Módulo 1 Reconhecendo o Território Aula 3 Os diferentes estatutos jurídicos OBJETIVO Descrever e analisar o processo de ocupação do território fluminense, enfatizando as relações de poder que se manifestaram nos diferentes estatutos jurídicos do bloco territorial fluminense, principalmente seu núcleo, abordando a consolidação e perda da sua centralidade na administração política do território nacional. INTRODUÇÃO O território do atual estado do Rio de Janeiro tem sua origem no que correspondeu a parte das capitanias de São Vicente e São Tomé, enquanto seu núcleo, a cidade do Rio de Janeiro, correspondia a Capitania Real. Em 1763, com a transferência da capital do Vice-Reinado de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro, inicia-se um período marcado por transformações jurídicas, que dotará o território de grande influência e expressão na construção e consolidação da nação. Em 1808, em decorrência da vinda da família real portuguesa para o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro torna-se sede da coroa portuguesa. Em 1834, a cidade do Rio de Janeiro desvincula-se da Província Fluminense sendo alçada à condição de Município Neutro da Corte. Torna-se a cidade/capital do Brasil, passando a ser um território único e institucionalmente diferenciado das demais províncias, o que significa sua separação política da Província Fluminense, que irá se transformar na mais importante província, econômica e politicamente, do Império. Em 1889, com a República, a antiga Província Fluminense é elevada a categoria de estado e o Município Neutro passa à condição de Distrito Federal, função que exerce até 1960, com a transferência da capital federal para Brasília. Nesse mesmo ano, é criado o estado da Guanabara, a cidade do Rio de Janeiro torna-se estado e capital, uma cidade-estado. Em 1975, em pleno regime militar, será institucionalizada a atual configuração territorial fluminense, através da fusão dos antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. O debate acerca dessa última grande alteração nos estatutos jurídicos do Rio de Janeiro é grande. Quais os motivos que levaram a fusão? Quais os impactos na economia e na política local que essa fusão acarretou? Foi um erro ou o pontapé inicial para o desenvolvimento do interior fluminense? E ainda há o aspecto cultural, pois será que o carioca se entende como natural do estado do Rio de Janeiro ou como natural de sua capital? Leia os textos a seguir e reflita como os diferentes estatutos jurídicos dotaram o território fluminense de singularidades históricas que irão se manifestar em fortes territorialidades locais e regionais. Os diferentes estatutos jurídicos A origem da fusão Além do fato: Rio, capital da identidade nacional O resgate da governança perdida Fusão, desfusão e muita confusão OS DIFERENTES ESTATUTOS JURÍDICOS Como ressalta RIBEIRO (2001) nenhuma outra unidade política brasileira passou, em sua história, por tantos estatutos jurídicos, sobretudo o seu núcleo, representado pelo município e capital, como é o caso do Rio de Janeiro. Os diversos estatutos jurídicos garantiram ao Rio de Janeiro o exercício de diferentes papéis na administração política do território nacional, contribuindo não só para que se consolidasse uma centralidade, do ponto de vista político-administrativo, por parte do Rio de Janeiro como também para a perda desta centralidade. O ultimo episódio nas transmutações dos estatutos jurídicos do Rio de Janeiro, a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, é emblemática no sentido de completar um quadro iniciado no período colonial e finalizado em 1975, o de (re)estabelecer juridicamente a união do Rio de Janeiro com o seu interior. 1. O Rio colonial: Capital do Vice-reinado, Capital do Império e Município Neutro Ao longo de grande parte do período colonial, o território do atual Estado do Rio de Janeiro correspondeu às capitanias de São Vicente, localizada ao Sul, e de São Tomé, ao Norte, enquanto que a cidade do Rio de Janeiro correspondia à Capitania Real. O primeiro marco nas diversas transformações jurídicas pelas quais passou o Rio de Janeiro ocorreu em 1763, com a transferência da capital do Vice-Reinado de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro (principal centro urbano da capitania). Nesse período, o Rio de Janeiro vai sediar a administração portuguesa no Brasil. A elevação do Rio de Janeiro a capital do Vice-Reinado implicou no deslocamento do epicentro administrativo da Colônia para o sudeste do país, resultando em alguns marcos na mesma, como por exemplo a reconstrução do prédio da Alfândega. Esse primeiro momento de centralidade política-administrativa da cidade do Rio de Janeiro vai culminar com a nomeação da cidade em Capital do Império, em 1808, em decorrência da vinda da família real portuguesa para o Brasil. A vinda da Corte representou um aumento de 15 mil portugueses a população do Rio de Janeiro. PRADO JR. (1961) aponta a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil como um dos primeiros passos para o processo de independência do país, chegando a mencionar que “os quatorze anos que decorrem da sua chegada [Família Real] até a proclamação formal da independência não podem ser computados na fase colonial da história brasileira” (p.45). Esse incremento populacional acontece numa vila colonial com população estimada entre 43 e 50 mil pessoas. Com este impacto demográfico e de gastos, a cidade bruscamente eleva seu patamar de renda, de atividade, de emprego, assim como altera profundamente a cultura local. A chegada da Corte associou a valorização imobiliária com uma crise completa de habitações, decorrente da falta de infra-estrutura compatível com o grande aumento populacional. O Rio capital incorporou, quando de sua criação, Paquetá e Santa Cruz aos domínios da capital. Diversos signos representativos da Capital foram impressos na paisagem da cidade neste período. Posteriormente à independência do Brasil, em 1834, a cidade do Rio de Janeiro desvincula-se da Província Fluminense sendo alçada a condição de Município Neutro da Corte. Neste momento o Rio de Janeiro é definitivamente consagrado como a cidade/capital do Brasil, passando a ser um território único e institucionalmente diferenciado das demais províncias. O Município Neutro marcou a separação política da cidade com a Província Fluminense que, nesta época, reincorporou as regiões de Campos dos Goitacazes e Paraty. LESSA (2001) menciona que esta Província será a mais importante, econômica e politicamente, do Império, sob comando da oligarquia mais rica, com uma Assembléia provincial e um presidente indicado pelo imperador, tendo Niterói, a antiga Vila Real da Praia Grande, como capital da mesma. 2. De Capital do Império à Capital da República: a perda da centralidade Com a Proclamação da República, em 1889, um novo estatuto jurídico é configurado. O antigo Município Neutro passa à condição de Distrito Federal e a antiga província fluminense é elevada a categoria de Estado. Os estatutos jurídicos anteriores colaboraram na transmutação do Rio de Janeiro como Município Neutro em Distrito Federal: desde 1834, a cidade estava separada da província fluminense, o que garantia certa neutralidade da cidade com relação aos interesses das oligarquias provincianas. A cidade do Rio de Janeiro exerce função política na condição de Distrito Federal até 1960, quando da transferência da capital federal para Brasília. Neste mesmo ano, é criado o Estado da Guanabara, passando a cidade do Rio de Janeiro a exercer, no contexto nacional, um papel singular - o de Estado e Capital, simultaneamente. Alguns autores apontam a transferência da capitalidade para Brasília como o inicio do processo de perda progressiva da centralidade política exercida pelo Rio de Janeiro, ou mesmo de um processo de esvaziamento econômico. Autores como LIMONAD (1996) defendem a tese de que não ocorreu no Rio de Janeiro um esvaziamento econômico. Quando da transferência da capital, o Rio de Janeiro já apresentava grande defasagem estrutural no que se refere ao desenvolvimento industrial comparativamente à São Paulo. Nesse sentido, a centralidade do Rio de Janeiro vai sendo progressivamente diluída. 3. A Fusão e a consolidação do Estado do Rio de Janeiro A última grande alteração nos estatutos jurídicos do Rio de Janeiro ocorreu em 1975. Neste ano é institucionalizado o território do atual Estado do Rio de Janeiro, através da fusão dos antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que a fusão, assim como as demais alterações nos estatutos jurídicos do Rio de Janeiro, foram intervenções impositivas. No caso da fusão, essa intervenção foi feita pelo governo militar. A fusão uniu novamente a cidade do Rio de Janeiro com o seu entorno, os quais haviam sido separados em 1834 quando da nomeação da cidade em Município Neutro. Com a fusão, a Guanabara passou à condição de município do atual Estado, sendo que a cidade do Rio de Janeiro passa a exercer a função de capital dessa nova unidade federada. Por sua vez, Niterói, antiga capital do Estado do Rio de Janeiro, perde seu status político administrativo exercendo a função de sede municipal e, conseqüentemente, passando por um processo de esvaziamento da máquina administrativa estadual. EVANGELISTA (1998) menciona que a fusão representou um contraste com a história da cidade do Rio de Janeiro, pois a mesma deixou de ser capital do país, em 1960, para se tornar Estado da Guanabara, e, quinze anos depois, em 1975, passou a ser apenas um município, percebendo-se assim que ocorreu um descenso na significação política da cidade. Como ressalta DAVIDOVICH (2000), a fusão não foi capaz de superar a falta de solidariedade e de pertencimento coletivo por parte de sua população no contexto do novo Estado formado, distinguindo-se dois sub-espaços bem diferenciados, representados pela Região Metropolitana e seu núcleo, o município do Rio de Janeiro, e o interior, no qual estão incluídos todos os municípios fluminenses localizados além dos limites metropolitanos. A ORIGEM DA FUSÃO Paulo Duque Deputado estadual pelo PPS A origem da fusão tem causas remotas, distantes e recentes. As mais remotas reencontram as diferentes tentativas de colonização, com a criação das capitanias hereditárias, posteriormente transformadas em províncias. No Império, em 1834, ato adicional desmembra uma área da província do Rio de Janeiro que se transforma em município neutro, sede da coroa. Com a proclamação da República e a entrada em vigor da primeira constituição republicana, esta determinava, no seu art. 2º, o ponto originário da fusão. Homens públicos, dos mais eminentes, propuseram a redivisão territorial do Brasil. As sucessivas constituições republicanas dificultaram a criação ou fusão de novas unidades por força de exigência de pronunciamento das assembléias legislativas estaduais, que transformavam um assunto de interesse nacional em interesse local. Uma medida de tal ordem, como a transformação de fronteiras estaduais, só pode ser concretizada após a revolução de 1930, quando foram criados os territórios do Amapá, Rio Branco, Guaporé, Ponta Porã e Iguaçu. Em 1955, surgiu no cenário nacional um político otimista, inteligente e realizador, com um plano de metas onde a audácia se aliava à inteligência: Juscelino Kubitschek. Sua principal meta era a mudança da capital para o planalto central. Daí surgiu a Lei Federal nº 2.874/56. Em 1961 dá-se a mudança da capital do Rio para Brasília. O presidente Ernesto Geisel, num alentado livro de memórias, afirma que a idéia da fusão dos estados do Rio e da Guanabara é exclusivamente dele, do seu então ministro da Justiça, Armando Falcão e do seu assessor especial, Heitor de Aquino. Vale a pena contestar com provas concretas as afirmativas do presidente. Ao assumir o mandato de deputado estadual pelo antigo partido republicano, em 1962, depois de muitos estudos e pesquisas, cheguei a uma conclusão: havia que se expor um fato inusitado no Brasil, que era a existência de um estado que correspondia, em área, a 0,2% do território nacional e que possuía uma população de 4 milhões de habitantes, uma densidade demográfica relativa de 3.500 pessoas por quilômetro quadrado, índices só encontrados em algumas cidades do Japão. O projeto de lei de minha autoria que tomou o número 2.529/66, publicado no Diário Oficial da Assembléia Legislativa em 13 de dezembro de 1966, trata justamente da fusão. A mensagem do presidente Geisel ao Congresso ocorreu 10 anos depois da publicação oficial de minha proposição, vista, revista, debatida e anunciada. Este projeto foi, ao meu ver, a origem mais próxima que inspirou o presidente Geisel e seus assessores a tomar a iniciativa de efetuar a fusão dos dois estados. Ao contrário do que muita gente pensa e diz, a fusão do antigo estado do Rio com a Guanabara não foi uma imposição. Ela se originou de uma mensagem do presidente ao Congresso, onde foi debatida e votada por deputados de todo o Brasil. Se por um lado o projeto vem subscrito pelas forças políticas e governamentais, por outro foi objeto de debates e finalmente foi votado não a mensagem original e sim um substitutivo. Enviado a sanção, tornou-se lei e começou a vigorar a partir de 1975. Falar em retorno da capital é atitude anti-patriótica. Falar em desfusão é trocar o roto pelo esfarrapado. O importante é irmos em frente. O importante hoje é defender nossas fronteiras, ocupar os grandes espaços e deixar de lado os preconceitos que apenas denigrem e não levam a nenhum sucesso. ALÉM DO FATO: RIO, CAPITAL DA IDENTIDADE NACIONAL César Maia Artigo publicado no Jornal do Brasil 01 de Março de 2005 Dom Pedro - carioca desde os 10 anos - com apenas 24 anos entende que estava na hora de o Brasil ficar independente, após as novas medidas centralizadoras da Corte de Lisboa. Mas só o Rio de Janeiro entendia como ele. Em uma viagem em que somou habilidade política e coragem, convence Minas Gerais e São Paulo a ficarem pelo menos neutras quanto às medidas que adotaria. E declara a Independência. Em 12 de outubro o Império é legalmente constituído e dom Pedro I, consagrado. Todo o Nordeste e o Norte mantêm-se ligados a Portugal. O carioca Pedro I organiza um exército e uma marinha para impor a ordem e a unidade nacionais, em uma guerra que durou mais de um ano, em que o Brasil de Pedro I era chamado de Rio de Janeiro. Assim mesmo, a Inglaterra só veio a reconhecer a independência do Brasil dois anos depois. Estabelecida a paz provisória, as lutas emancipacionistas se multiplicaram desde a Confederação do Equador, passando pela Cabanagem, pela Balaiada, pela Revolução Farroupilha, estas especialmente durante a Regência. O Rio de Janeiro finalmente garantiu a unidade nacional e, em razão desta, a identidade nacional - "definida no plano simbólico como oposição ao outro" (Boris Fausto), o domínio colonial. Mesmo a marca fundadora da unidade e identidade nacionais e esta condição de cidade-síntese permaneceram sendo contestadas pelas décadas afora. "Quem governa este infeliz país é a gritaria embriagadora da capital", dizia o jornal O Pharol em 30 de maio de 1888, reclamando contra a lei de libertação dos escravos promulgada duas semanas antes por Isabel, princesa regente carioca, e que não incluiu a indenização aos proprietários de escravos que os consideravam parte de seu capital. A Constituição de 1891 - a primeira republicana - determinava a retirada da capital do Rio para o planalto central. Um de seus dispositivos mais discutidos foi o status da capital. A autonomia que se seguiu à proclamação da República durou poucos meses. Dez anos depois, o presidente Campos Sales dizia que o país era inadministrável desde esta cidade rebelde e propunha a política dos governadores como alternativa. O levante dos tenentes nos anos 30 precipitou a saída da escola militar do Rio. Ficar aqui era, segundo se dizia, muito perigoso. Um líder civil dos tenentes - Pedro Ernesto - incluiu no programa de Getúlio Vargas, candidato a presidente do Brasil, a autonomia do Distrito Federal. Com a Revolução de 30, Pedro Ernesto termina prefeito do Distrito Federal e cria o Partido Autonomista do DF, que se torna amplamente majoritário na capital. Sua força levou a Constituinte de 1934 a incluir na Constituição a autonomia, com poder legislativo completo, à sua Câmara Municipal e a eleição direta do prefeito, após o primeiro, Pedro Ernesto, que seria eleito indiretamente. Ele recebeu 40% dos votos, elegendo 20 de 24 vereadores. Pedro Ernesto funda no Brasil a educação e a saúde como direito universal; funda a escola pública laica; funda a Universidade do Distrito Federal com Cecília Meireles, Hermes Lima, Portinari, Lucio Costa...; e constrói o embrião do trabalhismo. Mesmo sua proximidade com Vargas não foi suficiente. Visto como perigo, Pedro Ernesto é preso pelo mesmo Vargas, por supostas ligações com o movimento comunista de 1935. Libertado pelo STF, retorna consagrado. O DF sofre nova intervenção com a desculpa de ainda não ter criado seu Tribunal de Contas. A repressão a intelectuais e artistas, a partir do fechamento da Universidade do DF, os transfere para São Paulo, área onde Vargas pisava em ovos depois da Revolução de 32. A Constituinte de 46 mudou muita coisa, mas não o estado de intervenção sobre a capital, com prefeito nomeado e poder legislativo castrado pelo Senado, o que levou à renúncia do vereador Carlos Lacerda - de longe o mais votado em 1947. A maioria carioca do PCB na Câmara Municipal, única no Brasil, durou pouco com a ilegalidade imposta ao partido. Menos de dez anos depois se iniciava a cruzada de JK para a transferência da capital. Grupos de trabalho constituídos, metas, programas, projetos, num processo realizado em tempo recorde. Nem um só grupo de trabalho ou esforço de reflexão foi feito nesse período para pensar a situação do Rio após a mudança da capital. De maneira improvisada surge, já no ano da mudança, a alternativa oferecida por Santiago Dantas de criar o Estado da Guanabara, que se transformou em Estado-Capital de fato. Menos de dez anos depois, o regime militar identificava o grupo político carioca capaz de minimizar esta expressão nacional carioca e de submeter o novo estado a uma posição politicamente subalterna. Mas não era suficiente e veio a fusão. Dez anos depois o Rio recupera sua autonomia, mas agora como município. E inicia um difícil processo de relançamento de suas marcas de identidade, coisa que só volta a ocorrer a partir da escolha do Rio como sede da Eco-92, quando recupera sua auto-estima e inicia um ciclo longo de grandes investimentos urbanos, sociais, culturais, ambientais, em entretenimento, afirmando sua identidade internacional. O ciclo paralelo do narco-varejo e seu impacto dificultam a muitos enxergar este processo, este novo momento. A reconversão da cidade não é percebida e a desindustrialização necessária é vista como esvaziamento. A dimensão continental dos grandes grupos econômicos os obriga a uma racional centralização geográfica em São Paulo, que é sublinhada da mesma forma. Este ano o IBGE apresentou os dados do PIB nacional regional para 2002. E, para surpresa dos desatentos, o PIB da cidade do Rio de Janeiro, separada do Estado e, portanto, na sua condição anterior, é o terceiro do Brasil. O Estado de São Paulo, com mais de 34%, e Minas Gerais, com pouco mais de 9%, vêm à frente. A cidade do Rio de Janeiro aparece com 7,8%, quase uma Minas Gerais, e o Rio Grande do Sul, com 7,6%. O antigo Estado do Rio, incluindo o petróleo, vem bem mais abaixo, com 4,5%. Apesar dos pessimistas de profissão, dos exotismos políticos, da nostalgia de uns, da cegueira de outros, o Rio se afirma, avança e repõe, progressivamente, sua centralidade de sempre. O RESGATE DA GOVERNANÇA PERDIDA Aspásia Camargo 1. Cidade Estado e Região Metropolitana. Estamos mergulhados em pleno debate sobre o movimento Autonomia Carioca, que atingiu em cheio, na última semana, a alma e o coração de muita gente. Este debate, que aflorou em outras ocasiões, aparece agora em um momento em que os sintomas de agonia institucional de nossa cidade se agravaram a tal ponto que, para nós, a autonomia é uma questão de sobrevivência. Ser carioca é um bom estado de espírito, mas tantas foram as mudanças e experimentos que nos foram impostos nas últimas décadas que o povo irreverente e libertário tornou-se passivo e conformista. Alguns temem ser tarde demais para reagir, passados trinta anos de fusão, mesmo mal sucedida. No entanto, temos ainda energia e orgulho para combater a descrença e para reverter o esvaziamento econômico, cultural e político do Rio. Para que isto ocorra, precisamos contar com a inspiração e as bandeiras de nosso passado e com um projeto coletivo para o futuro. Nossa bandeira é a capitalidade e a governança perdidas. O futuro é a cidade global que é nossa vocação e nosso destino. Sem saudosismos, verificamos que, nesta virada de século e de milênio, as velhas identidades históricas são importante instrumento de transformação e crescimento. Por toda parte, a História e a Geografia se associam estimulando o ressurgimento das identidades regionais ou locais, soterradas por séculos de centralização e homogeneidades opressivas. Por isso, escorados no peso de nosso próprio passado, lançamos a bandeira da reconstrução da Cidade- Estado que é o sentimento nativista necessário para mobilizar as energias dispersas. Ninguém duvida de que o Estado do Rio de Janeiro, precária e arbitrariamente criado em 1975 com a promessa de grandes planos e investimentos, e de um futuro plebiscito, formou-se das sobras do Estado da Guanabara, cuja máquina se transferiu para a prefeitura. O Estado do Rio foi, portanto, desde o início, uma engrenagem precária que hoje se encontra em fase terminal, em agonia financeira, fiscal e administrativa. O ente inerme que assim se criou vem se arrastando por três décadas de sucessivos governos fracassados. Ás voltas com tanto problemas, tendem a ignorar nossa cidade ou a submetê-la a políticas inadequadas às suas necessidades e estilos de vida. Com o tempo, os problemas crônicos se agravaram e o governo estadual tornou-se um obstáculo à solução de suas carências vitais. Por aqui, sequer temos o tão criticado Estado Mínimo. Segurança e Justiça, saneamento básico, moradia e transporte, saúde e educação saíram do mapa. Carecemos ainda de uma política industrial e de infra-estrutura que viabilize nossa vocação para uma cidade global. O caminho é, portanto, recuperar as velhas funções que já exercemos com competência e garbo, modernizando a máquina moribunda e restaurando a governança perdida. Nossa proposta se inspira no respeito universal à diversidade e à singularidade no encaminhamento das soluções coletivas. Radicalizar a descentralização do poder é uma orientação consensual que ilumina todos os reformadores deste início de milênio. Esta é regra básica das federações modernas que aplicam o principio da subsidiariedade, segundo o qual cabe, em primeiro lugar, valorizar a ação da sociedade civil, em seguida a do município e do poder local. As demais instâncias, estadual ou federal, participam como força hierarquicamente complementar. Esta foi a orientação do federalismo alemão depois da 2a Guerra e do memorável governo de Franco Montoro em S.Paulo, no início da redemocratização. Esta nova política, inspirada no federalismo cooperativo, coloca o governo mais próximo da sociedade e da cidadania, estimulando sua participação. Na Inglaterra unitária também a Escócia conseguiu uma situação singular: um ministério permanente e um Parlamento autônomo, recém conquistado. Na Espanha, Barcelona negociou com o governo central um status especial de capitalidade, exercido junto com Madrid. No mundo civilizado, processos de fusão levam tempo e custam caro, e a parte mais rica ajuda a mais pobre, como ocorreu com a antiga Alemanha Oriental que recebeu uma injeção de 150 bilhões de dólares em dez anos, o mesmo tempo que levou Berlim para negociar com Bonn a mudança da capital. Por que nada disso aconteceu conosco ou não poderia ainda ocorrer? Na negociação que não houve, faltou aos nossos governantes presença de espírito, fibra e discernimento. Em vez disso, tudo que nos restou foi um populismo ingênuo e ultrapassado que promoveu a pobreza e menosprezou a modernização econômica e social da cidade, facilitando a favelização e a economia informal e fechando os olhos para a ocupação dos morros pelo tráfico de drogas. Em nossa cidade, fortalecer a capacidade de governar significa, antes de mais nada, reformar as instituições para restaurar a tradição de duzentos e cinqüenta anos em que fomos Cidade-Estado ou cidade-capital. Em Barcelona, foi o seu status especial que lhe permitiu dar dinamismo ao seu projeto de revitalização econômica e de construção da cidade global. As Olimpíadas ali sediadas foram o divisor de águas que demarcou um novo período, como os Jogos PanAmericanos de 2007 poderão vir a ser para nós. Isto desde que nos devolvam os instrumentos necessários para melhor governar. Não podemos perder esta oportunidade histórica de atrair recursos e modernizar instituições falidas. No Rio de Janeiro não cabem ilusões. A única maneira de garantir maior justiça social, emprego e renda qualificados para a nossa população é a construção de uma cidade global que abrigou a Conferência de 1992 que a projetou para o mundo, e difundiu o lema "pensar global e agir local". A experiência nos credencia a ser portadores de um novo modelo de administração de cidades sustentáveis, que oferecem turismo e qualidade de vida, associados ao meio ambiente, à indústria cultural, aos encontros internacionais e de negócios oferecidos pela Era da Comunicação e do Conhecimento. O pedaço deslumbrante de natureza que Deus nos deu precisa ser protegido. Devemos sustar a política econômica suicida que afasta as empresas com 22% de ICMS, além de uma burocracia lenta e opressiva. Tampouco podemos ver patinando a despoluição da Baía de Guanabara, entregue à CEDAE, uma empresa falida. Projetos vitais aqui não avançam no ritmo necessário para garantir a atratividade que é a maior fonte de distribuição de renda na Região Metropolitana de uma grande cidade. Se esta é a nossa vocação e o nosso destino, o que estamos esperando para seguir com firmeza e convicção este novo caminho? Devemos desconfiar de velhas promessas e do discurso social do populismo demagógico e de promoção sutil da pobreza que dá muitos votos. Junto com a cidade-estado, que o Governo Federal deveria estimular, cabe criar uma empresa social de participação mista e de parceria público-privada, para organizar a Região Metropolitana em torno da cidade-estado do Rio de Janeiro. Os Governos estaduais estão bastante anêmicos e têm sido capazes de criar as Regiões Metropolitanas que a Constituição lhes obriga em seu artigo 25. Mas o nosso, por defeitos de formação histórica, está condenado à inoperância. Se não criou a Região Metropolitana até agora é porque teme os municípios da periferia, tanto quanto o da capital. Nós, cariocas, somos solidários com nossos vizinhos da Baixada, que aqui trabalham e que utilizam gratuitamente nossos equipamentos sociais porque estão carentes ou abandonados em seus municípios de origem. Nada melhor do que novas formas de cooperação -baseadas em Lei Complementar ao Artigo 23 e na regularização da Lei do Consórcio - para trazer uma solução moderna de regionalização de nosso país que poderá ser iniciada no entorno da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Batizei e divulguei , em 1991, o princípio do "novo pacto federativo" junto com a descentralização recomendada pela Constituição de 1988. Há alguns anos trabalho com uma nova proposta de cooperação intermunicipal, regionalização e fortalecimento de consórcios e regiões metropolitanas. Estas idéias vêm sendo discutidas e examinadas pela Subsecretaria de Assuntos Federativos da Presidência da Republica como necessidade imperiosa. Elas podem e devem ser encaminhadas pelo Congresso Nacional, junto com a desfusão e a autonomia da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, como irmãos e vizinhos, certamente poderemos melhor nos entender com eles. Do ponto de vista institucional, é mais do que justo o resgate de uma dívida que a Federação Brasileira tem para com o Rio de Janeiro, o estado e a cidade mais prejudicados com os arranjos federativos das últimas décadas. O Estado do Rio de Janeiro que se juntou à antiga capital, viveu um século de abandono, subdesenvolvimento e pobreza, especialmente o Norte Fluminense. Com dois estados federados, teremos mais força para cobrar esta dívida, que é semelhante à que o Brasil tem com o Nordeste. E o faremos não apenas em nome da cidade, sempre vista como privilegiada mas sempre tão desarticulada e sacrificada. Falaremos também em favor do Estado-irmão fluminense. Quanto à tão desejada autonomia, é preciso registrar que não existe superioridade ou arrogância com relação ao estado e à sociedade fluminenses. De fato, não somos nem melhores nem piores, apenas cultural e historicamente diferentes. Desejamos resolver em escala menor problemas que se agravam no bolo comum das necessidades e carências. O imbróglio que se instalou no Rio de Janeiro exige autoridade e soluções focais e simples. Em Nova York, o prefeito Giuliani não teve que pedir permissão a ninguém para aplicar sua política da "Tolerância Zero", pois a polícia era dele. Este é o segredo do poder local e da conhecida fórmula do "small is beautiful". Autonomia Carioca, (http://www.autonomiacarioca.com.br/artigos/artigos.php?codClipping=8) 13/6/2004. FUSÃO, DESFUSÃO E MUITA CONFUSÃO César Maia Silogismo é a conclusão a partir de uma premissa. Silogismo erístico é a conclusão a partir de uma premissa falsa. Para as pessoas de boa-fé, este tipo de sofisma expressa sua angústia na busca da solução de um problema. O Rio visto como um problema não é equação nova. Vem da revolução de 1817, em Pernambuco, e atravessa as revoltas no Império, agrega os republicanos paulistas e gaúchos, ambos confederalistas, com Alberto Sales (A Pátria Paulista), e Júlio de Castilhos. A primeira Constituição da República, de 1891, decretou que o Rio deixaria de ser a capital. Campos Sales dizia que o país era ingovernável desde esta cidade rebelde. E por aí vão os exemplos até o discurso geopolítico que justificou a fusão, na verdade uma fusão de assembléias legislativas, para que o fogo de uma fosse apagado pelo gelo da outra. Até que deu certo, temos que admitir. Administrativamente, fundir é fácil. A base da fusão foi o Estado do Rio e as funções privativas de Estado, pois o direito adquirido garantia aos servidores da Guanabara, em funções municipais ou concorrentes, optar pela prefeitura do Rio. Lá se vão trinta anos. Que bom teria sido se não tivesse ocorrido, diriam os cariocas. Para os dois lados, diriam os fluminenses, mergulhados em petróleo, gás e royalties. Desconfio que dois plebiscitos, de um lado e do outro, produziriam um amplo apoio tanto aqui quanto lá. E depois? E para quê? Se for para sonhar, que tal fazer como Nova York, que no final de século XIX somou à Ilha de Manhattan sua área metropolitana Brooklyn, Queens, Staten Island e Bronx - e assim criar um estado somando o Rio e a Baixada? Muito mais racional que o Rio sozinho, já que várias funções são integradas, como transportes, saneamento, saúde, a Baía de Guanabara e, certamente, segurança pública. Que tal separar a cidade de São Paulo, criando uma cidade-estado? Em 1980, no final do regime autoritário, 6% dos paulistanos estavam abaixo da linha de pobreza. Hoje, são 13%. O Rio, naquele momento, tinha 18% abaixo da linha de pobreza. Hoje, tem os mesmos 13%. Os índices de violência na cidade de São Paulo eram a metade do Rio. Hoje, são os mesmos. Por que não salvar São Paulo? Talvez aqui seja uma discussão mais charmosa. Mas como fazer esta desfusão? Pelas receitas, é possível que a perda de ICMS pelo Estado do Rio seja compensada pelo ganho dos royalties. A redivisão da dívida pública, acrescida à do município do Rio, poderia ser proporcional às receitas totais. Da mesma forma, a dívida ativa. E as folhas de aposentados e pensionistas, poderiam ser proporcionais às receitas? É possível que os aposentados e pensionistas do Rio criem problemas por causa das taxas de risco completamente diferentes de suas fontes de financiamento e questionem na Justiça os seus direitos. E os servidores ativos? Estes, sim, têm direitos adquiridos e, portanto, podem optar pelo estado que quiserem. Talvez, os que moram no interior, por causa da distância, optem pelo lugar em que vivem. Mas estes representam apenas 10% da máquina estadual, cuja concentração está na região metropolitana, onde optar é muito mais fácil. E as instalações centrais localizadas no Rio? O Tribunal de Justiça e sua estrutura física e funcional, por exemplo? E suas receitas vinculadas que favorecem a Guanabara? Poderia servir aos dois estados, quem sabe. Mas como os 600 deputados e senadores de todo o Brasil veriam dois estados híbridos e este precedente? E de que maneira os federalistas veriam um estado com meio Poder Judiciário? E quem indicaria os nomes para as listas de nomeação? E quanto ao Tribunal de Contas? No plano das instituições, seriam criadas duas assembléias constituintes, que certamente fariam constituições não exatamente iguais à atual. Em seguida, viriam as leis de regulamentação e, enquanto isso, teríamos três regimes funcionando na Guanabara: o do Estado do Rio de Janeiro atual, o da prefeitura do Rio e aquele do novo Estado da Guanabara. Além dos dois regimes no novo Estado do Rio. E a segurança pública? Como fazer se ocorrer uma desproporcionalidade nas opções de pessoal em direção à Guanabara? O novo Estado do Rio ficaria sem polícia durante alguns anos? E o custo deste processo? Durante alguns anos -talvez vinte - ocorrerão duplicidades e triplicidades e aí teríamos um gasto público ampliado sem que os serviços o sejam. Quem financiaria? Os demais estados estarão dispostos a financiar este gasto adicional? O orçamento da União o faria? Seriam criados impostos para isso, onerando a população dos dois novos estados? "Que bom se não tivesse havido a fusão", talvez digam hoje cariocas e fluminenses. Mas desfazê-la não seria a desfusão, seria a confusão. Se há problemas a serem superados, adotar o caminho da confusão e nos lançarmos numa aventura de vinte anos certamente não será a solução. Na melhor hipótese, um silogismo erístico proposto por pessoas de boa vontade, lúdicas, líricas em reuniões festivas cheias de glamour e de ambages. Por vício de formação eu diria: vamos tratar de coisas práticas, há muito o que fazer. Publicado no Jornal O Globo 28 de abril de 2005