O Nada
Monica Baumgarten de Bolle
Economista, Professora da PUC-Rio e Diretora do IEPE/Casa das Garças
(Publicado no O Globo a Mais de 16 de abril de 2013)
“Suponha que nada exista. Neste caso, não haveria leis, uma vez que leis são, afinal,
alguma coisa. Se não existissem leis, tudo seria permitido. Se tudo fosse permitido, nada
seria proibido. Portanto, se nada existisse, nada seria proibido. Logo, nada é
autoproibitivo. Se nada é autoproibitivo, algo sempre existe”. QED. Essa é a prova de
que tudo tem de advir de algo, demonstrada pelo filósofo e escritor norte-americano,
Jim Holt, autor de “Por que o Mundo Existe?”.
Se tudo provém de algo, a recuperação da economia global tem de provir de alguma
coisa. Contudo, não há nada impulsionando a atividade mundial no momento. Os EUA
e a China, as duas turbinas da economia global, não estão crescendo o suficiente para
propelir o resto do mundo. Se nada propele a atividade global, a retomada não ganha
fôlego. Se a retomada não ganha fôlego, prevalece o chamado “stall speed”, o novo
jargão para designar as agruras globais. O “stall speed” é a velocidade na qual as
aeronaves são incapazes de ganhar altitude; quando voam abaixo desse limiar, perdem
sustentação e caem.
No caso americano, o crescimento astênico resulta de um mercado de trabalho que não
tem criado o tipo de emprego condizente com a melhora sustentada da renda das
famílias, cujo consumo responde por 70% do PIB do país. Os postos de trabalho
perdidos durante a crise, aqueles que pagavam salários médios a altos tanto nos setores
de construção e de manufaturas, quanto no setor financeiro, não foram recuperados.
Segundo um relatório recente do National Employment Law Project, os empregos
criados desde a Grande Recessão que sobreveio da crise têm se concentrado em
segmentos de baixa produtividade e de parcos rendimentos, como os setores de
alimentos e de varejo. Além disso, muitas das vagas criadas são empregos temporários,
e não postos permanentes. Um indivíduo que esteja procurando uma ocupação
permanente mas que só encontra um trabalho temporário é registrado nas estatísticas de
desemprego como empregado. As horas não trabalhadas involuntariamente, isto é, a
diferença entre o tempo que o sujeito trabalharia em um cargo permanente e o que
trabalha em um posto temporário, não estão refletidas nos dados do mercado de
trabalho, o que resulta numa fotografia mais atraente do que a dura realidade.
A falta de capacitação da mão de obra nos EUA, a segmentação do mercado de trabalho
e o esgarçamento social são um drama e tanto para o governo, razão para Obama ter
encaminhado ao Congresso um orçamento ambicioso que prevê o aumento de gastos
para elevar a produtividade do trabalhador, em troca de cortes mais profundos nos
programas sociais e na saúde. Apesar dos esforços do Presidente americano, ciente de
que não se consegue algo com nada, o mais provável é que nada mude e que os cortes
automáticos iniciados em março continuem a pleno vapor. Conquanto os cortes
automáticos sejam uma solução tosca para os graves problemas que acometem as contas
públicas, eles são, também, a melhor (e a única?) forma de conciliação política entre
Republicanos e Democratas em meio à polarização que caracteriza os dois partidos.
Esse, é ao menos, um dos motivos para que as reclamações de um lado e de outro sobre
o “sequestration” sejam, hoje, menos mordazes do que quando foram acordados, em
meados de 2011. Diante de um quadro em que os cortes automáticos ditarão os rumos
da taxa de desemprego e da recuperação americana, o vazamento da ata da última
reunião de política monetária do Fed em que foram discutidas as opções para reduzir o
QE3, o afrouxamento monetário excepcional do banco central americano, é quase uma
mera curiosidade. Pode-se discutir ad infinitum o futuro do QE, uma eventual
diminuição gradual das compras de títulos para não abalar os mercados. Contudo,
enquanto a política monetária não-convencional continuar sendo o único instrumento à
disposição do governo para impedir que o nada passe a existir, esse dia ainda está muito
distante. QED. Ou QE3. Tanto faz.
Enquanto isso, a China está emaranhada numa transição complicada de modelo de
crescimento. A desaceleração da atividade, que se expandiu “apenas” 7,7% no primeiro
trimestre de 2013, é um reflexo tanto da necessidade de passar para um ritmo mais
sustentável de crescimento, como enfatizou o novo Presidente Xi Jinping, quanto de
dirimir os desequilíbrios acumulados nos últimos anos. Os governos das províncias
chinesas estão bastante endividados devido às diversas medidas de estímulo adotadas
desde a crise internacional. Não se sabe exatamente o montante dessas dívidas,
tampouco o quanto pesariam sobre as contas públicas do governo central caso fosse
necessário que essa esfera assumisse parte das obrigações. Por outro lado, há
empréstimos de qualidade duvidosa escondidos nos balanços dos bancos legítimos e
ilegítimos – há um imenso sistema financeiro paralelo, ou negro, em operação na China.
As dívidas públicas, privadas, visíveis, e ocultas ameaçam, continuamente, o
gerenciamento e a sintonia fina da economia do país. A isso se soma o ônus
demográfico chinês, o envelhecimento populacional que fará com que a população
economicamente ativa comece a encolher rapidamente ao longo dos próximos cinco
anos. O mundo certamente não poderá mais contar com o excesso de dinamismo do país
asiático para facilitar a resolução de seus problemas.
Sem a China e sem os EUA, como fica o Brasil? Parece que fica no quase nada, no
crescimento rasteiro que tem predominado nos últimos anos. E isso se o governo não
atrapalhar. Pois, parafraseando Macbeth: “O Nada é tudo o que não é”. O Brasil não é
competitivo, não é prudente com as contas públicas, não é receptivo ao investimento
privado.
O Brasil é inflacionário.
“Suponha que nada exista. Neste caso, não há inflação, uma vez que a inflação é, afinal,
alguma coisa. Se não há inflação, tudo é permitido. Se tudo é permitido, nada é
proibido. Portanto, se a inflação não existe, nada é proibido. Logo, a não-inflação é
autopermissiva”. QED, diriam nossos governantes.
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