FILHO AQUI NESSA ESCOLA PORFAVOR PORQUE ESA ESCOLA É BOUA SABEPORQUE NÃO TEM ESCOLA MAIS BOUA QUE ÉSA ESCOLA SABE PORQUE SEIPRI EU VENHO EOS DIAS EU NÃO VEINHO PORQUE EU CHEGO ATRASADO EPOR MUINTAS COISAS QUE EU FASSO NA ESCOLA Transcrição do texto (06) Texto original Esse texto foi produzido a partir da proposta 4 “Carta para Renata 02”, aplicada em maio de 2001. Nesse dia, o pesquisador levou uma carta da mesma aluna do curso de Fonoaudiologia da Unesp/Marília, que ministrou, no dia 18/04/2001, a palestra sobre audição. O pesquisador pediu a uma das crianças que lesse a carta para a classe. No entanto, como a leitura pareceu insuficiente para o entendimento da carta, o pesquisador releu-a. No momento da produção do texto (resposta à carta), o pesquisador procurou lembrar às crianças da solicitação feita pela aluna na carta: contar como era a escola, o que elas estavam aprendendo e o que mais gostavam de fazer. Na E.M.E.F. Dr. Wilson Romano Calil. A professora responsável pela sala sugeriu que eles contassem: (a) sobre um teatro que estavam ensaiando, uma adaptação do conto de fadas O gato de botas; (b) sobre as aulas de educação física de que começariam a participar; e (c) sobre a aquisição de uma mesa de pingue-pongue. O texto 06 não apresenta características de carta, mas de TD pedido com trechos argumentativos. Tem marcas muito fortes de oralidade, como repetições de termos e expressões: por favor; sabe porque? : RÉNATA PORFAVOR COLÓQUE OSEU |FILHO AQUI NESSA ESCOLA (29) PORFAVOR |PORQUE ESA ESCOLA É BOUA [06/04-12] (Renata por favor coloque o seu filho nessa escola, por favor, porque essa escola é boa) ESA ESCOLA É BOUA SABEPORQUE |NÃO TEM ESCOLA MAIS BOUA (30) QUE ÉSA [06/04-12] (essa escola é boa, sabe por quê? Não tem escola melhor que essa) 96 Em (31), temos a ocorrência de e com acepção mais concreta de adição temporal, que permite a inferência da acepção mais abstrata de contraste baseada na construção, em que são contrastadas as expressões temporais “sempre eu venho” e “os dias que eu não venho”, numa leitura do tipo: “sempre eu venho e [mas] os dias que eu não venho é porque eu chego atrasado”. SEIPRI EU VENHO |EOS DIAS EU NÃO VEINHO PORQUE EU CHEGO| (31) ATRASADO [06/04-12] (eu sempre venho, e [mas] os dias que eu não venho é porque eu chego atrasado) O uso da Justaposição A terceira Tabela traz dados da análise tático-semântica das ocorrências de justaposição, de acordo com os eixos horizontal e vertical, e apresenta, em números, suas ocorrências nos textos do corpus investigado: Tabela 3: Frequências de justaposição no domínio paratático JUSTAPOSIÇÃO Adição Tempo Posterior Causa Finalidade Contraste Parataxe ∅ (84) ∅ (45) ∅ (20) ∅ (1) ∅ (2) Em comparação com a Tabela 2, é possível perceber que a quantidade de ocorrências de acepção aditiva se sobrepõe à das demais acepções, conforme já apresentado na análise quantitativa. Também como destacamos em relação aos usos de e, os casos de justaposição, embora mais recorrentes nas acepções mais concretas (como adição e tempo), são constatados, com frequência significativa, em acepções mais abstratas, como causa, principalmente. Nessa direção, chamamos a atenção para os casos mais singulares, tal como o uso de justaposição para codificar acepções mais abstratas como causa, já mencionada, finalidade e contraste, no que diz respeito a um aspecto do eixo horizontal. Esse dado também já pode ser analisado como um dos aspectos da tradição textual analisada (dados de aquisição de escrita), em que o escrevente opta por estruturas táticas simples, na codificação de acepções mais abstratas, confirmando a tendência apresentada na seção anterior. 97 Os textos dos quais foram extraídas as ocorrências de justaposições são frutos da proposta 9, aplicada em setembro de 2001. Nesse dia, o pesquisador solicitou que as crianças escrevessem um texto no qual dessem orientações a uma terceira pessoa para fazer compras. Neste texto, as crianças deveriam: (a) escolher um supermercado e indicar a sua localização; (b) explicar quais produtos e a quantidade destes que a pessoa escolhida deveria comprar; (c) estabelecer a quantia que esta pessoa poderia gastar; e, por último, (d) indicar o lugar onde a pessoa deveria entregar as compras. MARIA VOCÊ VAITER QUE ILA NO TRIDICO FAZER AUGUMAS COMPRAS VOCÊ PEGA A VENIDA E VAI RETO PARA CIMA EU QUERO QUE VOCÊ TRAGA 4 CEBOLAS 5 PEIXE 2 QUILO DE AÇUCA 12 DUZIA DE OVOS 6 BANANAS 9 AMEIXAS 2 DETERGEMTE 3 BATATAS EU TENHO SO 3 REAIS Transcrição do texto (07) Texto original A TD principal que se caracteriza, nesse texto, é a bilhete, em que se identificam o receptor, a mensagem e um registro informal. As demais TDs, mescladas nessa TD principal, são: (i) a injuntiva, exemplificada em (32); a explicativa, em (33), e a listagem (na horizontal), em (34): (32) MARIA VOCÊ VAITER QUE ILA | NO TRIDICO [07/09-12] (Maria você vai ter que ir lá no Tridico) VOCÊ PEGA A VENIDA |E VAI RETO PARA CIMA ∅ EU QUERO QUE (33) VOCÊ TRAGA [...] [07/09-12] (você pega a avenida e vai reto para cima ∅ eu quero que você traga [...]) [...] 4 CEBOLAS ∅ 5 PEIXE |∅ ∅ 2 QUILO DE AÇUCA ∅ 12 DUZIA DE OVOS ∅ 6 BANANAS ∅ 9 AMEIXAS ∅ 2 DETERGEMTE |∅ ∅ 3 BATATAS [07/09-12] |∅ (34) ([...] 4 cebolas ∅ 5 peixes ∅ 2 quilos de açúcar ∅ 12 dúzias de ovos ∅ 6 bananas ∅ 9 ameixas ∅ 2 detergentes ∅ 3 batatas) As justaposições, em (34), têm acepção de adição paratática (adicionando termos à lista). Também há, nesse texto, ocorrências de tempo posterior paratático, e de finalidade, como exemplifica (35): 98 MARIA VOCÊ VAITER QUE ILA |NO TRIDICO ∅ FAZER AUGUMAS |COMPRAS ∅ VOCÊ PEGA A VENIDA |E VAI RETO PARA CIMA ∅ EU (35) QUERO |QUE VOCÊ TRAGA [...] [07/09-12] (Maria você vai ter que ir lá ao Tridico ø [para] fazer algumas compras ø você pega a avenida e vai reto para cima ø eu quero que você traga [...]) A primeira ocorrência de justaposição, no trecho, apresenta acepção de finalidade. O correlato formal do verbo no infinitivo (“fazer”) indica finalidade no campo da parataxe, “Maria você vai ter que ir lá ao Tridico para fazer algumas compras [...]”. As demais ocorrências de justaposição apresentam acepção de tempo posterior e indicam, dessa forma, sequencialidade temporal icônica. A criança, primeiro faz um pedido ou dá uma ordem, depois, explica o caminho do supermercado e, por fim, explicita o que quer que o interlocutor compre: “você vai ter que ir lá no Tridico, para fazer compras, então você vai pega a avenida e vai reto para cima, depois (quando estiver lá), quero que você traga [...]”. A ocorrência (36) exemplifica o uso de justaposição com acepção de contraste paratático: EU QUERO |QUE VOCÊ TRAGA 4 CEBOLAS ∅ 5 PEIXE |∅ ∅ 2 QUILO DE AÇUCA ∅ 12 DUZIA DE OVOS |∅ ∅ 6 BANANAS ∅ 9 AMEIXAS ∅ 2 ∅ 3 BATATAS ∅ EU TENHO SO 3 REAIS [07/09-12] DETERGEMTE |∅ (36) (eu quero que você traga: 4 cebolas ø 5 peixes ø 2 quilos de açúcar ø 12 dúzias de ovos ø 6 bananas ø 9 ameixas ø 2 detergentes ø 3 batatas ø eu tenho só 3 reais) O descompasso entre tudo o que foi pedido para que fosse comprado e a quantidade reduzida de dinheiro indica a leitura de contraste. O correlato linguístico “só” torna essa leitura mais clara no contexto. Para exemplificar o uso da justaposição com acepção de causa paratática, recuperamos, em (37), uma ocorrência do texto 1, e, em (38), outra do texto 2, já apresentados: (37) É MUINTA COISA ∅ NÃO DA PRAIS |PRICA [01/02-12] (é muita coisa ø não dá para explicar) (38) ERA UM POUCO MAS ESPERTO ∅ |FEZ UMA CASA DE LENHA [02/06-06] 99 (era um pouco mais esperto ø fez uma casa de lenha) A justaposição, nessas ocorrências, é facilmente substituível por por isso, codificando, portanto, casos de causa paratática em que se trata, no plano discursivo de análise, de afirmações que fazem com que o escrevente sinta a necessidade de acrescentar um adendo, em que explique, justifique sua realização. Ou seja, em (37), “É muita coisa [afirmação], por isso não dá para explicar [adendo/explicação da afirmação]”, e, em (38), “era um pouco mais esperto” [afirmação], por isso “fez uma casa de lenha” [adendo/explicação da afirmação]. No plano informacional de análise, trata-se, em ambos os casos, de duas informações novas. Ou seja, o conteúdo informacional da oração x “É muita coisa” (37), e “era um pouco mais esperto” (38) e o da y, “por isso não dá para explicar” (37), e “por isso fez uma casa de lenha” (38), são informações apresentadas pela primeira vez no texto. E, por fim, podem ser constatadas, no plano prosódico de análise, em cada uma das ocorrências, duas unidades entoacionais, nos respectivos trechos, cada qual equivalente a uma das orações, x e y, o que poderia ser codificado numa pausa, na leitura. Resta salientar que, na falta de marcas de junção, a reinterpretação induzida pelo contexto leva ao reconhecimento do processo de junção e da relação de sentido que emerge desse processo. Para isso, o conhecimento de mundo e as expectativas do falante/escrevente sustentam as leituras recuperadas pelo analista. Os casos de justaposição, na parataxe, tornam necessária, portanto, a mobilização de vários recursos, nos diferentes níveis de análise, para a interpretação, o que garante que uma forma aparentemente simples de taxe mobiliza, na verdade, uma série de procedimentos sintáticos, semânticos e pragmáticos para seu funcionamento. Os usos de PORQUE e POR ISSO Na quarta tabela, estão representadas as ocorrências de porque e por isso, constatadas a partir da análise tático-semântica, sendo expostas, na linha horizontal, as acepções de sentido, e, na vertical, as frequências de uso de cada juntor. 100 Tabela 4: Frequências de porque e por isso no domínio paratático PORQUE, POR ISSO, POR Causa Parataxe PORQUE (14) POR ISSO (5) É frequente a ocorrência desses mecanismos de junção nos textos produzidos a partir da proposta 14, que foi aplicada em dezembro de 2001. No dia dessa proposta, o pesquisador solicitou que as crianças produzissem um cartão de natal que seria enviado para as fonoaudiólogas que ministraram as palestras sobre audição e voz. Traçando um paralelo com textos da primeira proposta, é possível perceber, já a esta altura, uma familiaridade maior por parte dos escreventes, com a forma de enunciação escrita. Vejamos: Obrigado por mandar uma carta para nós. Vocês foi muito gentis obrigado adorei a carta de voces. Porisso estou mandando esta maravilhosa carta. Queria que voces estivece aqui co noscho. Adorei o teatrinho que voces fiseram. Foi um enorme pra_ zer recebelas aque na nossa escola. Adorei a vezita de voces 4. mesmo que foi um pouquinho. Eu quero que nos se encontrassem de novo, porque gos tei de voces 4. assinado: MEU QUERIDO PAPAI NOEL, VOU FAZER O MEU PEDIDO\ PARA O DIA DO NATAL,UMA BONECA BEM GRANDE SE FOR PEQUENA NÃO FAZ MAL, MANDE UM VESDO PARA MAMÃE, E ALMENTE O SALARIO DO PAPAI. Transcrição do texto (08) 101 Texto original São depreendidas duas cartas, assim identificadas pelo escrevente. Há, ainda, mescladas com a TD carta, as TDs pedido e agradecimento. Neste texto, como em outros, produzidos a partir dessa mesma proposta, as crianças desenvolvem a TD cartão, solicitada , por meio da TD carta. Na primeira carta, o escrevente responde à proposta de ter como destinatárias as fonoaudiólogas. Na segunda, a carta recebe outro destinatário, o Papai Noel, caracterizando uma ligação semântico-pragmática entre esta carta e a proposta de produção de um “cartão de Natal”. Há a predominância da TD agradecimento, na primeira carta, e, na segunda, da TD pedido. Em (39), chamamos a atenção para o uso de porque: (39) Eu quero que nos se enco- |ntrassem de novo, porque gos tei [08/14-18v] (eu quero que nos encontremos de novo porque gostei) A ocorrência em (39) pode ser caracterizada como causa paratática. No plano discursivo de análise, há uma afirmação que faz com que o escrevente sinta a necessidade de acrescentar um adendo, em que explique, justifique sua realização. Ou seja, “eu quero que nos encontremos de novo [afirmação], porque gostei [adendo/explicação da afirmação]”. No plano informacional de análise, trata-se de duas informações novas, pois o conteúdo informacional da oração x “eu quero que nos encontremos de novo” e o da y, “porque gostei”, são ambos apresentados pela 102 primeira vez no texto. E, por fim, podem ser constatadas, no plano prosódico, duas unidades entoacionais, no trecho, cada qual equivalente a uma das orações, x e y, o que poderia ser codificado numa pausa, na leitura. A análise conjunta desses níveis permite, segundo Paiva (1993), justificarmos a ocorrência dessa relação causal no domínio da parataxe e não no da hipotaxe. Por fim, destacamos o uso de por isso, indicando uma relação explicativa em que fica evidente a sinalização anafórica realizada, evidenciando o grau de vinculação sintática entre as orações articuladas: adorei a carta de voces. Porisso |estou mandando esta maravilhosa carta (40) [08/14-18v] (adorei a carta de vocês, por isso estou mandando esta maravilhosa carta) A ocorrência em (40) também pode ser analisada segundo os aspectos discursivos, informacionais e entoacionais de Paiva (1993), caracterizando-se como paratática, já que a vinculação sintática é mais frouxa e a relação semântica também é a de adendo, conforme os casos de porque que também atuam nesse domínio. Assim, no plano discursivo de análise, existe uma afirmação que faz com que o escrevente sinta a necessidade de acrescentar um adendo, em que explique, justifique sua realização: “adorei a carta de vocês [afirmação], por isso estou mandando esta maravilhosa carta [adendo/explicação da afirmação]”. No plano informacional de análise, trata-se de duas informações novas: o conteúdo informacional da oração x “adorei a carta de vocês” e o da y, “por isso estou mandando esta maravilhosa carta”, são ambos apresentados pela primeira vez no texto. E, por fim, no plano prosódico, podem ser constatadas duas unidades entoacionais, no trecho, cada qual equivalente a uma das orações, x e y, o que corresponde à pausa, na leitura. O uso de AÍ Na Tabela 5, a seguir, temos dados da análise tático-semântica das ocorrências de aí, englobando os casos de aí depois e daí, expondo, na linha horizontal, as acepções de sentido, e, na vertical, as frequências de suas ocorrências. 103 Tabela 5: Frequências de aí, aí depois, daí no domínio paratático AÍ, AÍ DEPOIS, DAÍ Tempo Posterior Causa Contraste Parataxe AÍ (13) AÍ DEPOIS (1) DAÍ (4) AÍ (2) AÍ (1) Como vários estudos mostram (cf. BRAGA, 2001; BRAGA; PAIVA, 2003), os usos mais frequentes de aí e formas correlatas (aí depois e daí) são aqueles que estabelecem uma continuação ou sequencialidade temporal, advindos dos usos mais concretos de aí como advérbio dêitico e/ou fórico. Apesar disso, também os usos menos recorrentes de aí, com função juntiva atrelada a acepções mais abstratas, também foram destacados pelas mesmas autoras. Vale destacar que os estudos das autoras citadas foram realizados com dados de fala. Ainda assim, as correlações apontadas por elas são aqui pertinentes uma vez que, fundamentados em uma concepção de fala e escrita não dicotômica e, mais especificamente, em uma noção de escrita heterogeneamente constituída, devemos considerar que traços da oralidade podem se manifestar no escrito como um aspecto que lhe é intrínseco, em especial nesses textos de aquisição de escrita. Para exemplificar o grupo de juntores da tabela 5, recorremos, primeiramente, a textos produzidos a partir da proposta 5, que foi aplicada em junho de 2001. Nesse dia, o pesquisador leu, duas vezes, a fábula “O rato do campo e o rato da cidade” e, posteriormente, pediu a uma das crianças que contasse, a seu modo, a história para seus colegas. Logo após, o pesquisador solicitou que as crianças escrevessem a história. ERA UMA VEIS UM RATO MUNTO POBRE AI VEIO UMA CARTO PRA ELE SOBRE O AMIGO DELE FALANDO EU TICOLVIDO PARA UMA FESTA AI O RATO DO CANPO FOI NA FÉSTA DO RATO DA CIDADE CHECANDOLA ELE BRIMDARANL COM CHANPÃINHO AI OUVIRAM UM BARULHO NA PORTA AI O RATO DA CIDADA CORREL PARA SUA TOCA AI DE POIS ELI SAIL AI OUVIL OU TRO BARULHO NA PORTA AI DINOVO O RATO DA CIDADE CORREL PARA SUA TOCA AI O RATO DO CANPO FALOU EU VOL PA MINHA CASA UM DIA VOCÊ TANBEM PODI ILEM CASA TIAL Transcrição do texto (09) 104 Texto original Mais uma vez, a TD “era uma vez” indica/marca outra TD, a narrativa/o conto infantil. O texto todo é “amarrado” com o uso idiossincrático do juntor aí, com acepção de tempo posterior, indicando a sequência de desenvolvimento da história, o que pode ser um indício da relação entre dois modos de enunciação se constituindo mutuamente (cf. CORRÊA, 2007). Em (41), temos a acepção de tempo posterior de aí enfatizada pelo advérbio depois: O RATO DA CIDADA CORREL PARA |SUA TOCA AI DEPOIS ELI SAIL (41) [09/05-12] (o rato da cidade correu para sua toca aí depois ele saiu) Encontramos, ainda, em nosso corpus, o uso do juntor aí com acepção de causa e de contraste paratáticos. Essas ocorrências estão presentes no texto abaixo. O RATO DO CAMPO E O RATO DA CIDADE ERA UMA VES UM RATO QUE REBEU UMA CARTA DO PRIMO AI DES PERADA MENTE ABRIU A CAR QUE O PRIMO 105 MANDOU COM VIDANO OPRI MO DO CANPO PARA JANTAR NA CASA DELE AI ELE FOI JATAR AI ELE VIU AQUE LA MASA TÃO BONITA E OS OLHOS TÃO REGA LADO A O PRI MO DA CIDADE AI ELES OUVIRÃO UM BA RULHO ATRAS DA PORTA AI ELE CORRERÃO PARA TO CA AI ELE OUVIRÃO OUTRO BARULHO ATRAIS DA PORTA AI PRI MO DO CANPO AGORA EU VOU EM BORA AI OUTRO DIA EU POSSO TI COM VI DAR A IR NAMI NHA CASA MAS EU NÃO TEM NHO ESSA COMIDA EUSSO TEM NHO MILHO AS VESES FASSO ALGUMINGAL. Transcrição do texto (10) Texto original Com relação à TD, esse texto é bem parecido com o anterior. Há a TD “era uma vez”, também indicando a TD narração/conto. A única diferença é que este apresenta a TD diálogo, tal como exemplifica a ocorrência em (42): (42) AI PRI MO DO CANPO AGORA EU |VOU EM BORA [...] [10/05-20] (ai primo do campo agora eu vou embora) 106 Existem, neste texto, cinco ocorrências do juntor aí com acepção de tempo posterior, duas com acepção de causa e uma com acepção de contraste, todas no campo da parataxe. Vejamos: (43) COM VIDANO OPRI MODO |CANPO PARA JANTAR NA CASA |DELE AI ELE FOI JATAR [10/05-20] (convidando o primo do campo para jantar na casa dele aí [por isso] ele foi jantar) O uso do juntor aí, em (43), permite uma leitura de causa-consequência: o rato foi jantar porque foi convidado. É possível a paráfrase por por isso que indica, então, a relação no nível da parataxe. Em (44), há o mesmo tipo de ocorrência: (44) ELES OUVIRÃO UM BA | RULHO ATRAS DA PORTA |AI ELES CORRERÃO PARA TO |CA [10/05-20] (eles ouviram um barulho atrás da porta aí eles correram para toca) Em (45), destacamos o uso juntivo de aí que permite a leitura contrastiva no contexto de sua ocorrência: (45) AGORA EU |VOU EM BORA AI OUTRO DIA EU |POSSO TI COM VI DAR AIR NAMI |NHA CASA [10/05-20] (agora eu vou embora aí outro dia eu posso te convidar a ir na minha casa) Em uma primeira leitura, mais concreta, esse aí pode ser interpretado com acepção de tempo posterior. Entretanto, em uma segunda leitura, mais abstrata, é possível inferir uma relação de contraste pautada exatamente nos dois tempos explicitados no contexto: agora e outro dia. Ou seja, o item estabelece a junção de duas orações em um contexto em que contrastam as ações realizadas em momentos distintos, numa construção com paralelismo sintático. Essa leitura está, portanto, intimamente associada ao contexto linguístico e à semântica da proposição. Destacamos, ainda, o uso do juntor aí, em (46): 107 (46) ELE OUVIRÃO OUTRO |BARULHO ATRAIS DA PORTA |AI PRI MO DO CANPO AGORA EU |VOU EM BORA [10/05-20] (eles ouviram outro barulho atrás da porta ai primo do campo agora eu vou embora) Cabem duas possibilidades de análise para esse caso, ambas intimamente associadas à grafia não convencional do item (sem acento). Na primeira, estaríamos diante de uma interjeição dentro do discurso direto do primo: [...] “ai primo do campo, agora eu vou embora”. Entretanto, como não há o uso da acentuação convencional, nem da pontuação que indique onde se inicia o diálogo, na segunda possibilidade de análise estaríamos diante do juntor aí, com acepção de sequenciador temporal, em contexto de diálogo direto, sem sinalização, o que pode ser interpretado na seguinte reescrita do trecho: [...] “Ele ouviu outro barulho atrás da porta, aí o primo do campo disse: agora eu vou embora”. As ocorrências de daí, em (47) e (48), foram extraídas do texto 03, já apresentado. (47) EU FOI BOSCAR UM POCO DE |AÇUCAR DAÍ EU BATI NA PORTA TUTU-TU |DAÍ EU AREPIER RATTM EU DERUBEI |DAÍ FOI NAOTA CASA TU-TU-TU [03/06-31] (eu fui buscar um pouco de açúcar daí eu bati na porta tu-tu-tu daí eu espirrei atchim eu derrubei daí fui na outra casa tu-tu-tu) (48) EU FOI NA CASA DE TIJOLO TU- TU TU |RATIM DAÍ PORISO QUEEU FIQUE MAL [03/06-31] (eu fui na casa de tijolo tu-tu tu atchim daí por isso que eu fiquei mal) As ocorrências do juntor daí nos trechos acima mantêm a acepção de tempo posterior, indicando a sequência da história, e funcionando, dessa forma, como uma variante do uso de aí O uso de MAS A frequência das ocorrências de mas estão representadas na Tabela 6, de acordo com o esquema tático-semântico. 108 Tabela 6: Frequências de mas no domínio paratático MAS Adição Contraste Parataxe MAS (2) MAS (4) O uso prototípico do juntor mas ocorre com acepção de contraste, em que as orações conectadas apresentam ideias opostas. Vejamos uma ocorrência extraída de um texto da proposta 14. No dia dessa proposta, o pesquisador solicitou que as crianças produzissem um cartão de natal que seria enviado para as fonoaudiólogas que ministraram as palestras sobre audição e voz. O natal esta chagando e eu que ria desejar um feliz natal e um prospero ano novo a todas vocês, obrigado por ter encinado nós sobre a garganta e a avalição Renata eu queria desejar um feliz natal para o Dudu sei que você não pode trazer o Dudu agora mas um outro dia para que nós possamos brincar com ele e também possamos conhese - lo queria que você me mandace a sua , resposta por favor gostei muito de você queria te ver de novo sim, porque sinto saldades de vocês. Transcrição do texto (11) 109 Texto original O escrevente, ao produzir o texto, dá indícios de que está construindo sua concepção de “cartão” a partir de uma circulação por outras tradições que já estão mais assimiladas e concretizadas em sua prática discursiva. É possível identificar uma mescla com as TDs agradecimento e pedido, além da própria TD carta, conforme já apontado anteriormente. Em (49), identificamos a TD pedido, em que o escrevente pede uma resposta, que pode ser uma resposta ao pedido e à carta. (49) sei que você |não pode trazer o Dudu agora |mas um outro dia para que |nós possamos brincar com ele |e também possamos conhese-lo |queria que você me mandace |a sua, resposta por favor [11/14-06v] (sei que você não pode trazer o Dudu agora, mas um outro dia para que nós possamos brincar com ele e também possamos conhecê-lo, queria que você me mandasse a sua resposta por favor) 110 A ocorrência, em (50), exemplifica o uso de mas, com acepção contrastiva, depreendida em um contexto em que há uma negativa explícita, aliada ao paralelismo sintático em que são contrastados dois momentos distintos, no tempo cronológico, por meio dos sintagmas adverbiais agora e um outro dia: (50) sei que você |não pode trazer o Dudu agora |mas um outro dia para que |nós possamos brincar com ele [11/14-06v] Entretanto, encontramos em nossa pesquisa dois exemplos singulares do uso desse juntor. Esses exemplos foram extraídos de textos produzidos a partir da proposta 13, já apresentada. A ocorrência, em (51), trata-se de um trecho do texto 04: (51) tem o motorzinhos que é |labirinto que sabe pelo pumãou |mais tem os labirinto e machucar |o canínho e machuca toda a garganta [04/13-05] (tem o motorzinho que é o labirinto que sobe pelo pulmão mas tem o labirinto e machucar o caninho machuca toda a garganta) E a ocorrência, em (52), foi extraída do texto 12. Vejamos: Eu lenbro que a traqueia tem um cano do motorzi que sechama laringa lenbro tanbem da faringi e das cordas vocais quando você grita as cordas vocais comesão bater forte e pode fazer você ficar roco e podi ficar mudo mais a garganta doi doi e doi. Era uma vez uma minininha que chamavava chiguinha senpre quado ela acordava senpre dava bom dia primeiro ela foi falar com o borrico falou bom dia borrico bom dia chiguinha nosa borrico você esta com uma vos istou roco o borrico foi enbora ai apareceu a vaca bou tade vaca 111 boua tarde chiguinha Transcrição do texto (12) Texto original Esse escrevente produz dois textos para atender à proposta. O primeiro é uma TD relato e demonstra a presença do outro, neste caso, a pesquisadora, que solicitou à criança que escrevesse o que havia compreendido da palestra, uma vez que o escrevente inicia seu texto com: “eu lembro que” [...], explicitando sua atitude responsiva. Assim como ocorreu em outros textos desta proposta, há, no segundo texto desta criança, a presença da TD história infantil, iniciada por “era uma vez”. A criança também constrói a historinha com a presença de diálogos, inseridos de forma direta. Vejamos, em (52), o outro exemplo do uso singular de mas: (52) quando |você grita as cordas vocais |comesão bater forte e pode fazer 112 |você ficar roco e podi |ficar mudo mais a |garganta doi doi e doi [12/13-12f] (quando você grita as cordas vocais começam a bater forte e pode fazer você ficar rouco e pode ficar mudo mas a garganta dói dói e dói) Nas ocorrências em (51) e (52), diferentemente do que esperamos, convencionalmente, para este juntor, mas está esvaziado do sentido contrastivo, pois não há contraste de ideias nesses trechos. Seu funcionamento, na verdade, está associado ao acréscimo de informações novas nos textos, ou seja, à acepção de adição paratática. O uso de DEPOIS A Tabela 7, a seguir, mostra dados da análise tático-semântica das ocorrências de depois, expondo, na linha horizontal sua acepção de sentido: Tabela 7: Frequências de depois no domínio paratático DEPOIS Tempo Posterior Parataxe DEPOIS (4) O advérbio depois desempenha função juntiva com acepção de tempo posterior, indicando sequencialidade temporal. As ocorrências destacadas foram extraídas do texto 13 produzido a partir da proposta 11, “Receita de bolo”, aplicada em outubro de 2001. Nesse dia, o pesquisador levou um bolo para a sala de aula. Ele perguntou, inicialmente, quais os ingredientes que as crianças acreditavam que eram utilizados para fazer aquele bolo. As crianças deram algumas sugestões e, em seguida, ele leu a receita do bolo Nega Maluca. Posteriormente, solicitou que as crianças escrevessem uma receita de algo que elas gostassem. 113 Bolo de chocolate Uma colher de sopa de mantega uma chícara de açucar depois coloque duas chicaras de farinha de trigo uma ou duas chicaras de leite modo da fazer mecher todos os ingredientes que você colocou em um fora e coloque em uma açadeira untada espere assar e bom apetite arroz coloque uma cebola picada em uma panela com óleo em seguida coloque o alho e deixe fritar depois coloque o arroz escolhido poe sal mecer um pouco e poe a agua tire os grãos de arroz do canto da panela e pegue a tampa e tampe mais não pode fechar tudo tem que deixar um boraco depois do ponto tampe isso é só. Transcrição do texto (13) Texto original O escrevente elabora dois textos, que podem ser denominados como TD receita. No primeiro, há a separação prototípica desta TD, referente à apresentação dos ingredientes seguida pelo modo de fazer, entretanto, a forma de listagem que apresenta os ingredientes da receita caracteriza-se a partir de uma mescla com o modo de fazer. Essa mescla não se refere a uma mescla entre TDs distintas, mas a uma mescla na superestrutura da própria TD receita. Isto se comprova também no segundo texto deste escrevente. Segundo Longhin-Tomazi (2011), a lista de ingredientes que é apresentada na vertical, em receitas padronizadas, e, que ainda não foi assimilada pela criança, nessa produção textual, pode ser um traço característico da sua prática letrada. Fica claro que, nos textos, os escreventes enfatizam mais as ações, o processo de fazer, do que os ingredientes e as quantidades precisas, o que também pode ser interpretado como traço da oralidade. Espera-se que, em uma TD receita, sejam encontradas mesclas com as TDs injuntiva e relato de procedimento, o que é comprovado no texto por meio do uso de verbos no imperativo: (53) coloque uma cebola picada [13/11-07] 114 (54) pegue a tampa e tampe [13/11-07] Podemos perceber também a presença marcada do outro nestes textos. Em ambos, há marcas fortes de um diálogo que se estabelece entre o escrevente e a pessoa que aprende a receita, o outro, interlocutor, presente ou representado. Isso pode ser evidenciado em “Bom apetite”, no fechamento do primeiro texto, transcrito em (55), e em “e isso é só”, no do segundo, em (56). Há, portanto, na codificação do texto, na base semiótica gráfica, uma forte presença de aspectos da oralidade que são constitutivos da TD receita culinária. Eis o que Corrêa (2007) diz ser a relação entre dois modos de enunciação se constituindo mutuamente. Há, nessa TD, um exemplo de coexistência entre traços do letrado, como, por exemplo, a tentativa de separação dos ingredientes e do modo de fazer, e do oral, nas marcas de diálogo concreto. Vejamos: (55) espere assar e bom apetite [13/11-07] (56) isso é só [13/11-07] Em (57) e (58), seguem ocorrências que exemplificam o uso prototípico do advérbio juntivo depois: (57) uma chícara de açucar |depois coloque duas chicaras de farinha de trigo [13/11-07] (uma xícara de açúcar depois coloque duas xícaras de farinha de trigo) (58) coloque o |alho e deixe fritar depois coloque o |arroz escolhido [13/11-07] Em ambos os casos, o juntor expressa sequencialidade temporal icônica: a ordem das ações no mundo deve seguir a ordem apresentada no texto. LonghinTomazi (2011) entende que os textos nos dão indícios de que as crianças flutuam pelas regras discursivas no sentido de que existe um encontro entre oral e letrado. A autora acredita que, por um lado, os escreventes optam pelos verbos de ação, no modo imperativo, e marcam a temporalidade, na ordem das orações, e, por outro lado, reforçam essa temporalidade pela repetição de juntores em quase todas as fronteiras oracionais. Essa recorrência pode ser inferida como marca de certos 115 rituais da oralidade, como, por exemplo, a encenação do diálogo de passar a receita para o outro (talvez a reprodução das palavras proferidas pela mãe, no ambiente familiar). A opção da criança é, novamente, pela parataxe. O uso de OU Na Tabela 8, estão representados os dados da análise tático-semântica das ocorrências de ou, com suas respectivas frequências: Tabela 8: Frequências de ou no domínio paratático OU Alternância Parataxe OU (4) Esse juntor estabelece, nos textos analisados, prototipicamente, a acepção de alternância, em que os pensamentos nas orações se alternam e indicam fatos que se realizam separadamente. O juntor ou pode ser equivalente ao juntor e quando ocorre alternância inclusiva: “Nossa empresa contrata homens e mulheres”, “nossa empresa contrata homens ou mulheres”, mas pode haver também uma relação em que as ideias se excluem, ou seja, quando ocorre uma ação que impede a outra de acontecer: “Vou ao cinema ou à pizzaria, pois estou com pouco dinheiro”. Algumas ocorrências desse juntor podem ser observadas no texto 14 abaixo. eu acho que o ouvido ouve eosselebro guarda rassio cina guando a pesoua ta com dor de ouvido a gente leva nospitau ou a gente damedicament ouunon Transcrição do texto (14) Texto original 116 Este texto foi produzido a partir da proposta 1, “Conhecimentos prévios sobre audição”, já apresentada anteriormente. O pesquisador solicitou às crianças que respondessem às seguintes questões: (a) Como as pessoas escutam os sons? (b) Como podemos ajudar uma pessoa e/ou criança que está com dor de ouvido? Nas primeiras duas linhas, o escrevente responde à pergunta (a) por meio da TD argumentativa. Elementos como “eu acho que”, denominados por Kabatek (2005) de “sintomáticos”, colaboram para essa interpretação. Na segunda parte do texto, o escrevente responde à pergunta (b) por meio de uma TD narração. A relação codificada pelo juntor ou está presente nas últimas linhas do texto: guando a pesoua ta com dor de |ouvido a gente leva nospitau |ou a gente (59) damedicament ouunon [14/01-20] (quando a pessoa está com dor de ouvido a gente leva ao hospital ou a gente da medicamento ou não) A acepção de alternância de ideias, propriamente dita, pode ser constatada nas duas afirmações, “a gente leva no hospital ou a gente dá medicamento”, e a de exclusão na última ocorrência da partícula “ou não”. O uso de SENÃO A Tabela 9 a seguir traz os dados da análise tático-semântica das ocorrências de senão, com suas respectivas frequências: Tabela 9: Frequências de senão no domínio paratático SENÃO Contraste Parataxe Senão (2) O mecanismo de junção senão permite inferência prototipicamente de acepção condicional, pois pode ser parafraseado por “de outro modo”, “do contrário”. Entretanto, há outra forma de grafia desse mesmo mecanismo, senão, que, nesse caso, pode ser parafraseado por “se porventura não”. Existem, nas gramáticas de língua portuguesa, inúmeras ocorrências para senão, em que, dependendo da classificação do se a oração permite a inferência de variadas acepções. 117 Dentre as classificações do se estão: se como conjunção integrante; se como pronome apassivador ou pronome reflexivo; se como índice de indeterminação, dentre outros. É preciso lembrar, no entanto, que a criança não domina a ortografia e por isso não podemos nos basear puramente nessas explicações gramaticais. Um exemplo do uso desse mecanismo de junção foi extraído do texto 15, elaborado a partir da proposta 14, “Cartão de natal”. Vejamos: Este cartão é para a renata. que éla é muto legal e carino sa e soto fando esta carta, porque a Cristiane veio sinão eu não ia fazer é com muto ca rinho e muto amo e para a renata e um abraso para tou das as meninas e um felis natal para todas meninas e bom ano novo que todas família sejara um felis natal e que seja bom. Transcrição do texto (15) Texto original O texto apresenta uma mescla entre as TDs cartão e carta. Podemos observar, ainda, a TD felicitação, em (60), que é uma TD vinculada ao cartão de Natal, demonstrando que o escrevente já possui certo domínio da TD solicitada na proposta, e, a TD argumentativa, como pode ser observado na ocorrência em (61): um felis natal para |todas meninas e bom ano novo |que todas família sejara (60) um felis |natal e que seja bom.[15/14-05v] (um feliz natal para todas as meninas e bom ano novo que todas as famílias 118 sejam [tenham] um feliz natal e que seja bom) Este cartão é para a renata. |que éla é muto legal e carino |sa e soto fando (61) esta carta, |porque a Cristiane veio [15/14-05v] (este cartão é para a Renata [por] que ela é muito legal e carinhosa e só estou fazendo esta carta porque a Cristiane veio) O juntor senão está presente na ocorrência em (62) abaixo: soto fando esta carta, |porque a Cristiane veio sinão |eu não ia fazer (62) [15/14-05v] (só estou fazendo esta carta porque a Cristiane veio senão eu não ia fazer) Apesar de uma primeira leitura atribuir um sentido de condição para o juntor, prevalece a leitura mais abstrata de contraste, pois é atribuída a paráfrase por “caso contrário”, “de outro modo”, “do contrário”, indicando a classificação como juntor contrastivo e seguindo o que afirma Kortmann (1997 apud LOPES-DAMASIO, 2011, p. 99 - 100) “ao fim do desenvolvimento ontogenético estão os juntores contrastivos, e especialmente os concessivos”, no eixo horizontal de complexidade crescente das relações semânticas. O uso de ENTÃO A seguir, temos a Tabela 10 em que estão expostas as frequências do juntor então: Tabela 10: Frequências de então no domínio paratático ENTÃO Parataxe Tempo Posterior ENTÃO (1) Causa Contraste ENTÃO (1) ENTÃO (1) Um conjunto considerável de pesquisadores, como Tavares (1999; 2003), Martelotta e Silva (1996), Pezatti (2001), Risso (1996), Chiarelli (2010), já mostraram que então é um item multifuncional, que pode desempenhar desde uma função mais básica e concreta, como a de advérbio temporal, até funções mais abstratas como marcador discursivo e juntor coordenativo conclusivo, com funcionamento próximo 119 ao de uma conjunção prototípica, somado a traços adverbiais, tais como: (i) função anafórica, (ii) posição móvel na sentença e (iii) a possibilidade de coocorrer com outra conjunção (CHIARELLI, 2010, p. 133). Nos dados de aquisição de escrita aqui analisados, conforme mostra a Tabela 13, embora não seja constatada grande recorrência no uso desse item, confirma-se seu traço multifuncional no que tange, principalmente, ao seu caráter semântico. Foram depreendidos usos em que o item atua como sequenciador temporal, causal e contrastivo, como passamos a ilustrar. O texto 16 foi produzido a partir da proposta 9 “Lista de compras”: ESSA PEÇOUA QUE VAI FAZER COMPRA PARA MIN É A CAMILA INTÃO CAMILA VOCÊ TEM CEM REAIS INTÃO VOCÊ GASTA SÓ TRINTA UM REAIS VOCÊ VAI COMPRA NO LARANJÃO. CEBOLA 1 CENORA 3 ABACAXI 1 MAÇÃO 2 BANANA 3 PERA 2 BOLACHA 1 BABALU 2 COCÔ 1 CARNE 1 QUILO MORANGO, 1 CACHA CUSTELA DE PORCO 1 QUILO BISTECA 1 QUILO CAFÉ 1 PACOTE ÓLEO 1 LITRO BOMBOM 1 CACHA TOMATI 2 QUILO TODI 2 FEIJÃO 1 UVA 1 SUCO 1 LARANJA 1 GUARANA 1 Transcrição do texto (16) Texto original Em (63), podemos observar a presença, fortemente marcada, do outro, no texto. O texto se inicia como uma espécie de “resposta” a uma exigência feita na proposta, apontando, na escolha do léxico, uma forte relação com ela, o que fica exemplificado pelo uso da construção “essa pessoa”, cujo núcleo aparece repetidas vezes na proposta, configurando uma relação dialógica marcada na materialidade do texto. O escrevente está dialogando com a proposta de elaboração textual, em que foi solicitado a ele que escolhesse alguém para fazer as compras: “Nesse dia, o 120 pesquisador solicitou que as crianças escrevessem um texto no qual dessem orientações a uma terceira pessoa para fazer compras”. ESSA PEÇOUA QUE VAI FAZER COMPRA PARA MIN |É A CAMILA (63) [16/09-13] (essa pessoa que vai fazer compra para mim é a Camila) Como é possível observar nas ocorrências em (64) e (65), há no texto a presença das TDs injuntiva e diálogo, respectivamente, e da TD listagem, que, neste caso, está construída tipicamente, na vertical. VOCÊ GASTA SÓ TRINTA UM REAIS |VOCÊ VAI COMPRA NO (64) LARANJÃO[16/09-13] (você [Camila] gaste só trinta e um reais, você vai comprar no Laranjão) CAMILA VOCÊ TEM CEM |REAIS INTÃO VOCÊ GASTA SÓ TRINTA UM (65) REAIS [16/09-13] (Camila você tem cem reais então você gasta só trinta e um reais) Destacamos, em (66), uma ocorrência de então. Vejamos: CAMILA VOCÊ TEM CEM |REAIS INTÃO VOCÊ GASTA SÓ TRINTA UM (66) REAIS [16/09-13] (Camila você tem cem reais então você gasta só trinta e um reais) Temos, em (66), um uso de então que permite leitura de contraste paratático, fundamentada, no contexto, pelo uso de “só”. Embora a Camila tenha cem reais, ela pode usar só trinta reais. A inserção dessa informação nova, introduzida no complexo por então, contrasta com a informação anterior. O uso de então explicitado em (67) pode mostrar um traço interessante de seu funcionamento mais discursivo: ESSA PEÇOUA QUE VAI FAZER COMPRA PARA MIN |É A CAMILA (67) INTÃO CAMILA VOCÊ TEM CEM |REAIS [16/09-13] (essa pessoa que vai fazer compra para mim é a Camila então Camila você tem cem reais) 121 Esse uso de então possui acepção de tempo posterior. Nesse contexto, o juntor desempenha um papel mais discursivo, marcando a mescla de TDs: a que inicia o texto, e que é uma exigência da proposta, e a TD diálogo, por meio da qual o texto se desenvolve, no domínio oral dominado pelo escrevente, e aqui codificado na base semiótica escrita. Ao marcar a mescla de TDs, o item atua, também e consequentemente, na sinalização de uma mudança de subtópico, intrinsecamente associada à ordem icônica de realização dessa sequência factual no mundo: primeiramente, o tópico está voltado para uma resposta à exigência apresentada na proposta, ou seja, à apresentação da pessoa responsável pela compra, e, cumprida essa exigência, insere-se um subtópico, especialmente voltado às instruções dadas a essa pessoa, numa estrutura primária de diálogo. Esse uso está muito próximo dos usos de então como marcador discursivo, que faz esse tipo de ligação entre as porções textuais com uma atuação fortemente discursiva, traço que acaba por indiciar, mais uma vez, um aspecto da heterogeneidade constitutiva da escrita, de um modo conceptivo oral, que se materializa por meio do gráfico. A última ocorrência desse juntor pode ser observada num trecho extraído do texto 17, elaborado a partir da proposta 08, aplicada em agosto de 2001. Nesse dia, o pesquisador, inicialmente, perguntou se as crianças conseguiriam guardar um segredo. Em seguida, distribuiu um panfleto educativo sobre a Dengue e, nesse momento, recomendou que nenhuma criança comentasse com as demais sobre o que havia recebido. Pediu, então, para que, individualmente, cada um lesse e olhasse o panfleto com atenção. Logo depois, o pesquisador recolheu o panfleto e solicitou às crianças que escrevessem sobre o assunto lido. NÃO DEIXE AS BOCA DAS GARRAFAS PROALTO AS TANPAS NO LIXO PÕE NOS CACOS DE VRIDOS NO LIXO SI JOGA CACO DE VRID NO CHANÃO AS CRIANÇA BODE CORTAR E MACHUCAR INTÃO PUFAVOR NÃO JOGA CACO DE VRIDO NO CHÃO TEM MUITO CRINAÇA QUE JA MACHUCO Transcrição do texto (17) 122 Texto original O texto apresenta a TD injuntiva, que, por sua vez, pode ser interpretada como um apelo, um pedido: PUFAVOR NÃO JOGA CACO DE VRIDO NO |CHÃO TEM MUITO (68) CRINAÇA QUE JA MACHUCO [17/08-23] (por favor não jogue caco de vidro no chão tem muitas crianças que já machucaram) Na ocorrência (69) abaixo encontramos o último exemplo de nosso corpus do uso de então paratático: SI JOGA CACO DE VRID NO CHANÃO AS |CRIANÇA BODE CORTAR E MACHUCAR INTÃO |PUFAVOR NÃO JOGA CACO DE VRIDO NO |CHÃO (69) [17/08-23] (se jogar caco de vidro no chão as crianças podem [se] cortar e machucar então por favor não jogue caco de vidro no chão) Em (69), o escrevente marca, por meio do item, um nexo semântico de causaconsequência que indica uma relação entre os fatos que existem no mundo (e que ele apresenta dentro de uma construção hipotética ou condicional), ou seja, introduz uma espécie de conclusão do escrevente, configurando, dessa forma, um momento de sua argumentação, que pode ser corroborado pela ocorrência de “por favor”, apelativo, nesse contexto. O uso de PRIMEIRO Os dados da análise tático-semântica das ocorrências de primeiro estão expostos na Tabela 11: 123 Tabela 11: Frequências de primeiro no domínio paratático PRIMEIRO Parataxe Tempo Anterior PRIMEIRO (3) As ocorrências apresentadas na Tabela 11 estão associadas à organização das orações, dentro do texto, em uma sequência temporal paratática que, como já vimos em relação a outros itens, como, por exemplo, em casos analisados de e, reflete a ordem dos eventos no mundo. Trata-se de um traço característico de tradições de textos em que o escrevente ensina/passa uma receita, podendo estar associado também à encenação dos diálogos, realizada para contar uma história, à explicação das etapas de um jogo, à argumentação em favor de um ponto de vista (LONGHIN-THOMAZI, 2011). Os usos de primeiro, recorrentemente localizados no início do texto, como explicitaremos, também podem ser interpretados como indícios dos rituais das tradições da oralidade informal e cotidiana, exatamente aquela em que circulam muitas das tradições dominadas pela criança em fase de aquisição da escrita. Vejamos ocorrências desse uso em textos da proposta 11 “Receita de bolo”: “bolo de cenoura” primeiro botar tres ovos e depois uma cenoura picada e o leite e depois bater e botar numa açadeira e deichar por dois minuto e arrancar e depois a cobertura de chocolate. modo de preparar. botar o chocolate em uma jarra e deichar esquemtar e depois botar no bolo e esparramar e acabo. Transcrição do texto (18) 124 Texto original Há, nesse texto, a TD receita, que é a TD esperada e realizada, ainda que em moldes não convencionais, já que o escrevente apresenta uma receita que, embora num primeiro momento pareça estar dividida estruturalmente em “ingredientes” e “modo de preparar”, conforme o modelo convencional desta TD, na verdade, apresenta, na seção “modo de preparar”, uma outra receita, a da cobertura de chocolate. Mais uma vez, os ingredientes são apresentados juntamente com as instruções de “como fazer”. Isso mostra que a criança está apreendendo as características dessa tradição de “escrever” receitas, identificando, para isso, os aspectos relevantes desse texto, que, no exemplo exposto, apresenta também as TDs listagem e injuntiva, ambas esperadas para a constituição da receita. O item primeiro aparece na abertura do texto, com acepção de tempo anterior, abrindo uma sequência de ações, marcadas por uma estrutura juntiva do tipo: Primeiro [...] e depois [...] e [...] e acabou: (70) primeiro botar tres ovos e depois uma |cenoura [18/11-10] (primeiro botar [coloque] três ovos e depois uma cenoura) A segunda ocorrência também é de um texto da proposta 11: 125 RECEITA DE JELATINA BRIMEIRO ESQUETAR A AGUA E DEPOIS PO O BÓ PA JELATINA NA AGUA E DEPOIS DEIXE ESQUETAR E DE POIS TIRA A PANELA DO FOGO E PÓNHAR NI UMA VAZININHA E PÓNHA NA JENADEIRA E DEIXE NA JENADEIRA NA PRA SINQUEMTAS MINUTOS DEPOIS TIRA DA JELADEIRA IDEPOIS GOMER A JELATINA ACABO. Transcrição do texto (19) Texto original Embora não convencional, tal como no exemplo anterior, esse texto também se configura por meio de uma TD receita, que pode ser percebida pela sequência das ações descritas, pela natureza semântica dos itens lexicais e também pelo esquema de junção. O juntor primeiro, nesse caso, também inicia o texto, no mesmo tipo de esquema apresentado anteriormente: BRIMEIRO ESQUETAR A AGUA E DEPOIS |PO O BÓ PA JELATINA NA (71) AGUA [19/11-26] (primeiro esquente a água e depois coloque o pó para gelatina na água) O uso de AGORA A Tabela 12 contém os dados da análise tático-semântica das ocorrências de agora, com suas respectivas frequências: Tabela 12: Frequências de agora no domínio paratático AGORA Parataxe Tempo Simultâneo AGORA (1) Causa AGORA (1) As duas ocorrências apresentadas na Tabela 12, embora estejam associadas à parataxe, são bastante diferentes em seu funcionamento, principalmente no que tange à porção textual articulada. Elas foram retiradas do texto 20, produzido a partir da proposta 13, “Palestra sobre a voz”: 126 Eu lembro do cano que sechama tra queia. E do motorzinho que sechama laringi. Lembro. Da farigi. E lembro e das cordas vocais e do pumão que enche o motor sinho e que as cordas vocais e quando a gente grita as cordas vocais sebaten fortes e sema chua e a gente a caba ficando roco e tamben antes de fala tenque en cher alarigi de ar. A gora vou falar do teatro Eu a prendi no teatro que não pode critar se não as cordas sema chu ca e a gente fica rouco e gos tei muito do te a tro a parte que eles can tarão eu ganhei voz e você taben ganhou a gora cuidide la cuidide la a pa ra to dos ter voz e no dia seguinte to dos a cordarão com a voz sal da vel. Transcrição do texto (20) Texto original 127 O texto é, principalmente, construído a partir de uma TD relato (expositiva), entretanto, há também a TD listagem, quando o escrevente apresenta as partes do corpo que compõem o sistema da voz. O escrevente separa o texto em duas partes, o relato da palestra e o relato do teatro de fantoches, e anuncia esta separação: (72) A gora vou falar do teatro [20/13-20v] (Agora falarei do teatro) Vejamos a primeira ocorrência do agora no exemplo (73): [...] antes de fala tenque en cher |a larigi de ar. |A gora vou falar do teatro | Eu a prendi no teatro que não |pode critar se não as cordas sema chu |ca e (73) a gente fica rouco [20/13-20v] (antes de falar temos que encher a laringe de ar. Agora falarei do teatro. Eu aprendi no teatro que não pode gritar senão as cordas vocais se machucam e a gente fica rouco) Nessa ocorrência, agora está empregado com sentido de tempo simultâneo, relacionado ao momento da enunciação de acordo com o tripé benvenistiano do Aparelho Formal da Enunciação, que coloca a linguagem em funcionamento; euaqui-agora. Antes e depois da sequência iniciada por agora, temos a TD relato: antes, o relato do que o escrevente aprendeu com a palestra; depois, o relato do que o escrevente aprendeu com o teatro. No ponto do texto em que é empregado o item agora, nesse momento específico da enunciação, o escrevente muda o foco de seu texto, dentro da mesma tradição. Esse uso, bem como aquele de então, na ocorrência em (67), está, ao imprimir a acepção temporal, intrinsecamente associado ao desenvolvimento discursivo do texto, direcionando a interação e constituindo-se como traço da heterogeneidade constitutiva da escrita. Vejamos a ocorrência, em (74): eu ganhei voz e você taben |ganhou a gora cuidide la cuidide la (74) [20/13-20v] (eu ganhei voz e você também ganhou, agora cuide dela, cuide dela) A sequência, em (74), corresponde a um trecho da música que as crianças aprenderam na palestra. Aqui, o juntor está empregado com acepção de causa, permitindo a paráfrase por por isso: “eu ganhei voz e você também ganhou por isso 128 cuide dela, cuide dela”, ou seja, “já que você ganhou voz, cuide dela/porque você ganhou voz, cuide dela”. Para além da distinção semântica existente entre os usos exemplificados em (73) e (74) – que, apesar de distintos, estão relacionados, uma vez que a leitura causal é depreendida a partir de uma sequência factual – vale destacar a distinção na configuração formal das porções textuais articuladas. Outros casos Os itens apresentados nesta seção são os que apresentaram uma única ocorrência com função juntiva no corpus analisado. A Tabela 13 traz os dados da análise tático-semântica das ocorrências desses juntores: também, às vezes, em seguida, já que, e só que de acordo com os eixos, horizontal e vertical. Tabela 13: Frequências de também, às vezes, em seguida, já que e só que no domínio paratático ÀS VEZES, EM SEGUIDA, JÁ Tempo Tempo Adição Causa Contras QUE, SÓ QUE, Conting. Post. TAMBÉM ÀS EM JÁ TAMBÉM SÓ QUE Parataxe VEZES SEGUIDA QUE (1) (1) (1) (1) (1) O uso juntivo de também está presente no texto 21, fruto da proposta 3 “Carta para Renata 01”, que foi aplicada em maio de 2001. Nesse dia, antes de propor a atividade, o pesquisador perguntou às crianças se elas se lembravam da aluna do curso de Fonoaudiologia da Unesp/Marília que havia proferido a palestra sobre audição, no dia 18/04/2001. Após a confirmação por parte dos alunos, o pesquisador contou que havia conversado com a aluna e que esta havia lhe dito ter gostado muito da classe e estar com saudade dos alunos. Posteriormente, o pesquisador pediu às crianças que escrevessem uma carta para a palestrante, contando como estavam e quais eram as atividades que vinham desenvolvendo na escola. 129 EU GOSTEI OS DIA E TODOS DIA QUI É LAVEI A RENATA POR QUE FAIS AGEITE A PREIDE MAIS I MUITO MAIS COISAS EUA PREIDO OS TRABALINHO E TRABALHO NÓIS TRABALINHA NO CADERNO TANBEM CADERNO DE PORTUGES Transcrição do texto (21) Texto original O texto não apresenta a TD esperada, a carta, porque não é direcionado para o receptor esperado, não apresenta abertura e fechamento. No entanto, o escrevente focaliza as atividades da escola, assim como foi pedido na proposta, por meio de uma mescla entre as TDs relato e argumentação. Vejamos, em (75), a TD argumentativa e, em (76), o uso juntivo do advérbio também, com acepção de adição, no domínio da parataxe, juntando orações independentes: EU GOSTEI OS DIA E TODOS DIA QUI É |LAVEI A RENATA POR QUE (75) FAIS AGEITE A |PREIDE MAIS I MUITO MAIS COISAS [21/03-12] (eu gostei dos dias, de todos os dias que ela veio, a Renata, porque fez a gente aprender mais e muito mais coisas) NÓIS TRABALINHA NO CADERNO TAMBÉM | CADERNO DE PORTUGES (76) [21/03-12] (nós trabalhamos no caderno, também no caderno de português) A ocorrência de às vezes foi encontrada no texto 10 (proposta 5, “O rato do campo e o rato da cidade”) e corresponde a uma locução adverbial que desempenha a função juntiva com acepção de tempo contingente, indicando uma habitualidade no tempo: EU NÃO TEM |NHO ESSA COMIDA EUSSO TEM |NHO MILHO ASVESES (77) FASSO |ALGUMINGAL [10/05-20] (eu não tenho essa comida toda eu só tenho milho às vezes faço algum mingau) A ocorrência do uso juntivo de em seguida foi constatada no texto 13 (proposta 11, “Receita de bolo”), indicando sequencialidade temporal, em nível paratático: 130 (78) coloque uma cebola picada em uma |panela com óleo em seguida coloque o |alho e deixe fritar[13/11-07] O uso juntivo da perífrase já que foi encontrado em um texto da proposta 9, “Lista de compras”: MÁMÃE VOCÊ PODE FAZER ESTE FAVOR PRAMI JÁ QUE EU TOU NA ESCOLA VOCÊ PODEIR PRAMIN O SUPER MERCADO E NO MÔREIRA O UQUI VOCÊ TIN QUI COPRAR É 2 KILO DE ARROZ 2 QUILO 1 QUILO DE TOMATA 4 PACOTE DE BOLACHA 5PACOTE DE MORANGO 5 PACOTES DE SALGADINHO 1 KILOS DE CARNE MOÍDA 2 LITROS GUARANA 1 BARRA DE SABÃO 2 BARRA DE CHOCOLATES BRANCA Transcrição do texto (22) Texto original Há, neste texto, a TD injuntiva e a TD listagem, não convencional (na horizontal). A ocorrência, em (79), apresenta o mecanismo de junção já que: MÁMÃE VOCÊ PODE FAZER ESTE FAVOR |PRAMI JA QUE EU TOU NA (79) ESCOLA [22/09-23] (mamãe você pode fazer este favor para mim já que eu estou na escola) Analisando a ocorrência em (79), conforme os preceitos de Paiva (1993), no plano discursivo, no contexto do pedido, o escrevente sente a necessidade de justificá-lo, acrescentando um adendo em forma de construção paratática, ou seja, “mamãe você pode fazer este favor pra mim [pedido], já que eu estou na escola [adendo/explicação do motivo do pedido]”. O conteúdo informacional das orações x “mamãe você pode fazer este favor pra mim”, e y, “já que eu estou na escola”, é apresentado pela primeira vez no texto, tratando-se de duas informações novas no plano informacional. São constadas, no trecho, duas unidades entoacionais, cada uma equivalendo a uma das orações, x e y, permitindo a codificação de uma pausa, na leitura. Esses aspectos ajudam a caracterizar a causa paratática. 131 A ocorrência de só que foi extraída do texto 23 (proposta 13, “palestra sobre a voz”): Eu lembro que tem cano que chama larinzei e traqueias e dentro tem as cordas vocais, e um caminho que vai pro nariz e para a boca que chama faringi vocês sabem que a gente tem um um motor na garganta que ela o ar só que para soltar o ar temos que encher o pumão de ar e depois do pumão vai para o motor e depois para a boca. Em um teatro de fantoches aprendi que não pede gritar porque machuca as cordas vocais e não pede pede falar enquanto corro, não pode tomar muta água gelada. No teatro do fantoche tem uma menina que chama Chiquinha e ela tinha dois amigos o burro e uma vaca O burro estava com a voz ruim a vaca gostava de cantar opera e opera fais mau para as cordas vocais o professor de chiquinha falou isso e os irmã de chiquinha falaram ao mesmo tempo e chiquinha falou que vai ajudar seus amigos e suas irmãs, vocês sabem que a voz do papai e a voz da vovó tem diferença a diferença é que a voz da vovó é mais fina do que a voz do papai, nodia seguinte eles estavam felizes e com as voz bonita e saldavel. Quando você quer falar com um amigo e ele esta longe tem que fazer gestos ou açobios porque se não fais mau para as nossa voz. Transcrição do texto (23) 132 Texto original O texto é constituído, principalmente, pelas TDs narrativa e relato, como está exemplificado em (80) e (81) respectivamente. Mas há ainda as TDs injuntiva e resposta, exemplificadas em (82) e (84). E há uma importante marca da presença do outro com características de diálogo face a face, quando o escrevente propõe um questionamento e logo em seguida dá a resposta, como pode ser observado em (83) e (84): No teatro do fantoche tem uma |menina que chama Chiquinha e ela tinha (80) dois |amigos o burro e uma vaca [23/13-07f] (no teatro de fantoches tem uma menina que se chama Chiquinha e ela tinha dois amigos, o burro e uma vaca) Eu lembro que tem cano que chama larinzei |e traqueias e dentro tem as cordas vocais, e um |caminho que vai pro nariz e para a boca que chama (81) |faringi [23/13-07f] (eu lembro que tem um cano que chama laringe, e traqueias e dentro tem as cordas vocais, e um caminho que vai para o nariz e para a boca que chama faringe) 133 Quando |você quer falar com um amigo e ele esta longe |tem que fazer (82) gestos ou açobios porque |se não fais mau para as nossa voz. [23/13-07f] (quando você quer falar com um amigo e ele está longe tem que fazer gestos ou assovios porque senão faz mal para a nossa voz) (83) vocês sabem que a voz | do papai e a voz da vovó tem diferença [23/13-07f] (vocês sabiam que a voz do papai e a voz da vovó tem diferença [?]) a |diferença é que a voz da vovó é mais fina |do que a voz do papai (84) [23/13-07f] (a diferença é que a voz da vovó é mais fina do que a voz do papai) Os segmentos unidos por só que sustentam uma relação coesiva, com acepção de contraste paratático, equivalente ao uso de mas. Longhin-Thomazi (2003) mostra que as construções com só que se enquadram na coordenação de Bally. A coordenação, nos moldes de Bally, deve satisfazer duas condições prévias: dados os segmentos A e B, eles serão coordenados se (i) A constituir um ato de enunciação completo, capaz de funcionar de forma independente; e (ii) B constituir o propósito de A. Na ocorrência em (85), só que articula segmentos autônomos. Num enunciado “A, só que B”, A constitui um ato de enunciação capaz de funcionar sozinho, independentemente da presença de B. vocês sabem que a gente tem um um motor na |garganta que ela [leva] o ar (85) sóque para soltar o ar |temos que encher o pumão de ar [23/13-07f] (vocês sabiam que a gente tem um motor na garganta que ela [leva] o ar, só que para soltar o ar temos que encher o pulmão de ar) 2.2. Domínio hipotático Entendemos por hipotaxe a relação de interdependência caracterizada pela existência de uma ligação entre elementos pertencentes a estatutos diferentes, ou seja, quando o elemento dominante é livre, mas o dependente não o é. Apresentaremos, agora, os usos dos mecanismos de junção aqui analisados como pertencentes ao domínio hipotático. O uso de QUANDO A Tabela 14 traz dados da análise tático-semântica das ocorrências de quando, bem como os casos de sempre quando, expondo, na linha horizontal, as acepções de sentido, e, na horizontal, a frequência desse mecanismo tático. 134 Tabela 14: Frequências de quando e sempre quando no domínio hipotático QUANDO, SEMPRE QUANDO, Hipotaxe Tempo Contingente QUANDO (2) SEMPRE QUANDO (1) Tempo Posterior Condição QUANDO (1) QUANDO (19) Os casos tratados, nessa seção, são exemplos de construções hipotáticas temporais com quando. A maior frequência, revelada na Tabela 14, é das ocorrências que deixam de implicar factualidade e passam a codificar eventualidade, permitindo uma leitura condicional, relacionada à habitualidade, e que permite paráfrases por sempre que. Corroborando o trabalho de Longhin-Thomazi (2011), a análise revela, unicamente, condicionais de conteúdo, ou seja, estabelecidas no domínio sociofísico, entre o conteúdo semanticamente relacionado, nas orações, de forma mais concreta, se comparada às condicionais epistêmicas, que envolvem maior complexidade cognitiva e abstraticidade. É frequente a ocorrência desse mecanismo de junção nos textos 12 e 05, já apresentados, produzidos a partir da proposta 13. Nas ocorrências, em (86), (87) e (88), destaca-se o emprego de quando em um contexto que permite leitura condicional. Há, nesses casos, a recorrência de verbos no tempo presente. Vale destacar que a leitura mais concreta desse mecanismo de junção é a leitura temporal. Entretanto, nesse tipo de ocorrência, a habitualidade passa a suplantar a factualidade e permitir a inferência da condicionalidade, diretamente ligada ao conteúdo expresso nas orações articuladas. (86) quando |você grita as cordas vocais |comesão bater forte e pode fazer |você ficar roco [12/13-12f] (quando [se] você gritar as cordas vocais começam a ater forte e pode fazer você ficar rouco (87) quando gritamos as nossas cordas |vocais começa bater uma na outra bem forte que |pode até machucar [05/13-10] (quando [se] gritarmos as nossas cordas vocais começam a bater uma na outra bem forte que pode até machucar) (88) quando respiramos o ar passa |pela faringi vai para o pumão para falar [05/13-10] 135 (quando [se] respiramos o ar passa pela faringe vai para o pulmão para falar) Nessas ocorrências, é permitida, então, paráfrase por se. Apesar de essa ser a leitura mais abstrata dos contextos em que atua esse mecanismo de junção, tratase da forma mais recorrente, nos dados, se comparada aos usos temporais, mais concretos, em que a leitura factual é evidenciada. Para exemplificar o uso mais concreto de quando com acepção de tempo posterior segue a ocorrência (89): (89) um dia uma menina chamada Chiquinha |foi visitar seus bichos quando deu oi para |o burro deu um bondia fino [05/13-10] (um dia uma menina chamada Chiquinha foi visitar seus bichos quando deu para o burro [ele] deu um bom dia fino) O juntor quando, presente no trecho acima, indica a sequencialidade factual da história, e, assim, apresenta acepção de tempo posterior hipotático. Embora haja baixa frequência para que seja feito qualquer tipo de afirmação mais categórica, é interessante observar que, nessa ocorrência, em que a leitura de quando está associada à factualidade, o tempo verbal é o pretérito. O texto que expomos, a seguir, surgiu a partir da proposta 1, aplicada em abril de 2001. Nesse dia, o pesquisador solicitou às crianças que respondessem às seguintes questões: (a) Como as pessoas escutam os sons? (b) Como podemos ajudar uma pessoa e/ou criança que está com dor de ouvido? Essas questões foram repetidas várias vezes, a pedido das crianças, embora nem sempre elaboradas do mesmo modo. Essa foi a primeira proposta feita às crianças. É interessante notar que os escreventes encontravam-se no início do processo de aquisição da escrita. CANDO AVOS DAPESSOA ENTRA PELOS OUVIDOS DE OUTRA PESSOA CANDO UMA PESSOA ESSTAR COM DOR DE OUVIDO O MELHO QUE VOCÈ TEN AFAIZER È LEVAR AO MEDICO PARA FAZ UM EXAME Transcrição do texto (24) 136 Texto original A TD esperada a partir dessa proposta é a TD resposta, construída pelo escrevente a partir da predominância de uma TD narrativa. A TD injuntiva também está presente com características de um diálogo face a face, tal como pode ser observado em (90): (90) O MELHO QUE VOCÈ | TEM AFAIZER È LEVAR AO MEDICO PARA FAZ UM EXAME [24/01-06] (o melhor que você tem a fazer é levar ao médico para fazer um exame) O texto esta dividido em duas partes: a primeira e a segunda resposta do escrevente para as duas perguntas feitas na proposta. Na resposta à primeira pergunta, quando indica tempo contingente, em construção com verbo no presente: (91) CANDO AVOS DAPESSOA ENTRA PELOS OUVIDOS DE OUTRA PESSOA [24/01-06] (quando a voz da pessoa entra pelos ouvidos de outra pessoa) Essa leitura permite a paráfrase por “toda vez que/sempre que a voz da pessoa entra pelos ouvidos [...]” Na resposta à segunda pergunta, em (92), quando indica condição hipotática: (92) CANDO UMA PESSOA ESSTAR COM DOR DE OUVIDO O MELHO QUE VOCÈ |TEN AFAIZER È LEVAR AO MEDICO PARA FAZ UM EXAME [24/01-06] (quando [se] uma pessoa esta com dor de ouvido o melhor que você tem a 137 fazer é levá-la ao médico para fazer um exame) Essa acepção justifica-se pelo fato de que, além do juntor quando, o tempo futuro e o presente relacionam-se com a condição implícita: “se uma pessoa estiver com dor de ouvido, o melhor que você tem a fazer é levá-la ao médico”. Há também as ocorrências em que quando é usado contíguo ao advérbio sempre, que reforça o traço de habitualidade de sua acepção. A ocorrência (93) mostra esse tipo de uso: (93) Era uma vez uma |minininha que chamavava |chiguinha senpre quando ela |acordava senpre dava |bom |dia [12/13-12f] (era uma vez uma menininha que se chamava Chiquinha, sempre quando ela acordava sempre dava bom dia) O advérbio de tempo sempre, unido ao juntor quando, também com acepção temporal, reforça a inferência de toda vez que, atribuindo à construção sempre quando a acepção de tempo contingente hipotático. Esse é um dado que chamamos de singular. Em todo o corpus, foi o único caso encontrado. Os usos de PORQUE, POR A tabela 15 apresenta as frequências de porque e por constatadas a partir da análise tático-semântica. Tabela 15: Frequências de porque e por no domínio hipotático PORQUE, POR Hipotaxe Causa PORQUE (6) POR (3) Em uma análise geral da tabela 4, apresentada na seção 2.1, domínio paratático, e da tabela 15, acima, é importante ressaltar alguns aspectos importantes: (i) os usos de porque distribuem-se pela arquitetura paratática e hipotática. Esse multifuncionalidade tática tornou necessário um cuidado especial, no momento da descrição de suas ocorrências, a fim de 138 depreender, sempre que possível, aspectos de cada uma dessas formas de manifestação da (in)dependência tática, e exigiu, evidentemente, um apelo a outros níveis de análise, tais como o discursivo, o informacional e, até mesmo, o prosódico, além de, é claro, o semântico; e (ii) embora os usos de porque distribuam-se por casos de parataxe e de hipotaxe, a sua maior frequência em parataxe continua reafirmando observações já destacadas anteriormente: o escrevente opta por estruturas táticas simples, na codificação de acepções mais abstratas, e esta característica mostra-se como um aspecto da tradição textual analisada (dados de aquisição de escrita). O juntor por é classificado na GT como sendo uma preposição. Sabemos que esse juntor, dependendo da palavra a que se liga, pode assumir diferentes acepções em seus usos, a saber: meio: Segurou o cachorro pelo rabo (per [forma primitiva] +lo); tempo: dormiu por horas; causa: chorou por ciúme. Todas as ocorrências desse juntor, em nossa pesquisa, foram identificadas, entretanto, relacionadas à noção de causa no domínio hipotático. A ocorrência, em (94), retirada do texto 11, proposta 14, traz um exemplo de por introduzindo uma oração reduzida de infinitivo, em que é acrescida uma causa/explicação para o agradecimento explicitado em “obrigado”: (94) obrigado por terencinado |nós sobre a garganta e a avalição [11/14-06v] (obrigado por ter nos ensinado sobre a garganta, e a avaliação) O trecho seguinte retirado do texto 11, proposta 14 traz uma ocorrência de porque que pode ser analisada nos níveis discursivo, informacional e entoacional, segundo Paiva (1993): (95) queria |te ver de novo sim, porque |sinto saldades de vocês[11/14-06v] (queria ter ver de novo sim, porque sinto saudades de você) A ocorrência em (95) corresponde a um caso de causa hipotática porque se trata, no plano discursivo de análise, de uma relação de efeito-causa. Ou seja, 139 “queria te ver de novo sim [efeito], porque sinto saudades [causa]”. No plano informacional de análise, trata-se de uma informação velha e uma nova. O conteúdo informacional da oração x “queria te ver de novo sim” faz parte de uma outra oração já articulada anteriormente, segundo a análise da justaposição presente em “gostei muito de você ∅ [por isso] queria | te ver de novo sim”, caracterizando, dessa forma , essa oração, como uma oração com informação velha, e y, “porque sinto saudades”, como uma oração com informação nova, introduzida pela primeira vez no texto. E, por fim, pode ser constatada, no plano prosódico, uma única unidade entoacional, no trecho, pois, nesse caso, não pode ser codificada uma pausa na leitura. E, no texto 08, já apresentado, ocorre, novamente, o uso de por, na mesma construção já analisada em (95), na qual o juntor introduz uma oração reduzida de infinitivo, em que é acrescida uma causa/explicação para o agradecimento explicitado em “obrigado”: (96) Obrigado |por mandar uma carta para nós [08/14-18v] O uso de PARA Na Tabela 16, estão expostas as frequências de para que e para, obtidas a partir da análise tático-semântica. Tabela 16: Frequências de para que e para no domínio hipotático PARA QUE, PARA Finalidade Hipotaxe PARA QUE (1) PARA (15) Antes de começar a análise das ocorrências, é importante destacar que os casos quantificados são correspondentes a usos juntivos de para, que, sozinhos, na grande maioria das ocorrências, ou em perífrase com que, articulam orações, em sua grande maioria, reduzidas de infinitivo. Trata-se de um dos tipos de uso hipotático mais recorrentes nos textos analisados e característicos da fase de aquisição do modo escrito de enunciação. 140 A única ocorrência de para que foi extraída do texto 11 (proposta 14) já apresentado. Vejamos: (97) sei que você /não pode trazer o Dudu agora /mas um outro dia para que /nós possamos brincar com ele e também possamos conhese-lo [11/14-06v] (sei que você não pode trazer o Dudu agora, mas um outro dia para que nós possamos brincar com ele e tambem possamos conhecê-lo) O uso da perífrase para que, em (97), com acepção de finalidade hipotática, corresponde ao seu uso prototípico. É interessante destacar que o verbo encontrase flexionado no modo, tempo e pessoa adequados, em relação ao mecanismo de junção empregado. Este aspecto pode indiciar outros, que talvez também seja importante ressaltar: (i) indicia a variedade linguística dominada por esse escrevente; (ii) indica o seu grau de letramento; (iii) apresenta-se como resultado de um processo mais avançado de alfabetização, o que está correlacionado, evidentemente, com a época escolar em que esta proposta foi aplicada (no final do ano); e, também, (iv) traz indícios que mostram que, apesar dos aspectos ressaltados de (i) a (iii), também, nesse texto, podem ser depreendidos outros, associados à heterogeneidade constitutiva da escrita. Para exemplificar esta afirmação, destaca-se, no trecho transcrito em (97), o segmento “sei que você |não pode trazer o Dudu agora |mas um outro dia”, em que há a elipse de um trecho que precisa ser recuperado associativamente a partir do contexto, como um traço muito marcante da oralidade, que coocorre numa tentativa mais elaborada de escrita. O texto seguinte faz parte da proposta 7, “Precisando de óculos?”, aplicada em agosto de 2001. Nesse dia, o pesquisador perguntou, inicialmente, se as crianças gostavam de bichos e se tinham algum. Em seguida, disse-lhes que havia encontrado uma revista que continha uma reportagem descrevendo um animal que, com certeza, eles não teriam em casa: a anta. O texto foi lido duas vezes pela pesquisadora, que, posteriormente, solicitou-lhes que escrevessem aquilo que haviam entendido do texto. 141 PRECISADO DE ÓCULOS ANTA É UM ANIMAL EM TINSÃA E LA.EBOUA EM FARO E AL DISÃO OS CASSADORES UZÃO SAL ELES COLOCÃO SAL PINDURA SAL NA ARVORE A FEMIA E MAIOR DO QUE O MACHO E PODE VIVER TRINTA ANOS E AFEMIA DACRIA TREZES MESEZ PARA DAR CRIAIA E OS DA UM FILHOTE DE CADAVES E TEM QUE FICAR NATERRA ENA AGUÁ E ELA NADA MUITO BEM E TAN BEM ECASSADA PELOS CASSADORES E ELES COLOCÃO SAL PINDURA NAS ÁRVORRS PARA FACILA TARA A CASSA E QUANDO CHOVE O SAL ES CORRE E A TRAI ANTA E FICAMAS FACIO PARACASSA REPRESAZ CORGOS E RIOS E UM ANIMAL QUESTAMORREDO. FIM Transcrição do texto (25) Texto original Predomina, nesse texto, a TD descritiva, mas também aparecem trechos característicos de narração: 142 (98) E ELES COLOCÃO SAL PINDURA NAS ÁRVORRS |PARA FACILA TARA A CASSA E QUANDO CHOVE |O SAL ES CORRE E A TRAI ANTA E FICAMAS FACIO /PARACASSAR [25/07-20] (e eles [os caçadores] colocam sal pendura nas árvores para facilitar a caça, e quando chove o sal escorre e atrai a anta e fica mais fácil para caçar) Nas ocorrências de para, neste texto, podemos constatar a acepção de finalidade no contexto de reduzida de infinitivo, característico da estrutura hipotática: (99) AFEMIA DA CRIA TREZES |MESEZ PARA DAR CRIAIA [25/07-20] (a fêmea da cria, treze meses para dar cria) ELES COLOCÃO SAL PINDURA NAS ÁRVORRS |PARA FACILA TARA A (100) CASSA [25/07-20] (eles colocam sal, penduram nas árvores para facilitar a caça) (101) FICAMAS FACIO |PARA CASSAR [25/07-20] (fica mais fácil para caçar) O uso de SE A Tabela 17 traz, em números, dados da análise tático-semântica das ocorrências de se. Tabela 17: Frequências de se no domínio hipotático SE Condição Hipotaxe SE (8) A palavra se, enquanto juntor, exerce tipicamente o papel de codificar a relação condicional, permitindo paráfrases por caso. Corroborando Longhin-Thomazi (2011), a escolha, por parte dos escreventes, dentre os conectivos condicionais, é bastante limitada, sendo a hipotaxe com se (juntor prototípico), o recurso mais empregado. Ainda segundo essa autora, as construções com se podem indicar a flutuação das crianças pelas regras idiomáticas, principalmente nas correlações que envolvem a morfologia verbal necessária para indicar os variados graus de hipótese. Como expresso na tabela, as condicionais foram observadas em número reduzido no corpus analisado e codificadas com o uso de apenas um juntor, o 143 menos complexo, se, em casos considerados prototipicamente hipotáticos. Vale destacar aqui que essa mesma acepção apareceu de forma mais recorrente a partir da mobilização de estruturas hipotáticas temporais iniciadas por quando, que, com base em uma leitura de tempo contingente/habitual, também permitiam a mobilização dessa mesma acepção, em uma estrutura “dominada” pelos escreventes. As ocorrências que exemplificarão os usos do juntor se foram extraídas de textos elaborados a partir da proposta 8, já apresentada. A DEGUE É PIRIGOSA ÉLA TEM UM BICO ENORME QUE DA PRAELA PICA DE LONJE É SÓ UMA PICADA AGENTE JÁ MORRE E ELA AVOUA LA NO AR É A DENGUE É UM MOSQUITO MUITO GRÃODE E CHEIU DI PERNAS E TAME ÉLA ANDA NO CHEM E SIDEIXAR AGUA PARADA VOCÊ PODE PEGAR DUENÇA E MORRE PORISSO NÃO DEIXE MOLEQUE MEXER EM AGUA PARADA DE LATANUS PORFAVOR NÃO DEIXE PORQUE CENÃO MORRE. Transcrição do texto (26) Texto original 144 Trata-se de um texto em que o escrevente mescla duas TDs, a TD descritiva, em que apresenta características do mosquito da dengue, e a TD injuntiva, em que, por conta da gravidade e do perigo representados pela doença, faz recomendações ao leitor, dirigindo-se diretamente a ele com o uso de “você”. Vejamos a ocorrência de trechos de descrição, em (102), e de injunção, em (103): A DEGUE É PIRIGOSA ÉLA TEM UM BICO ENORME QUE DA PRAELA |PICA DE LONJE É SÓ UMA PICADA AGENTE JÁ MORRE E ELA |AVOUA LA NO AR É A DENGUE É UM MOSQUITO MUITO GRÃODE |E (102) CHEIU DI PERNAS [26/08-13] (a dengue é perigosa, ela tem um bico enorme que da para ela picar de longe, é só uma picada a gente já morre, e ela voa lá no ar e a dengue é um mosquito muito grande e cheio de pernas) NÃO DEIXE MOLEQUE MEXER EM AGUA PARADA DE LATANUS (103) |PORFAVOR NÃO DEIXE PORQUE CENÃO MORRE. [26/08-13] (não deixe moleque mexer em água parada de latas, por favor, não deixe porque senão morre) Neste texto, o juntor se aparece no seguinte trecho: SI DEIXAR |AGUA PARADA VOCÊ PODE PEGAR DUENÇA (104) [26/08-13] (se deixar água parada você pode pegar doença) Essa construção com se, bem como outras que serão expostas nesta seção, mostram que, na codificação da condicionalidade, é usada a forma verbal no infinitivo, indicando uma estratégia morfossintática de marcação da hipotaxe que é dominada pelo escrevente. O segundo exemplo é extraído do texto 17, já apresentado. É importante observar que nesse texto há uma mescla entre o tema sugerido pela professora, mediante a proposta de texto, e o tema desenvolvido pelo aluno associativamente a partir de um determinado ponto do texto: PUFAVOR NÃO JOGA CACO DE VRIDO NO |CHÃO TEM MUITO (105) CRINAÇA QUE JA MACHUCO [17/08-23] (por favor não jogue caco de vidro no chão, tem muitas crianças que já machucaram) 145 Podemos perceber a existência dessa mescla temática no momento em que o escrevente fala sobre “os cacos de vidro que devem ser colocados no lixo” – até então para evitar o acúmulo de água e, assim, a proliferação do mosquito da dengue. Com essa observação queremos chamar atenção para o fato de que o “gancho” que permite essa passagem, ou seja, a relação semântico-lexical que permite a mescla temática é exatamente o item lexical “caco de vidro” que, por sua vez, pertence aos dois universos temáticos – ao da dengue e ao dos cuidados com as crianças. Há uma marca formal, no limite entre um tema e outro, e essa marca é exatamente o uso do juntor se que, indicando a condicional, inicia a inserção do segundo tema. Vejamos essa ocorrência, em (106): SI JOGA CACO DE VRID NO CHANÃO AS /CRIANÇA BODE CORTAR E (106) MACHUCAR [17/08-23] (se jogar caco de vidro no chão as crianças podem cortar e machucar) A grafia si é, mais uma vez, um exemplo da constituição mútua que existe entre os modos enunciativos oral e escrito. O uso de SENÃO A Tabela 18 a seguir traz os dados da análise tático-semântica das ocorrências de senão, com suas respectivas frequências: Tabela 18: Frequências de senão no domínio hipotático SENÃO Condição Hipotaxe Senão (2) Como podemos observar na tabela 18, foram constatadas duas ocorrências desse mecanismo de junção no domínio hipotático, o que implica dizer que, nessas ocorrências, senão permite inferência prototipicamente de acepção condicional, uma vez que um contraste fundamenta a leitura mais abstrata de condição, a partir de características “alternativas”. 146 Um exemplo da ocorrência prototípica desse mecanismo de junção foi extraído do texto 20, já apresentado, elaborado a partir da proposta 13. Em (107), senão possui leitura condicional, no domínio hipotático, em que há maior dependência entre as orações, indicando uma construção do tipo “não pode gritar, porque se gritar [se fizer isso], as cordas se machucam”. Eu a prendi no teatro que não |pode critar se não as cordas sema chu |ca [20/13-20v] (107) (eu aprendi no teatro que não pode gritar senão as cordas vocais se machucam) O uso de DEPOIS A Tabela 19, a seguir, mostra dados da análise tático-semântica da ocorrência de depois no domínio hipotático: Tabela 19: Frequências de depois no domínio hipotático DEPOIS Hipotaxe Tempo Simultâneo DEPOIS (1) Já foi apontado que o advérbio depois desempenha, prototipicamente, função juntiva com acepção de tempo posterior, indicando sequencialidade temporal; entretanto, foi constatado um uso singular desse juntor, desempenhando acepção de tempo simultâneo. Vejamos esse uso num trecho extraído do texto 13, já apresentado: (108) tem que deixar |um boraco depois do ponto tampe [13/11-07] (tem que deixar um buraco, depois do ponto tampe) Em (108), depois não estabelece uma sequencialidade temporal, mas, na verdade, um caso de simultaneidade, em que permite paráfrase por quando, indicando acepção de tempo simultâneo hipotático: “Tem que deixar um buraco, quando/assim que/no momento em que estiver no ponto tampe”. O uso do GERÚNDIO A Tabela 20 apresenta a frequências e as acepções dos usos de gerúndio, obtidas por meio da análise tático-semântica: 147 Tabela 20: Frequências de gerúndios no domínio hipotático GER Modo Hipotaxe GER (1) Tempo Simultâneo GER (1) Causa GER (1) O uso de verbos, no gerúndio, pode desempenhar papel juntivo, pois o gerúndio, assim como os juntores, designa uma acepção para a ação do sujeito. Como mostra a tabela 20, todos os casos em que a junção oracional é estabelecida a partir do uso do verbo, na forma nominal gerundiva, codificam casos de hipotaxe, dado que a relação de interdependência sintático-semântica, entre as orações articuladas, torna-se maior. Apesar dessa maior integração sintática, podemos destacar que também essa estratégia para juntar orações pode ser considerada como um aspecto do oral, manifestado, nesse momento, em que a criança adquire a escrita e constrói sua imagem desse novo modo de enunciação. Não estamos, com essa afirmação, propondo uma explicação fundada na interferência da fala na escrita, mas assumindo que, nesse processo de aquisição, de inserção na escrita institucionalizada – ou, pelo menos, na imagem dessa escrita criada pela criança – o escrevente, que se vê como sujeito nesse/desse processo, traz em sua “memória comunicativa” (OESTERREICHER, 1997, apud LONGHIN-THOMAZI, 2011, p. 226), tradições que já configuram sua prática discursiva, como as provenientes da oralidade, o que corrobora a asserção de Street (2006 apud LONGHIN-THOMAZI, 2011, p. 234) “de que a escrita se desenvolve no interior de um sistema oral de pensamento que permanece dominando os usos do letramento”. Foram depreendidas três acepções distintas nos usos do gerúndio como mecanismo de junção. Duas delas em ocorrências extraídas de textos produzidos a partir da proposta 7, já apresentada. PRESISANO DE O COLOS NOME: A ANTA NÃO EM CHÉ GA DEREITO GOSTA DE AGUASAL GA DA ETA BÉM É MUITO A ME ASA DADE ESTIMSÃO PORISO OS CASA DORE POM SACOS AMARRADOS NAS ARVORE CHEIO DE SAL GROSO PARA QUANDO CHOVE CAI SAL E ATRAI AS ANTAS FASILITANO 148 A CASADA DOS CASADORES Transcrição do texto (27) Texto original Neste texto, há mescla das TDs descrição e narração. É perceptível o início da TD narração a partir do trecho abaixo: OS CASA DORE POM SACOS |AMARRADOS NAS ARVORE CHEIO DE |SAL GROSO PARA QUANDO CHOVE CAI |SAL E ATRAIAS ANTAS (109) [27/07-16] (os caçadores põe sacos amarrados nas árvores cheios de sal grosso para quando chover cair sal e atrair as antas) 149 PRESSISANO DE OCULOS A ANTA E O ANIMAL EM ISTINSSÃO QUA A ANTA FOGE ELA BATE NAS ARVORES E SIRETIRARAPIDO A ANTA SABE NADA MUIT BEM O HOMEM PÓEM SAL GROSSO NAS MATAS QUANDOCHOVE PINGA ATRAINO A ANTA. Transcrição do texto (28) Texto original Em (110), o gerúndio permite inferência da acepção de modo. Em (111), temos, em uma primeira leitura, mais concreta, o gerúndio com acepção de modo, entretanto, em uma leitura mais abstrata, temos a acepção de causa: “quando chove, pinga, por isso, atrai a anta”. E, o gerúndio, em (112), apresenta a acepção de tempo simultâneo: QUANDO CHOVE CAI |SAL E ATRAIAS ANTAS FASILITANO |ACASADA (110) DOS CASADORES [27/07-16] (quando chove cai sal e atrai as antas facilitando a caçada dos caçadores) (111) QUANDO CHOVE PINGAATRAINO A ANTA [28/07-02] (quando chove pinga atraindo a anta) O RATO DO CANPO FOI NA FÉSTA |DO RATO DA CIDADE (112) CHECANDOLA ELE BRIMDARANL |COM CHANPÃINHO [09/05-12] (o rato do campo foi a festa do rato da cidade chegando lá eles brindaram com champanhe) Outros casos Os itens apresentados nesta seção são os que apresentaram uma única ocorrência com função juntiva no corpus analisado. A Tabela 21 traz os dados da análise tático-semântica das ocorrências desses juntores: ao invés de, enquanto e mesmo que. 150 Tabela 21: Frequências de ao invés de, enquanto e mesmo que no domínio hipotático AO INVÉS DE, Tempo ENQUANTO, Contraste Conces. Simultân. MESMO QUE ENQUANTO AO INVÉS MESMO Hipotaxe (1) DE (1) QUE (1) A ocorrência do uso juntivo de enquanto, com acepção de tempo simultâneo, no domínio da hipotaxe, pode ser observada em (113), um trecho extraído do texto 23 já apresentado: (113) não pede |pede [pode/posso] falar enquanto corro [23/13-07f] (não pode [posso] falar enquanto corro) A ocorrência de ao invés de foi extraída do texto 29, produzido a partir da proposta 2 “Relato da palestra sobre audição”. eu aprendi que nunca se deve usar cotonete poque au erve de fazer ben fas mau porque enpura acera para dentro do ouvido e tanben aprendi osnomes dos osos do ouvido são martelo e bigona e istribu e tan ben aprendi que o ouvido doi porque entra água e cuando a pesaua coloca uma coisa dentro do ouvido doi muto. e cuado ten algun obijeto a pesoa não can segue ouvir porque se ten a vos da pesoua não con segue ouvir. Transcrição do texto (29) Texto original O escrevente cumpre a proposta de TD relato e o faz com características de diálogo face a face. Há ainda a TD injunção, como é percebido no trecho em (114), a explicativa, em (115), e a listagem, em (116) (com a adição de termos feita por meio do juntor e): (114) nunca se deve usar cotonete [29/02-06] aprendi que o ouvido doi porque entra água e |cuando a pesaua coloca (115) uma coisa dentro do ouvido |doi muto [29/02-06] (aprendi que o ouvido dói porque entra água e quando a pessoa coloca 151 uma coisa dentro do ouvido dói muito) aprendi osnomes |dososos do ouvido são martelo e bigona e istribu (116) [29/02-06] (aprendi os nomes dos ossos do ouvido, são martelo e bigorna e estribu) A ocorrência de ao invés de pode ser observada em (117). Na relação de contraste marcada por ao invés de, há um paralelismo sintático, “faz bem/faz mal”, no domínio hipotático, correlacionado ao uso do infinitivo: nunca se deve usar cotonete poque |au erve de fazer benfas mau (117) [29/02-06] (nunca se deve usar cotonete porque ao invés de fazer bem, faz mal) A ocorrência da perífrase juntiva mesmo que ocorre no texto 08 (proposta 14 “Cartão de natal”), já apresentado: (118) Adorei |a vezita de voces4. Mesmo que foi um |pouquinho. [08/14-18v] (adorei a vizita de vocês quatro, mesmo que foi um pouquinho) A perífrase mesmo que permite paráfrase por embora, o que comprova sua acepção concessiva no âmbito da hipotaxe. Morfossintaticamente, a acepção concessiva codifica-se em uma construção não prototípica, pois o escrevente usa o verbo foi, ao invés de tenha sido. Segundo Longhin-Tomazi (2011) esse pode ser um exemplo da inserção das crianças nas práticas formais de letramento. A autora diz que a criança circula por TDs típicas da oralidade, antes de chegar à idade escolar, e essa oralidade perpassa diferentes níveis de letramentos, o que depende da sua vivência. 152 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo principal desse trabalho foi investigar o comportamento dos elementos juntivos em diferentes TDs em contexto de aquisição do modo de enunciação escrito da língua. Essa investigação buscou descrever e analisar o funcionamento sintático, semântico e pragmático desses mecanismos de junção. Esse objetivo partiu da hipótese de que os elementos juntivos podem ser tomados como sintomáticos de diferentes TDs (cf. KABATEK, 2008, 2005, 2004). À luz dessa hipótese, propusemo-nos a responder à seguinte pergunta: Como é realizado o emprego dos mecanismos de junção, em diferentes TDs, durante o processo de aquisição de TDs no modo de enunciação escrito da língua? Do objetivo principal desdobram-se os seguintes objetivos específicos: (1) descrever e analisar as técnicas de junção, nos diferentes tipos abordados de TDs, em contexto de aquisição de TDs da escrita, a partir das relações lógico-semânticas e da interdependência existente entre as porções componentes da oração complexa, na perspectiva de Halliday (1985) e Raible (2001, 1992, apud KABATEK, 2005), conforme especificações apresentadas na seção de pressupostos teóricos deste trabalho; (2) identificar peculiaridades dos textos e, assim, indícios linguísticos da existência de TDs e mesclas de TDs; e (3) A partir das peculiaridades, destacadas em (2), baseadas na descrição analítica, apresentada em (1), prosseguir às relações possíveis no que tange ao processo de constituição de TDs no âmbito da aquisição de TDs da escrita. Para que os objetivos fossem alcançados foi feita uma descrição fina do comportamento dos juntores nos textos selecionados e caracterizadores do processo de aquisição do modo de enunciação escrito da língua, a partir das análises quantitativa e qualitativa apresentadas na PARTE III deste trabalho. A análise quantitativa permitiu-nos verificar a frequência com que cada mecanismo de junção foi empregado nos textos do corpus analisado, levando em consideração o cruzamento dos parâmetros sintático e semântico. Foi constatado, por meio dessa análise, que a criança, em fase de aquisição do modo de enunciação escrito da língua, faz uso, principalmente, de juntores menos complexos taticamente, como por exemplo, o juntor e e as justaposições de orações, no âmbito 153 da parataxe. Mecanismos como, por exemplo, mesmo que, ao invés de apresentaram baixa recorrência por se tratar de juntores mais elaborados no que tange à arquitetura sintática mobilizada. A análise também revelou que, embora a partir de uma arquitetura sintática “simples”, nem sempre de acordo com modelos preconizados pela norma gramatical, os escreventes codificam relações semânticocognitivas que se distribuem por todos os pontos da escala de complexidade cognitiva crescente, isto é, desde relações mais concretas, tal como a adição neutra, até as mais abstratas, como a de contraste. Este resultado mostra que a aparente “simplicidade” das estruturas paratáticas esconde, na verdade, um arcabouço de relações semântico-cognitivas que precisam ser depreendidas a partir de uma análise fina dos indícios do texto e do discurso. A análise qualitativa permitiu-nos constatar uma maior recorrência de TDs narrativa e descritiva, bem como das tradições do diálogo. A identificação dessas TDs ocorreu, primeiramente, a partir do conhecimento acerca dos tipos de textos e dos gêneros textuais. Foi observado, ainda, o uso frequente de determinados juntores em TDs específicas. Por exemplo, na TD narrativa, existe uma relação temporal - de anterioridade e posterioridade -, expressa, prioritariamente, por juntores como aí, daí, e (temporal), e daí, e depois etc. Já na TD descritiva, prevalece a relação de sentidos expressa por juntores como, e (adição), e também, também, justaposição (adição) que sinalizam a soma das características do objeto/fato descrito. Além das TDs citadas, foram ainda identificadas, recorrentemente, as TDs argumentativa, receita, listagem, injuntiva, pedido, agradecimento, carta, procedimento e felicitação. Na TD argumentativa, prevalece a tentativa de convencimento, de defesa, por parte do escrevente, de um ponto de vista próprio, por meio do uso de juntores como, porque, por isso, só que, mas etc., em que é estabelecida uma relação de causa-consequência/explicação na maioria das vezes e, de modo genérico, em que são depreendidas relações semântico-cognitivas mais abstratas. Os textos foram selecionados, para a análise dos mecanismos de junção em relação à TD, a partir da depreensão da mescla de tradições do falar/escrever, o que, portanto, constituiu a primeira etapa da análise, de acordo com um critério de natureza teórico-metodológica (exatamente a adoção do conceito de Tradições Discursivas). As demais etapas da análise desenvolvida revelaram que há tipos 154 distintos do que aqui convencionamos chamar de mesclas de TDs, dos quais podemos sistematizar, pelo menos, dois, a saber: (i) a mescla constitutiva do texto enquanto TD complexa; e (ii) a mescla constitutiva do texto enquanto TD para o sujeito/escrevente. Em (ii), estamos fazendo referência às mesclas que indicam que esse sujeito/escrevente está em processo de aprendizagem/aquisição da TD em questão. Como exemplo de (i), podemos citar o caso da receita, em que, na constituição de uma TD complexa, nos termos de Kabatek, há a identificação de outras tradições, como a listagem, o procedimento, a injunção etc. Como exemplo de (ii), podemos citar o caso da TD cartão de Natal, em que foi depreendida a mescla, entre outras, com a TD carta, sinalizando que o escrevente/sujeito está em processo de aprendizagem/aquisição dessa TD. Em várias propostas, que sinalizavam para a produção de TDs distintas, o diálogo mostrou-se sempre presente, como forma de, por meio de uma tradição da oralidade, dominada pelo escrevente, dar-se a apropriação dos modelos discursivos de outras tradições, mesmo que no modo de enunciação escrito – o que, obviamente, só é possível a partir de uma língua conceituada como essencialmente heterogênea. O mesmo pode ser destacado em relação às listagens, em que, por meio da justaposição de termos, ou do uso do juntor e de adição (também para adicionar termos), o escrevente produz uma TD listagem dentro de outras TDs que não possuem a listagem como constituinte. Por vezes, as mesclas (i) e (ii) também foram depreendidas nos mesmos textos. Podemos citar, novamente, o caso da TD cartão, com a carta, a felicitação, o pedido e o agradecimento. Nas propostas em que foi solicitado que o escrevente produzisse um cartão, ele o fez a partir do conhecimento que possuía da TD carta, que foi assim caracterizada por meio da mescla com as TDs agradecimento e pedido, que trazem recorrentemente o uso dos juntores: por, que introduz uma oração reduzida de infinitivo, em que é acrescida uma causa/explicação para o agradecimento (obrigado por...); para que, que possui acepção de finalidade em que o escrevente justifica seu pedido, bem como o uso de porque com acepção causal também inserida nesse contexto. Nessa direção, os mecanismos de junção, com frequência, revelaram-se em posições de fronteira entre as porções textuais, dentro de uma mesma TD e também entre diferentes TDs, mescladas devido a (i) e/ou a (ii), e revelaram, principalmente nesses casos, uma atuação fortemente discursiva e fortemente característica das 155 tradições do sistema oral de pensamento, que, conforme Street (2006 apud LONGHIN-THOMAZI, 2011, p. 234) atua dominando os usos do letramento. Esse traço indica, conforme destacado em vários pontos da análise apresentada neste trabalho, a heterogeneidade constitutiva da escrita, de um modo conceptivo oral, que se materializa por meio do gráfico (ver, por exemplo, os casos de então e agora). Em relação à pergunta de pesquisa, Como é realizado o emprego dos mecanismos de junção, em diferentes TDs, durante o processo de aquisição de TDs na modalidade escrita da língua? os resultados da análise desenvolvida mostraram que o emprego dos juntores ocorre, primeiramente, a partir do conhecimento que o escrevente possui da TD específica e de outras TDs, ou seja, nos momentos iniciais de aquisição do modo escrito de enunciação, em que a criança ainda não domina nem este modo de enunciação e nem as TDs que se medeiam por ele, foi observado o emprego de juntores taticamente menos complexos, mas que mobilizam, ao mesmo tempo, procedimentos sintáticos, semânticos e pragmáticos para seu funcionamento, tornando necessário salientar que não são juntores e/ou mecanismos de junção (cf. por exemplo o caso das justaposições) de funcionamentos simples, e mesclas não convencionais de TDs. A análise dos textos produzidos após alguns meses de contato do escrevente com a escrita possibilitou a observação do emprego de juntores taticamente mais elaborados, o que, por sua vez, foi também constatado em relação à elaboração das próprias TDs. 156 REFERÊNCIAS ABAURRE, M. B. M. Horizontes e limites de um programa de investigação em aquisição da escrita. Publicado em: R. Lamprecht (org.), Aquisição da Linguagem: questões e análises. Porto Alegre: EDIPUCRS. 1999, p.167-186. ABAURRE, M. B. M. A relação entre escrita espontânea e representações linguísticas subjacentes. Verba Volant, v. 2, nº 1. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária da UFPel, 2011. ABAURRE, M. B. M.; FIAD, R. S.; MAYRINK-SABINSON, M. L. T. Cenas de Aquisição de escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. São Paulo: Mercado de Letras, 2002. ABAURRE, M. B. M.; SILVA, A. da. O desenvolvimento de critérios de segmentação na escrita. Temas psicol. [online]. vol.1, n.1, 1993, p. 89-102. ASSIS, J. 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