Contagem Cristina Ricaldoni Passados 40 anos, principais lideranças da greve dos metalúrgicos de Contagem (MG), de abril de 1968, relembram aquele período a história contada pelos protagonistas O movimento operário de Contagem (MG) ressurgiu apesar do cenário cinzento da ditadura militar e fez a primeira greve com ocupação de fábrica Andréa Castello Branco N ão é preciso refletir muito para encontrar diversos significados para o ano de 1968. Repressão, violência, resistência, censura, restrição, são os mais recorrentes de uma longa lista que se forma na parte que cabe à memória política brasi- leira. E não por acaso. Foi em 1968 que a ditadura, instaurada em 1964 com o golpe militar, aprofundou a repressão e deu início aos “anos de chumbo”, o período mais duro do regime das fardas. O cenário era realmente pesado e cinzento: violenta repressão militar e policial ao movimento estudantil, censura à imprensa, restrição à ação parlamentar e institucionalização da política do terror que cassou direitos civis, prendeu, torturou e exilou milhares de brasileiros que ousaram ter um pensamento dissonante. Foi exatamente nesse ambiente inóspito 15 Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008 dos metalúrgicos, ocupavam espaço nas fábricas, igrejas e associações, fazendo um trabalho político a contagotas, de forma quase imperceptível, mas intensa. Imaculada Conceição de Oliveira, operária da Metalúrgica Santo Antônio, estava na ampla frente formada contra o regime. Ela começou sua militância aos 16 anos como ativista sindical, se tornou membro do Partido Comunista (PC) e, mais tarde, viria a ser secretária-geral do sindicato dos metalúrgicos e uma das principais lideranças da greve de 1968. “A gente trabalhava de dia e à noite ia para o cinema escrever os jornais. Às quatro, cinco da manhã a gente distribuía o jornal do partido e fazia pichação de muro. Depois a gente fazia uma distribuição mais legal, na porta da fábrica, e já entrava para trabalhar”, relembra a rotina dos anos anteriores à greve. De classe social e com experiência política bem diferentes, Delsy Gonçalves da Paula, mais conhecida como Sisse, era i nteg ra nte da Ação Popular e, em 1966, por opção pessoal, foi dar aulas de Português em Contagem. Mas a rotina era mais ou menos a mesma da jovem operária comunista. “Esse era um trabalho que todas as orga Acervo Marcelo Pinheiro que ressurgiu o movimento operário, disposto a enfrentar o regime militar e o poder patronal. Infelizmente, a história dos trabalhadores durante a ditadura é composta de fragmentos esparsos e estudos acadêmicos que, sem a devida profundidade, sugerem uma interpretação distante dos fatos. A começar pela primeira greve com ocupação de fábrica do período da ditadura militar, relatada como fato espontâneo e de caráter meramente econômico. Passados quarenta anos, o depoimento das principais lideranças da greve, realizada em abril de 1968 pelos metalúrgicos em Contagem, Minas Gerais, contradiz essa versão e mostra que havia uma organicidade no movimento operário e a intenção real de romper com a política econômica recessiva imposta pelos militares. Após o golpe militar, cada uma das forças progressistas e de esquerda postas na clandestinidade – agora subdivididas em “correntes” – produzia uma enxurrada de informação distribuída diariamente nas portas das fábricas e de casa em casa na Cidade Industrial, em Contagem. As correntes e a oposição sindical, organizada após a intervenção no sindicato nizações faziam. A gente trabalhava para ganhar dinheiro e à noite panfletava a Cidade Industrial toda. Íamos de casa em casa colocando o material debaixo da porta. E durante o dia fazíamos reunião com os trabalhadores para poder discutir a sua realidade”, conta Sisse. Suas turmas eram compostas basicamente de operários de empresas como a RCA Vitor, Belgo, Mannesman e as aulas extrapolavam a disciplina. “Eu era professora de Português, mas dava também aula de política, através de textos de jornais e letras de música que escolhia de forma estratégica. Ali a gente trabalhava a consciência política”, relata. O contexto para construir um movimento operário vigoroso também era favorável, apesar da repressão individual e coletiva. Além da pressão econômica, gerada por uma inflação elevada e nenhuma correção salarial, as condições de trabalho e a perda de direitos eram combustíveis para o movimento. “Lutávamos pela construção das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipas) e contra o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), porque nós tínhamos a estabilidade para o trabalhador com mais de dez anos na empresa, o que era muito comum naquele tempo. Não era essa rotatividade como tem hoje. Os patrões falavam que o FGTS era uma opção espontânea, mas na verdade não era. Ou você optava ou perdia o emprego”, conta Imaculada Conceição. Além da pressão econômica – inflação elevada e nenhuma correção salarial – as condições de trabalho e a perda de direitos eram combustíveis para o movimento Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008 16 se tornou um militante importante e referência para os trabalhadores. “Barriga vazia é tambor de revolução e o que arrocha mais é a barriga dos filhos”, ensina. da fábrica ocupada pelos trabalhadores. Mas isso não enfraqueceu o movimento, que ganhou a adesão de duas empresas importantes, a SBE e a Mannesmann. Nesse momento já eram 6 mil trabalhadores em greve. Abril vermelho A falta de perspectivas de um Era 16 de abril de 1968 quando acordo, a firmeza dos operários e, a primeira greve com ocupação de principalmente, o crescimento da fábrica eclodiu na Cidade Industrial, greve fizeram com que o governo e se transformou em marco histórico federal se movimentasse: o ministropara o movimento operário pela re- coronel Jarbas Passarinho conclamou sistência à polítios trabalhadores ca econômica do a retomarem as regime militar. O atividades sob a trabalho subjetia rg umentação vo das organizad e q u e n ão s e ções clandestinas tratava “de um e da oposição sinmovimento jusdical realizado tificado, legal ou nos quatro anos tolerável, mas de anteriores se mauma pura e simterializou na luta ples agitação” e objetiva contra o ameaçou com a arrocho salarial. intervenção do A greve comesi nd icato dos çou com os 1.200 metalúrgicos e trabalhadores da bancários, que Belgo-Mi nei ra Imaculada Conceição conta que o grupo foi também acolheu tendo como rei- taxado de subversivo por reivindicar a criação os grevistas. vindicações prin- de Cipa C ont udo, o cipais o reajuste de 25% nos salários e pronunciamento teve efeito conmelhoria nas condições de trabalho. trário ao esperado e a paralisação Uma comissão foi criada para nego- cresceu atingindo outras empresas. ciar com a diretoria da empresa, mas O ministro decidiu, então, conversar a contraproposta feita pelos patrões, pessoalmente com os operários e, 10% de aumento, foi considerada in- numa cena histórica, se dirigiu para suficiente e o movimento se espalhou a assembléia geral no sindicato dos rapidamente pelo parque industrial metalúrgicos. através das comissões de fábrica, “Quando chegou ao sindicato, onde os trabalhadores, já organiza- ele pensou que ia se sair muito bem dos, entenderam exatamente o que no debate com os trabalhadores. deveriam fazer. Quando ele falava que o salário não No dia seguinte a Delegacia Re- era tão baixo assim e que essa histógional do Trabalho decretou a ilega- ria de arrocho era coisa de agitador, lidade da greve e surgiram rumores de subversivo, os operários falavam de uma possível invasão policial o preço do produto anotado na caMarcelo Pinheiro Tudo isso coincidia com a introdução da automação industrial no Brasil, o que criava um caldo cultural propício para a insatisfação. “No começo a própria empresa não tinha experiência e colocava regras superrigorosas. Como eles não sabiam como lidar com o equipamento, achavam que se um trabalhador parasse, todos tinham que parar. Era proibido até mesmo ir ao banheiro ou beber água, isso causava uma revolta e foi criando uma grande tensão entre os trabalhadores”, relata. Aproveitando o clima favorável para a discussão, correntes como Ação Popular, Política Operária (Polop), Colina, Corrente Revolucionária, assim como o Partido Comunista e o próprio sindicato dos metalúrgicos, criaram pequenas células nas fábricas. Praticamente todas possuíam trabalhadores organizados em comissões. “As linhas de trabalho político eram completamente diferentes. Tinham pessoas que achavam que era preciso fazer só trabalho de base, outros faziam o trabalho de base para se vincular a uma coisa mais avançada lá na frente. Mas uma coisa unificava: aquelas reivindicações eram comuns. Todo mundo estava contra a lei do arrocho, todo mundo estava contra o FGTS e acreditavam na importância das Cipas. Todo mundo era contra a ditadura. Aí não tinha divergência”, conta Imaculada Conceição. João Anunciato Reis, o Canela, era metalúrgico da Sociedade Brasileira de Eletrificação (SBE) e passou a fazer parte da comissão de fábrica formada pela oposição sindical. “A idéia era ter células do sindicato dentro da empresa, e eu ajudei a fazer isso”. O que o levou para a militância foi a luta contra o arrocho salarial, mas Canela 17 Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008 Marcelo Pinheiro Ênio Seabra: “Dizer que o pessoal estava despreparado não é verdade” derneta e mostravam que o salário não dava para pagar a comida. Ele chegou a pedir um quadro negro em que ele, meio afobado, tentava fazer as contas. Quanto mais ele tentava explicar, mais complicado ficava. Aí ele se desesperou e resolveu ir embora”, conta Imaculada Conceição, então secretária-geral do sindicato dos metalúrgicos. Mas antes de se retirar, Passarinho perdeu a compostura, bem como a atitude negociadora, e elevou o tom da conversa: “se as condições se agravarem, passando para a provocação e o desafio, vai haver luta e perderá quem tiver menos força, embora não queiramos fabricar nem nos transformarmos em cadáveres porque há muita gente interessada em transformar operários em carga de canhão, iniciando uma contra-revolução que saberemos enfrentar com as mesmas armas”. De forma surpreendente, no dia seguinte à assembléia, os trabalhadores de mais quatro empresas – Acesita, RCA-Vitor, Demisa e Industam – cruzaram os braços. O governo decidiu lançar uma proposta de reajuste para os metalúrgicos: os mesmos 10% de reajuste, acompanhados de um ultimato: “a recusa significa uma declaração de guerra”. Era a primeira vitória dos trabalhadores brasileiros diante de um arrocho salarial sem precedentes e, pressionado, o sindicato dos metalúrgicos decide encaminhar a proposta à assembléia com a indicação de aceitação. Mas os trabalhadores surpreenderam mais uma vez e rejeitam a proposta, intensificando o movimento com a entrada de mais dez empresas na greve, dentre elas a Mafersa, PoligHeckel e Cimec. Já eram 16 mil grevistas dentre os 21 mil trabalhadores da Cidade Industrial. Em cadeia nacional de rádio e TV, Jarbas Passarinho declarou “o início da guerra” contra os operários mineiros. A Cidade Industrial foi tomada por 1.500 policiais, o sindicato, fechado, e aproximadamente vinte lideranças presas. Foram proibidas assembléias, aglomerações operárias, panfletagens e as empresas começaram a convocar os trabalhadores sob ameaça de demissão por justa causa. Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008 18 Com a greve esvaziada pela repressão, os metalúrgicos voltaram ao t rabalho, cont rariados, mas conquistando um reajuste de 10% e com a certeza de que haviam aberto uma fissura no modelo econômico da ditadura militar. Dias depois, às vésperas do Primeiro de Maio, o presidente, general Arthur da Costa e Silva, anunciou a extensão do reajuste de 10% para todos os trabalhadores brasileiros. Para os líderes dos operários de Contagem, a greve de 1968 não pode ser vista como uma simples reação a um ambiente hostil. A dificuldade econômica e o clima de pressão já existiam há algum tempo e não tinham produzido um movimento vigoroso e com a força da greve dos metalúrgicos mineiros. O mais correto seria tomá-la como uma ação coletiva movida por dois aspectos centrais − a opressão e exploração da classe trabalhadora e a intensa ação política dos grupos de esquerda. “Dizer que a greve foi espontânea é um erro. Existia toda a problemática dos trabalhadores e, por outro lado, a conjuntura política pós-1964. Havia A retomada do sindicato O golpe militar que derrubou o governo constitucional de João Goulart, denominado “república sindicalista”, atacou a base em que se construiu o trabalhismo: os sindicatos. Entre as primeiras medidas, estava a intervenção direta nas entidades, a substituição de lideranças e a perseguição de quadros. Os sindicatos Salvio Penna um movimento operário em ascensão que foi cortado, mas as lideranças continuavam lá. Ninguém pode afirmar, nem eu mesma, que o dia e a hora da greve não tenham sido marcados por alguma corrente. Eu creio que não, mas todos já trabalhavam para eclodir o movimento grevista”, analisa Imaculada Conceição. Ênio Seabra, presidente eleito do sindicato dos metalúrgicos destituído pelo Ministério do Trabalho e uma das principais lideranças da greve, também não comunga a tese de uma greve espontânea. “Dizer que o pessoal estava despreparado não é verdade. Os metalúrgicos tinham uma tradição de luta. Além disso, muitos trabalhadores dentro do movimento metalúrgico já eram militantes do Partido Comunista há muitos anos. Esses tinham uma posição política bem avançada, assim como as pessoas vinculadas à Polop. Eu participava da AP e existia um intercâmbio grande desses vários grupos. Também havia muito contato entre os operários das diversas fábricas porque todo mundo morava por ali. Dava para difundir a luta”, relata. Delsy Gonçalves de Paula: “À noite a gente panfletava a Cidade Industrial toda” assumiram uma nova função, passaram a ser parceiros do Estado. No Sindicato dos Metalúrgicos de Contagem e Belo Horizonte a primeira reação veio de uma nova geração de militantes, que ao lado das poucas lideranças que restaram após o golpe, organizaram a oposição sindical e passaram a trabalhar como um sindicato paralelo durante os primeiros anos da ditadura. Somente em meados de 1967 a oposição sindical venceu a eleição e assumiu novamente a direção do sindicato. Dirigida por Ênio Seabra, a chapa defendia um programa bastante avançado para a época: expulsão dos pelegos, oposição à política de arrocho salarial do governo e ao fim da estabilidade no emprego, dentre outras medidas impostas pelo regime militar aos trabalhadores. Ênio Seabra, que já tinha sofrido a impugnação do seu nome pelo Minis- tério do Trabalho durante o processo eleitoral, reverteu a situação e ganhou a eleição, mas foi impedido de tomar posse por uma intervenção do Ministério. Antônio Santana é quem o substitui, mas as principais referências dos trabalhadores no sindicato passaram a ser Imaculada Conceição, Joaquim de Oliveira e Luiz Fernando, que formavam um núcleo mais atuante, com presença constante nas portarias das fábricas. “Eu estava com 20 anos e pra gente tudo aquilo era muito novo porque nossa experiência era de trabalhador, era dentro da fábrica. Mas nós queríamos fazer um sindicato atuante, então logo criamos o jornal O Metalúrgico e intensificamos o trabalho na porta das fábricas”, conta Imaculada Conceição, relembrando que o grupo logo foi taxado de subversivo por reivindicar a criação das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes. No Sindicato dos Metalúrgicos a primeira reação veio de uma nova geração de militantes que organizaram a oposição sindical e passaram a trabalhar como um sindicato paralelo 19 Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008 co muito bem organizado e menos repressão interna, não foi à toa que começou por lá. Montamos uma comissão para negociar com a empresa, que parecia espontânea, mas não era tanto assim. Muitos já trabalhavam com a gente, eram lideranças. Chegamos a conclusão de que só eu – que era do sindicato – seria permanente na comissão para evitar as demissões”, diz. Ênio Seabra, que havia sido destituído pela ditadura da presidência do sindicato, foi eleito em assembléia como presidente do Comando de Greve Unificado, retomando por outro caminho a liderança dos metalúrgicos de Contagem. Para ele, a confiança dos trabalhadores foi um ref lexo do trabalho desenvolvido nos anos anteriores. “Muito antes do regime já existia bastante luta dentro do sindicato e nas fábricas por reivindicação salarial, por melhoria nas condições de trabalho. A gente começou em 1957 e a ditadura veio em 1964. A gente não estava espe- Salvio Penna Como membro da diretoria do sindicato, era ela quem facilitava a ação das correntes nas fábricas. Após fazer o trabalho “legal”, que era conversar com os operários em nome do sindicato, Imaculada percorria as empresas levando recados das correntes para os trabalhadores organizados nas comissões de fábrica. “O pessoal não podia chegar sem chamar a atenção. Muitos estavam sendo seguidos pela Polícia Federal, pelo SNI [Serviço Nacional de Informações], pelo Dops [Departamento de Ordem Política e Social], pela Polícia Civil. E pra mim ficava mais fácil. Quando era abordada, eu dizia que era da diretoria do sindicato e que estava ali para conversar com os trabalhadores, assim eu passava todos os recados”. Foi esse mesmo grupo que atuou ativamente na greve iniciada na Belgo-Mineira. “Quando eu cheguei no sindicato fiquei sabendo que tinha começado a greve. Fomos para lá e encontramos a fábrica toda parada. A Belgo já tinha um trabalho políti- Em encontro n o sindicato dos metalúrgicos, lideranças avaliam a greve de 1968 Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008 20 rando, mas já sabia que haveria um embate”, conta. O fato é que o carisma aliado à perseguição política transformou Ênio Seabra num mito para os trabalhadores. Seu discurso e sua história de militância geravam uma enorme confiança nos operários, que seguiam a orientação política defendida pelo líder. Alguns episódios revelam que a sua presença foi decisiva para a manutenção da greve por longos quinze dias. Durante esse período, o sindicato dos metalúrgicos se transformou em base dos trabalhadores e Ênio Seabra voltou pela porta da frente. Mas a diretoria do sindicato não tinha a unidade necessária para sustentar um movimento tão forte e passou a ter uma posição ambígua a partir do ultimato no ministro-coronel Jarbas Passarinho. Ao mesmo tempo que era forçado por parte dos diretores e militantes a tomar uma posição de vanguarda, publicamente assumia uma posição mais legalista, absorvendo o discurso dos militares sobre a ilegalidade da greve. “Naquela época o sindicato era um pouco complicado porque na própria diretoria tinha opiniões muito divergentes e até mesmo pessoas que a gente supunha que não eram da luta. A gente fazia as reuniões, mas muita coisa não era tratada ali. Cada grupo da diretoria fazia sua articulação de trabalho depois. Mas acho que tudo que fizemos teve muito valor. Pelo menos não ficamos na escuridão aguardando as coisas acontecerem Já que chegou uma ditadura, não tinha outro caminho, tinha que participar. Só as conseqüências é que são difíceis... mas aí é uma opção”, analisa. ✪ Andréa Castello Branco é jornalista Contagem Acervo Marcelo Pinheiro O ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, em Contagem tentando demover os trabalhadores da decisão de greve A cidade operária símbolo A greve nasceu nas fábricas e empolgou 16 mil dos 21 mil trabalhadores da cidade industrial, um marco político que ultrapassou os limites do município Nilmário Miranda À s 7 horas da manhã de 16 de abril de 1968, os operários da trefilaria da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira pararam as máquinas e ocuparam a fábrica. Logo, 1.600 metalúrgicos estavam em greve, a primeira na história da empresa. Elegeram a comissão de negociação, organizaram-se em grupos para manter a disciplina, impedir a bebida e qualquer baderna. Em 19 de abril, os seiscentos metalúrgicos da Sociedade Brasileira de Eletrificação (SBE) aderiram à greve. No dia seguinte, os 4.500 trabalhadores da maior empresa do parque industrial, a Mannesman, também pararam. A partir de então, na mais absoluta calma e ordem, a RCA, Pohlig Haeckel, Industam, Cimec e 21 Teoria e Debate Especial 1968 H maio2008 Acervo Marcelo Pinheiro Boletim Informativo dos Trabalhadores Número 1 convoca os trabalhadores em geral para assembléia dos operários da Belgo outras paralisaram a produção. Sem os tradicionais piquetes, sem assembléias no sindicato. O coronel Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho, no dia 2 de abril, viria à cidade de Contagem e tentaria convencer os trabalhadores a interromper a greve, ilegal, contestatória – e, estranho: sem líderes ostensivos. Não pôde sequer intervir destituindo a direção do sindicato, pois a greve nasceu nas fábricas e empolgou 16 mil dos 21 mil trabalhadores da cidade industrial. Os metalúrgicos já tinham vencido o medo, e então enfrentaram o ministro que saiu da assembléia sob vaias. O coronel-ministro pôs em prática a partir daí a “guerra” que prometeu. Na TV, disse que a greve era um desafio ao governo e uma transgressão Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008 22 à lei, e que os grevistas poderiam ser demitidos e enquadrados na odiosa Lei de Segurança Nacional. Com o patronato acertou o não-pagamento dos dias parados e a busca de um por um em suas casas. O parque industrial foi ocupado por 1.500 policiais militares. As assembléias foram proibidas, assim como a distribuição de boletins e qualquer tipo de aglomeração. No dia 26 de abril os últimos grevistas retornaram ao trabalho. No entanto, no dia 27, boletins inundaram a cidade industrial convocando os trabalhadores para transformar o Primeiro de Maio em um dia de protesto contra o arrocho salarial. Os vencedores aparentes: ditadura e patronato. Por que então a já lendária greve de 1968 jamais é esquecida? Por que cientistas sociais como Francisco Weffort, Magda Neves, Yone Grossi, Delsy Gonçalves de Paula, Michel Le Ven, Augusto Buonicore e tantos outros a ela dedicaram milhares de páginas e horas de pesquisas? Contagem-1968 tornou-se um marco pleno de significados políticos, ultrapassou o município e o estado de Minas Gerais. Meses depois estimulou os metalúrgicos de Osasco, em São Paulo. Introduziu novos modelos de organização, de relação com os sindicatos. Recusou a lei (anti)greve e enfrentou o arrocho, levando o governo militar a conceder abono de 10% para todos os trabalhadores brasileiros pela primeira vez desde o golpe de 1964. O patronato viu-se incapaz de evitar a greve. O controle essencial na relação de dominação lhes escapou. Os trabalhadores fizeram-se ouvir, foram contestadores, entraram em cena. O golpe de 1964 atrasou o desenvolvimento político, social e cultural do povo brasileiro. Mas sem dúvida o sindicalismo sofreu grande derrota e o golpe militar foi contra a classe operária para impedir as greves. A lei (anti)greve impunha exigências que as inviabilizava e penalizava duramente sua burla com demissão sem indenização, afastamento de dirigentes sindicais envolvidos, multas e intervenção nos sindicatos. A Lei do Arrocho estipulava que os aumentos salariais dependiam de um cálculo que envolvia o salário real médio dos últimos dois anos combinado com a previsão de inflação nos próximos doze meses e a estimativa de aumento da produtividade. Entre 1964 e 1967, os trabalhadores brasileiros amargaram perda de 12% do salário real. Leis que restringiam severamente a atuação dos sindicatos tinham como objetivo facilitar a implantação de políticas econômicas assentadas na compressão dos salários e na redução de direitos sociais, como a estabilidade e a conseqüente facilitação das demissões. Os trabalhadores e o movimento sindical tiveram dificuldade em reagir. Setores da própria esquerda interpretaram a partir dos trabalhadores como cooptação da classe operária e deslocaram para os estudantes insubmissos, para os marginalizados (chegavam a enaltecer o papel dos “bandidos sociais”) ou para camponeses pobres, o papel de vanguarda revolucionária. Em 1967, com o fim da intervenção, surgem oposições sindicais em todo o país. Em São Paulo surge o Movimento Intersindical Anti-Arrocho (MIA). Em Mina Gerais, a oposição apresenta uma chapa encabeçada por Ênio Seabra, em uma aliança entre Ação Popular, Partido Comunista Brasileiro, Corrente Revolucionária e independentes, com a proposta de afastar os pelegos, fazer oposição ao arrocho e contra o fim da estabilidade. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) impugnou a candidatura de Ênio, que foi à luta, ganhou o direito de concorrer e foi eleito. O Ministério do Trabalho destituiu Ênio Seabra e impugnou mais três diretores. Nem isso foi impedimento a uma direção combativa. As esquerdas recuperaram o sindicato dos bancários e atuaram em sindicatos como o dos petroleiros, dos marceneiros e dos professores públicos. Em março de 1968, assembléia de 2 mil trabalhadores da Secretaria de Saúde (hoje Minascentro) cria o Comitê Intersindical Anti-Arrocho. Em Minas e no Brasil, 1968 é um ano marcado pela ampliação da oposição ao governo militar. Juscelino Kubitschek (JK) é mineiro e junto com Lacerda e Jânio Quadros compõe a Frente Ampla. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de Minas soma-se à oposição liberal-democrata. As lutas estudantis crescem em volume e extensão. Artistas, intelectuais, jornalistas, padres, famílias de exilados e perseguidos se manifestaram. A volta dos trabalhadores à cena estava latente. Mas por que Contagem? A cidade industrial de Contagem foi um sonho das elites mineiras, um “salto de sete léguas para o futuro”, como disse JK. Planejada para impulsionar a industrialização em Minas. Iniciada na década de 1940, deslanchou nos anos 1960 e em 1968 já abrigava 105 indústrias e 28 mil trabalhadores. Estrategicamente situada, milhares de trabalhadores foram atraídos para o maior projeto de modernidade dos empresários mineiros. Carteira assinada, direitos consolidados, novo status social, morar nos arredores da bela capital mineira... Oitenta por cento dos operários da Belgo recebiam dois salários mínimos, gastavam a metade com aluguel e transporte. O sonho das elites realizava-se à custa do pesadelo dos trabalhadores. Salários inferiores aos de Belo Horizonte, superexploração do trabalho, vigilância interna despótica, jornadas longas e exaustivas. Áreas ainda desocupadas pelas indústrias, ruas não-urbanizadas, beiradas de córregos, terrenos pantanosos viraram favelas para os trabalhadores que não conseguiam realizar o sonho da casa própria autoconstruída nos bairros da região. Bom para o patronato que não precisava remunerar moradia e transporte nos salários deprimidos. Os bairros novos recebem os trabalhadores sem ruas asfaltadas, com transporte público precário; falta tudo, escola, saúde, lazer, energia... Os boletins clandestinos referemse à vergonha dos trabalhadores de mostrar as marmitas com arroz, ovo e couve e ao clima opressivo, expresso em situações como a restrição a usar o banheiro. O sonho das elites realizava-se à custa do pesadelo dos trabalhadores: salários inferiores aos de Belo Horizonte, superexploração, vigilância interna despótica... 23 Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008 A greve surge como uma ação para resgatar a dignidade e o respeito próprio dos trabalhadores, como revolta com o tratamento dispensado pelos empresários e pelo Estado aos verdadeiros construtores do progresso e “do salto de sete léguas para o futuro”, contra a onipotência do aparato militar e o desrespeito às lideranças sindicais. Quarenta anos depois, as lideranças criticam o importante estudo pioneiro do cientista político Francisco Weffort1 (1972) sobre a greve de Contagem, pela subestimação do papel do sindicato dos metalúrgicos e dos grupos de esquerda. Dezenas de militantes das classes médias atuaram em Contagem e no Barreiro. Pessoas que renunciaram às suas carreiras, com muita coragem pessoal, viam nas favelas, nos bairros desprovidos, assolados pela poluição, o espaço coletivo da classe operária, constituída como classe, agindo como classe, liderando a revolução. Consumiam suas noites, explicando a realidade capitalista, buscando introduzir novas práticas políticas, para além da revolta individual, da sabotagem de peças. Andarilhos e missionários da revolução, que acreditavam iminente. Tinham pressa; seu tempo se conta por dias e semanas. Percorrem as portas de fábricas, pontos de ônibus, escolas noturnas, bairros, favelas, igrejas. Nos “aparelhos” os mimeógrafos produzem boletins que eram distribuídos nas casas. A greve na Belgo foi liderada pelo Comando de Libertação Nacional (Colina), organização autodenominada político-militar, que editava o Piquete e era uma dissidência da Política Operária (Polop). Weffort, Francisco. “Participação e Conflito Industrial: Osasco e Contagem − 1968” In Cadernos Cebrap, n. 5, São Paulo, 1972. A Ação Popular agregava lideranças importantes como Ênio Seabra, Mario Bento, Argentino, e “integrou à produção” importantes quadros políticos, além de deslocar outros para atuar nos bairros e escolas. Editava o boletim Companheiro e outros específicos, como o Bodoque. A Corrente Revolucionária, dissidência do PCB, atuava no sindicato por intermédio do inesquecível Joaquim de Oliveira, vice-presidente, e da então jovem secretária Conceição Imaculada (posteriormente banida do país quando trocada pelo embaixador alemão sequestrado) e nas fábricas e bairros com quadros jovens. Publicava o 1º de Maio. A Polop, enfraquecida pela dissidência Colina, entusiasmou-se com a emergência da luta operária e lançou o Partido Operário Comunista (POC). Tinha importantes quadros não-metalúrgicos, como Otavino Alves, Milton Freitas e Alcides Oliveira e “deslocou” seus melhores militantes para a cidade industrial. Publicava o Combate. O PCB era o partido mais antigo. Fortemente atingido pelo golpe e pelas dissidências, tinha quadros como Antônio Benigno, da Mannesman. O próprio Antônio Santana, que ficou como presidente do sindicato após Ênio Seabra ser impedido de tomar posse, era vinculado a Benigno. A Igreja Católica, por meio de inúmeros padres, seminaristas e militantes leigos, desempenhou também importante papel. Em outubro, as esquerdas planejaram outra greve, acreditando no agravamento da situação econômica e na possibilidade de derrotar o governo militar. Os fatos demonstraram que, na verdade, o país caminhava para o golpe dentro do golpe. Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008 24 1 A repressão à Frente Ampla, ao MDB, à contestação na área cultural, ao Congresso de Ibiúna, a absoluta intolerância à entrada em cena dos trabalhadores e à insurgência, apontavam para as trevas da repressão. Em 3 de outubro a nova greve foi esmagada. O legado O mito e a mística de Contagem permaneceram. Mesmo nos anos de chumbo, militantes organizados ou não, sobretudo cristãos engajados, radicaram-se em Contagem e no Barreiro. Poucos anos depois, vieram o Jornal dos Bairros, o Centro de Estudos do Trabalho, o Centro Cultural Operário, o Grupo de Estudos e Trabalho em Educação Comunitária (Getec), as pastorais e os movimentos populares urbanos. Apenas dez anos depois, em plena ditadura, vem a oposição sindical metalúrgica, em seqüência as greves nas fábricas. O novo sindicalismo articula-se com os movimentos de bairros e favelas, com as comunidades de base, com a imprensa popular. Muitos dos dirigentes de 1968, junto com as novas lideranças, fundaram o Partido dos Trabalhadores (PT) e, poucos anos depois, a Central Única dos Trabalhadores (CUT). A greve de 1968 jamais foi esquecida, pelo que significou, pelas novidades que trouxe para a organização e para a orientação dos trabalhadores. Não espanta, pois, que a tradição inaugurada em 1968 seja celebrada e elevada por dois prefeitos sindicalistas: Marília Campos, de Contagem, oriunda do sindicalismo combativo dos bancários dos anos 1980, e Emídio de Souza, metalúrgico de Osasco. ✪ Nilmário Miranda é vice-presidente da Fundação Perseu Abramo