Módulo 1
Reconhecendo
o Território
Aula 3
Os diferentes estatutos jurídicos
OBJETIVO
Descrever e analisar o processo de ocupação do território fluminense,
enfatizando as relações de poder que se manifestaram nos diferentes
estatutos jurídicos do bloco territorial fluminense, principalmente seu
núcleo, abordando a consolidação e perda da sua centralidade
na administração política do território nacional.
INTRODUÇÃO
O território do atual estado do Rio de Janeiro tem sua origem no que
correspondeu a parte das capitanias de São Vicente e São Tomé,
enquanto seu núcleo, a cidade do Rio de Janeiro, correspondia a
Capitania Real. Em 1763, com a transferência da capital do Vice-Reinado
de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro, inicia-se um período
marcado por transformações jurídicas, que dotará o território de grande
influência e expressão na construção e consolidação da nação.
Em 1808, em decorrência da vinda da família real portuguesa para o
Brasil, a cidade do Rio de Janeiro torna-se sede da coroa portuguesa.
Em 1834, a cidade do Rio de Janeiro desvincula-se da Província
Fluminense sendo alçada à condição de Município Neutro da Corte.
Torna-se a cidade/capital do Brasil, passando a ser um território único e
institucionalmente diferenciado das demais províncias, o que significa sua
separação política da Província Fluminense, que irá se transformar na
mais importante província, econômica e politicamente, do Império.
Em 1889, com a República, a antiga Província Fluminense é elevada a
categoria de estado e o Município Neutro passa à condição de Distrito
Federal, função que exerce até 1960, com a transferência da capital
federal para Brasília. Nesse mesmo ano, é criado o estado da Guanabara,
a cidade do Rio de Janeiro torna-se estado e capital, uma cidade-estado.
Em 1975, em pleno regime militar, será institucionalizada a atual
configuração territorial fluminense, através da fusão dos antigos estados
da Guanabara e do Rio de Janeiro. O debate acerca dessa última grande
alteração nos estatutos jurídicos do Rio de Janeiro é grande. Quais os
motivos que levaram a fusão? Quais os impactos na economia e na
política local que essa fusão acarretou? Foi um erro ou o pontapé inicial
para o desenvolvimento do interior fluminense? E ainda há o aspecto
cultural, pois será que o carioca se entende como natural do estado do
Rio de Janeiro ou como natural de sua capital?
Leia os textos a seguir e reflita como os diferentes estatutos jurídicos
dotaram o território fluminense de singularidades históricas que irão se
manifestar em fortes territorialidades locais e regionais.
Os diferentes estatutos jurídicos
A origem da fusão
Além do fato: Rio, capital da identidade nacional
O resgate da governança perdida
Fusão, desfusão e muita confusão
OS DIFERENTES ESTATUTOS JURÍDICOS
Como ressalta RIBEIRO (2001) nenhuma outra unidade política brasileira
passou, em sua história, por tantos estatutos jurídicos, sobretudo o seu
núcleo, representado pelo município e capital, como é o caso do Rio de
Janeiro.
Os diversos estatutos jurídicos garantiram ao Rio de Janeiro o exercício
de diferentes papéis na administração política do território nacional,
contribuindo não só para que se consolidasse uma centralidade, do ponto
de vista político-administrativo, por parte do Rio de Janeiro como
também para a perda desta centralidade.
O ultimo episódio nas transmutações dos estatutos jurídicos do Rio de
Janeiro, a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro,
é emblemática no sentido de completar um quadro iniciado no período
colonial e finalizado em 1975, o de (re)estabelecer juridicamente a união
do Rio de Janeiro com o seu interior.
1. O Rio colonial: Capital do Vice-reinado, Capital do Império e
Município Neutro
Ao longo de grande parte do período colonial, o território do atual Estado
do Rio de Janeiro correspondeu às capitanias de São Vicente, localizada
ao Sul, e de São Tomé, ao Norte, enquanto que a cidade do Rio de
Janeiro correspondia à Capitania Real. O primeiro marco nas diversas
transformações jurídicas pelas quais passou o Rio de Janeiro ocorreu em
1763, com a transferência da capital do Vice-Reinado de Salvador para a
cidade do Rio de Janeiro (principal centro urbano da capitania). Nesse
período, o Rio de Janeiro vai sediar a administração portuguesa no Brasil.
A elevação do Rio de Janeiro a capital do Vice-Reinado implicou no
deslocamento do epicentro administrativo da Colônia para o sudeste do
país, resultando em alguns marcos na mesma, como por exemplo a
reconstrução do prédio da Alfândega.
Esse primeiro momento de centralidade
política-administrativa da cidade do Rio de
Janeiro vai culminar com a nomeação da
cidade em Capital do Império, em 1808,
em decorrência da vinda da família real
portuguesa para o Brasil. A vinda da
Corte representou um aumento de 15 mil
portugueses a população do Rio de
Janeiro.
PRADO JR. (1961) aponta a vinda
da Família Real Portuguesa para
o Brasil como um dos primeiros
passos para o processo de
independência do país, chegando
a mencionar que “os quatorze
anos que decorrem da sua
chegada [Família Real] até a
proclamação formal da
independência não podem ser
computados na fase colonial da
história brasileira” (p.45).
Esse incremento populacional acontece
numa vila colonial com população
estimada entre 43 e 50 mil pessoas. Com este impacto demográfico e de
gastos, a cidade bruscamente eleva seu patamar de renda, de atividade,
de emprego, assim como altera profundamente a cultura local. A
chegada da Corte associou a valorização imobiliária com uma crise
completa de habitações, decorrente da falta de infra-estrutura compatível
com o grande aumento populacional.
O Rio capital incorporou, quando de sua criação, Paquetá e Santa Cruz
aos domínios da capital. Diversos signos representativos da Capital foram
impressos na paisagem da cidade neste período.
Posteriormente à independência do Brasil, em 1834, a cidade do Rio de
Janeiro desvincula-se da Província Fluminense sendo alçada a condição
de Município Neutro da Corte. Neste momento o Rio de Janeiro é
definitivamente consagrado como a cidade/capital do Brasil, passando a
ser um território único e institucionalmente diferenciado das demais
províncias.
O Município Neutro marcou a separação política da cidade com a
Província Fluminense que, nesta época, reincorporou as regiões de
Campos dos Goitacazes e Paraty. LESSA (2001) menciona que esta
Província será a mais importante, econômica e politicamente, do Império,
sob comando da oligarquia mais rica, com uma Assembléia provincial e
um presidente indicado pelo imperador, tendo Niterói, a antiga Vila Real
da Praia Grande, como capital da mesma.
2. De Capital do Império à Capital da República: a perda da
centralidade
Com a Proclamação da República, em 1889, um novo estatuto jurídico é
configurado. O antigo Município Neutro passa à condição de Distrito
Federal e a antiga província fluminense é elevada a categoria de Estado.
Os estatutos jurídicos anteriores colaboraram na transmutação do Rio de
Janeiro como Município Neutro em Distrito Federal: desde 1834, a cidade
estava separada da província fluminense, o que garantia certa
neutralidade da cidade com relação aos interesses das oligarquias
provincianas.
A cidade do Rio de Janeiro exerce função política na condição de Distrito
Federal até 1960, quando da transferência da capital federal para
Brasília. Neste mesmo ano, é criado o Estado da Guanabara, passando a
cidade do Rio de Janeiro a exercer, no contexto nacional, um papel
singular - o de Estado e Capital, simultaneamente.
Alguns autores apontam a transferência
da capitalidade para Brasília como o inicio
do processo de perda progressiva da
centralidade política exercida pelo Rio de
Janeiro, ou mesmo de um processo de
esvaziamento econômico.
Autores como LIMONAD (1996)
defendem a tese de que não
ocorreu no Rio de Janeiro um
esvaziamento econômico.
Quando da transferência da capital, o Rio de Janeiro já apresentava
grande defasagem estrutural no que se refere ao desenvolvimento
industrial comparativamente à São Paulo. Nesse sentido, a centralidade
do Rio de Janeiro vai sendo progressivamente diluída.
3. A Fusão e a consolidação do Estado do Rio de Janeiro
A última grande alteração nos estatutos jurídicos do Rio de Janeiro
ocorreu em 1975. Neste ano é institucionalizado o território do atual
Estado do Rio de Janeiro, através da fusão dos antigos estados da
Guanabara e do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que a fusão, assim como
as demais alterações nos estatutos jurídicos do Rio de Janeiro, foram
intervenções impositivas. No caso da fusão, essa intervenção foi feita
pelo governo militar.
A fusão uniu novamente a cidade do Rio de Janeiro com o seu entorno,
os quais haviam sido separados em 1834 quando da nomeação da cidade
em Município Neutro.
Com a fusão, a Guanabara passou à condição de município do atual
Estado, sendo que a cidade do Rio de Janeiro passa a exercer a função
de capital dessa nova unidade federada. Por sua vez, Niterói, antiga
capital do Estado do Rio de Janeiro, perde seu status político
administrativo exercendo a função de sede municipal e,
conseqüentemente, passando por um processo de esvaziamento da
máquina administrativa estadual.
EVANGELISTA (1998) menciona que a fusão representou um contraste
com a história da cidade do Rio de Janeiro, pois a mesma deixou de ser
capital do país, em 1960, para se tornar Estado da Guanabara, e, quinze
anos depois, em 1975, passou a ser apenas um município,
percebendo-se assim que ocorreu um descenso na significação política da
cidade.
Como ressalta DAVIDOVICH (2000), a fusão não foi capaz de superar a
falta de solidariedade e de pertencimento coletivo por parte de sua
população no contexto do novo Estado formado, distinguindo-se dois
sub-espaços bem diferenciados, representados pela Região Metropolitana
e seu núcleo, o município do Rio de Janeiro, e o interior, no qual estão
incluídos todos os municípios fluminenses localizados além dos limites
metropolitanos.
A ORIGEM DA FUSÃO
Paulo Duque
Deputado estadual pelo PPS
A origem da fusão tem causas remotas, distantes e recentes. As mais
remotas reencontram as diferentes tentativas de colonização, com a
criação das capitanias hereditárias, posteriormente transformadas em
províncias. No Império, em 1834, ato adicional desmembra uma área da
província do Rio de Janeiro que se transforma em município neutro, sede
da coroa. Com a proclamação da República e a entrada em vigor da
primeira constituição republicana, esta determinava, no seu art. 2º, o
ponto originário da fusão.
Homens públicos, dos mais eminentes, propuseram a redivisão territorial
do Brasil. As sucessivas constituições republicanas dificultaram a criação
ou fusão de novas unidades por força de exigência de pronunciamento
das assembléias legislativas estaduais, que transformavam um assunto
de interesse nacional em interesse local. Uma medida de tal ordem,
como a transformação de fronteiras estaduais, só pode ser concretizada
após a revolução de 1930, quando foram criados os territórios do Amapá,
Rio Branco, Guaporé, Ponta Porã e Iguaçu.
Em 1955, surgiu no cenário nacional um político otimista, inteligente e
realizador, com um plano de metas onde a audácia se aliava à
inteligência: Juscelino Kubitschek. Sua principal meta era a mudança da
capital para o planalto central. Daí surgiu a Lei Federal nº 2.874/56. Em
1961 dá-se a mudança da capital do Rio para Brasília.
O presidente Ernesto Geisel, num alentado livro de memórias, afirma que
a idéia da fusão dos estados do Rio e da Guanabara é exclusivamente
dele, do seu então ministro da Justiça, Armando Falcão e do seu assessor
especial, Heitor de Aquino. Vale a pena contestar com provas concretas
as afirmativas do presidente. Ao assumir o mandato de deputado
estadual pelo antigo partido republicano, em 1962, depois de muitos
estudos e pesquisas, cheguei a uma conclusão: havia que se expor um
fato inusitado no Brasil, que era a existência de um estado que
correspondia, em área, a 0,2% do território nacional e que possuía uma
população de 4 milhões de habitantes, uma densidade demográfica
relativa de 3.500 pessoas por quilômetro quadrado, índices só
encontrados em algumas cidades do Japão.
O projeto de lei de minha autoria que tomou o número 2.529/66,
publicado no Diário Oficial da Assembléia Legislativa em 13 de dezembro
de 1966, trata justamente da fusão. A mensagem do presidente Geisel
ao Congresso ocorreu 10 anos depois da publicação oficial de minha
proposição, vista, revista, debatida e anunciada. Este projeto foi, ao meu
ver, a origem mais próxima que inspirou o presidente Geisel e seus
assessores a tomar a iniciativa de efetuar a fusão dos dois estados.
Ao contrário do que muita gente pensa e diz, a fusão do antigo estado do
Rio com a Guanabara não foi uma imposição. Ela se originou de uma
mensagem do presidente ao Congresso, onde foi debatida e votada por
deputados de todo o Brasil. Se por um lado o projeto vem subscrito pelas
forças políticas e governamentais, por outro foi objeto de debates e
finalmente foi votado não a mensagem original e sim um substitutivo.
Enviado a sanção, tornou-se lei e começou a vigorar a partir de 1975.
Falar em retorno da capital é atitude anti-patriótica. Falar em desfusão é
trocar o roto pelo esfarrapado. O importante é irmos em frente. O
importante hoje é defender nossas fronteiras, ocupar os grandes espaços
e deixar de lado os preconceitos que apenas denigrem e não levam a
nenhum sucesso.
ALÉM DO FATO: RIO, CAPITAL DA IDENTIDADE NACIONAL
César Maia
Artigo publicado no Jornal do Brasil
01 de Março de 2005
Dom Pedro - carioca desde os 10 anos - com apenas 24 anos entende
que estava na hora de o Brasil ficar independente, após as novas
medidas centralizadoras da Corte de Lisboa. Mas só o Rio de Janeiro
entendia como ele. Em uma viagem em que somou habilidade política e
coragem, convence Minas Gerais e São Paulo a ficarem pelo menos
neutras quanto às medidas que adotaria. E declara a Independência. Em
12 de outubro o Império é legalmente constituído e dom Pedro I,
consagrado. Todo o Nordeste e o Norte mantêm-se ligados a Portugal. O
carioca Pedro I organiza um exército e uma marinha para impor a ordem
e a unidade nacionais, em uma guerra que durou mais de um ano, em
que o Brasil de Pedro I era chamado de Rio de Janeiro. Assim mesmo, a
Inglaterra só veio a reconhecer a independência do Brasil dois anos
depois.
Estabelecida a paz provisória, as lutas emancipacionistas se
multiplicaram desde a Confederação do Equador, passando pela
Cabanagem, pela Balaiada, pela Revolução Farroupilha, estas
especialmente durante a Regência. O Rio de Janeiro finalmente garantiu
a unidade nacional e, em razão desta, a identidade nacional - "definida
no plano simbólico como oposição ao outro" (Boris Fausto), o domínio
colonial. Mesmo a marca fundadora da unidade e identidade nacionais e
esta condição de cidade-síntese permaneceram sendo contestadas pelas
décadas afora.
"Quem governa este infeliz país é a gritaria embriagadora da capital",
dizia o jornal O Pharol em 30 de maio de 1888, reclamando contra a lei
de libertação dos escravos promulgada duas semanas antes por Isabel,
princesa regente carioca, e que não incluiu a indenização aos
proprietários de escravos que os consideravam parte de seu capital. A
Constituição de 1891 - a primeira republicana - determinava a retirada
da capital do Rio para o planalto central. Um de seus dispositivos mais
discutidos foi o status da capital. A autonomia que se seguiu à
proclamação da República durou poucos meses. Dez anos depois, o
presidente Campos Sales dizia que o país era inadministrável desde esta
cidade rebelde e propunha a política dos governadores como alternativa.
O levante dos tenentes nos anos 30 precipitou a saída da escola militar
do Rio. Ficar aqui era, segundo se dizia, muito perigoso.
Um líder civil dos tenentes - Pedro Ernesto - incluiu no programa de
Getúlio Vargas, candidato a presidente do Brasil, a autonomia do Distrito
Federal. Com a Revolução de 30, Pedro Ernesto termina prefeito do
Distrito Federal e cria o Partido Autonomista do DF, que se torna
amplamente majoritário na capital. Sua força levou a Constituinte de
1934 a incluir na Constituição a autonomia, com poder legislativo
completo, à sua Câmara Municipal e a eleição direta do prefeito, após o
primeiro, Pedro Ernesto, que seria eleito indiretamente. Ele recebeu 40%
dos votos, elegendo 20 de 24 vereadores. Pedro Ernesto funda no Brasil
a educação e a saúde como direito universal; funda a escola pública
laica; funda a Universidade do Distrito Federal com Cecília Meireles,
Hermes Lima, Portinari, Lucio Costa...; e constrói o embrião do
trabalhismo. Mesmo sua proximidade com Vargas não foi suficiente. Visto
como perigo, Pedro Ernesto é preso pelo mesmo Vargas, por supostas
ligações com o movimento comunista de 1935. Libertado pelo STF,
retorna consagrado. O DF sofre nova intervenção com a desculpa de
ainda não ter criado seu Tribunal de Contas.
A repressão a intelectuais e artistas, a partir do fechamento da
Universidade do DF, os transfere para São Paulo, área onde Vargas
pisava em ovos depois da Revolução de 32. A Constituinte de 46 mudou
muita coisa, mas não o estado de intervenção sobre a capital, com
prefeito nomeado e poder legislativo castrado pelo Senado, o que levou à
renúncia do vereador Carlos Lacerda - de longe o mais votado em 1947.
A maioria carioca do PCB na Câmara Municipal, única no Brasil, durou
pouco com a ilegalidade imposta ao partido. Menos de dez anos depois se
iniciava a cruzada de JK para a transferência da capital. Grupos de
trabalho constituídos, metas, programas, projetos, num processo
realizado em tempo recorde. Nem um só grupo de trabalho ou esforço de
reflexão foi feito nesse período para pensar a situação do Rio após a
mudança da capital.
De maneira improvisada surge, já no ano da mudança, a alternativa
oferecida por Santiago Dantas de criar o Estado da Guanabara, que se
transformou em Estado-Capital de fato. Menos de dez anos depois, o
regime militar identificava o grupo político carioca capaz de minimizar
esta expressão nacional carioca e de submeter o novo estado a uma
posição politicamente subalterna. Mas não era suficiente e veio a fusão.
Dez anos depois o Rio recupera sua autonomia, mas agora como
município. E inicia um difícil processo de relançamento de suas marcas
de identidade, coisa que só volta a ocorrer a partir da escolha do Rio
como sede da Eco-92, quando recupera sua auto-estima e inicia um ciclo
longo de grandes investimentos urbanos, sociais, culturais, ambientais,
em entretenimento, afirmando sua identidade internacional.
O ciclo paralelo do narco-varejo e seu impacto dificultam a muitos
enxergar este processo, este novo momento. A reconversão da cidade
não é percebida e a desindustrialização necessária é vista como
esvaziamento. A dimensão continental dos grandes grupos econômicos
os obriga a uma racional centralização geográfica em São Paulo, que é
sublinhada da mesma forma. Este ano o IBGE apresentou os dados do
PIB nacional regional para 2002. E, para surpresa dos desatentos, o PIB
da cidade do Rio de Janeiro, separada do Estado e, portanto, na sua
condição anterior, é o terceiro do Brasil. O Estado de São Paulo, com
mais de 34%, e Minas Gerais, com pouco mais de 9%, vêm à frente. A
cidade do Rio de Janeiro aparece com 7,8%, quase uma Minas Gerais, e
o Rio Grande do Sul, com 7,6%. O antigo Estado do Rio, incluindo o
petróleo, vem bem mais abaixo, com 4,5%.
Apesar dos pessimistas de profissão, dos exotismos políticos, da
nostalgia de uns, da cegueira de outros, o Rio se afirma, avança e repõe,
progressivamente, sua centralidade de sempre.
O RESGATE DA GOVERNANÇA PERDIDA
Aspásia Camargo
1. Cidade Estado e Região Metropolitana.
Estamos mergulhados em pleno debate sobre o movimento Autonomia
Carioca, que atingiu em cheio, na última semana, a alma e o coração de
muita gente. Este debate, que aflorou em outras ocasiões, aparece agora
em um momento em que os sintomas de agonia institucional de nossa
cidade se agravaram a tal ponto que, para nós, a autonomia é uma
questão de sobrevivência. Ser carioca é um bom estado de espírito, mas
tantas foram as mudanças e experimentos que nos foram impostos nas
últimas décadas que o povo irreverente e libertário tornou-se passivo e
conformista.
Alguns temem ser tarde demais para reagir, passados trinta anos de
fusão, mesmo mal sucedida. No entanto, temos ainda energia e orgulho
para combater a descrença e para reverter o esvaziamento econômico,
cultural e político do Rio. Para que isto ocorra, precisamos contar com a
inspiração e as bandeiras de nosso passado e com um projeto coletivo
para o futuro. Nossa bandeira é a capitalidade e a governança perdidas.
O futuro é a cidade global que é nossa vocação e nosso destino.
Sem saudosismos, verificamos que, nesta virada de século e de milênio,
as velhas identidades históricas são importante instrumento de
transformação e crescimento. Por toda parte, a História e a Geografia se
associam estimulando o ressurgimento das identidades regionais ou
locais, soterradas por séculos de centralização e homogeneidades
opressivas. Por isso, escorados no peso de nosso próprio passado,
lançamos a bandeira da reconstrução da Cidade- Estado que é o
sentimento nativista necessário para mobilizar as energias dispersas.
Ninguém duvida de que o Estado do Rio de Janeiro, precária e
arbitrariamente criado em 1975 com a promessa de grandes planos e
investimentos, e de um futuro plebiscito, formou-se das sobras do Estado
da Guanabara, cuja máquina se transferiu para a prefeitura. O Estado do
Rio foi, portanto, desde o início, uma engrenagem precária que hoje se
encontra em fase terminal, em agonia financeira, fiscal e administrativa.
O ente inerme que assim se criou vem se arrastando por três décadas de
sucessivos governos fracassados. Ás voltas com tanto problemas,
tendem a ignorar nossa cidade ou a submetê-la a políticas inadequadas
às suas necessidades e estilos de vida. Com o tempo, os problemas
crônicos se agravaram e o governo estadual tornou-se um obstáculo à
solução de suas carências vitais. Por aqui, sequer temos o tão criticado
Estado Mínimo. Segurança e Justiça, saneamento básico, moradia e
transporte, saúde e educação saíram do mapa. Carecemos ainda de uma
política industrial e de infra-estrutura que viabilize nossa vocação para
uma cidade global. O caminho é, portanto, recuperar as velhas funções
que já exercemos com competência e garbo, modernizando a máquina
moribunda e restaurando a governança perdida.
Nossa proposta se inspira no respeito universal à diversidade e à
singularidade no encaminhamento das soluções coletivas. Radicalizar a
descentralização do poder é uma orientação consensual que ilumina
todos os reformadores deste início de milênio. Esta é regra básica das
federações modernas que aplicam o principio da subsidiariedade,
segundo o qual cabe, em primeiro lugar, valorizar a ação da sociedade
civil, em seguida a do município e do poder local. As demais instâncias,
estadual ou federal, participam como força hierarquicamente
complementar. Esta foi a orientação do federalismo alemão depois da 2a
Guerra e do memorável governo de Franco Montoro em S.Paulo, no início
da redemocratização. Esta nova política, inspirada no federalismo
cooperativo, coloca o governo mais próximo da sociedade e da cidadania,
estimulando sua participação.
Na Inglaterra unitária também a Escócia conseguiu uma situação
singular: um ministério permanente e um Parlamento autônomo, recém
conquistado. Na Espanha, Barcelona negociou com o governo central um
status especial de capitalidade, exercido junto com Madrid. No mundo
civilizado, processos de fusão levam tempo e custam caro, e a parte mais
rica ajuda a mais pobre, como ocorreu com a antiga Alemanha Oriental
que recebeu uma injeção de 150 bilhões de dólares em dez anos, o
mesmo tempo que levou Berlim para negociar com Bonn a mudança da
capital.
Por que nada disso aconteceu conosco ou não poderia ainda ocorrer? Na
negociação que não houve, faltou aos nossos governantes presença de
espírito, fibra e discernimento. Em vez disso, tudo que nos restou foi um
populismo ingênuo e ultrapassado que promoveu a pobreza e
menosprezou a modernização econômica e social da cidade, facilitando a
favelização e a economia informal e fechando os olhos para a ocupação
dos morros pelo tráfico de drogas.
Em nossa cidade, fortalecer a capacidade de governar significa, antes de
mais nada, reformar as instituições para restaurar a tradição de duzentos
e cinqüenta anos em que fomos Cidade-Estado ou cidade-capital. Em
Barcelona, foi o seu status especial que lhe permitiu dar dinamismo ao
seu projeto de revitalização econômica e de construção da cidade global.
As Olimpíadas ali sediadas foram o divisor de águas que demarcou um
novo período, como os Jogos PanAmericanos de 2007 poderão vir a ser
para nós. Isto desde que nos devolvam os instrumentos necessários para
melhor governar. Não podemos perder esta oportunidade histórica de
atrair recursos e modernizar instituições falidas.
No Rio de Janeiro não cabem ilusões. A única maneira de garantir maior
justiça social, emprego e renda qualificados para a nossa população é a
construção de uma cidade global que abrigou a Conferência de 1992 que
a projetou para o mundo, e difundiu o lema "pensar global e agir local".
A experiência nos credencia a ser portadores de um novo modelo de
administração de cidades sustentáveis, que oferecem turismo e qualidade
de vida, associados ao meio ambiente, à indústria cultural, aos encontros
internacionais e de negócios oferecidos pela Era da Comunicação e do
Conhecimento.
O pedaço deslumbrante de natureza que Deus nos deu precisa ser
protegido. Devemos sustar a política econômica suicida que afasta as
empresas com 22% de ICMS, além de uma burocracia lenta e opressiva.
Tampouco podemos ver patinando a despoluição da Baía de Guanabara,
entregue à CEDAE, uma empresa falida. Projetos vitais aqui não
avançam no ritmo necessário para garantir a atratividade que é a maior
fonte de distribuição de renda na Região Metropolitana de uma grande
cidade. Se esta é a nossa vocação e o nosso destino, o que estamos
esperando para seguir com firmeza e convicção este novo caminho?
Devemos desconfiar de velhas promessas e do discurso social do
populismo demagógico e de promoção sutil da pobreza que dá muitos
votos. Junto com a cidade-estado, que o Governo Federal deveria
estimular, cabe criar uma empresa social de participação mista e de
parceria público-privada, para organizar a Região Metropolitana em torno
da cidade-estado do Rio de Janeiro. Os Governos estaduais estão
bastante anêmicos e têm sido capazes de criar as Regiões Metropolitanas
que a Constituição lhes obriga em seu artigo 25. Mas o nosso, por
defeitos de formação histórica, está condenado à inoperância. Se não
criou a Região Metropolitana até agora é porque teme os municípios da
periferia, tanto quanto o da capital.
Nós, cariocas, somos solidários com nossos vizinhos da Baixada, que aqui
trabalham e que utilizam gratuitamente nossos equipamentos sociais
porque estão carentes ou abandonados em seus municípios de origem.
Nada melhor do que novas formas de cooperação -baseadas em Lei
Complementar ao Artigo 23 e na regularização da Lei do Consórcio - para
trazer uma solução moderna de regionalização de nosso país que poderá
ser iniciada no entorno da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.
Batizei e divulguei , em 1991, o princípio do "novo pacto federativo"
junto com a descentralização recomendada pela Constituição de 1988.
Há alguns anos trabalho com uma nova proposta de cooperação
intermunicipal, regionalização e fortalecimento de consórcios e regiões
metropolitanas. Estas idéias vêm sendo discutidas e examinadas pela
Subsecretaria de Assuntos Federativos da Presidência da Republica como
necessidade imperiosa. Elas podem e devem ser encaminhadas pelo
Congresso Nacional, junto com a desfusão e a autonomia da cidade do
Rio de Janeiro. No entanto, como irmãos e vizinhos, certamente
poderemos melhor nos entender com eles.
Do ponto de vista institucional, é mais do que justo o resgate de uma
dívida que a Federação Brasileira tem para com o Rio de Janeiro, o
estado e a cidade mais prejudicados com os arranjos federativos das
últimas décadas. O Estado do Rio de Janeiro que se juntou à antiga
capital, viveu um século de abandono, subdesenvolvimento e pobreza,
especialmente o Norte Fluminense. Com dois estados federados, teremos
mais força para cobrar esta dívida, que é semelhante à que o Brasil tem
com o Nordeste. E o faremos não apenas em nome da cidade, sempre
vista como privilegiada mas sempre tão desarticulada e sacrificada.
Falaremos também em favor do Estado-irmão fluminense.
Quanto à tão desejada autonomia, é preciso registrar que não existe
superioridade ou arrogância com relação ao estado e à sociedade
fluminenses. De fato, não somos nem melhores nem piores, apenas
cultural e historicamente diferentes. Desejamos resolver em escala
menor problemas que se agravam no bolo comum das necessidades e
carências. O imbróglio que se instalou no Rio de Janeiro exige autoridade
e soluções focais e simples. Em Nova York, o prefeito Giuliani não teve
que pedir permissão a ninguém para aplicar sua política da "Tolerância
Zero", pois a polícia era dele. Este é o segredo do poder local e da
conhecida fórmula do "small is beautiful".
Autonomia Carioca,
(http://www.autonomiacarioca.com.br/artigos/artigos.php?codClipping=8)
13/6/2004.
FUSÃO, DESFUSÃO E MUITA CONFUSÃO
César Maia
Silogismo é a conclusão a partir de uma premissa. Silogismo erístico é a
conclusão a partir de uma premissa falsa. Para as pessoas de boa-fé,
este tipo de sofisma expressa sua angústia na busca da solução de um
problema. O Rio visto como um problema não é equação nova. Vem da
revolução de 1817, em Pernambuco, e atravessa as revoltas no Império,
agrega os republicanos paulistas e gaúchos, ambos confederalistas, com
Alberto Sales (A Pátria Paulista), e Júlio de Castilhos. A primeira
Constituição da República, de 1891, decretou que o Rio deixaria de ser a
capital. Campos Sales dizia que o país era ingovernável desde esta
cidade rebelde. E por aí vão os exemplos até o discurso geopolítico que
justificou a fusão, na verdade uma fusão de assembléias legislativas,
para que o fogo de uma fosse apagado pelo gelo da outra.
Até que deu certo, temos que admitir. Administrativamente, fundir é
fácil. A base da fusão foi o Estado do Rio e as funções privativas de
Estado, pois o direito adquirido garantia aos servidores da Guanabara,
em funções municipais ou concorrentes, optar pela prefeitura do Rio. Lá
se vão trinta anos. Que bom teria sido se não tivesse ocorrido, diriam os
cariocas. Para os dois lados, diriam os fluminenses, mergulhados em
petróleo, gás e royalties. Desconfio que dois plebiscitos, de um lado e do
outro, produziriam um amplo apoio tanto aqui quanto lá. E depois? E
para quê? Se for para sonhar, que tal fazer como Nova York, que no final
de século XIX somou à Ilha de Manhattan sua área metropolitana Brooklyn, Queens, Staten Island e Bronx - e assim criar um estado
somando o Rio e a Baixada? Muito mais racional que o Rio sozinho, já
que várias funções são integradas, como transportes, saneamento,
saúde, a Baía de Guanabara e, certamente, segurança pública.
Que tal separar a cidade de São Paulo, criando uma cidade-estado? Em
1980, no final do regime autoritário, 6% dos paulistanos estavam abaixo
da linha de pobreza. Hoje, são 13%. O Rio, naquele momento, tinha
18% abaixo da linha de pobreza. Hoje, tem os mesmos 13%. Os índices
de violência na cidade de São Paulo eram a metade do Rio. Hoje, são os
mesmos. Por que não salvar São Paulo? Talvez aqui seja uma discussão
mais charmosa. Mas como fazer esta desfusão? Pelas receitas, é possível
que a perda de ICMS pelo Estado do Rio seja compensada pelo ganho
dos royalties. A redivisão da dívida pública, acrescida à do município do
Rio, poderia ser proporcional às receitas totais. Da mesma forma, a
dívida ativa.
E as folhas de aposentados e pensionistas, poderiam ser proporcionais às
receitas? É possível que os aposentados e pensionistas do Rio criem
problemas por causa das taxas de risco completamente diferentes de
suas fontes de financiamento e questionem na Justiça os seus direitos. E
os servidores ativos? Estes, sim, têm direitos adquiridos e, portanto,
podem optar pelo estado que quiserem. Talvez, os que moram no
interior, por causa da distância, optem pelo lugar em que vivem. Mas
estes representam apenas 10% da máquina estadual, cuja concentração
está na região metropolitana, onde optar é muito mais fácil.
E as instalações centrais localizadas no Rio? O Tribunal de Justiça e sua
estrutura física e funcional, por exemplo? E suas receitas vinculadas que
favorecem a Guanabara? Poderia servir aos dois estados, quem sabe.
Mas como os 600 deputados e senadores de todo o Brasil veriam dois
estados híbridos e este precedente? E de que maneira os federalistas
veriam um estado com meio Poder Judiciário? E quem indicaria os nomes
para as listas de nomeação? E quanto ao Tribunal de Contas? No plano
das instituições, seriam criadas duas assembléias constituintes, que
certamente fariam constituições não exatamente iguais à atual. Em
seguida, viriam as leis de regulamentação e, enquanto isso, teríamos três
regimes funcionando na Guanabara: o do Estado do Rio de Janeiro atual,
o da prefeitura do Rio e aquele do novo Estado da Guanabara. Além dos
dois regimes no novo Estado do Rio.
E a segurança pública? Como fazer se ocorrer uma desproporcionalidade
nas opções de pessoal em direção à Guanabara? O novo Estado do Rio
ficaria sem polícia durante alguns anos? E o custo deste processo?
Durante alguns anos -talvez vinte - ocorrerão duplicidades e triplicidades
e aí teríamos um gasto público ampliado sem que os serviços o sejam.
Quem financiaria? Os demais estados estarão dispostos a financiar este
gasto adicional? O orçamento da União o faria? Seriam criados impostos
para isso, onerando a população dos dois novos estados? "Que bom se
não tivesse havido a fusão", talvez digam hoje cariocas e fluminenses.
Mas desfazê-la não seria a desfusão, seria a confusão. Se há problemas a
serem superados, adotar o caminho da confusão e nos lançarmos numa
aventura de vinte anos certamente não será a solução. Na melhor
hipótese, um silogismo erístico proposto por pessoas de boa vontade,
lúdicas, líricas em reuniões festivas cheias de glamour e de ambages.
Por vício de formação eu diria: vamos tratar de coisas práticas, há muito
o que fazer.
Publicado no Jornal O Globo
28 de abril de 2005
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Geografia do Estado do Rio de Janeiro