A Sociedade Civil e o
Monitoramento das
Instituições Financeiras
Multilaterais
Marcus Faro de Castro
(organizador)
Brasília,
Março de 2005
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A Sociedade Civil e o
Monitoramento das
Ins
tituições F
inanceiras
Instituições
Financeiras
Multilaterais
Brasília, Março de 2005
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Organização
Marcus Faro de Castro
Revisão
Fabrina Furtado, Marcus Faro
e Marcelo Martins
Editoração eletrônica
Ivone Melo
Capa
Ivone Melo
Ilustração da Capa
Quadro de Vitória Biagiolli
Impressão
Vangraf Editora e Papéis Ltda.
ISBN - 85-88232-03-0
2
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Sumário
Apresentação, 5
Questões Gerais, 7
A Macroeconomia do Governo Lula, 9
As Políticas do Governo Implementam a agenda das IFMs?, 33
O Papel das Instituições Financeiras Multilaterais, 37
Uma Agenda da Sociedade Civil para mudar as Relações
entre Governos e IFIS, 51
FMI e Banco Mundial promovem a Liberalização
Comercial, 65
O Papel das IFMs na Implementação das Metas de
Desenvolvimento do Milênio, 73
Ciclo de Projetos Exclui Sociedade Civil, 81
Monitorando o FMI, 89
A Lógica Perversa do Acordo com o FMI, 91
FMI Expande Atividades Políticas, 107
O FMI na Política, 109
A Democracia Brasileira Novamente em Xeque, 111
Monitorando O Banco Mundial, 113
Múltiplos Tentéculos do Banco Mundial, 115
Efeitos Ruinosos das Políticas do Banco Mundial, 119
O Documento de Estratégia para o Brasil (2003-2007), 121
3
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Empréstimo de Ajuste e Condicionalidades Ambientais, 125
Assistência Técnica e as Redes Gerenciais, 131
Políticas Semelhantes em vários Continentes, 139
Assistência Técnica: Sociedade Civil propõe Inovações,
Salvaguarda na Mira, 141
CFI tem Processo Deliberativo Defeituoso, 147
Estratégias Sub-nacionais: Norte e Nordeste, 159
Políticas Semelhantes em vários Continentes, 163
Monitorando o BID, 165
O BID como Ator Estratégico na América Latina e no Caribe,167
BID Favorece Ativamente a PPP, 183
BID o Banco da ALCA?, 187
4
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Apresentação
Este livro representa uma coletânea de alguns resultados
de trabalhos da Rede Brasil e seus parceiros produzidos pela
sociedade civil na tentativa de disseminar informações e ampliar o debate em relação as políticas das Instituições Internacionais Multilaterais (IFMs), o monitoramento dessas instituições e a incidência política de organizações da sociedade
civil que lutam por políticas ambientalmente sustentáveis e
socialmente justas. Esta é mais uma contribuição da Rede
Brasil para o debate público sobre as IFMs, focalizando especialmente o Banco Mundial, O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento e
seus impactos sobre a sociedade brasileira.
Assim sendo, o livro trata primeiramente de uma análise
sobre as questões gerais relacionadas às IFMs, tais como o
papel que elas desenvolvem, principalmente no Brasil, o contexto atual e as estratégias da sociedade civil para monitorar
esses organismos em prol de uma mudança de atitude na elaboração e implementação de suas políticas e na relação entre
as IFMs e o governo. A partir de uma discussão mais especifica do FMI, Banco Mundial e d BID, as análises e reflexões
expressam preocupações e estratégias especificas referentes a
cada uma dessas organizações.
Esta publicação é lançada em um momento crítico da
relação do governo Brasileiro com as IFMs. É um momento
de escolha do Presidente do Banco Mundial, em que o Presidente dos EUA indicou, para ocupar a presidência do Banco
Mundial, o Sr. Paul Wolfowitz, Vice-Secretário de Defesa daquele país, reconhecido “falcão” da política externa america5
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
na e um dos principais arquitetos da guerra contra o Iraque.
Esse é um também o ano que marca o décimo aniversário
da Rede Brasil, criada em 1995. Além disso, o Brasil vive
um momento histórico em que um governo de esquerda
chega ao poder ao mesmo tempo que parece manter as
relações de subordinação de dependência do Pais aos IFMs
e suas políticas.
Esperamos com esta publicação contribuir para
aprofundar os debates da sociedade brasileira sobre os impactos das IFMs sobre a vida dos cidadãos e cidadãs em
nosso país.
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
QUESTÕES GERAIS
7
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
8
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A MACROECONOMIA DE LULA
Reinaldo Gonçalves1
Em artigo recente, Frei Betto afirma: “O Brasil vai bem, o
povo brasileiro ainda não. A economia é forte, a política fútil, o
direito social frágil. Lula tem ainda pela frente dois anos para
atrelar suas prioridades sociais ao ideário político que representa e que deve se impor como senhor, e não servo, dessa
macroeconomia que hoje beneficia o país em detrimento da
nação” (O Globo, 27 de fevereiro de 2005, p. 7). Frei Betto
argumenta que dentro do PT (certamente, a ala governista),
acredita que o governo “brilha na macroeconomia: estabilidade monetária, controle da inflação, queda do risco Brasil, crescimento da indústria e das exportações, êxito do agronegócio,
aumento das reservas do país e do emprego formal”.
O ponto principal desse artigo é o seguinte: trata-se de
erro grosseiro avaliar positivamente a conjuntura econômica
e a política econômica atual. E mais: a macroeconomia de
Lula incorpora os dois atributos negativos mencionados por
Frei Betto, da política fútil e do direito social frágil. Temos,
assim, uma macroeconomia fútil e frágil. A macroeconomia
de Lula é fútil porque ela é insignificante, inconsistente e, até
mesmo, tola. A macroeconomia de Lula é frágil porque ela
não permite o ajuste e, menos ainda, o desenvolvimento resistente, robusto e sustentável.
Uma forma eficaz de demonstrar o ponto acima é contrastar os argumentos apresentados pelo governo com a realidade econômica do país e do mundo. O procedimento, en1
Professor titular de Economia da UFRJ ([email protected]).
Texto preparado para a Rede Brasil, com base em dados disponíveis
até 5 de março de 2005.
9
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
tão, é tomar como referência inicial as declarações recentes
da maior autoridade econômica do país, o ministro da Fazenda, e confrontá-las com a realidade.
Segundo o ministro da Fazenda “Os pilares da nossa política econômica são um forte equilíbrio fiscal, um compromisso do presidente Lula para que a carga tributária do governo não extrapole os níveis do início do nosso governo, a
solidez das contas externas, medidas estruturais para o crédito e a criação de condições institucionais para o crescimento
de longo prazo.” (O Globo, 26 de fevereiro de 2005, p. 26).
Desequilíbrio fiscal
O argumento a respeito do forte equilíbrio fiscal é falso.
Em 2002, o governo central pagou juros nominais correspondentes a 3,12% do PIB. Em 2003 e 2004, os pagamentos
de juros foram de 6,48% e 4,51, respectivamente (Tabela 1).
Portanto, a política monetária e de endividamento provocaram maior desequilíbrio fiscal, – repetindo, maior desequilíbri
– via pagamento de juros. Para corrigir, parcialmente, o enorme desequilíbrio acima, o governo central teve superávits primários (ou seja, cortes de gastos de custeio e de investimento) de 2,37%, 2,49% e 2,98% do PIB, em 2002, 2003 e 2004,
respectivamente.2 Se o enorme déficit causado pelos juros for
deduzido do superávit primário, chega-se ao déficit nominal
de 0,75% em 2002, 3,99% em 2003 e 1,54% em 2004. Ou
seja, em vez do propalado e enganoso equilíbrio fiscal, o governo Lula teve um déficit fiscal médio de 2,8% do PIB nos
dois primeiros anos de governo. Detalhe importante: esse déficit foi cerca de 4 vezes maior do que o déficit do último ano
2
O famigerado superávit de 4,25% do PIB, mencionado no acordo
do FMI, refere-se ao conjunto das contas da União, dos governos
estaduais e municipais, e das empresas estatais.
10
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
do incompetente, medíocre e trágico governo FHC.3
E mais: como era de se esperar, esse desequilíbrio de fluxos provocou um aumento do desequilíbrio de estoque: a dívida mobiliária do Tesouro Nacional aumentou de R$ 533
bilhões em 2002 para R$ 679 bilhões em 2003 e R$ 769
bilhões em 2004 (valores no final de ano) (Tabela 2). Em
dois anos, o Tesouro Nacional aumentou sua dívida imobiliária em mais de R$ 230 bilhões! Essa dívida, como proporção
do PIB, elevou-se de 33,6% em 2002 para 42,5% em 2003, e
reduziu-se para 41,6% em 2004.
Isso representa um enorme desequilíbrio (tanto em termos relativos como em termos absolutos) das finanças públicas federais tendo em vista o serviço dessa dívida e os juros
elevados, conforme veremos mais adiante. O ponto aqui é
simples: uma dívida de 40% do PIB a uma taxa de juros de
20% implica pagamento de juros equivalente a uma dívida
de 160% do PIB a uma taxa de juros de 5%.
Naturalmente, os defensores do governo argumentarão
que a situação é distinta, quando consideramos a dívida líquida total do governo federal. Essa dívida aumentou de R$
567 bilhões em 2002 para R$ 585 bilhões em 2003 e R$ 610
bilhões em 2004. Como proporção do PIB, a dívida líquida
total do governo federal foi de 35,7% em 2002, 36,6% em
2003 e 33,0% em 2004. Dessa forma, ainda que tenha piorado a situação em 2003, comparativamente a 2002, houve
uma redução relativa em 2004. Entretanto, quando analisamos os dados em detalhes descobrimos que essa queda relativa deveu-se à redução da dívida externa do governo federal.
Isso se explica, em grande medida, pela redução da dívida
3
A respeito do desempenho medíocre e da herança trágica do governo
FHC, ver Reinaldo Gonçalves, A Herança e a Ruptura, Rio de Janeiro,
Ed. Garamond, 2003. Ver, também, Ricardo Carneiro, Desenvolvimento e Crise. A economia brasileira no último quarto do século XX, São
Paulo, Editora Unesp, 2002; e, Luiz Filgueiras, História do Plano Real,
São Paulo, Boitempo Editorial, 2ª. edição, 2003.
11
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
externa do Tesouro, que é denominada em dólar e que se reduziu com a forte apreciação do real (a taxa de câmbio caiu
de R$ 3,53 em dezembro de 2002 para R$ 2,60 em dezembro de 2004). Ou seja, a apreciação cambial explica a queda
relativa da dívida líquida total do governo federal em 2004.
Resta, aqui, a observação: quando a conjuntura internacional se tornar menos favorável e houver forte pressão sobre o
Real, a dívida interna volta a crescer exponencialmente como
ocorreu no passado recente.
Mais uma vez, os defensores do governo podem contraargumentar que a participação dos títulos do Tesouro Nacional indexados à taxa de câmbio caiu significativamente durante o governo Lula (de 22,4% em 2002 para 5,2% em 2004).
Entretanto, isso ocorreu no contexto de excesso de oferta de
divisas. Na situação de pressão de demanda por divisas, é quase certo que o Banco Central do governo Lula se comporte da
mesma forma que o do governo FHC, ou seja, faça emissões
extraordinárias de títulos públicos com correção cambial para
amortecer os ataques especulativos e para proteger bancos e
grandes empresas que estão endividados em dólares.
Ainda no que se refere à questão fiscal, vale destacar o
tema da carga tributária. O ministro da Fazenda argumenta
que “nós nos comprometemos a não aumentar a carga tributária em relação ao nosso ponto de partida que foi 2002.”
O problema central é que a carga tributária brasileira tem
apresentado uma tendência de crescimento desde meados da
década passada. A carga tributária líquida do governo federal, por exemplo, aumentou de 9,82% em 1995 para 13,98%
em 2002 (Tabela 3). Em 2003 essa carga foi de 13,55%.
Ocorre, que a carga tributária de 2002 foi maior de toda a
história econômica do país desde meados do século XIX.4 O
problema é que, como afirma o próprio ministro da Fazenda,
“a carga em 2004 deverá ser maior”. A ânsia arrecadadora
4
A série histórica inicia-se em 1851; ver Reinaldo Gonçalves e
Valter Pomar, A Armadilha da Dívida, São Paulo, Fundação Perseu
Abramo, 2002.
12
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
do governo Lula tem se revelado, por exemplo, no aumento
de contribuições (Cofins sobre produtos importados, MP 232
sobre a CSLL, etc). É provável que terminemos o governo Lula
com a mais elevada carga tributária da história do Brasil.
Independentemente da crença na retórica governamental, o fato relevante é que a discussão da carga tributária envolve não somente a questão do seu tamanho, mas principalmente, a sua distribuição. Conforme ficou evidente na reforma tributária de 2003, a questão relevante para o governo
Lula é a da arrecadação e não a distributiva. Nessa reforma,
garantiu-se a CPMF e a DRU (Desvinculação de Receitas da
União) em troca do abandono de medidas orientadas para o
aumento da progressividade tributária (imposto sobre grandes fortunas, imposto sobre heranças, imposto territorial rural, etc). Dessa forma, o governo Lula mantém a regressividade
da estrutura tributária brasileira. A MP 232, focada nos profissionais autônomos e nas pequenas empresas, é um exemplo nessa direção. O fato é que o governo Lula não fez nada
para mudar as características básicas da tributação no Brasil:
o trabalho é mais onerado do que o capital; os impostos indiretos têm maior peso do que os diretos; e, o sistema tributário
agrava a concentração de renda e riqueza.
Fazendo o gancho da questão fiscal com a questão
distributiva, devemos mencionar que o pagamento de juros foi
superior a R$ 140 bilhões em 2003 e R$ 120 bilhões em 2004.
Para o leitor ter uma idéia da ordem de magnitude, esses valores correspondem a cerca de 12 vezes os gastos de investimento do governo federal. O resultado é que com esses valores, o
orçamento federal torna-se rígido e, portanto, há pequena
margem de aumento das despesas de custeio e investimento.
Assim, a estrutura de gastos públicos fica comprimida devido
ao pagamento de juros estratosféricos. Mais uma vez, constata-se uma clara situação de desequilíbrio fiscal.
Inflação, juros e crédito
A pressão inflacionária que ocorreu no final de 2002 e
início de 2003 foi controlada (Tabela 4). Conforme afirma o
13
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
ministro da Fazenda “a política monetária tem tido uma evolução positiva no controle da inflação”. Naturalmente, política monetária restritiva encarece o crédito e reduz os estímulos ao consumo. Por outro lado, a política de juros altos
inibe os investimentos e, portanto, gera pressão inflacionária
via redução da expansão da capacidade produtiva. Juros elevados também aumentam os custos financeiros e, como, resultado, pressionam as estruturas de custos das empresas e
os preços no mercado.
Naturalmente, os juros altos afetam negativamente os
gastos. Se essa medida for acompanhada de uma política fiscal restritiva (carga tributária elevada, contração de gastos
públicos de custeio e investimento), a demanda agregada fica
ainda mais comprimida. As políticas macroeconômicas restritivas têm o efeito de controlar a inflação via redução dos
gastos na economia.
Os governistas têm, naturalmente, o direito de discordar. Eles podem dizer: se acima foi mostrado um forte e claro
desequilíbrio fiscal é porque a política fiscal é expansiva e não
restritiva. Essa crítica é mais um erro grave de análise econômica que tem sido difundido no Brasil desde o governo FHC.
Não é difícil entender porque a política fiscal é restritiva se
tomarmos como base a análise keynesiana a respeito das variações no salário nominal. Estendendo essa análise, partimos dos seguintes fatos: aumento da carga tributária; estrutura tributária regressiva; redução da relação salário/lucro; e
redução da relação salário/juros. Esses fatos implicam transferência de renda de trabalhadores e capitalistas para rentistas.
Há, ainda, a redução da eficiência marginal do capital (ou
seja, a expectativa de lucro) e a redução da propensão média
a consumir. Com isso, ao transferir renda de trabalhadores e
capitalistas que gastam para rentistas que compram, principalmente, ativos financeiros, há redução na propensão média de absorção interna (gastos de consumo, gastos públicos
de custeio e investimento, e investimento privado). Introduzse, então, um mecanismo de trava na economia via transferência de renda e redução estrutural de gastos, apesar do
14
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
megadéficit fiscal. O que faz a diferença é a fonte desse déficit. Se houvesse um déficit devido, por exemplo, ao aumento
dos benefícios da previdência, dos gastos de custeio ou dos
investimentos produtivos do governo, teríamos, sim, uma
política fiscal expansionista. Desequilíbrio fiscal provocado por
pagamento de juros, em país com forte concentração de riqueza, é política macroeconômica restritiva.
Voltando ao tema da inflação, durante os dois primeiros
anos do governo Lula, a inflação foi tratada como se fosse um
problema de demanda, ou seja, excesso de gastos. Isso, naturalmente, não tem sentido porque o consumo das famílias
caiu 1,5% em 2003 e cresceu 4,3% em 2004, ou seja, média
anual 1,4% – na prática, um crescimento per capita nulo. O
crescimento do consumo do governo é ainda pior (média de
1,0%; crescimento per capita negativo). O crescimento do
PIB foi de 0,5% em 2003 e 5,2% em 2004 – média anual de
2,85%. Essa taxa é a metade da taxa média de crescimento
econômico do país durante o século XX.
A inflação no Brasil nos últimos dois anos tem sido determinada, em grande medida, pelos seguintes fatores: mecanismo de correção de tarifas públicas, gargalos existentes
no aparelho produtivo e abuso do poder econômico. A política do Banco Central, via uma simples regra de política monetária (aumento das expectativas de inflação implica elevação
da taxa de juros), opera, portanto, sobre o sintoma, e não
elimina as causas do processo inflacionário. O resultado do
foco da taxa de juros no combate à inflação é o fraco desempenho da economia em termos de renda, emprego, acumulação de capital e desequilíbrio fiscal.
Adicionalmente, a política de juros altos de Lula envolve
inconsistência macroeconômica. Se o objetivo do governo é o
equilíbrio fiscal, a política de aplicar os maiores juros do mundo é contraditória com a política fiscal. O fato é que a política
de juros altos anula o esforço de compressão fiscal do governo. Assim, mesmo um enorme superávit primário é incapaz
de reduzir a dívida pública interna.
15
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Os defensores do governo e os representantes dos rentistas
podem contra-argumentar que, dada a política de juros altos,
são necessários cortes ainda maiores nos gastos do governo. E,
é exatamente isso que o governo Lula vem fazendo desde o
início do seu governo. Em fevereiro de 2005 o ministro da Fazenda anunciou cortes superiores a R$ 15 bilhões. O ministro
do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, afirmou categoricamente que “os cortes são brutais. A sua magnitude vai fazer
com que nenhum dos programas do ministério seja preservado”.5 Outra pergunta que persiste é a seguinte: se, conforme o
ministro afirma, a questão fiscal está equacionada, por que é
necessário um corte brutal dos gastos?
O problema da argumentação favorável a cortes nos gastos públicos é que ela parte da defesa dos interesses de grupos
e classes sociais específicas (em particular, os rentistas). Assim, a política de juros altos é tomada como um parâmetro
de política de controle da inflação. Isso é, claramente, um
erro técnico. Em primeiro lugar, há um erro de diagnóstico. A
inflação brasileira não tem sido determinada pela demanda
e, sim pela oferta. Não é contraindo gastos que se resolve o
problema da inflação. Manter a inflação em níveis baixos pela
via da contração recorrente de gastos públicos e privados é a
receita para o subdesenvolvimento permanente.
Em segundo lugar, mesmo que se decidisse controlar o
nível de gastos da economia, há outros instrumentos de política econômica (inclusive, de política monetária) que podem
ser acionados. Esse argumento ficará mais claro na última
seção onde são apresentadas propostas alternativas. Não é
por outra razão que em 2003 o PIB brasileiro cresceu 0,5%
enquanto o PIB do conjunto dos países em desenvolvimento
cresceu 6,1%. Para 2004 as previsões são de aumento do PIB
dos países em desenvolvimento de 6,6%, tendo o PIB do Brasil
crescido 5,2%.6 O que esses números revelam é que a participação do Brasil na renda total dos países em desenvolvi6
“O corte foi muito pesado”, segundo Miguel Rosseto, ministro do
Desenvolvimento Agrário, O Globo, 1 de março de 2005, p. 3.
16
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
mento caiu de 6,16% em 2002 para 5,76% em 2004.7 Dessa
forma, Lula repete mais uma vez o desempenho de FHC. Ou
seja, durante os dois anos do governo Lula o Brasil ficou ainda mais subdesenvolvido.
Associada à questão monetária temos a questão
creditícia. O governo tem chamado atenção para a expansão
do crédito seletivo, via microcrédito e desconto em folha.
Aparentemente, o objetivo do governo Lula parece ser a redução das taxas de juros absurdas cobradas pelas financeiras
que afetam, sobretudo, os grupos sociais de renda mais baixa. Essa política, sem dúvida alguma, tem mérito. Entretanto, devemos mencionar três aspectos relevantes. O primeiro é
que não houve qualquer incremento significativo das operações de crédito do sistema financeiro nacional, tanto o público quanto o privado. Como proporção do PIB, essas operações têm girado em torno de 24% em 2002-04.8 O segundo
aspecto é que mesmo no crédito seletivo o que se verifica é a
existência de altas taxas de juros que oneram o orçamento
dos pobres. Nesse contexto, vale destacar que as instituições
financeiras públicas têm tido taxas de lucros elevadíssimas.
E, não podemos ver como algo positivo a política que estimula as populações mais pobres a se endividarem (a propaganda governamental é avassaladora) a taxas de juros
escorchantes num quadro de queda de rendimento real dos
trabalhadores e fraco desempenho do mercado de trabalho.
6
FMI, World Economic Outlook, Washington, International Monetary
Fund, setembro de 2004, tabela 1.1, p. 3.
7
Os dados de renda em referem-se ao PNB (conceito paridade do
poder de compra) em 2002; ver Banco Mundial, World Development
Indicators 2004, Washington, Banco Mundial, tabela 1.1., p. 14-16.
8
Banco Central, Indicadores econômicos, tabela II.24
(www.bacen.gov.br).
17
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Setor externo
Segundo o ministro da Fazenda, “o Brasil fez uma reversão completa de suas contas externas”. Semanalmente o governo anuncia crescimento das exportações e saldos comerciais favoráveis. De fato, os números são significativos. As exportações
cresceram de US$ 60 bilhões em 2002 para US$ 73 bilhões em
2003 e US$ 96 bilhões em 2004. O saldo comercial, por seu
turno, aumentou de US$ 13,1 bilhões em 2002 para US$ 24,8
bilhões em 2003 e US$ 33,7 bilhões em 2004. No conjunto das
transações correntes, os dados também mostram uma melhora: déficit de US$ 7,6 bilhões em 2002 e superávits de US$ 4,2
bilhões em 2003 e US$ 11,7 bilhões em 2004.
Essa melhora conjuntural das contas externas do Brasil
deve-se à interação de um conjunto de fatores: fraco desempenho da economia doméstica (absorção interna); extraordinário crescimento do comércio internacional; elevação dos preços das commodities; e, condições relativamente estáveis de
liquidez internacional.
A ausência da pressão de demanda interna leva as empresas a orientar a produção para o mercado externo. Conforme apresentado mais adiante, o consumo final das famílias tem crescido em média cerca de 2,0% a.a. Tem havido,
então, uma tendência de aumento da propensão a exportar
da economia brasileira. Para ilustrar, a relação entre a exportação de bens serviços e o PIB aumentou continuamente de
10% em 1999 para 18% em 2004.9
O comércio internacional teve um crescimento extraordinário em 2003-04. Segundo os dados das Nações Unidas, o
crescimento do valor das exportações mundiais foi de 16,3%
em 2003 e 18,5% em 2004.10 No entanto, as previsões para
2005 indicam um desaceleração do comércio internacional.
9
IBGE, Sistemas de Contas Nacionais, tabela 4 e tabela 8
(www.ibge.gov.br).
10
Nações Unidas, World Economic Situation and Prospects 2005, Nova
York, United Nations, 2005, tabela A.7, p. 118.
18
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A estimativa das Nações Unidas é um crescimento do valor
das exportações mundiais de 10,3% em 2005. 11
As exportações brasileiras cresceram 21,1% em 2003 e
32,0% em 2004. Esses números mostram que o Brasil aumentou sua competitividade internacional. Não obstante, o
que se verifica é que esse aumento de competitividade ocorreu, em grande medida, em “setores de reduzido crescimento
no comércio mundial e de baixo conteúdo tecnológico”.12
A reprimarização das exportações brasileiras se acentuou
no governo Lula.13 Em 2003, o valor das exportações totais
cresceu 21,1%, enquanto o das exportações de produtos básicos cresceu 24,9%. As taxas correspondentes para 2004 foram 32,0% e 34,7%, respectivamente.14 Essa reprimarização
aumenta a vulnerabilidade externa da economia brasileira
na esfera comercial, conforme os ensinamentos da Cepal desde o final dos anos 40.
O aumento dos preços das commodities agrícolas foi
determinante importante do crescimento das exportações brasileiras. Algumas das commodities exportadas pelo Brasil tiveram uma elevação significativa de preços como, por exemplo,
o farelo de soja, cujo preço da tonelada passou de US$ 167 em
dezembro de 2002 para US$ 318 em abril de 2004.15 O conjunto das commodities teve crescimento de 24,3% dos preços
em dólares no mercado internacional em 2004.16 Entretanto,
as previsões a respeito dos preços das commodities no mercado
mundial não são favoráveis para o futuro próximo. As Nações
Unidas, por exemplo, projetam uma queda no preço médio
11
Ibid.
IEDI, O Comércio Exterior Brasileiro em 2004, www.iedi.org.br, p. 1.
13
A reprimarização expressa a maior parcela de produtos primários
nas exportações. Ver, Reinaldo Gonçalves, O Brasil e o Comércio Internacional. Transformações e Perspectivas, São Paulo, Editora Contexto, 2000, capítulo 5.
14
IEDI, op. cit., p. 9.
15
Banco Central, op. cit., tabela VI.1 (www.bacen.gov.br).
16
FMI, op. cit., tabela 1.16 (Apêndice 1.1), p. 67.
12
19
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
das commodities (exceto petróleo) de 3,9% em 2005.17
As condições de liquidez internacional se mantiveram
estáveis nos últimos dois anos. O ingresso líquido de capitais
privados nos países em desenvolvimento aumentou de US$
61 bilhões em 2002 para US$ 120 bilhões em 2004.18 Como
resultado desse aumento de liquidez internacional, houve uma
redução generalizada dos prêmios de risco dos mercados emergentes. O crescimento extraordinário do comércio internacional e as condições favoráveis de liquidez internacional permitiram, então, que os países em desenvolvimento experimentassem uma significativa elevação do nível de reservas internacionais. Para ilustrar, no período 1996-2002 o aumento
médio anual das reservas internacionais dos países em desenvolvimento foi da ordem de US$ 110 bilhões.19 Em 2003,
esse aumento foi de US$ 367 bilhões. Esse número é, provavelmente, um recorde histórico.
Em 2004 já houve uma redução do ingresso líquido de
capitais privados nos países em desenvolvimento para US$
82 bilhões. As estimativas do FMI para 2005 mostram também uma queda (ingresso estimado de US$ 48 bilhões).20
Essas observações indicam, então, que a conjuntura internacional foi extraordinariamente favorável em 2003-04.
No entanto, as previsões disponíveis apontam, tanto no sistema mundial de comércio como no sistema financeiro internacional, uma tendência de desaceleração. Ou seja, o Brasil
deverá enfrentar maiores obstáculos na sua inserção econômica internacional.
Os defensores do governo provavelmente não discordam
dos argumentos acima. No entanto, eles acrescentam que o
governo Lula tem feito uma blindagem da economia brasileira via redução da vulnerabilidade econômica externa do país.
17
18
19
20
20
FMI, op. cit., tabela 1.3, p. 9.
Nações Unidas, op. cit., tabela 1.1, p. 3.
Ibid.
Ibid.
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Para isso, eles apresentam alguns indicadores como, por exemplo, a relação pagamento de juros/exportações, que foi reduzida de 23,6% em 2002 para 15,9% em setembro de 2004
(Tabela 5). Há, ainda, a razão dívida externa total/exportações, que caiu de 3,5 em 2002 para 2,2 em setembro de 2004.
E mais, eles podem destacar que a dívida externa total diminuiu de US$ 211 bilhões em 2002 para US$ 202 bilhões em
setembro de 2002. Todos esses indicadores mostram, claramente, uma melhora da situação brasileira quando se toma
como denominador dos coeficientes o valor das exportações,
que deu um “saldo quântico” nos últimos dois anos (crescimento acumulado superior a 50%). Essa melhora expressa,
na realidade, uma tendência que já vem se manifestando desde
a crise cambial de 1999.
Não obstante esses indicadores, há motivos sérios de preocupação quanto a evolução das contas externas brasileiras.
No que se refere ao processo de endividamento, vale mencionar dois aspectos. O primeiro é o aumento da dívida externa
pública. Essa dívida cresceu de US$ 125 bilhões em 2002 para
US$ 136 bilhões em 2003 e retrocedeu para US$ 131 bilhões
em setembro de 2004. Assim, durante os dois primeiros anos
do governo Lula houve um aumento da dívida externa do
setor público. Esse fato é particularmente grave na medida
em que nesses dois anos o país acumulou um saldo comercial de US$ 59 bilhões e a taxa de câmbio teve queda nominal
de mais de 30%. Esse aumento da dívida externa do setor
público mostra, de fato, a ausência de uma estratégia ativa de
redução da vulnerabilidade externa do país.
Esse argumento é apoiado pela evolução da dívida externa do setor privado, que foi reduzida de US$ 86 bilhões em
2002 para US$ 80 bilhões em 2003 e US$ 72 bilhões em
setembro de 2004. Assim, enquanto o setor privado está se
aproveitando da queda da taxa de câmbio para reduzir seu
endividamento externo, o governo Lula está fazendo exatamente o contrário. O resultado é a repetição de um fenômeno já anteriormente observado na história brasileira: a socialização da dívida externa. A evidência é conclusiva. A partici21
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
pação do setor público na dívida externa aumentou de 59,4%
em 2002 para 64,6% em setembro de 2004.
Mais uma vez, os defensores do governo podem contraargumentar e chamar atenção para o aumento das reservas
internacionais nos últimos dois anos. De fato, as reservas líquidas ajustadas (descontando os recursos do FMI) elevaramse de US$ 16 bilhões em 2002 para US$ 21 bilhões em 2003
e US$ 28 bilhões em 2004 (Tabela 6). Em janeiro de 2005
houve novo incremento e as reservas atingiram US$ 30 bilhões. Esses números merecem, entretanto, algumas qualificações. Em primeiro lugar, esse acúmulo de reservas se concentrou no final e no início dos anos de 2003 e 2004. Isso
sugere que o governo não tem uma política firme de acumulação de reservas internacionais. Aparentemente, esse aumento
de reservas é passivo e responde às pressões dos exportadores
para que as compras governamentais de dólares segurem a
queda da taxa de câmbio.
O segundo aspecto a destacar é que o país acumulou um
saldo comercial de US$ 59 bilhões em 2003-04, ao mesmo
tempo em que as reservas internacionais aumentaram cerca
de US$ 11 bilhões e a dívida externa total (inclusive, os empréstimos intercompanhias) reduziu-se em cerca de US$ 5 bilhões (de US$ 227,7 bilhões em dezembro de 2002 para 222,2
bilhões em novembro de 2004).21 Assim, considerando o
aumento de reservas e a redução da dívida, o passivo externo
líquido diminuiu US$ 16,5 bilhões nos dois primeiros anos do
governo Lula, ou seja, menos de 30% do saldo da balança comercial de bens. E, adicionalmente, nesse mesmo período, houve forte queda da taxa de câmbio nominal (mais de 30%) e
condições favoráveis de liquidez internacional. Esses fatos indicam, mais uma vez, a ausência de uma estratégia ativa de
redução da vulnerabilidade externa do setor público e do país.
Para reforçar esse argumento, podemos acrescentar que
no período 2003-04 o acúmulo total de reservas dos países
em desenvolvimento foi de US$ 717 bilhões, ou seja, o Bra-
21
22
Banco Central, op. cit., tabela XLVII.
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
sil respondeu por somente 1,5% desse acúmulo de reservas. 22 Esse número é expressivo da ausência de estratégia
quando se considera que, no conjunto de 146 países em desenvolvimento, o Brasil responde por 6,2% do PIB, 3,4%
das exportações de bens e serviços e 3,3% da população.23
Se considerarmos a importância relativa da economia
brasileira, informada pelos números acima, e, principalmente, a extraordinária vulnerabilidade externa do país, era de
se esperar que uma estratégia ativa de blindagem envolvesse
uma aumento de reservas bem acima daquele observado nos
últimos dois anos. Nesse sentido, o país poderia ter acumulado 2 ou 3 vezes mais reservas externas do que efetivamente acumulou com a estratégia passiva do governo Lula.
Os defensores do governo Lula podem levantar o seguinte ponto: a redução do passivo externo líquido (US$ 16,5
bilhões) foi equivalente à soma do saldo de transações correntes em 2003 (US$ 4,2 bilhões) e em 2004 (US$ 11,7
bilhões). Portanto não haveria maior margem de acumulação de reservas e de redução do estoque da dívida. No entanto, juntamente com as transações correntes devemos levar em conta os fluxos de capitais internacionais. É nesse
ponto que se revela mais uma fragilidade da política econômica do governo Lula. Mais especificamente, não houve
qualquer medida de controle de capitais internacionais. Lula
tem mantido a liberalização cambial e financeira que está
na origem da enorme vulnerabilidade externa do país. Na
realidade, a evidência mais recente indica que Lula tem
avançado nessa liberalização, que é um dos pontos mais fracos da economia brasileira.24
22
FMI, op. cit., tabela 1.3, p. 9.
Ibid. Apêndice, tabela A, p. 191.
24
O governo Lula tem tomado medidas que aumentam ainda mais
liberalização financeira e cambial. Por exemplo, segundo decisão do
Conselho Monetário Nacional de 4 de março de 2005, residentes no
Brasil não precisam mais utilizar o mecanismo da CC-5, que passa a
ser usada somente por não-residentes. A partir dessa medida, os residentes podem enviar diretamente recursos ao exterior por meio de
operação bancária de transferência de moeda estrangeira (O Globo, 5
de março de 2005, p. 27).
23
23
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
O principal resultado tem sido a piora da situação da
conta financeira do balanço de pagamentos. Ou seja, 2004
foi pior do que 2003, e os dois anos de Lula foram piores do
que o do período FHC. Vejamos os números. A conta financeira teve um saldo positivo de US$ 7,6 bilhões em 2002. Em
2003 esse saldo caiu para US$ 4,6 bilhões e, em 2004, houve
um déficit de US$ 8 bilhões. Essa conta, naturalmente, sofre
grandes oscilações pois compreende não somente fluxos de
capitais de longo prazo como também de curto prazo, com
destaque para os fluxos especulativos. Entretanto, dois fatos
chamam atenção no período 2003-04. O primeiro é o aumento da amortização da dívida externa. Esse fato, conforme
vimos acima, resulta do pagamento da dívida externa do setor privado e, portanto, implica redução do passivo externo
do país. Ou seja, temos aqui um aspecto favorável e, ao mesmo tempo, uma sinalização de desconfiança quanto à trajetória futura das contas externas do país.
O segundo fato marcante da conta financeira do balanço
de pagamentos reflete a falta de estratégia e controle. Trata-se
do aumento dos fluxos de saída de investimento brasileiro direto. Esse fluxo foi de US$ 2,5 bilhões em 2002, caiu para US$
250 milhões em 2003 e saltou para US$ 9,5 bilhões em 2004.25
Não há como negar que o Brasil tem um enorme passivo
externo, baixas reservas internacionais, elevada vulnerabilidade
externa e que o ajuste externo tem significado um grande sacrifício para o seu povo. E, nesse país, o governo Lula permite
que os residentes invistam no exterior o equivalente a praticamente dois terços do saldo de transações correntes.26
Naturalmente, os defensores do governo argumentam
que o investimento de empresas brasileiras no exterior terá
conseqüências positivas em termos de remessa de lucros e
dividendos e de abertura de novos canais de exportação. Essa
leitura otimista parte da premissa que a empresa brasileira
25
Banco Central, Séries históricas, Balanço de pagamentos
(www.bacen.gov.br).
24
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
que investe no exterior tem estratégias de inovação tecnológica
e de acumulação de capital que exigem operações em escala
global, como se elas fossem verdadeiras empresas
transnacionais. A realidade, entretanto, indica que boa parte do investimento externo direto dos grandes grupos econômicos brasileiros (principalmente, os de origem familiar) reflete estratégias de diversificação de risco e, muito
freqüentemente, de fuga de capitais.27
Voltando ao tema das reservas, os governistas podem contra-argumentar que o acúmulo de reservas teria dois efeitos negativos. O primeiro seria impedir a queda da taxa de câmbio e, portanto, se eliminaria o papel da apreciação cambial no combate à
inflação. Se não houvesse a apreciação cambial a inflação teria
sido mais elevada do que a observada nesses dois últimos anos. O
segundo efeito negativo seria aumentar a dívida pública.
Esses dois argumentos merecem qualificações. O primeiro argumento reconhece explicitamente que a taxa de
câmbio tem sido usada como um instrumento de combate à
inflação. Nesse caso, o governo Lula repete a experiência do
início do Plano Real em 1994, que se caracterizou por uma
forte apreciação cambial. O problema é que mudanças na
conjuntura internacional podem provocar alterações abruptas na taxa de câmbio e, como resultado, colocar o país, mais
uma vez, numa situação de grave crise cambial, forte pressão
inflacionária, explosão da taxa de juros e queda abrupta do
nível de atividades. No contexto dessa crise, a pressão inflacionária retorna via aumento dos custos. Isso ocorreu em 1999
e 2002. Nesse sentido, da mesma forma que FHC, Lula está
trocando inflação mais alta no futuro por inflação mais bai-
26
O saldo de transações correntes acumulado em 2003-04 foi de US$
15,8 bilhões, enquanto o investimento brasileiro direto no exterior
(líquido) foi de US$ 9,7 bilhões.
27
Tomemos a seguinte notícia recente: “Fiscal do INSS tem negócio
milionário nos EUA”, O Globo, 3 de março de 2005, p. 8. Segundo a
matéria, o auditor fiscal preso “sob suspeito de fraudar a Previdência
Social, é sócio de um empreendimento comercial na Flórida”.
25
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
xa no presente. O resultado é somente um: trajetória de instabilidade e crise, o stop and go da economia brasileira.
No que se refere ao efeito do acúmulo de reservas internacionais sobre a dívida pública, devemos chamar atenção
para o fato de que esse argumento despreza dois resultados
advindos da mudança na política macroeconômica. O primeiro é que o acúmulo de reservas deveria ser acompanhado
por controles de capitais e redução significativa da taxa de
juros e, portanto, haveria redução do déficit público. O segundo é que a redução da taxa de juros e a desvalorização
cambial teriam um efeito expansionista sobre a economia. O
maior nível de renda é fonte de crescimento da receita fiscal,
sem necessidade de aumento da carga tributária. Esse aumento de receita fiscal seria fonte de recursos para um uso
definido, a saber, a compra de divisas internacionais para o
acúmulo de reservas.
Nesse ponto, vale mencionar como indicador da frágil
situação das contas externas a razão entre as reservas internacionais e as importações. Esse é um tradicional indicador
de análise da robustez da situação das contas externas de qualquer país. No início do governo FHC esse indicador era da
ordem de 15, ou seja, as reservas internacionais cobriam 15
meses de importações de bens. Nos anos de grave crise cambial (1999 e 2002) esse indicador ficou entre 9 e 10 (Tabela
6). Em 2003 e até meados de 2004, esse indicador foi de
aproximadamente 12 – refletindo o fraco desempenho das
importações e o pequeno aumento das reservas internacionais. Com a expansão da economia a partir de meados de
2004 e, conseqüentemente, o aumento das importações, esse
indicador caiu para 10. Ou seja, em janeiro 2005 estamos
com um indicador de vulnerabilidade externa no mesmo nível dos anos de grave crise cambial.
Em síntese, a conjuntura internacional extraordinariamente favorável beneficiou o Brasil, principalmente, via aumento
da demanda pelas exportações brasileiras e da oferta de liquidez
26
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
internacional. Por outro lado, a condução da política cambial,
a elevação da dívida externa do setor público e a ausência de
uma estratégia ativa de formação de reservas indicam a fragilidade da macroeconomia de Lula. Contrariamente ao que afirmou o ministro da Fazenda, não houve uma reversão completa das contas externas do país. Essa fragilidade ficará evidente
quando houver uma reversão das atuais condições favoráveis
do sistema mundial de comércio e do sistema financeiro internacional. Os governistas podem, no entanto, nos oferecer um
consolo: as previsões disponíveis não indicam qualquer mudança abrupta, mas um retorno a uma situação menos favorável do que aquela observada nos últimos dois anos.
Produção, renda e emprego
A taxa de crescimento econômico (PIB) de longo prazo do
Brasil foi de 5,9% no século passado.28 O desempenho medíocre do governo FHC caracterizou-se, entre outros fatores, pelo
crescimento médio anual do PIB de 2,3%. A política econômica de Lula não se diferencia significativamente daquela
implementada por FHC. O resultado não poderia ser diferente: o crescimento médio anual do PIB nos dois primeiros anos
de governo Lula foi de 2,9% (Tabela 7). Para 2005, a maior
parte dos analistas está prevendo uma taxa entre 3,5% e 4,0%.
Na ótica da despesa, a análise dos fatores de expansão
da demanda agregada mostra claramente a predominância
da demanda externa, ou seja, das exportações de bens e serviços. Esse fato é válido tanto para o governo FHC quanto para
o governo Lula. Entretanto, é no governo Lula que as exportações tornam-se muito mais relevantes como fator de expansão da renda. Conforme já vimos, isso decorre da conjuntura
internacional extraordinariamente favorável no período 200304. O resultado é que no governo Lula as exportações crescem a uma taxa média que é duas vezes superior à taxa média do crescimento das exportações no governo FHC. Na
28
Reinaldo Gonçalves, A Herança e a Ruptura, op. cit., cap. 1.
27
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
medida em que não houve um salto “quântico” em termos
de inovação tecnológica e acumulação de capital, é correto
afirmar que essa expansão das exportações brasileiras tem
sido causada, principalmente, pelas condições de demanda.
De fato, os investimentos mostram um desempenho fraco nos últimos 10 anos. O crescimento médio anual da formação bruta de capital fixo durante o governo FHC foi de
1,95%, e nos dois primeiros anos do governo Lula foi de 2,54%.
Vale a pena ressaltar que em ambos os governos esse crescimento mostra grande volatilidade, pois anos de queda abrupta
são acompanhados por anos de elevação do nível de investimentos. Isso reflete, na realidade, a própria trajetória de instabilidade e crise da economia brasileira nos últimos 10 anos.
A taxa de investimento nos dois primeiros anos do governo Lula apresentou forte queda, principalmente, em 2003
(Tabela 8). Na realidade, em nenhum momento do período
1995-2002 se observou uma taxa tão baixa quanto aquela
de 2003. Em outras palavras, devido à sua política
macroeconômica restritiva, o governo Lula consolida a tendência de queda da taxa de investimento da última década.
A evolução do consumo das famílias mostra que a taxa
de crescimento em 2003-04 (2,54%) foi menor do que em
1995-2002. Esse dado é relevante, não somente para mostrar que o consumo das famílias tem tido uma evolução pior
no governo Lula, como também para ressaltar a contradição
entre a política econômica de Lula e o programa de governo
de Lula. Nesse programa (bem como no PPA do governo) está
explicitamente definido que a prioridade seria a expansão do
mercado interno de consumo de massas. O fato a destacar é
que nos dois primeiros anos de governo, houve crescimento
per capita nulo do consumo das famílias.
A situação dos gastos públicos é ainda mais sintomática.
Durante o governo neoliberal de FHC os gastos públicos foram comprimidos, pois tiveram um crescimento médio anual de 1,66% e, portanto, inferiores ao crescimento do PIB .
No caso de Lula, o corte dos gastos públicos (o megasuperávit
28
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
primário) tem provocado um crescimento médio anual de
0,99%, ou seja, uma queda per capita dos gastos públicos da
ordem de 0,5% em cada ano de governo.
Assim, no governo Lula o papel protagônico das exportações e o fraco desempenho do consumo das famílias mostram
o caráter internacionalizante da política econômica, enquanto a queda dos gastos públicos mostra o caráter privatista desse
governo. A tendência liberalizante do governo Lula está expressa na maior liberalização financeira e cambial já mencionada acima, bem como na maior abertura da economia brasileira, pois os coeficientes de exportação e o de importação se
elevaram. Na média, as importações durante os dois primeiros anos de governo Lula cresceram a uma taxa superior àquela
observada no governo FHC. A volatilidade das importações
mostra tanto a instabilidade da evolução da renda quanto da
taxa de câmbio nos últimos dois anos. Essa instabilidade, de
fato, reproduz a trajetória observada no governo FHC.
O resultado pífio dos investimentos, dos gastos públicos e
do consumo das famílias está associado ao fraco desempenho
do mercado de trabalho. Acompanhando a evolução renda, a
taxa de desemprego sobe significativamente até o primeiro trimestre de 2004 e, em seguida, essa taxa diminui. Entretanto,
ela ainda se mantém elevada no final de 2004 e início de 2005
(média anual de 11,4% em janeiro de 2005) (Tabela 9). Essa
taxa está muito próxima da taxa do último ano do governo
FHC (11,7%). Deve-se notar que a taxa de desemprego apresenta clara tendência de aumento a partir de 1995 (ver Gráfico). Tendo em vista o crescimento da população economicamente ativa, isso nos leva à conclusão que, atualmente, há mais
desempregados do que há dois anos. De fato, para se manter a
taxa de desemprego estável é necessário que o PIB cresça a uma
taxa média anual de pelo menos 3,5%.29 Nos dois primeiros
anos do governo Lula, o PIB cresceu em média 2,9% e como as
expectativas para 2005 são de um crescimento da ordem de
29
Esse argumento baseia-se numa elasticidade produto-emprego de 2,
que é freqüentemente usada por especialistas em mercado de trabalho.
29
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
3,5%-4,0%, é provável que até o final do terceiro ano de governo, o número de desempregados existentes no país seja superior ao do último ano do governo FHC. Adicionalmente, com
uma taxa média anual de crescimento da ordem de 3,0%, é
improvável que Lula crie muito mais do que 5 milhões de
empregos ao longo dos seus quatro anos de governo. Ou seja,
ele ficará muito aquém da meta de 10 milhões de empregos
com que se comprometeu na campanha eleitoral.
O resultado pífio em termos de redução do desemprego
esteve associado à queda da renda real do trabalhador. E, nesse
item, o governo do Partido dos Trabalhadores tem mostrado
resultados altamente negativos e, até mesmo, contraditórias
com a linha programática do partido. Nos dois primeiros anos
do governo Lula o rendimento médio real do trabalhador brasileiro caiu 5,8% (Tabela 10). A taxa média de variação desse
rendimento durante o governo FHC foi de 0,8% se considerarmos o ano de 1995 e de -0,7% se excluirmos esse ano da série.
Naturalmente, os defensores do governo argumentam
que a queda do rendimento do trabalhador deveu-se ao ajuste necessário em 2003 e que em 2004 os indicadores mostram recuperação. Esse fato é incontestável, mas deve-se notar a diferença entre a evolução do PIB e da renda do trabalhador. Em 2003 o PIB per capita caiu 0,9%, enquanto o rendimento médio do trabalhador reduziu-se em 11,8%. Em
2004 o crescimento do PIB per capita foi de 3,8% e a renda
média real do trabalhador aumentou 0,24%.
Essa diferença entre a evolução da renda total e da renda
do trabalhador tem uma implicação evidente: piora da concentração de riqueza e renda. Em 2002 a participação dos
salários na renda (o nível mais baixo do governo FHC) foi de
26,1%, e em 2003 essa participação caiu para 25,9% (Tabela 11). Mais uma vez, o desempenho de Lula reproduz o de
FHC. A tendência de piora na distribuição da renda, a favor
do capital e em detrimento do trabalho, foi verificada ao longo do governo FHC. Essa tendência é mantida durante o governo Lula, como uma diferença marcante: trata-se do governo do Partido dos Trabalhadores.
30
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Conclusão
Não devemos perder tempo criticando os representantes
dos bancos (banqueiros, analistas de mercado de capitais, jornalistas associados, etc) e do agronegócio (leia-se, latifundiários e empresas transnacionais) que têm defendido a política
econômica de Lula. Afinal de contas, essa defesa de Lula baseia-se, exclusivamente, nos interesses desses grupos sociais e
econômicos – interesses esses que estão sendo plenamente atendidos por Lula. Para ilustrar, os bancos têm tidos lucros recordes que ultrapassam, em média, 20% do patrimônio.30 O mesmo ocorre com os exportadores do agronegócio que exploram
latifúndios. Em 2004, o lucro líquido das maiores empresas
brasileiras cresceu 45,8%, enquanto o rendimento médio real
do trabalhador cresceu 0,24%.31
Enquanto isso, o tecido social se esgarça ainda mais, as
instituições se degradam, os trabalhadores perdem e os banqueiros gargalham. E, a macroeconomia revela sua verdadeira cara, fútil e frágil, quando as expectativas de crescimento
econômico do país são rebaixadas em decorrência das expectativas de desaceleração da economia mundial.
Naturalmente, causa surpresa ao leitor que homens como
Frei Betto façam a clivagem entre país e povo, pois o país (nação) é composto de território, Estado e, antes de tudo, povo. É
um nonsense afirmar que um país vai bem, enquanto seu povo
vai mal. Afinal de contas, a avaliação de que o país vai bem
ou vai mal deve ser feita segundo os interesses de grupos e
classes sociais específicos. É a famosa e secular pergunta: Vai
bem para quem, cara-pálida?
Os números acima nos levam a uma conclusão
diametralmente oposta a de Frei Betto: as empresas e os bancos
(e, portanto, os capitalistas) vão muito bem, enquanto os trabalhadores vão muito mal. O que não podemos esquecer é que
30
31
O Globo, 5 de março de 2005, p. 28.
Ibid.
31
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
povo brasileiro é composto de 0,5% de capitalistas, 3,5% de pequenos empregadores e 96,0% de trabalhadores – boa parte está
desempregada ou subempregada (Tabela 12). Assim, o correto
é afirmar: o país vai muito mal porque a grande, acachapante,
maioria vai mal. E mais, o governo do Partido dos Trabalhadores
está fazendo pouco ou quase nada por essa maioria.
Muito provavelmente, Frei Betto tem a intenção de defender o governo Lula quando se manifesta sobre a macroeconomia
e comete erro grosseiro de avaliação. E esse tipo de defesa, que
revela contradições e nonsense, tem sido muito comum por
parte, inclusive, de representantes da sociedade civil. Várias
são as razões: cumplicidade, cooptação, compaixão, pusilanimidade ou, simplesmente, erro grosseiro de avaliação.
Nesse texto, compartilhamos as mesmas virtudes teologais
(fé, esperança e caridade) implícitas no texto de Frei Betto e nas
avaliações que muitos representantes da sociedade civil fazem a
respeito da política econômica do governo Lula. Portanto, supomos que os defensores de Lula, o grupo dos “homens e mulheres
de bem”, estão somente cometendo um erro grosseiro. No
mundo cristão, essas virtudes são estruturantes.
Entretanto, a realidade brasileira atual é a seguinte: as
filas de desempregados se alongam, a renda do trabalhador
cai, a violência explode, a saúde e educação se degradam e a
proteção social se enfraquece, a esperança definha, enquanto
os exportadores-latifundiários do agronegócio e os banqueiros enriquecem ainda mais. E, o governo Lula nada fez de
significativo para alterar essa situação, pois, conforme assinala Frei Betto, a política é fútil e o direito social é frágil. E,
conforme, procuramos demonstrar nesse artigo, a
macroeconomia de Lula é fútil e frágil.
Enfim, nada mudou. É por essa razão que, em novembro de
2003, mais de três centenas de economistas publicaram manifesto com críticas severas à política econômica de Lula e, ao mesmo tempo, apresentaram propostas alternativas (Quadro). O
fato é que a macroeconomia f’útil e frágil de Lula decorre de uma
opção política. Os grupos dirigentes podem se sentir mais confortáveis no poder, mas perde a grande maioria do povo brasileiro.
32
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
AS POLÍTICAS DO GOVERNO IMPLEMENTAM
A AGENDA DAS IFMs?
A eleição de Lula como Presidente do Brasil, em 2002, galvanizou a esperança de mais de 52 milhões de eleitores, desejosos de
mudanças para que a sociedade brasileira se tornasse justa, inclusiva e menos sujeita à degradação ambiental. A eleição de Lula
também fomentou enormes expectativas de que a inserção internacional de economias em desenvolvimento como a brasileira mudaria. Pensava-se que as aspirações de grupos sociais e econômicos locais passariam a ter mais expressão na diplomacia econômica e que as relações com os países ricos do Norte e com organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional
(FMI), o Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) seriam pautadas na afirmação soberana dos
interesses internos em prol do desenvolvimento socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável.
Porém, desde a posse do Presidente, em 2003, a vontade
popular no plano interno e as expectativas quanto a mudanças na inserção internacional da economia brasileira vêm sendo gravemente frustradas. Ao contrário do que Lula prometeu durante a campanha eleitoral, o seu governo privilegiou
alianças com as elites tradicionais e manteve diversas políticas herdadas do governo de Fernando Henrique Cardoso. Tais
políticas são o resultado da internalização de esquemas internacionais de poder, que fomentam guerras como a do Iraque
e procuram disciplinar a política econômica em todo o mundo, sob regras impostas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e por iniciativas de integração como a Área
de Livre Comércio das Américas (ALCA). O processo de imposição de tais regras é operacionalmente viabilizado pelo FMI,
o BM, o BID e outras instituições financeiras internacionais
(IFIs). Com suas “condicionalidades” e seus programas de
“assistência técnica” aos governos nacionais e subnacionais,
as IFIs são atores decisivos para a internalização de uma agen33
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
da de políticas públicas que, pelas amarras introduzidas (como
superávits primários elevados, limitações absurdas à realização de investimentos públicos, garantias financeiras oferecidas a poderosos grupos de interesse em processos de
privatização de serviços públicos), exclui inúmeros grupos
sociais do acesso a bens essenciais como segurança alimentar, a educação, a saúde, o combate à HIV/AIDS, a promoção da mulher, o respeito a identidades culturais e às diferenças de gênero e a sustentabilidade ambiental.
A verdade é que o governo de Lula tem oscilado em uma
ambigüidade inaceitável e perversa. Por um lado, o governo
criou pastas ministeriais e cargos de primeiro escalão que
apontam, aparentemente, para um esforço maior no campo
social. Exemplos são o “Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome”, a “Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial”, a “Secretaria Especial de Políticas
para Mulheres”. Igualmente, abriu espaços formais de diálogo com a sociedade civil, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Por outro lado, contudo, o governo tem feito um enorme empenho para internalizar políticas
públicas da agenda neo-liberal, sob os auspícios e com a ajuda financeira e técnica do FMI, do Banco Mundial e do BID.
Assim, com base no prestígio pessoal que a figura de Lula
ainda preserva perante o povo, o governo tem pressionado o
Congresso para aprovação de reformas previstas desde o governo anterior e mantidas ou ampliadas a partir de 2003, em
obediência aos ditames das IFIs. De fato, é impressionante
que o governo Lula tenha orientado o seu peso político, com
grande ênfase, no sentido de:
• Praticar superávites primários elevados e – distanciando-se de estratégias possíveis como a do governo argentino –
ampliar tais superávites para além do que foi pedido pelo FMI,
trazendo grandes dificuldades de realizar investimentos públicos em todas as áreas e em programas sociais em particular.
• Manter uma prática de permanente e colossal
34
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
endividamento do Estado central, que engorda os bolsos dos
credores internacionais, com o pagamento de juros altíssimos,
estrangulando o crédito interno para o consumo e para o
investimento privado e minando gravemente a capacidade
de investimento público.
• Manter a reforma do sistema financeiro brasileiro impulsionada sob os auspícios do Banco Mundial no governo
anterior, para que tal sistema funcione como um rápido emissor de sinais, dos preços privados internos para mercados financeiros internacionais, onde questões de interesse público
local não são consideradas.
• Manter e ampliar a “reforma agrária de mercado”,
de acordo com o figurino montado pelo Banco Mundial (incluindo, Cédula Rural, Banco da Terra, etc.).
• Aprovar a reforma de Lei de Falências, muito solicitada
pelos Banco Mundial e pelo BID, e que põe em grande desvantagem o direito dos trabalhadores de receberem seus créditos,
diante da “preferência” que passou a ser dada aos bancos comerciais em obterem o pagamento de dívidas financeiras.
• Aprovar a “Lei de Inovação”, que, em conformidade com
o pleiteado pelo Banco Mundial, contém medidas de privatização
da pesquisa científica e de capacidades de pesquisa e de inovação
tecnológica desenvolvidas por universidades públicas.
• Propor e obter a aprovação de lei para criar no Brasil
as “parcerias público-privado” (PPPs), um método de
privatizar serviços públicos, com amplas garantias oferecidas
pelo Estado (contribuintes) a empresas privadas.
• Criar redes gerenciais de consultores contratados, que
funcionam dentro dos ministérios brasileiros, mas executam
reformas de acordo com a visão do Banco Mundial e do BID
sobre diferentes setores da economia brasileira.
• Manter e ampliar a criação de programas de abertura
de mercados lucrartivos para empresas privadas em áreas de
infraestrutura, abrangendo energia, telecomunicações, siste
35
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
ma viário, inclusive sob o mega-projeto “Integração da
Infraestrutura Regional na América do Sul” (IIRSA), impulsionado sobretudo pelo BID e instituições parceiras, com impactos devastadores nas áreas ambiental e social, à semelhança do muito criticado “Plan Puebla-Panamá”.
As políticas públicas internalizadas com base na atuação das IFIs não correspondem às aspirações autênticas dos
povos e comunidades, mas têm o objetivo primordial assegurar o rendimento do capital privado investido por grandes
corporações transnacionais. Tanto isto é verdade que os acordos com o FMI nem passam no Congresso Nacional, e os
projetos de reformas vinculados aos pacotes de empréstimos
Banco Mundial e do BID não são debatidos no seu mérito
político – mas apenas quanto aos conteúdos financeiros –
pelos representantes do povo, o que é um acinte à democracia brasileira. Por outro lado, não existem mecanismos de
diálogo com a sociedade civil, com espaços conducentes à incorporação efetiva dos pontos de vista plurais, capazes de
transformar a realidade social e a economia, em atendimento às aspirações dos povos.
A Rede Brasil tem estimulado o debate sobre as IFIs e reconhece que os diversos grupos da sociedade brasileira e em países
da América Latina, bem como muitos políticos eleitos para os
governos locais e nacionais, têm pouca ou nenhuma clareza a
respeito do funcionamento e dos impactos da atuação das IFIs
sobre a vida e os destinos de comunidades e povos do continente.
Nesse sentido, pensamos que o governo de Lula tem sido
e continuará sendo conduzido a realizar reformas imaginadas em gabinetes de funcionários de organizações que servem aos interesses de grandes investidores e não às aspirações de justiça do povo brasileiro. Esta realidade política somente poderá ser mudada se a própria sociedade lutar contra
a submissão do governo aos objetivos das IFIs e aos procedimentos anti-democráticos por elas adotados.
36
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES
FINANCEIRAS MULTILATERAIS *
Marcus Faro de Castro
Alex Jobim Farias
1 - Introdução
Muitas vezes o nome de organizações como o “Banco
Mundial” e o “Fundo Monetário Internacional” aparecem
nos jornais, sem que os leitores tenham uma noção clara sobre o que elas são. Circulam muitas notícias sobre operações
dessas organizações, sem que grande parte do público perceba com suficiente nitidez quais as implicações delas para a
vida das empresas e para os interesses dos cidadãos.
Ora, as entidades como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois importantes exemplos de instituições supranacionais, criadas para promover a coordenação de políticas entre países na área financeira. De um modo
geral, a organizações supranacionais que atuam como agências de coordenação de políticas na área financeira são chamadas de “instituições financeiras multilaterais” (IFMs).
Contudo, esse tipo de coordenação de políticas tem
freqüentemente ocorrido em detrimento de interesses de sociedades como a brasileira.
O presente texto tem o objetivo de oferecer uma breve
introdução ao que são as chamadas “instituições financeiras
multilaterais” (ou IFMs), em especial o Fundo Monetário In
*
- Texto redigido em junho de 2003 e utilizado como material de apoio à Frente
parlamentar em Defesa do Financiamento Público e da Soberania Nacional.
37
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
ternacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento. (BID). Serão, portanto, oferecidas abaixo: uma descrição processos antecedentes
ao surgimento do sistema monetário internacional (ver Seção 2); uma breve descrição da formação e funções sistema
de Bretton Woods (ver Seção 3); e uma discussão de suas
transformações recentes (ver Seção 4).
2 – Antecedentes
Após os séculos XII e XIII, com o paulatino incremento do
comércio de longa distância na Europa, se estabelece a tendência de que as movimentações financeiras administradas por
famílias de comerciantes passasse a ter um papel cada vez maior
para a definição dos interesses políticos e econômicos de diversos grupos no continente. Com o tempo, o desenvolvimento do
comércio privado de moedas e instrumentos financeiros organiza-se em cidades que adquirem importância como principais centros financeiros. Assim, entre os séculos XVI e XIX,
Antuérpia, Amsterdam e Londres tonam-se, sucessivamente,
os principais centros financeiros da economia, tendo a capacidade de influenciar governos e diversos grupos sociais em muitas localidades. No final do século XIX e início do século XX, o
poder econômico da “city” de Londres fazia-se sentir em vastas regiões do globo.
Apesar de adquirir importância crescente, tanto para fornecer capital a empreendimentos comerciais como para financiar esforços de guerra, as decisões sobre as movimentações financeiras e sua gestão permaneceram sendo de caráter essencialmente privado, até a Segunda Guerra Mundial.
Como fruto disso, entre as últimas décadas do século XIX e as
primeiras do século XX, desenvolveu-se um sistema de gestão
monetária de caráter cosmopolita, sob a liderança de ricas
famílias de financistas europeus, como os Rotschild. Esta foi
a época do chamado Padrão Ouro Internacional, que coincidiu com o auge do poder financeiro de Londres. Sob este siste38
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
ma de gestão monetária, os grandes financistas privados estabeleciam entendimentos informais com vários governos e
privilegiavam a manutenção da estabilidade cambial, mesmo que isto implicasse na adoção de políticas contracionistas
por governos locais.
Contudo, o conjunto de instrumentos utilizados para a
estruturação das relações internacionais – diversos tratados
internacionais de “amizade e comércio”, combinados com
a gestão privada das relações monetárias mediante o Padrão
Ouro Internacional –, não foi suficiente para evitar a Primeira Guerra Mundial. Para ordenar as relações internacionais, inclusive os fluxos monetários, seria preciso algo diferente dos meios utilizados nas décadas que antecederam a
Primeira Guerra Mundial.
De fato, entre os legados mais problemáticos da Primeira
Guerra Mundial estavam as relações monetárias internacionais, inclusive os efeitos da instabilidade cambial sobre as
economias nacionais e sobre o comércio internacional. A
diplomacia e os procedimentos da Liga das Nações foram
insuficientes para lidar com a realidade das relações econômicas internacionais nas décadas que se seguiram à guerra
de 1914-1918. Assim, depois da Segunda Guerra Mundial,
as potências vencedoras resolveram criar um grande sistema de organizações internacionais, e desta vez decidiram
dedicar parte deste sistema especialmente às relações econômicas entre os países.
Portanto, foi somente na segunda metade do século XX,
após a Guerra de 1939, que, pela primeira vez na história,
se adotou um sistema de regras públicas com objetivo de disciplinar, por meios que incluíam a atuação de instituições
supranacionais, as relações financeiras entre as diversas economia nacionais. Ao mesmo tempo, a adoção destas regras
coincidiu com a transferência do poder financeiro de Londres para Nova York como principal pólo financeiro da economia mundial.
39
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
3 – O Surgimento das Instituições de Bretton Woods.
Assim, com o intuito de criar essas regras, foi realizada
em 1944, em Bretton Woods, no estado de New Hampshire,
Estados Unidos, a conferência internacional que iria estabelecer os pilares do sistema financeiro internacional no pósguerra. Nessa conferência, foram instituídas duas importantes organizações para a cooperação monetária internacional.
Uma foi o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), que ficou conhecido como Banco
Mundial. A outra foi o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Estas duas organizações ficaram conhecidas como as “instituições de Bretton Woods”.
O objetivo básico do Banco Mundial era o de auxiliar na
reconstrução e desenvolvimento de territórios dos países membros (signatários do instrumento legal que deu origem formal
ao banco) atingidos pela destruição da guerra. Este objetivo
deveria ser atendido por meio de atividades dedicadas a: prover
capital para fins produtivos; promover o investimento externo
privado e promover, complementando (quando o capital privado não estivesse disponível em condições razoáveis) o investimento privado mediante o fornecimento de capital para fins
produtivos; e promover o crescimento equilibrado de longo prazo
do comércio internacional e a manutenção do equilíbrio nos
balanços de pagamento mediante o incentivo internacional a
investimentos para o desenvolvimento de recursos produtivos.
Por outro lado, o FMI tinha o objetivo essencial de presidir um regime internacional de câmbio praticamente fixo.
Nesse sentido, o instrumento legal constitutivo desta organização estabeleceu que o Fundo promoveria a “cooperação
monetária internacional mediante uma instituição permanente” que servisse de “mecanismo para consulta e colaboração sobre problemas monetários.” Além disso, o instrumento legal também determinou que o Fundo supervisionaria o
sistema monetário internacional “a fim de assegurar o seu
bom funcionamento” e acompanharia “o cumprimento por
40
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
cada país membro de suas obrigações” referentes à sua política cambial. O instrumento constitutivo estabeleceu, ainda,
que recursos financeiros do Fundo seriam oferecidos temporariamente aos países membros para proporcionar-lhes
“oportunidades de corrigir desequilíbrios no seu balanço de
pagamentos” sem recorrer a desvalorizações cambiais, consideradas “destrutivas da prosperidade internacional”.
O esquema para a cooperação monetária, portanto, previa
que o FMI faria empréstimos para a correção de desequilíbrios
no balanço de pagamentos, a fim de que as taxas de câmbio das
diversas moedas diante do dólar americano ficassem protegidas
de alterações importantes. O que ficou previsto foi que as diversas moedas seriam conversíveis em dólar americano, que seria a
seu turno conversível em ouro. Por isso, esse sistema monetário
ficou conhecido como o “sistema dólar-ouro”, que, mediante o
uso de regras públicas e a atuação de instituições formais, deveria proteger as diversas moedas da oscilação cambial em relação
ao dólar e variações do valor dólar frente ao ouro, favorecendo,
portanto, a manutenção de paridades estáveis.
Além do FMI e do Banco Mundial, vale a pena mencionar também a criação, em 1959, do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID). Reunindo 26 países mutuários
da América Latina e do Caribe e 20 não mutuários, entre eles
Estados Unidos, Japão, Canadá, 16 países europeus e Israel,
sua finalidade é também a de prestar ajuda financeira aos
países da América latina e do Caribe.
O esquema de política econômica internacional imaginado para vigorar depois da Segunda Guerra Mundial, portanto, previa um papel importante para o FMI (especialmente, presidir o regime de câmbio) e para o Banco Mundial (prover fundos para reconstrução e desenvolvimento). Estas instituições financeiras apoiariam a criação e manutenção da estabilidade cambial e monetária sob a égide do FMI
e o investimento em projetos de desenvolvimento, facilitado
pelo Banco Mundial. Tais condições constituiriam um ambiente propício para o crescimento impulsionado pelo co 41
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
mércio internacional. Este, a seu turno tornou-se objeto de
negociações para combater o protecionismo, especialmente
o decorrente de tarifas comerciais elevadas. Tais negociações passaram a ser conduzidas sob o conjunto de regras
aprovadas por 23 países em 1947, conhecido como GATT
(General Agreement on Tariffs and Trade – Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio). 1 Este grande esquema foi
complementado, pela atuação regional do BID, desde o final dos anos 1950, no continente americano.
4 – Transformações do Sistema
A cooperação monetária internacional e o apoio que tal
cooperação passou a dar para o crescimento do comércio internacional acabaram entrando em crise, a partir da década
de 1970. Um dos motivos dessa crise foi a incapacidade de o
governo americano sustentar a taxa de câmbio do dólar frente
ao\ ouro, resultando na decretação, em 1971, pelo presidente
americano, Richard Nixon, da inconversibilidade do dólar em
ouro. Isto abalou o esquema imaginado para funcionar no período após a guerra, cujas regras passaram a não mais ser seguidas, levando os países adotarem o regime de câmbio flexível, o que trouxe dúvidas sobre o futuro da cooperação monetária internacional.
Não obstante, a crise da dívida externa dos anos 1980
acabou por dar novo fôlego às instituições de Bretton Woods.
O que se sucedeu à implosão do antigo sistema passou a ser
chamado de não-sistema, dada a ausência de um arcabouço
ordenador das relações monetárias que substituísse o anterior.
1
- A última rodada de negociações no âmbito do GATT (a chamada Rodada
Uruguai) foi concluída com a aprovação de diversos acordos. Um desses acordos
deu nascimento, em 1995, à atual Organização Mundial do Comércio (OMC),
uma organização permanente, que passou a ser o principal fórum da política
multilateral de comércio.
42
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
De fato, tendo deixado de ser o defensor de um sistema de
paridades estáveis, o FMI começou a achar um novo sentido
em sua existência ao auxiliar os países cujos balanços de pagamento foram afetados pelos choques de preços do petróleo da
década de 1970. O seu resgate, enquanto agência atuante na
condução da política do sistema monetário internacional, se
daria de forma enfática durante a década de 1980, que se consumiu na tentativa de solucionar a crise da dívida. Assim a
partir de 1982, o FMI passou a atuar na linha de frente da
gestão da crise. Tal gestão foi comandada, primeiro, pelo banco central norte-americano (Federal Reserve), e, depois, a partir de 1985, pela Secretaria do Tesouro dos Estados Unidos.
Assim, sob os auspícios do Federal Reserve, o FMI
condicionava a assinatura de seus acordos à realização de acertos prévios com os credores, os bancos comerciais. E, sem ter
mais o acesso independente aos recursos do Fundo, os países
endividados se viam enfraquecidos nas negociações com os
seus credores privados.
Nos primeiros anos da crise da dívida, o esquema se revelou altamente eficiente, sob o ponto de vista dos credores:
os devedores em dificuldades passaram a enviar aos credores
vultosas quantias, que excediam em muito aquilo que recebiam por conta das reestruturações (o chamado dinheiro novo).
Dessa forma, os gestores da crise conseguiram evitar que ela
afetasse a saúde financeira dos credores, ameaçada por possíveis moratórias aos empréstimos. O problema dos países
endividados, contudo, não foi resolvido: suas economias não
cresciam (devido ao ajuste recessivo necessário ao pagamento das dívidas) e suas dívidas não se reduziam.
Em 1985, a Secretaria do Tesouro dos Estados Unidos assume a liderança do processo mediante o lançamento do chamado “Plano Baker” (designação derivada do sobrenome do
então secretário do Tesouro, James Baker), cujo objetivo era
fazer com que os devedores retomassem o crescimento. O entendimento do plano era que, para se atingir esse fim, tanto o
Estado quanto as economias deveriam realizar ajustes estruturais, tais como privatizações e liberalização comercial.
43
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A partir daí, o Banco Mundial é convocado a ter uma
atuação de maior relevância na gestão da crise, por meio de
orientação e financiamento para reformas estruturais que supostamente levariam ao crescimento. Esse momento é um
marco
no
aprofundamento
das
chamadas
“condicionalidades” e no desenvolvimento de ações coordenadas entre instituições de Bretton Woods. Mesmo quando,
em 1989, com o plano Brady, a gestão da crise se modifica
pela adoção de redução dívidas, o papel do Banco Mundial
em auxiliar a implementação de reformas é mantido. Assim,
como conseqüência dessas reformas, a virada da década assiste ao desmantelamento, na América Latina, do modelo de
desenvolvimento do pós-guerra e a consagração do
neoliberalismo em substituição a este último. Apesar de seu
aprofundamento ao longo da década, as condicionalidades
sempre despertaram críticas, tanto pelo seu aspecto de violação de soberania quanto pelo seu conteúdo ortodoxo.
O aumento da influência do Banco Mundial e do FMI
não cessa com a crise da dívida. Concomitante ao esmorecimento da crise e retorno das economias afetadas aos mercados internacionais de capital, se dá a implosão do socialismo no Leste Europeu na virada da década de 1980 para a de
1990. Mais uma vez, o FMI, acompanhado do Banco Mundial, está na linha de frente e assume a tarefa de conduzir as
economias anteriormente planificadas à condição de economias de mercado, passando a ser chamadas de “economias de transição”.
Dois outros fatores iriam influenciar sobremaneira a percepção de muitos sobre o que estava se passando na economia mundial na década de 1990: o sucesso da estratégia de
desenvolvimento voltada para as exportações adotada por algumas economias asiáticas e a obtenção de níveis de integração
da economia mundial só equiparáveis aos que foram obtidos
às vésperas do período turbulento iniciado pela Primeira Guerra Mundial, em parte facilitado por revoluções na informática
e telecomunicações. Os quatro fatores juntos propiciaram,
44
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
durante a década de noventa, o que poderíamos chamar de
euforia da globalização. Nela, a especulação não se limitava
ao tradicional locus dos mercados, mas abrangia também o
reino das idéias, no qual o triunfo dos princípios econômicos
liberais era defendido e aceito como definitivo e inquestionável,
transformando esses mesmos princípios na medida do progresso. Esse ambiente acabou por ensejar que tal conjunto de
idéias, chamadas de neoliberalismo, se propagasse de forma
tal que acabou por adquirir a pecha, cunhada por alguns críticos, de “pensamento único”. Muitos foram os governos que
apostaram nesse conjunto de idéias, com o apoio das instituições de Bretton Woods.
Esse cenário, contudo, foi se modificando paulatinamente. Em 1994, o México, então um dos mais incensados
aplicadores do neoliberalismo se viu em crise cambial em
1994. Esta crise deveria ter sido assimilada como uma advertência pelo status quo, mas não foi. A euforia teve continuidade até ser seriamente abalada pela sucessão de crises cambiais que se sucederam na Ásia, afetando economias que antes
eram tidas como referência na apologia à globalização.
Tailândia, Filipinas, Indonésia, Malásia e Coréia se vêem em
crise uma após a outra, numa sucessão de contágios surpreendente para uma região outrora considerada tão promissora. Um dos caminhos naturais para explicar esse paradoxo
era a crítica da globalização financeira, mas o caminho que
acabou por ser seguido foi o de, mais uma vez, se condenar a
gestão das economias atingidas.
Muito rapidamente, aquelas economias, que antes eram
saudadas pela sua performance, passaram então a ser condenadas, principalmente os seus sistemas financeiros domésticos, que
eram bem distintos dos padrões ocidentais. Na visão das instituições de Bretton Woods, os sistemas financeiros domésticos
dos países asiáticos, por não serem submetidos à supervisão e
regulação adequadas, teriam sido os grandes responsáveis pelas
bolhas especulativas e investimentos mal alocados que estariam
na origem da crise. Mas o relacionamento estreito entre bancos
e indústria era parte essencial do modelo de desenvolvimento
45
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
asiático, que, sendo bem sucedido, acabou por atrair o capital
internacional. O câmbio ancorado ou fixo que muitos dos países afetados adotavam, foi também satanizado. Mas ele foi adotado justamente para oferecer condições atraentes para a entrada de capitais. Mais uma vez, as economias afetadas foram
responsabilizadas e pouco foi dito sobre a responsabilidade da
globalização financeira em mais esta crise. Em todo caso, não
era de se esperar outra coisa, já que o FMI foi um dos
incentivadores da liberalização dos fluxos de capital.
O que se observou no decorrer desta crise foi, novamente, a afirmação dos vícios do sistema. De fato, mais uma vez,
repetindo estratégias passadas, o FMI tentou aplicar o receituário ortodoxo, ao mesmo tempo que tentava impor
condicionalidades cada vez mais intrusivas e ambiciosas, que,
se cumpridas, desmantelariam parte do modelo de desenvolvimento asiático. Como o problema, a rigor, não era de natureza fiscal, nem de comercial, não foi surpreendente que as
moedas regionais não parassem em seu mergulho abissal. A
imposição de condicionalidades descabidas só dificultava uma
ação rápida e eficiente por parte do Fundo, o que facilitou o
contágio da crise de país em país. Enfim, um desastre.
A ação do Fundo foi tão desastrada que essa instituição
se viu sob uma saraivada de críticas que, provavelmente, nunca teve paralelo em sua história. Dessa vez, não só a esquerda
compunha o coro de condenações às ações do Fundo, mas a
direita se juntou a ele com crítica baseada no conceito de risco moral.2 Desta vez, economistas do próprio establishment ecoaram críticas que antes eram exclusivas dos contestadores
considerados radicais.
Assim, Martin Feldstein criticou o nível de intromissão das
condicionalidades, Paul Krugman criticou a ortodoxia requerida
2
Essa crítica a atuação do FMI argumenta que o Fundo, ao socorrer os países em
crise e manter sua capacidade de pagamento, acaba por impedir que os investidores
sejam punidos por investimentos incautos. Isso acabaria por estimulá-los a novos
investimentos desconsiderando riscos potenciais envolvidos, uma vez que esses investidores acreditam num provável socorro do FMI em caso de crise. A conseqüência
dessa crítica é que a sugestão de que o FMI deveria diminuir suas intervenções para
que o número de crises diminuísse.
46
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
nos pacotes de ajuda e Joseph Stiglitz, economista-chefe do Banco Mundial nos anos de 1997 a 2000, criticou a arrogância e
incompetência dos economistas do FMI. Jagdish Bhagwati, defensor ferrenho do livre-comércio, criticou o que ele chama de
Complexo Wall Street-Tesouro, responsável pela difusão da
equivocada ideologia de que o livre movimento de capitais, defendida pelo Fundo, teria benefícios análogos aos do livre-comércio. O Congresso norte-americano patrocinou a elaboração do Relatório Meltzer, cujas recomendações ecoavam aquelas
associadas ao argumento de risco moral (ver nota 1). 3
À crise asiática se seguiram as crises russa, brasileira e
argentina, com repercussões graves para outros países Latino-Americanos, como o Uruguai, por exemplo.
Com a troca de liderança no comando do FMI,4 este passou da defensiva para uma postura propositiva: propôs o chamado “Mecanismo de Reestruturação de Dívida Soberana”
(MRDS ou SDRM, em inglês), que seria um mecanismo internacional de concordata, visando facilitar a reestruturação de
dívidas insustentáveis. Porém, esta proposta naufragou pela
oposição do Tesouro norte-americano, que passou a defender
a adoção de “Cláusulas de Ação Coletiva” (CAC),5 mas acabou servindo apenas para desviar o foco do debate dos defeitos
do Fundo para a discussão de uma inovação institucional com
poucas chances de ser adotada, independentemente de seus
possíveis méritos. É que os Estados Unidos têm o poder de veto
no processo decisório interno do FMI, instância fundamental
pela qual deveria passar a proposta do mecanismo.6
3
Resumidamente, o relatório recomendava que as IFMs deixassem de lado países
com economias de porte, médio, que poderiam obter recursos privados nos mercados financeiros de capitais e direcioná-los a países mais pobres.
4
Horst Koehller e Anne Krueger substituíram respectivamente Michel Camdessus e
Stanley Fischer nos cargos de diretor- gerente e vice-diretor-gerente da instituição
entre 2000 e 2001.
5
São cláusulas que garantem a uma maioria de credores (usualmente 75%) o
poder de fechar um acordo de reestruturação sem ser objeto de ação legal de
credores minoritários.
6
Muitas decisões no FMI demandam a concordância de pelo menos 85% dos votos.
Os EUA detêm mais de 17%. A proposta vigente do MRDS previa sua implementação
por meio de uma emenda aos artigos do acordo que criou a instituição.
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
5 – Síntese e Conclusões
Desde o final da Idade Média, as finanças internacionais
se tornam um elemento importantíssimo para a viabilização
de empreendimentos comerciais e de ações políticas. No final
do século XIX, o Padrão Ouro Internacional fornecia um meio
de ordenação das relações financeiras entre muitas economias nacionais, mas nem sempre em benefício de todos. Ao contrário, eram sobretudo os interesses dos financistas que eram
preservados, ao passo que interesses de governos em realizar
reformas em favor da sociedade eram postos em segundo plano ou se tornavam completamente marginalizados. Assim,
com freqüência, programas de governos reformistas eram
inviabilizados por falta de recursos financeiros, como foi o
caso do governo da Frente Popular na França, no início do
século XX.
Hoje, o FMI é o pilar do sistema financeiro internacional, mas, como já lembramos, não age sozinho. É coadjuvado
pelo Banco Mundial e outras instituições congêneres, como o
BID. Todas essas organizações são muito pouco transparentes e nada representativas dos interesses dos países a que devem servir.
Assim, o FMI é hoje um grande moldador de políticas econômicas, enquanto as outras organizações (Banco Mundial, BID
etc.) se encarregam de moldar as demais políticas públicas, de
forma complementar e coerente, sem que haja suficiente transparência ou accountability de suas deliberações, métodos e programas.
Um bom exemplo de políticas ou reformas questionáveis
apoiadas de maneira coordenada por essas instituições é a chamada “focalização de políticas sociais”, defendida tanto pelo Banco Mundial quanto pelo BID. Quando adotada a focalização às
expensas de políticas universais, a política social como um todo
acaba por se adaptar perfeitamente ao arrocho fiscal normalmente preconizado pelo FMI. Tal coordenação entre as agência
internacionais hoje ainda tende a se expandir para abranger a
48
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
coordenação entre as políticas financeiras e as comerciais. Assim por exemplo, Em 14 de abril de 2003, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU realizou a sua 6a Reunião de
Alto Nível com o Banco Mundial e o FMI e pela primeira vez
recebeu uma representação de alto nível da Organização Mundial do Comércio (OMC).
No todo, sendo combinadas, inclusive mediante a coordenação e complementaridade entre as ações dessas organizações internacionais, as políticas pró-mercado, por elas apoiadas, levam à incapacitação do Estado de liderar o processo
de desenvolvimento econômico e social conforme os interesses nacionais.
Nesse sentido, cabe à sociedade civil organizada, e aos
governos, por meio de seus parlamentos e outras instituições,
estabelecer mecanismos de acompanhamento e controle das
ações das Instituições Financeiras Multilaterais, em nome do
desenvolvimento sustentável e inclusivo.
49
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
50
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
UMA AGENDA DA SOCIEDADE CIVIL
PARA MUDAR AS RELAÇÕES ENTRE
GOVERNOS E IFIs1
I – INTRODUÇÃO
1. Objetivos deste documento
Abaixo estão algumas observações que refletem preocupações da sociedade civil organizada sobre a atuação das Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs), tais como o Fundo Monetário Internacional. (FMI), do Banco Mundial (BM)
e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em
áreas e projetos de interesse dos cidadãos. Este documento
tem por objetivo esclarecer os tópicos abordados econtribuir
para a formação de uma PLATAFORMA DE AÇÃO FRENTE
AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS MULTILATERAIS (IFMs).
II – AS IFMs E OUTROS AGENTES
2. O que são as IFMs?
O FMI, o BM e o BID são organizações multilaterais que
têm como objetivo formal oferecer crédito “oficial” (i.e., com
origem em instituições públicas, interestatais) para diversos
1
Texto adaptado de documento da Rede Brasil, com data de 15/03/
2004, originalmente distribuído aos membros da Confederação Parlamentar das Américas - COPA, na reunião da entidade realizada em
Brasília, em 22 a 26/03/2004.
51
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
“tomadores”, incluindo governos centrais e locais e empresas
privadas. São, por assim dizer, “bancos públicos” internacionais. Organizações como essas são também chamadas “instituições financeiras multilaterais” (IFMs). Atuam no continente americano as seguintes IFMs: o FMI, o BM, o BID.
3. Outros agentes financeiros relevantes
Além disso, tornaram-se relevantes agências operando no
âmbito da política de assistência financeira regional, na América do Sul, certos fundos financeiros como a Corporación
Andina de Fomento (CAF) e o Fondo Financiero para el
Desarollo de la Cuenca del Plata (FONPLATA). Vale também
ressaltar, ainda, neste campo, a atividade transnacional de bancos estatais como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um banco de investimento de propriedade do Estado brasileiro*.
III – PROBLEMAS REFERENTES À ATUAÇÃO DAS
IFMs
4. Distorções Perigosas
Enquanto “bancos públicos internacionais”, o FMI/BM/
BID e seus eventuais parceiros estão amplamente sujeitos a
incorporar, em suas políticas internas e em suas ações internacionais, interesses estratégicos dos seus países membros e de
grupos privados que contam com apoio desses países. Mas isto
* Uma petição global (a "Petição Internacional de Parlamentares
para o Controle Democrático das Políticas do FMI e do Banco Mundial"), assinada por parlamentares de diversos países e apoiada por
um grande número de organizações da Sociedade Civil, incluindo a
Rede Brasil, começou a ser circulada em 2003. O documento tem a
finalidade de aumentar a participação de parlamentos nacionais nos
processos decisórios de políticas impostas pelas Instituições de Bretton
Woods (FMI e Banco Mundial). Para mais informações ver:
www.ippinfo.org.
52
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
tem se dado de maneira extremamente desequilibrada, em
função da desigualdade de poder de voto entre os países membros nas instâncias decisórias destas instituições, resultando no
alijamento dos interesses estratégicos de países em desenvolvimento. Além disso, os interesses estratégicos de países membros mais poderosos e dos grupos privados por eles apoiados
muito freqüentemente agridem irreversivelmente o meio ambiente e trazem conseqüências sociais extremamente negativas, tais como aumento do desemprego e da pobreza, conforme tem sido documentado em vários estudos (ver, p. ex.:
Structural Adjstment Participatory Review Network- SAPRIN,
Structural Adjustment: The SAPRI Report. The Policy Roots of
Economic Crisis, Poverty and Inequality, London, Zed Books,
2004). Alguns exemplos dos efeitos perversos das políticas de
ajuste comprovados nesta fonte incluem:
• A liberalização comercial em Zimbábue provocou a
destruição da indústria local, que encolheu em 20%.
• Políticas de reforma do mercado de trabalho conduziram ao fechamento em massa de pequenas empresas no Equador, que empregavam parte substancial da força de trabalho.
• Os aumentos dos preços dos serviços de saúde e de
remédios nas Filipinas agravou a propagação de doenças contagiosas.
• Modificações na legislação trabalhista em El Salvador anularam proteções que estabeleciam discriminação
positiva para mulheres.
• Na Hungria, o preço de serviços privatizados aumentou o dobro do crescimento dos salários, causando problemas
insolúveis para famílias pobres.
• Com a privatização de serviços de utilidade pública (água,
energia, etc.) em vários países, as tarifas aumentaram e não
houve melhora na prestação do serviço ou na cobertura.
• Apenas os grandes agricultores com acesso a recursos têm sido capazes de se beneficiar de reformas das políticas agrícolas no México.
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
1. Como ocorrem as distorções?
Tais distorções ocorrem porque as operações de crédito feitas com os “tomadores” são utilizadas pelo FMI/BM/BID para
incluir no quadro normativo local (leis, resoluções, atos administrativos) diversos conteúdos e exigências que não são amplamente discutidos em seu mérito político pelos representantes do povo nos parlamentos. O que ocorre é que a função
política dos parlamentos vem sendo substituída por um
controle externo estabelecido pelas IFMs. Por outro lado,
as operações de crédito são tratadas, nos órgãos dos Executivos
nacionais, de maneira excessivamente tecnocrática, incapaz de
identificar e articular com competência e representatividade
política, os conteúdos das operações de empréstimo que afetam os interesses da sociedade. O resultado é que são geradas
pressões dos governos sobre os parlamentos que se dão a partir
de exigências das IFMs, e não em função da representação democrática da vontade popular.
2. Uma distorção especial: políticas comerciais e ALCA
Merece destaque um tipo de reforma imposta como condição da aprovação ou desembolso de empréstimos das IFMs.
Trata-se de reformas em favor da chamada “liberalização comercial” nas diversas áreas cobertas sob acordos ou documentos da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou
pertinentes às negociações da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA). A imposição ocorre por meio de
“condicionalidades” que exigem a aprovação ou
implementação de reformas comerciais liberalizantes para que
sejam concedidos ou desembolsados os empréstimos das IFMs.
O jargão utilizado pelas IFMs para isto é a palavra “coerência”, que designa uma coordenação ou complementaridade
entre as políticas de assistência financeira multilateral de um
lado e, de outro lado, a agenda de reformas comerciais no
âmbito da OMC e da ALCA.
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
3. O que é possível fazer?
Os parlamentares dos diversos países, que representam
os eleitorados de seus países, necessitam definir uma estratégia clara de relacionamento com as IFMs que ultrapasse a
fragmentação de esforços dos vários países no trato com tais
instituições. Esse papel dos parlamentos pode contribuir para
impedir a internalização de distorções nos sistemas
normativos nacionais. É preciso evitar que as reformas
ocorram sem a representatividade efetiva que o regime
democrático exige. A construção de um marco legal específico para autoridades econômicas se relacionarem com as
IFMs deve promover os interesses dos povos com representantes nos diversos parlamentos, a fim de contrabalançar os
interesses geo-políticos e geo-econômicos das grandes potências e de grandes investidores privados por elas apoiados por
meio das políticas apoiadas pelas IFMs.
IV – ASPECTOS INSTITUCIONAIS
4. Contexto Geral
Como já dito acima, os programas de financiamento do
FMI/BM/BID nem sempre são benéficos para os interesses dos
diversos países do continente americano e suas populações e muito freqüentemente devastam o meio ambiente. Isto ocorre porque as decisões de investimentos públicos em cada país são afetadas por novos procedimentos e objetivos que as IFMs impõem
como condição de concessão dos seus empréstimos. A forma
como isso ocorre envolve: (i) a formulação de um planejamento estratégico plurianual por parte das IFMs; (ii) a formulação
de condições para a concessão ou desembolsos dos empréstimos
de modo a introduzir objetivos, procedimentos, critérios e redes
gerenciais não escolhidos mediante a representação democrática de interesses; (iii) alavancagem financeira; e (iv)
direcionamento do crédito interno ou regional. Estes pontos serão abordados a seguir.
55
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
5.
O planejamento estratégico das IFMs
Os problemas decorrentes das práticas das IFMs começam no processo de planejamento de alocação de seus créditos. De fato, o Banco Mundial e o BID, por exemplo, fazem
tal planejamento com abrangência plurianual, registrando o
conteúdo das metas e o seu contexto em documentos específicos: o “Documento de Assistência ao País” (no caso do BM)
e o “Documento de País” (no caso do BID). Tais documentos
são também chamados, genericamente, “documentos de estratégia”. Ora, as IFMs, por meio desses documentos, definem a sua visão de quais são as necessidades de investimento
em cada país, quais são os principais desafios em diferentes
setores da economia e o que conta como “desenvolvimento”
em cada caso e em cada setor ou região. E, de um modo geral,
as IFMs consideram políticas de desenvolvimento principalmente as reformas que abrem mercados lucrativos para grandes empresas privadas. É partindo desse pressuposto que o planejamento estratégico das IFMs é elaborado. Por isso, seria imprescindível que, nesse processo de elaboração do planejamento estratégico das IFMs, houvesse uma
interação entre a sociedade (possivelmente via parlamentos)
e as IFMs, para evitar que distorções graves sejam incorporadas aos documentos de estratégia. Mas tal interação não ocorre. No mínimo, os documentos de estratégia das IFMs deveriam ser formal e criteriosamente avaliados pelos parlamentos
nacionais e ser aprovados ou rejeitados, no todo eu em parte.
Daí poderiam ser gerados critérios próprios a cada pais, com
base nos quais seria possível então a autoridades nacionais
apreciar, subseqüentemente, os diferentes projetos de empréstimos, na medida em que fossem sendo oferecidos, ao longo
dos anos de abrangência de cada documento de estratégia,
considerando-os aceitáveis, ou não, no todo ou em parte.
56
Monitorando as
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6. Impactos sobre o processo orçamentário
A verdade é que não apenas os documentos de estratégia, mas também os empréstimos do BM e do BID, são negociados a portas fechadas com poucos técnicos dos Executivos nacionais. Além disso, os empréstimos são estruturados,
de forma que agreguem objetivos e elementos financeiros (jamais submetidos ao escrutínio publico) nos processos de execução orçamentária nacionais. Por esta via, os créditos externos multilaterais acabam direcionando o conteúdo de diversas políticas públicas nos diversos países do continente, desde
políticas de saúde e de educação até políticas relativas a organização bancária, bolsas de valores e setores como o de transportes e o de energia elétrica.
7. A assistência técnica oferecida pelas IFMs
Muitos dos projetos de empréstimo das IFMs prevêem a
destinação de verbas especificas para a montagem de redes
gerenciais formadas de consultores não concursados e contratados por ministérios e outros setores do Estado. Tais redes
gerenciais são, portanto, formadas por indivíduos escolhidos
por seu treino especial e por sua disponibilidade para serem
supervisionados sob critérios de eficiência técnica gerados dentro das IFMs e que não necessariamente incorporam o interesse público. Hoje em dia não existe, nos países em desenvolvimento, qualquer discussão relevante sobre os males causados por este tipo de atividade. Nesse campo, também, devem atuar os parlamentos, regulamentando o uso de consultores nas práticas de cooperação técnica das IFMs.
8. Alavancagem financeira e direcionamento do crédito local e regional
Muitas vezes, os créditos multilaterais vinculam a realização dos empréstimos externos a aportes (financeiros ou de serviços) obtidos junto fontes nacionais, públicas ou privadas. No
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
caso de fontes públicas, estas podem ser os tesouros (dos governos centrais ou sub-nacionais), dos quais se exigem
“contrapartidas” financeiras ou de serviços, ou bancos públicos, como o BNDES. No caso de aportes privados, muitas vezes
ocorre a participação a bancos comerciais privados, na operação financeira. Em todos esses casos, obtém-se seja (a) uma
alavancagem financeira, comprometedora de recursos fiscais,
com o direcionamento das políticas públicas em termos de seus
conteúdos, prazos de execução, ambiente e procedimentos
gerenciais, seja (b) um direcionamento do crédito interno ou
regional (por exemplo, nos casos envolvendo a CAF, o
FONPLATA ou o BNDES), muitas vezes com possível ou efetivo prejuízo aos interesses de cidadãos ou empresas brasileiros
ou ainda com impactos ambientais desastrosos.
V– MUDANÇAS POSSÍVEIS E NECESSÁRIAS
9. Diversas mudanças
Diversas são as mudanças que os parlamentares dos diferentes países poderiam imediatamente considerar como
focos de reforma.
A) Representação dos interesses nacionais
Os governos dos diversos países do continente americano indicam pessoas para ocuparem cargos de diretoria do
FMI/BM/BID. Em geral, tais pessoas desenvolvem suas atividades sem transparência e sem qualquer publicidade, prejudicando a representatividade dos interesses das sociedades nos
processos de decisão internos das IFMs. É crucial que os nomes indicados pelos governos nacionais passem a ter, não estreitas lealdades tecnocráticas a um ou outro ministério do
governo local em causa, ou a grupos de técnicos das próprias
IFMs. Ao contrário, na atuação desses funcionários, deve prevalecer a lealdade a diretivas estabelecidas pelos parlamentos, que representam o interesse público. Portanto, deve ser
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Monitorando as
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preocupação da sociedade civil: (1) apoiar o estabelecimento, pelos parlamentos nacionais, de critérios especiais para a
indicação dos nomes de representantes dos países para cargos nas IFMs; (2) apoiar o estabelecimento de procedimentos nacionais de “supervisão” ou “prestação de contas” desses funcionários perante os Parlamentos Nacionais e perante
a sociedade civil organizada.
B) Política de informação
Nos anos 1990, grupos da direita americana articularam-se para defender a opinião de que as IFMs não mereciam mais o apoio do governo americano, sendo melhor deixar o “mercado” ser o único agente propulsor da economia
internacional (Comissão Meltzer). Uma das reações a essa
linha de pensamento foi uma tendência de “reforma interna” dos Bancos (BM/BID). No BM, tais reformas começaram sob a administração do atual presidente, Wolfensohn,
que tomou posse em 1995. Tais “reformas internas”, em
parte, evoluíram na direção de dar publicidade e transparência aos procedimentos dos Bancos. Contudo, permanecem graves problemas nessa área. É um absurdo, por
exemplo, que o FMI considere unilateralmente ser lícito o uso de “cartas sigilosas” (as chamadas side letters)
como instrumentos de implementação de operações de
assistência financeira a países (ver International
Monetary Fund, “Guidelines on Conditionality”, Sep. 25,
2002). Portanto, vários problemas referentes ao acesso a
informação permanecem com relação à atuação das IFMs
e seus programas: (i) as regras adotadas pelas próprias IFMs
para as suas políticas de informação poderiam ser muitíssimo melhoradas e sobretudo complementadas com requisitos legais internos dos países tomadores de empréstimo; (ii)
as IFMs com grande freqüência violam flagrantemente suas
próprias políticas de informação tal como existem hoje. Isto
tem a grave conseqüência de impedir que sociedade civil
monitore as ações das IFMs e as diversas etapas dos processos de tomada decisão. PROPOSTA: Assim sendo, é impor59
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
tante que a sociedade civil trabalhe em prol de: (1) encorajar a adoção, mediante legislação local a respeito dos critérios legais para a aprovação dos empréstimos, de requisitos
que contribuam para uma mudança substancial nas regras
e nas “políticas de informação” das IFMs; (2) encorajar a
criação, por legislação local, de mecanismos mediante os
quais as violações perpetradas pelas próprias IFMs de suas
“políticas de informação” possam ser agilmente impugnadas pela sociedade afetada, e os procedimentos adotados
possam ser, em todos os casos, modificados em tempo útil
para a publicação dos conteúdos detalhados, antes de sua
aprovação formal; e (3) encorajar a adoção de leis nacionais que garantam aos cidadãos o acesso a informações detalhadas sobre empréstimos concedidos a setor privado, incluindo o acesso a documentos e relatórios, de modo a permitir o conhecimento, o acompanhamento e a atuação sobre eventuais problemas identificados nos projetos de empréstimo (como ocorre com freqüência no setor de barragens de usinas hidroelétricas).
C) Planejamento Estratégico do BM/BID
O BM/BID realizam processos de “planejamento estratégico”, mediante os quais estabelecem diretrizes plurianuais
para a oferta de créditos e suas condicionalidades. O resultado são “planos estratégicos”, que assumem as formas de
um “Documento de Assistência ao País” (Country Assistance
Strategy - CAS), no caso do BM, e de um “Documento de
País” (Country Paper), no caso do BID. Tais documentos
têm importância crucial para o estabelecimento de linhas
estratégicas de investimento público e privado, com reflexos
extremamente relevantes no processo orçamentário dos países “tomadores” (como é o caso do Plano Plurianual – PPA
– no Brasil). Portanto, é de suma importância que os povos
e comunidades participem ativamente, com voz e voto, no
processo desse “planejamento estratégico” do crédito mul60
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
tilateral, que tem vigência plurianual. PROPOSTA: Será de
extrema importância que a sociedade civil trabalhe em prol
de que sejam adotados, imediatamente, mecanismos de participação de representantes nacionais (parlamento e sociedade civil) nos procedimentos de preparação dos seus documentos estratégicos (Country Paper e Country Assitance
Strategy), sob pena de permitir um continuado prejuízo à
soberania das nações, no campo da formulação de sua política econômica. Por outro lado, a sociedade pode também
trabalhar em prol da adoção, por governos locais, de processos formais de avaliação (e aprovação ou rejeição no todo
ou em parte) dos documentos de estratégia das IFMs.
D) Foco político sobre a alavancagem financeira
As operações das IFMs se valem de expressiva
“alavancagem financeira”, por meio da exigência de
“contrapartidas” de recursos (financeiros ou de serviços) de
fontes nacionais ou sub-nacionais. PROPOSTA: Assim, é de
suma importância que a sociedade civil trabalhe em prol da
criação procedimentos legislativos diferenciados nos diversos
países, de modo a permitir aos políticos e à própria sociedade
civil exercer vigilância detalhada sobre a alavancagem financeira realizada pelas IFMs mediante as suas operações de empréstimo, impondo-lhe limites ou regulamentações.
E) Foco político sobre o direcionamento do crédito
interno ou regional
Além da alavancagem financeira, as operações de empréstimo das IFMs freqüentemente também determinam em
grau importante o direcionamento do crédito interno, sempre que há participação de bancos públicos ou privados nacionais ou fundos regionais como o CAF ou o FONPLATA. Há
direcionamento do crédito regional, também, quando as IFMs
aliam-se a bancos públicos nacionais que tenham atuação
extraterritorial como é o caso do BNDES, um banco estatal
brasileiro. Por isso, será importante que a sociedade civil de61
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
fenda a criação de procedimentos legislativos diferenciados,
que permitam aos parlamentares e à sociedade civil monitorar
com detalhe e regulamentar tal direcionamento, inclusive tendo em vista as suas implicações em face de objetivos das políticas de crédito oficial e popular e de outras políticas (como
as políticas de saneamento, políticas educacionais, políticas
agrícolas, políticas de proteção ambiental, relações trabalhistas, políticas de defesa da concorrência, etc.).
VI – CONCLUSÕES
1. Déficit de representação política
As IFMs têm tido um papel cada vez mais relevante na
determinação do conteúdo e da natureza de várias políticas públicas em diversos países do mundo, em especial aqueles com
economias em desenvolvimento. Contudo, o crescimento da
importância das IFMs para a definição das políticas públicas
nos diversos países não tem sido acompanhado por uma ampliação da representatividade dessas instituições a partir das
populações afetadas. Além disso, essas instituições cooperam
entre si, trocam informações, procuram sinergias entre suas
estratégias, enfim, agem em concerto. Sem formas de cooperação regional e / ou global da sociedade civil, fica difícil regulamentar as atividades e os métodos de atuação das IFMs e
limitar os impactos negativos de seus programas.
2. Uma plataforma de ação frente às IFMs
Em vista disso, a REDE BRASIL SOBRE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS
MULTILATERAIS propõe os seguintes pontos, indicativos de possíveis ações e deliberações para a formação de uma PLATAFORMA DE AÇÃO EM FACE DAS IFMs:
• Representantes de países – Os representantes de países nas IFMs não podem permanecer como meros funcionários das organizações multilaterais, sem o dever legal de prestar esclarecimentos e informações aos parlamentos e socie62
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
dades locais. É preciso instituir critérios legais para a indicação desses representantes, bem como para que, quando convocados, tenham o dever de prestar contas aos parlamentos e
à opinião pública de suas atividades e dos votos emitidos nas
organizações multilaterais em que trabalharem.
• Acesso a informação – Os parlamentos nos diversos
países não devem aceitar que o acesso a todas as informações
relativas a operações das IFMs dependa exclusivamente de critérios escolhidos unilateralmente pelas próprias IFMs (às vezes
com a anuência dos membros do Executivo dos países tomadores
de empréstimo). É necessário que se instituam regras legais
em cada país, que exijam o atendimento de certos princípios
de ampla publicidade e transparência como condições de validade jurídica das interações entre governos e IFMs. Além disso,
devem ser também instituídos mecanismos tais como registro
público nacional obrigatório, atualizado e detalhado, de projetos de empréstimos, bem como audiências públicas obrigatórias com funcionários das IFMs ou da administração pública
local, para que as diversas sociedades tenham acesso a informações relevantes, bem como possam, em prazos razoáveis,
formular impugnações a projetos de empréstimos. Isto pode
ser feito mediante a instituição obrigatória de um arquivo público nacional contendo informações detalhadas e publicadas
em prazo útil, especificados em lei. A informação a ser publicada
com o registro no arquivo nacional poderia também incluir
dados atualizados e detalhados sobre as redes gerenciais organizadas sob empre´stimos de assitência técnica oferecidos pelas IFMs. Finalmente, pode ser exigido que uma parte das verbas das IFMs destinadas aos diversos países seja obrigatoriamente reservada para o custeio da administração e manutenção de tal registro público nacional obrigatório.
• Documentos de estratégia das IFMs – O processo de planejamento da alocação dos créditos das IFMs não deve permanecer fechado, sem a participação da sociedade e dos parlamentos. Nem tampouco devem os documentos de estratégia permanecer sem qualquer avaliação formal por parte do parlamento e
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
da sociedade. Os parlamentos podem exigir prazos e instituir
um processo formal de avaliação dos documentos de estratégia
das IFMs, aprovando-os ou rejeitando-os, no todo ou em parte.
• Alavancagem financeira – Os parlamentos devem criar meios de avaliar e regulamentar a alavancagem financeira dos empréstimos das IFMs.
• Direcionamento do crédito – Os parlamentos devem criar meios de avaliar e regulamentar o direcionamento do crédito
local e regional resultante da concessão de empréstimos pelas IFMs.
64
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
FMI E BANCO MUNDIAL PROMOVEM A
LIBERALIZAÇÃO COMERCIAL
1 - INTRODUÇÃO
O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco
Mundial (BM) e a Organização Mundial do Comércio (OMC)
têm procurado desenvolver políticas mutuamente complementares. Sob o argumento de que as políticas dessas instituições necessitam ser mais "coerentes" entre si, diversos programas e modalidades de cooperação entre as organizações
citadas têm sido desenvolvidos. Assim, essas organizações têm
adotado critérios e atividades que promovem o apoio das políticas "financeiras" do FMI e do BM às políticas "comerciais" da OMC, em favor da liberalização do comércio nos países tomadores de empréstimos.
As formas de cooperação entre o FMI, o BM e a OMC
para fins de conjunta promoção da liberalização comercial
são objeto do documento "Coerência nas Políticas Econômicas Globais e a Cooperação entre a OMC, o FMI e o Banco
Mundial" (Coherence in Global Policymaking and
Cooperation Between the WTO, the IMF and the World Bank),
publicado pela OMC em 11/10/2004, sob o código WT/TF/
COH/S/9, para discussão com funcionários do FMI e do BM.
O presente informe apresenta uma breve análise da cooperação entre o FMI, o BM e a OMC, para fins de promoção
da liberalização comercial.
65
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
2 - A COOPERAÇÃO ENTRE O FMI O BANCO MUNDIAL E A
OMC
2.1 – Premissas Gerais da Cooperação OMC-FMI-BM
Uma premissa geral da cooperação entre OMC-FMI-BM é que
as reformas de liberalização comercial são sempre benéficas para todas as partes envolvidas. Isto, porém, é contestável. O simples cancelamento de regulamentações nacionais ou sub-nacionais das práticas relevantes para as atividades comerciais, como se sabe, pode prejudicar ou mesmo destruir, em países menos desenvolvidos, indústrias com necessidade de investimentos para agregar competitividade,
ou setores econômicos em que se organizam padrões solidários ou
comunitários de produção e troca, inclusive a agricultura familiar.
Por outro lado, ao priorizar a revogação de "intervenções" no mercado, a simples liberalização comercial pode dificultar ou inviabilizar a
implementação de políticas nacionais ou sub-nacionais de alcance
social, inclusive nas áreas saúde pública, segurança alimentar, direitos trabalhistas e proteção ambiental.
A cooperação institucional OMC-FMI-BM é prevista em apoio à
implementação da "Agenda de Doha", da OMC, que enfatiza o "desenvolvimento" via expansão do "mercado", como fruto da liberalização
comercial. Portanto, na visão dos organismos já citados, até mesmo o
combate à pobreza deve resultar do crescimento econômico via ampliação de mercados para empresas privadas.
2.2 - Abrangência da Cooperação Institucional
A cooperação institucional, segundo o WT/TF/COH/S/9,
abrange a liberalização comercial nas áreas de (a) agricultura; (b)
acesso a mercados de bens não-agrícolas e de serviços; e (c) transporte, facilitação do comércio e logística. Além disso, contudo, a
cooperação institucional enfatiza também as "reformas econômicas estruturais" consideradas necessárias à promoção e
implementação de estratégias de desenvolvimento (isto é, crescimento via expansão de mercados) nos diferentes países do Sul (ver
WT/TF/COH/S/9, itens 16 e seguintes).
66
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
2.3 - Agricultura
Na área de agricultura, a cooperação OMC-FMI-BM se preocupa em "melhorar o acesso dos países menos desenvolvidos [...] a programas de financiamento multilateral" (WT/TF/COH/S/9, Box II),
como "apoio" a reformas da política comercial. Sendo evidente que
a simples liberalização pode facilmente provocar um enfraquecimento
dos setores abrangidos pelas reformas, as instituições referidas propõem a criação de uma "rede de segurança" (safety net) financeira
para induzir os países a avançarem no processo de liberalização, mesmo que isto os prejudique em diversos aspectos.
2.4 - Bens Não-agrícolas e Serviços
Quanto às políticas de acesso a mercados de bens não-agrícolas
e de serviços, a cooperação OMC-FMI-BM prevê a redução de barreiras comerciais para produtos intensivos em mão-de-obra qualificada
ou de baixa qualificação nos quais os países pobres têm vantagem
comparativa (têxteis e vestuário, couro e produtos em couro, papel o
polpa de celulose, móveis, produtos de borracha e metais). A razão
apresentada para a diminuição de barreiras para tais produtos é que
isto impulsionaria investimentos públicos e privados em infra-estrutura e educação nos países em desenvolvimento.
2.5 - Reformas Estruturais
É curioso que, além de defender a implementação de reformas
liberalizantes em políticas especificamente comerciais, a cooperação OMC-FMI-BM também inclui explicitamente a adoção de
"reformas econômicas estruturais" nos países em desenvolvimento,
sendo abrangidas:
• políticas que reforcem o lado da "oferta" (via investimentos
privados);
• políticas macroeconômicas em prol da estabilidade financeira; e
• políticas para os setores de infra-estrutura, educação e
saúde.
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Tais reformas, segundo documento da OMC (WT/TF/COH/S/
9, item 16), são centrais ao mandato para a promoção da "coerência" entre as políticas financeiras e comerciais das três instituições
citadas.
Os temas relativos às "reformas econômicas estruturais" foram objeto de consideração de representantes das três instituições
(OMC-FMI-BM) em reunião conjunta realizada em maio de 2003. A
proposta foi que a cooperação deveria ocorrer em três áreas: (a) análise de políticas públicas nos países em desenvolvimento, para identificação das implicações das políticas locais sobre o comércio; (b)
assistência técnica e capacitação; e (c) apoio a "ajustes", isto é, apoio
por meio de assistência técnica e recursos financeiros oferecidos a
países em desenvolvimento que enfrentem conseqüências adversas
resultantes da implementação de acordos comerciais (WT/TF/COH/
S/9, item 17).
2.6. Condicionalidades Relacionadas ao Comércio
Há, ainda, uma grande ênfase da cooperação OMC-FMI-BM
no que se refere à criação de "condicionalidades" adotadas tanto
pelo FMI quanto pelo BM para fins de exercer pressão sobre os países
em desenvolvimento em favor da implementação de reformas comerciais. A criação de tais condicionalidades é justificada nos seguintes termos (WT/TF/COH/S/9, item 21):
"Recomendações (policy advice) do FMI [aos países em desenvolvimento] podem ser associadas a condicionalidades de programas quando existirem no contexto de ajuda financeira a países que
enfrentem desequilíbrios financeiros internos ou externos. Isto pode
incluir casos em que os desequilíbrios estejam relacionados a políticas que restrinjam ou distorçam o comércio [...]"
E, como qualquer política de interesse público, resultante do
processo político local (nacional ou sub-nacional), pode ser facilmente considerada um fator de "restrição" ou "distorção" do comércio, a tendência é que os programas de assistência financeira do
FMI e do BM incluam exigências (condicionalidades) de que tais
68
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
políticas locais sejam revogadas ou não sejam adotadas pelos governos dos países em desenvolvimento. Em conseqüência, políticas de
interesse público, resultantes do processo político local, e que poderiam até alimentar estratégias de negociação comercial - como a de
quebra de patentes para fins de saúde pública, que passou a ser
priorizada no Brasil e foi levada à IV Conferência Ministerial da
OMC em 2001, em Doha - tendem a ser obstaculizadas por pressões
financeiras oriundas das condicionalidades relacionadas ao comércio formuladas pelo FMI e pelo BM, o que é um verdadeiro absurdo.
Além disso, está previsto que os programas do FMI funcionem
como instrumentos de "ajuste fino" para a implementação gradual
de políticas da OMC nos países em desenvolvimento. Assim, há
proposta no seguinte sentido (WT/TF/COH/S/9, item 24):
• As recomendações do FMI em matéria de política e
condicionalidades comerciais deve considerar mais a flexibilidade
disponível, sob regras da OMC, aos países em desenvolvimento [...];
por exemplo, na manutenção de tarifas aplicadas até o limite superior, e induzindo gradualmente a introdução de reformas durante
períodos de transição prescritos em acordos da OMC."
Isto significa que o FMI poderá usar os seus programas de assistência financeira para alocar recursos para países em desenvolvimento,
mas ir diminuindo tais recursos de maneira programada e de acordo
com critérios temporais e quantitativos coordenados com objetivos e
planos de implementação de reformas comerciais previstas em acordos da OMC.
2.7 - Planos para 2005
Está também estabelecido (WT/TF/COH/S/9, item 27) que o
FMI deverá fazer uma "abrangente revisão" de seu trabalho em política comercial em 2005, de modo a promover as finalidades da "Agenda de Doha" e supostamente, ao mesmo tempo, favorecer o progresso em direção à implementação das chamadas "Metas de Desenvolvimento do Milênio" (MDMs) adotadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa revisão buscará (a) identificar reformas
comerciais que possam ser induzidas em países em desenvolvimento;
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Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
(b) avaliar se as modalidades de "ajuda" (incluindo monitoramento
econômico, empréstimos, pesquisa e assistência técnica) praticadas
pelo FMI em favor da adoção de reformas comerciais em países em
desenvolvimento são adequadas como meios efetivos para induzir a
implementação de tais reformas; e (c) examinar a colaboração com
outras instituições atuantes na área da política comercial, buscando
"a divisão de trabalho mais apropriada [...] com a OMC e o Banco
Mundial, levando em consideração a missão e a expertise da cada
instituição" (ibidem).
O papel do BM previsto se refere a contribuições embasadas em
sua acumulação de conhecimentos e experiências com a
implementação de programas no nível dos países.
Finalmente, a referência ao fato de que essa revisão representará
um esforço no sentido de favorecer a implementação das MDMs, sinaliza que as instituições como o FMI e o BM pretendem estabelecer,
por meio de suas políticas comerciais, elementos de desenho de políticas que venham a influenciar e restringir posteriores interpretações do
significado concreto da "Meta 8", cujo enunciado é "Criar uma parceria global para o desenvolvimento".
2.8 - Assistência Técnica e Capacitação: Combinando
Agências
A cooperação OMC-FMI-BM para a promoção mais efetiva da
liberalização comercial nos países em desenvolvimento prevê, ainda,
um papel importante para os programas de assistência técnica e para
as atividades de capacitação administrados pela OMC, pelo FMI e
pelo BM. Esses programas são dedicados a "treinar" autoridades ou
funcionários de países em desenvolvimento, levando-os a crer que as
políticas defendidas pelas agências multilaterais são a melhor forma
de beneficiar a todos os países do mundo.
E mais: a assistência técnica e a capacitação da cooperação
OMC-FMI-BM reserva um papel relevante para organizações de treinamento como o "IMF Institute" [1] o "World Bank Institute" [2] e
a "Estrutura Integrada para Assitência Técnica Comercial a Países
Menos Desenvolvidos" (EI) [3], que congrega as organizações citadas
70
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
com a United Nations Conference on Trade and Development
(UNCTAD), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e o Centro de Comércio Internacional (CCI). Deve-se assinalar que é a OMC quem presta os serviços de secretariado para a EI.
3 - CONCLUSÕES
Como visto acima, as organizações multilaterais se movimentam
para somar esforços na implementação de uma agenda global integrada de política econômica. Esta agenda global tem uma convergência
substantiva importante nos principais acordos adotados sob a OMC.
Esses acordos, tal como existem hoje, não servem de maneira eqüitativa às aspirações de todos os povos do mundo. Ao contrário, concentram grandemente o poder econômico nas mãos de grupos de interesse
que são beneficiários da abertura de mercados levada a cabo por governos a partir de pressões trazidas por instituições como a OMC, o FMI e
o BM, em detrimento das aspirações de comunidades locais.
O poder de penetração dessa agenda global integrada nos países
em desenvolvimento aumenta tremendamente com o desenvolvimento
e o adensamento da cooperação institucional, como a que está sendo
construída entre a OMC, o FMI e o BM. O Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), é claro, se junta ao "mutirão", cabendolhe sobretudo a parte de abertura de mercados no âmbito da integração
regional em favor da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A
"coerência" entre as políticas dessas agências se dá no sentido de
transformar as "condicionalidades" financeiras do FMI, BM e BID
em instrumentos para a mais efetiva implementação de reformas
comerciais liberalizantes, no mais das vezes criticáveis por seus impactos negativos sobre a vida de comunidades, a preservação do meio
ambiente e a justiça social.
A sociedade civil necessita acompanhar a evolução do sistema
multilateral, denunciando a instrumentalização da cooperação monetária e financeira para fins de promoção de reformas comerciais
indesejáveis e que poderiam ser evitadas mediante negociações e deliberações em instâncias políticas nas quais a vontade da sociedade
esteja ampla e efetivamente representada.
71
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Notas:
[1]
Ver:
http://www.imf.org/external/np/ins/english/
[2]
Ver:
http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/WBI/
0,,pagePK:208996~theSitePK:213799,00.html
[3]
Ver:
http://www.integratedframework.org/
72
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
O PAPEL DAS IFMs NA
IMPLEMENTAÇÃO DAS METAS DE
DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO1
1) CONTEXTO GERAL
•
Depois da Guerra Fria, uma série de grandes conferências enfatizaram e atualizaram a “agenda social” da
ONU (Copenhagen; Rio de Janeiro; Beijing; Cairo; etc.).
•
Em maio de 1998, o ECOSOC (ONU) realizou uma
sessão sobre o “Acompanhamento Integrado” das
grandes conferências e cúpulas da ONU. Nesta sessão, o embaixador Juan Somavía ressaltou “a necessidade urgente de que o sistema multilateral desenvolva um conjunto de indicadores” para o acompanhamento da implementação da agenda social.
•
Em setembro de 2000, a ONU deu um passo importante na direção de promover a efetivação da “agenda
social”. Este passo foi a chamada Declaração do Milênio, que foi adotada pela Assembléia Geral da ONU
em setembro de 2000, sucedendo a ultrapassada primeira “Década do Desenvolvimento” dos anos 1960.
•
Assim, a Assembléia Geral da ONU em setembro de
2000 adotou certas metas, que ficaram conhecidas como
“Metas de Desenvolvimento do Milênio” (MDMs) e que
integram a própria Declaração do Milênio [ver: UN, General Assembly, 18 September, 2003, A/RES/55/2].
1
Texto preparado para participação da Rede Brasil na mesa redonda
promovida pelo Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC),
em 26 de abril de 2004, em Nova York.
73
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO
1. Erradicar a pobreza e a fome
2. Alcançar a educação primária universal
3. Promover a igualdade dos gêneros e o
empoderamento das mulheres
4. Reduzir a mortalidade infantil
5. Melhorar a saúde das mães
6. Combater a HIV/AIDS, a malária e outras doenças
importantes
7. Assegurar sustentabilidade ambiental
8. Criar uma parceria global para o desenvolvimento
2) PROBLEMAS
74
•
Porém, um grande problema da Declaração do Milênio é que ela anuncia metas de desenvolvimento, mas
não indica quais os “meios” a serem adotados para o
cumprimento das metas anunciadas.
•
Além disso, um outro problema é que, de um modo
geral, as MDMs requerem aporte de recursos financeiros, cuja disponibilidade depende do crescimento
da economia mundial.
•
Considerando a necessidade de recursos financeiros,
dependentes do crescimento da economia, o panorama não é bom. De fato, o crescimento global piorou
desde a adoção das MDMs:
(a) Nos países desenvolvidos, o crescimento do
PIB per capita passou de 2,8% nos anos
1990 para 1,6% em 2001-2003;
(b) a América Latina teve uma queda de crescimento do PIB per capita de quase 1% no
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
mesmo período de 2001- 2003;
(c) (c) na África Sub-sahariana – região
com os maiores desafios) o crescimento médio per capita na região foi de apenas 0,7% nesses mesmos três anos
(2001-2003). ). [Fonte: UN General
Assembly, Dec. 2003; A/58/323].
3)
A
VONTADE
POLÍTICA
PONTENCIALIDADES DA META N° 8
E
AS
•
Entretanto, a Social Watch tem criticado a
implementação das MDMs a partir de outra ótica. Entre as críticas da Social Watch está o argumento de que a falta de progresso em direção à
implementação das MDMs deriva não tanto da
falta de recursos financeiros, mas sobretudo da
falta de “vontade política”. [R. Bissio, “Easier Said
than Done”, prefácio a Social Watch, Indicators
2000].
•
A falta de “vontade política” talvez se aplique mais
à meta n° 8 do que a outras MDMs. De fato, o
cumprimento da meta n° 8 não exige grandes dispêndios financeiros, mas sim uma boa dose de
criatividade e suficiente vontade e habilidade políticas. E a vontade dos países do Norte para
implementar as MDMs pode vir como reação a
proposições criativas dos países do Sul. Nesse sentido, a meta nº 8 tem um enorme potencial para
tornar-se a grande fonte da construção dos “meios” para a efetivação das MDMs em geral.
•
Quanto a isto, é preciso lembrar que foi por insistência de diplomatas do Sul [cf. R. Bissio, “Civil
Society and the MDGs”, Development Policy
Journal, UNDP, April 2003], que, às 6 primeiras
75
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
metas adotadas na Declaração (parágrafo 19 da resolução A/RES/552), foram adicionadas ainda: (a) a
meta n° 7, relacionada ao meio ambiente; e (b) a meta
n° 8, que se refere à criação de uma “parceria global”
para o desenvolvimento.
•
E esta meta n° 8 tem sido vista acertadamente como
a mais importante das MDMs, pois: (i) pode resultar
em reformas que afetem o modo como as políticas
locais (nacionais e/ou subnacionais) se relacionam
institucionalmente com as políticas sustentadas pelo
sistema multilateral; e (ii) influenciar nas formas
institucionais de articulação entre as finanças internacionais e o comércio internacional.
4) O PAPEL DAS IFMs
76
•
É sobretudo neste contexto (da meta n° 8) que deve
ser entendido o papel das instituições financeiras multilaterais (IFMs) para a efetivação das MDMs. Construir uma “parceria global para o desenvolvimento”,
como estabelecido na meta n° 8, implica, evidentemente, em superar o surrado “Consenso de Washington”, bem como o seu complemento, o modelo
institucional que dá primazia ao “controle externo
exercido pelas IFMs sobre os governos nacionais” por
meio do sistema de condicionalidades impostas em detrimento da representação democrática de interesses.
•
A superação do modelo de “controle externo” diz respeito a dois campos de reformas que podem ser
implementadas em cumprimento à meta n° 8, de
construir uma “parceria global para o desenvolvimento”:
(1)a criação de mecanismos que promovam a
“integração comercial seletiva” na área da po-
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
lítica comercial (esta linha de ação tem sido
defendida por Martin Khor, da TWN);
(2)a valorização da adoção de “condicionalidades
reversas” na área das políticas financeiras.
•
Isto significa superar a “liberalização comercial simplória” defendida pelos países desenvolvidos no âmbito Organização Mundial do Comércio (OMC), bem
como abandonar a estratégia da “coerência” entre
políticas financeiras e comerciais, como ela tem sido
entendida pelas organizações multilaterais.
•
O interesse na chamada “coerência” tem crescido recentemente entre tomadores de decisão na OMC, no
Banco Mundial (BM) e no Fundo Monetário Internacional (FMI). O termo se refere a esforços da parte dessas organizações no sentido de formular e implementar
uma política econômica mais “coerente”. A “coerência”, portanto, objetiva desenvolver critérios, medidas e
procedimentos que modificam parcialmente a sistemática de decisão dos organismos multilaterais da área econômica (FMI, BM, BID, OMC), a fim de que adquiram maior complementaridade entre si, reforçando-se
mutuamente. Isto implica em que as políticas de assistência financeira passam a incluir condicionalidades relacionadas ao comércio (trade-related conditionalities)
para “forçar” a aprovação, em nível local (nacional),
das políticas comerciais abrangidas nos acordos do GATT/
OMC, ou mesmo a ALCA. Isto, evidentemente, tende
a esvaziar o potencial de negociação dos países em desenvolvimento nos fóruns multilaterais e regionais de
política comercial.
•
Do ponto de vista dos países em desenvolvimento, três
aspectos da “coerência” devem ser ressaltados.
Primeiro, o fato de que a “coerência” representa uma
ampliação dos impactos das “Estratégias de
77
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Assistência” (Country Assistance Strategy, Country
Paper) formuladas pelas instituições financeiras
multilaterais. Em segundo lugar, a “coerência” ignora
completamente preferências políticas locais que
poderiam alimentar “pluralismos” institucionais e a
estruturação de políticas públicas que pudessem ser
mais apropriadas a realidades sociais locais e mais
aptas a promover a participação de grupos sociais nos
benefícios do desenvolvimento econômico. Na área da
política comercial, isto poderia favorecer crucialmente
a “integração seletiva”. Em terceiro lugar, não há ainda
qualquer mecanismo institucional com o objetivo
assegurar que a “coerência” será posta ao serviço da
implementação dos MDMs. Esta é a missão que temos
à frente: trabalhar pela transformação da “coerência”
em conjuntos localmente diferenciados de
“condicionalidades reversas”, favoráveis a formas de
integração comercial seletiva.
•
78
Contudo, para a formulação de “condicionalidades
reversas”, será necessária a adoção de uma série de
reformas que modifiquem a maneira como os governos dos países em desenvolvimento se relacionam com
as IFMs. Tais reformas devem abranger: (a) os procedimentos de nomeação de representantes de países nas
IFMs; (b) a participação de parlamentos e da sociedade civil na formulação e na “avaliação nacional” dos
documentos de estratégia dos bancos multilaterais; (c)
introdução de requisitos formais nacionais para dar
maior transparência aos processos e decisões das IFMs,
como condição para que suas operações sejam consideradas “legais” nos diversos países; (d) debate amplamente democrático, com análises apropriadas, dos
documentos de programa e seus impactos econômicos, sociais e ambientais para cada operação de em-
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
préstimo, como condição para a sua aprovação formal pelos governos.
•
Em conclusão, a sociedade civil deve esforçar-se para
que as IFMs: (a) flexibilizem suas práticas e passem a
aceitar as “condicionalidades reversas” democraticamente formuladas pelos diferentes países em desenvolvimento; e (b) auxiliem na promoção da
“integração comercial seletiva” a partir de uma
pluralidade de propostas de estruturação de políticas,
adaptadas às necessidades de grupos e comunidades
nos diferentes países.
79
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
80
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
CICLO DE PROJETOS EXCLUI
SOCIEDADE CIVIL
1 - INTRODUÇÃO
No final de 2004, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) publicou um documento que reúne informações atualizadas sobre o processamento de pedidos de financiamento externo, incluindo os pedidos de empréstimos a entidades multilaterais, tais como o Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) e a agências bilaterais e crédito. Trata-se do “Manual
de Financiamentos Externos”, que atualiza documento originalmente publicado em 2002. O manual, elaborado pela Secretaria de Assuntos Internacionais (SEAIN) do MPOG, pode
ser obtido na internet.[1]
O presente Informe RB nº 1-005 resume o referido documento, cuja análise revela que muito está por ser feito para
assegurar a transparência e a participação da sociedade civil,
e até mesmo a representação democrática de interesses, no
processo de aprovação de financiamentos externos contratados por autoridades brasileiras.
2 – COMO SÃO PROCESSADOS OS PEDIDOS DE FINANCIAMENTO EXTERNO
O “Manual de Financiamentos Externos” publicado pela
SEAIN/MPOG compila informações úteis para os agentes
públicos brasileiros interessados em obter a aprovação de créditos oferecidos por agências internacionais. O manual tem
duas partes principais: na primeira, oferece uma descrição da
81
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Comissão de Financiamentos Externos (COFIEX) e suas competências; na segunda parte, fornece o “roteiro” de procedimentos burocráticos que, por exigência de leis e regulamentos brasileiros, devem ser cumpridos para que qualquer interessado do setor público no Brasil obtenha a apreciação oficial de pedidos de financiamento externo. As fontes de crédito
externo a que se refere o manual são organizações multilaterais e agências governamentais estrangeiras, incluindo: Banco Mundial, BID, Banco Europeu de Investimentos (BEI),
Corperação Andina de Fomento (CAF), Fundo Internacional
para o Desenvolvimento da Agricultura (FIDA), Fundo
Finaceiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata
(FONPLATA), Global Environmental Facility (GEF), Japan
Bank for International Cooperation (JBIC), Kreditanstalt für
Wiederaufbau Bankengrouppe (KfW) do governo alemão,
Banco Nórdico de Investimentos (NIB), Programa Piloto para
Proteção de Florestas (PPG7).
2.1 A COFIEX
A COFIEX é o órgão do governo brasileiro que centraliza
o processamento dos pedidos de empréstimos externos. A
COFIEX integra a estrutura do Ministério do Planejamento e
tem por missão “avaliar pleitos de apoio externo de natureza
financeira” inclusive “nos casos em que requeiram modificações nos respectivos instrumentos contratuais, especialmente prorrogações de prazo de desembolso, cancelamentos de
saldos, expansões de metas e reformulações dos projetos ou
programas”.[2]
A COFIEX tem 10 membros: é presidida pelo SecretárioExecutivo do Ministério do Planejamento, sendo integrada ainda
por outros 4 representantes do mesmo ministério, 3 representantes do Ministério da Fazenda (MF), 1 representante do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e 1 representante do
Banco Central do Brasil (BACEN). Veja-se que nenhum representante da sociedade civil integra este órgão de grande importância para o processamento de pedidos de financia82
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
mento externo. A Tabela 1 resume esta composição.
TABELA 1
COMPOSIÇÃO DA COFIEX
ORGÃO OU ENTIDADE
REPRESENTADA
Nº DE REPRESENTANTES
Ministério do Planejamento
5
Ministério da Fazenda
3
Ministério das Rel. Exteriores
1
Banco Central
1
Total do Governo Federal
10
Governos Estaduais ou Municipais
0
Organizações da Sociedade Civil
0
Esta ausência de representação da sociedade civil na
COFIEX contrasta com o que ocorre em áreas como, por
exemplo, a da política ambiental ou a da política de saúde.
Assim, por exemplo, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) tem vários representantes de governos
sub-nacionais (estados e municípios) e 22 representantes da
sociedade civil, inclusive trabalhadores urbanos indicados por
centrais sindicais, trabalhadores rurais, indicados pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG), 1 representante indígena indicado pelo Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil
(CAPOIB), representantes dos Ministérios Públicos Federal e
Estaduais, 1 representante da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados, dentre outros.[3]
De modo semelhante, o Conselho Nacional de Saúde
(CNS) tem composição ampla, abrangendo representantes
do governo de muitas entidades sociais, inclusive de: Entidades Nacionais de Trabalhadores na Área da Saúde (CNTSS),
Entidades Nacionais de Portadores de Patologias e Deficiênci83
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
as, tais como o Movimento de Pessoas Atingidas pela
Hanseníase (MORHAN) e o Grupo de Apoio de Prevenção
da Aids (GAPA) do Rio Grande do Sul, entidades sindicais
como a Central Única de Trabalhadores (CUT), a Associação
Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO)
e assim por diante.[4]
Esse contraste gritante entre outros órgãos colegiados do
governo federal e a COFIEX ilustra como a política de planejamento no Brasil, especialmente no seu componente relativo à obtenção e alocação do crédito externo, que tem inúmeros impactos sobre muitas políticas públicas, ainda necessita
ser mais aberta e ser tornada mais representativa dos interesses dos diversos grupos sociais.
2.2 – O CAMINHO DAS PEDRAS NÃO É ABERTO
À PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE
O “Manual de Financiamentos Externos” oferece também uma descrição das etapas burocráticas que necessitam
ser cumpridas, de acordo com a legislação Brasileira em vigor, para que os pedidos de crédito externo sejam apreciados
pelas instâncias decisórias relevantes. As regras jurídicas aplicáveis (4 Leis e Medidas Provisórias aprovadas de 1997 a
2003; 4 Decretos aprovados de 1993 a 2004; 6 Resoluções
do Senado Federal de 1989 a 2001; 5 Portarias de ministérios
e do Tesouro Nacional, aprovadas de 1990 a 2002 e outros
documentos – todos listados no Anexo II do “Manual”) resultam na definição de vias processuais de decisão sobre os
pedidos de crédito externo que não se abrem para a participação da sociedade civil.
Assim, o processamento de um pedido de crédito externo
deve tipicamente cumprir as etapas apresentadas resumidamente a seguir:
a) O interessado (mutuário proponente), que será
um agente público federal estadual ou municipal, apre84
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
senta à COFIEX proposta de pedido de empréstimo a ser
obtido junto a uma agência externa (tal como o BM, o
BID e outras acima indicadas);
b) A COFIEX aprecia a proposta – verificando o
enquadramento do projeto no Plano Plurianual (PPA) e a
observância da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) –
e recomenda o seu prosseguimento, ou rejeita a proposta;
c) Sendo recomendado o prosseguimento da proposta, tem início a chamada “preparação do projeto” de obtenção do empréstimo;
d) A preparação do projeto envolve entendimentos
entre o “mutuário proponente” e o agente financiador
(como o BM, o BID, etc.), missões e visitas técnicas, de
representantes desses órgãos, etc.;
e) Registro dos documentos relevantes junto ao Banco
Central e credenciamento do “mutuário proponente”
também perante o Banco Central, habilitando assim o
mutuário proponente a negociar formalmente com a agência financiadora externa (como o BM, BID, etc.);
f) Deve também ser aberto processo, para obtenção
de autorização de processamento do projeto, no Ministério da Fazenda, que atua por meio da Procuradoria Geral
da Fazenda Nacional (PGFN).
g) A PGFN colhe parecer da Secretaria do Tesouro
Nacional (STN) que verifica sobretudo a viabilidade financeira (previsão e capacidade orçamentária para
repagamento) da operação;
h) Realização de uma “reunião de pre-negociação”,
agendada pela COFIEX, para fins de discutir minutas
contratuais (do contrato de empréstimo), com a participação de representantes da STN/MF, do proponente mutuário e outros agentes públicos relevantes;
i) Após fixada, na reunião de pré-negociação, uma
“posição” do governo quanto ao conteúdo do contrato de
85
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
empréstimo, a SEAIN agenda uma “reunião de negociação” de uma delegação do governo brasileiro com o Agente
Financiador (tal como o BM, o BID e outros).
j) Concluída a negociação, a proposta é submetida
à aprovação pela diretoria do Agente Financiador (como
o BM, o BID, etc.);
k) Após a aprovação da diretoria do Agente
Financiador, a Procuradoria da Fazenda elabora uma “Exposição de Motivos” do Ministro da Fazenda, dirigida ao
Presidente da República, solicitando o envio de “Mensagem Presidencial” ao Senado Federal, para fins de obtenção de autorização da contratação do empréstimo ou de
concessão de garantia da União;
l) Após aprovação pelo Senado Federal, dada mediante “Resolução”, a Procuradoria da Fazenda prepara despacho do Ministro da Fazenda autorizando a operação;
m)Após assinado o despacho, o contrato pode ser
assinado pelas partes envolvidas.
Como se vê, as etapas burocráticas descritas não prevêem, em nenhum momento, a participação da sociedade civil
nos processos de contratação de crédito externo. Esta exclusão da sociedade civil, obviamente, torna muito mais difícil
que os diferentes grupos sociais se pronunciem sobre o que
está sendo contratado.
Quanto a isto, é preciso entender, também, que os Agentes Financiadores (como o BM e o BID) acrescentam ao contrato financeiro, uma série de exigências (chamadas
condicionalidades), a serem cumpridas pelos governos, conforme o caso (União, estados, municípios), com impactos
muitas vezes criticáveis sobre diversas políticas públicas. Assim, a aprovação da Mensagem Presidencial pelo Senado Federal não satisfaz o requisito da verdadeira representação democrática de interesses, porque praticamente nunca ocorre
uma discussão aprofundada sobre o mérito político das
condicionalidades atreladas aos contratos financeiros.
86
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
3 – CONCLUSÕES
O “Manual de Financiamentos Externos” publicado pela
SEAIN/MPOG é um documento útil para orientar os agentes públicos brasileiros (ministros, governadores, prefeitos,
dirigentes de empresas públicas) interessados em fazer tramitar pelas instâncias apropriadas, os pedidos de financiamento externo. Contudo, ao resumir procedimentos
deliberativos prescritos pela legislação brasileira, o manual
indica também que tais procedimentos não são abertos à participação da sociedade civil.
Evidentemente, se o governo desejasse, poderia reformar
diversos aspectos desses procedimentos, para abri-los à ampla
participação da sociedade civil. Por exemplo, a COFIEX poderia incluir a representação de grupos da sociedade civil, com
direito de voz ou direito de voto, ou ambos. Outro exemplo:
poderia ser instituída a obrigação de publicação na internet,
(com prazos suficientes para tomada de ciência e discussão
pela sociedade civil) de qualquer “proposta” de pedido de empréstimo externo apresentado à COFIEX. Poderiam, ainda, ser
obrigatoriamente publicadas na internet as minutas de contratos objeto de “pré-negociação” e “negociação”, bem como
as “condicionalidades” (expressas por exemplo nos chamados
“documentos de programa”) que os Agentes Financeiros externos atrelam às suas operações de empréstimo.
A simples aprovação da Mensagem Presidencial no Senado tem se mostrado procedimento insuficiente para assegurar
o amplo debate das decisões sobre a aprovação de empréstimos externos, sobretudo considerando que esse mecanismo,
tal como existe hoje, focaliza quase exclusivamente a dimensão financeira das operações de empréstimos, deixando à margem das discussões políticas a apreciação das condicionalidades
trazidas pelos Agentes Financiadores externos.
Não há por que, numa democracia digna desse nome,
excluir a sociedade civil e o debate público amplo, aberto,
transparente, dos processos deliberativos sobre a contratação
87
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
de créditos externos por autoridades públicas. A legislação
brasileira necessita ser reformada para adequar os procedimentos atuais aos requisitos da verdadeira democracia em
que se realize genuinamente o auto-governo.
Notas:
[1] Ver:
http://www.planejamento.gov.br/arquivos_down/seain/
manual_financiamento.doc
[2] Ver:
Decreto nº 3502, de 12 de junho de 2000.
[3] Ver:
http://www.mma.gov.br/port/conama/
[4] Ver:
http://conselho.saude.gov.br/apresentacao/plenario.htm
88
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
MONITORANDO
O FMI
89
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
90
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A LÓGICA PERVERSA DO
ACORDO COM O FMI1
Alex Jobim Farias2; Pedro Quaresma3
e Júlio Miragaya4
Em dezembro de 2003 encerra-se o acordo entre o governo brasileiro e o Fundo Monetário Internacional (FMI), firmado em novembro de 1998 e renovado em 2001 e 2002,
todos no governo de Fernando Henrique Cardoso. O atual governo avalia a oportunidade de assinar um acordo mais uma
vez. Os defensores da assinatura de um novo acordo argumentam que não há outro caminho, pois sem o aval do Fundo, os
investidores não teriam segurança em investir ou manter seus
investimentos no Brasil. Ademais, dizem, o Brasil precisaria do
dinheiro do FMI para fazer face aos seus compromissos externos em 2004. Dessa forma, fica claro que a renovação do Acordo não tem como objetivo melhorar o desempenho da economia nacional e, conseqüentemente, as condições de vida da
população brasileira, mas sim atrair a confiança do “mercado”. Mas não tem sido outra coisa que o país tem feito nos
últimos anos, ou seja, agradar o mercado financeiro em detrimento da economia produtiva e dos trabalhadores.
O Acordo com o FMI não é somente disponibilização de
dinheiro, mas o compromisso do governo de implementar políticas que atendam aos interesses dos investidores, mesmo que
em detrimento dos interesses do país. Há anos a economia brasileira vem apresentando desempenho sofrível devido à opção
de nos subjugarmos às chantagens do “mercado”, em busca
de uma suposta estabilidade. Mas que estabilidade é esta, com
a maior taxa de desemprego de nossa história, com a queda
contínua da renda dos trabalhadores e com o atual nível de
violência urbana?
91
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
É preciso fugir desta lógica perversa. No período janeiro/
agosto de 2003, não obstante o superávit primário do setor
público ter sido de quase 5% do PIB, o déficit nominal chegou
a 5,3%, pois os gastos com juros da dívida pública atingiram
nada menos que R$ 102,4 bilhões, 68% a mais que os gasto
com juros no mesmo período de 2002. Tal valor corresponde
a 10,2% do PIB ou cerca de 30% da receita fiscal dos três
níveis de governo.
Conseqüências
A assinatura de Acordos com o Fundo Monetário Internacional, e, conseqüentemente, a adoção do receituário das
políticas econômicas recomendadas pelo Fundo têm invariavelmente resultado no aprofundamento da recessão e na
inviabilização dos projetos nacionais soberanos de desenvolvimento. A crise social sem precedentes vivida recentemente
pela Argentina é o caso mais emblemático do fracasso das
políticas econômicas liberais nos países em desenvolvimento.
Desde 1998, o Brasil tem recorrentemente assinado Acordos
com o FMI, e como resultado das políticas econômicas aplicadas ao país, se encontra desde então com a economia praticamente estagnada.
As políticas econômicas dos Acordos com o FMI têm se
caracterizado pela combinação das seguintes medidas: (a) o
ajuste nas contas públicas, com a fixação de metas elevadas
de superávit primário (diferença entre receitas e despesas,
excetuando as despesas financeiras); (b) controle da inflação
a partir do programa de metas inflacionárias (utilização das
taxas de juros como mecanismo de garantir o alcance de metas
de inflação fixadas e anunciadas pelo Banco Central).
Ambas estas políticas têm contribuído para o grave quadro recessivo da economia brasileira. O superávit primário,
pelo fato de que privilegia as despesas financeiras em detrimento dos investimentos públicos e demais despesas do Orçamento Público, inviabilizando o investimento público ne92
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
cessário para o projeto nacional de desenvolvimento. As metas inflacionárias, porque obrigam o governo a elevar as taxas de juros da dívida pública, aumentando as despesas financeiras do governo, e comprometendo o crédito, o consumo e o investimento privado.
Os mais recentes resultados apresentados pela economia
brasileira vêm comprovar a temeridade de se renovar o Acordo com o FMI. Como resultado da retração dos investimentos acentuada pela política monetária, vários indicadores econômicos relativos à atividade econômica têm apresentado
uma piora sensível em 2003 em relação a 2002. Em primeiro lugar, temos os índices de desemprego. Em agosto, a taxa
de desemprego do IBGE atingiu 13% contra 11,7% em agosto
de 2002. De forma semelhante, comparando o período janeiro-julho, o rendimento médio do trabalho caiu 11% e a
produção da indústria de transformação apresentou uma
queda de 0,5% em 2003 em relação a 2002. Estes resultados
podem ser atribuídos claramente à política monetária, dado
que tanto a produção industrial como os índices de desemprego ensaiavam uma recuperação no primeiro trimestre de
2003, tendência claramente revertida a partir do mês de maio,
quando, com o intuito de conferir “credibilidade” ao mercado financeiro e ao programa de metas inflacionárias, o Banco
Central passou a diminuir as taxas de juros em um ritmo
muito inferior ao da queda das taxas de inflação. Além disso,
a maior queda da produção industrial se deu no setor de bens
de capital (máquinas e equipamentos), confirmando assim a
crônica paralisação dos investimentos.
O superávit primário é justificado pelo FMI como uma
forma de reduzir a relação entre a dívida pública e o PIB. Ocorre
que nem isto está sendo alcançado, apesar dos elevados
superávits primários obtidos pelo setor público. Em agosto, a
dívida líquida do setor público alcançou atingiu R$ 891,335
bilhões, ou seja, 57,7% do PIB, contra 57,2% em julho e 56,5%
em dezembro/02. No entanto, o superávit primário, que representa a parcela das receitas do setor público não converti93
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
da em serviços públicos para a população, acumulou, entre
janeiro e agosto, R$ 49,3 bilhões (4,91% do PIB), comparativamente a R$37,4 bilhões (4,41% do PIB) em igual período
de 2002.
Ao contrário das despesas orçamentárias, as despesas financeiras não são limitadas pelos Acordos com o FMI. Assim
sendo, entre janeiro e agosto de 2003, o setor público efetuou
o pagamento de R$102,4 bilhões (10,2% do PIB) em juros
nominais e R$155,7 bilhões (10,53% do PIB) nos doze meses
desde que o Acordo foi assinado. Este desembolso é, portanto,
muito superior ao do mesmo período de 2002, quando o pagamento efetuado em juros nominais foi de R$ 60,7 bilhões
(7,17% do PIB). Assim sendo, cabe destacar que, ao contrário do que é alardeado, o setor público apresenta um déficit
crescente no resultado entre as receitas e as despesas. O déficit nominal, que no período entre janeiro e agosto de 2002
era de 2,75% do PIB, alcançou 5,29% no mesmo período em
2003. Considerando os doze meses em que o Acordo está em
vigor, o déficit acumulado foi de 5,74%.
Desta forma, o Orçamento Público é o maior prejudicado pelo Acordo com o FMI. Em primeiro lugar, pelo fato de
que os recursos públicos estão sendo destinados preferencialmente para o pagamento dos juros ao mercado financeiro.
Somando-se a isto, temos o contingenciamento de recursos
efetuado pelo Governo Federal. Assim como havia sido feito
em fevereiro de 2003, por ocasião da elevação da meta de
superávit primário acordada com o FMI, o Ministério do Planejamento anunciou um novo corte de recursos dos diferentes ministérios, devido à queda da arrecadação, nos meses de
julho e agosto, sobretudo do IPI, imposto de importação e
CPMF, impostos extremamente correlacionados ao nível da
atividade econômica. Assim sendo, o total das despesas de
custeio e investimento do governo federal, que era de R$ 62
bilhões na Lei Orçamentária aprovada para 2003 passou a
R$ 48,3 bilhões, após as revisões ao longo do ano.
Como conseqüência das políticas fiscais e monetárias, te94
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
mos observado, portanto, uma clara transferência de renda
para o setor financeiro da economia, em detrimento do que
havia sido a tônica do debate político-eleitoral de 2002, em
que a população colocou claramente o desejo de mudança e de
reorientação da política econômica do setor financeiro para o
setor produtivo, gerador de empregos e renda. Tomando como
exemplo os lucros divulgados pelos principais bancos do país
no primeiro semestre de 2003, podemos compreender a gravidade da situação. Segundo os balanços destas instituições, os
lucros do setor bancário atingiram R$ 6,1 bilhões, ou seja, apresentaram um crescimento de 11,8% em relação ao mesmo
período. Somente o Itaú apresentou um lucro de R$ 1,49 bilhão (crescimento de 42,24% em relação a 2002), enquanto
o Bradesco teve um lucro de R$ 1,03 bilhão (crescimento de
13,6%). Somados os lucros de apenas estes dois bancos, temos
a quantia de R$ 2,52 bilhões, um valor superior ao do orçamento público destinado à infra-estrutura no mesmo período
(R$ 2,32 bilhões).
Finalmente, a renovação do Acordo com o FMI só faria
algum sentido diante das necessidades no Balanço de Pagamentos. No entanto, a estagnação da economia tem contribuído claramente para a melhora nas contas externas e a
obtenção de saldos recordes na balança comercial, a ponto de
o próprio presidente Lula ter admitido em pronunciamento a
investidores financeiros em Nova Iorque (antes de anunciada a celebração de um novo acordo) que o país estava em
condições de dispensar os recursos do Fundo. Cabe lembrar
que os recursos do Fundo não têm se traduzido em benefícios
para o país, mas na garantia de que os ganhos financeiros da
especulação global com a dívida pública (em reais) possam
ser convertidos em dólares e remetidos ao exterior (em dólares).
95
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Espaço para avanços
Um dos argumentos do Governo é que ele exigirá melhores
condições no Acordo, ou seja, vai negociar alguns avanços, como
a não classificação dos investimentos das empresas estatais como
gastos do Governo (uma caracterização realmente absurda) e
também a inclusão de algumas cláusulas sociais. Trata-se de
uma típica tentativa de se “dourar a pílula”. Mas se o FMI aceitasse estas condições, estaria tudo resolvido? Obviamente não,
pois o essencial para o FMI está sendo mantido: as famosas
condicionalidades. As autoridades governamentais, quando eram
oposição, faziam uma caracterização crítica do papel do FMI no
mundo atual. Teria o Fundo mudado? Vejamos a descrição deste processo.
A decisão de se criar o Fundo Monetário Internacional
(juntamente com o Banco Mundial e a Organização Internacional do Comércio, posteriormente Gatt e recentemente
OMC) foi tomada em 1944 na famosa Conferência de Bretton
Woods (EUA), tendo sido as duas primeiras das três instituições implantadas em 1947. A função básica do Fundo era
zelar pela manutenção da estabilidade das taxas de câmbio,
socorrer países com desequilíbrios no balanço de pagamentos
e garantir a provisão de liquidez, quando necessário. Mas,
passado meio século, o quadro mundial sofreu profundas alterações. O cenário atual é o de persistência da crise global do
sistema capitalista, que se arrasta desde a década de 1970.
Ela se caracteriza pela financeirização crescente das relações
econômicas e pelo estrangulamento da economia real; tem
como eixo a ofensiva do capital financeiro e das corporações
contra os direitos sociais e trabalhistas dos povos de todo o
mundo, com o objetivo de reduzir ainda mais o custo do fator
trabalho. Neste cenário, os Estados Unidos assumem o papel
de impositor da nova ordem, pisoteando o direito internacional e a soberania das nações e ameaçando o sistema multilateral de governança global, já recheado de imperfeições.
E qual tem sido o papel do Fundo neste contexto? Na prática, ele deixou de ser um organismo multilateral voltado para
a defesa da paridade cambial, o socorro aos países com graves
96
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
desequilíbrios externos e para a questão da liquidez internacional e tornou-se uma agência do capital financeiro, dos credores internacionais e do Tesouro norte-americano. Dedica-se a
impor programas de ajuste estrutural aos países periféricos que
com ele fazem acordo e a recomendar políticas
macroeconômicas de inspiração invariavelmente recessiva,
direcionadas para o atendimento dos interesses estritamente
corporativos dos bancos e trustes e absolutamente incompatíveis com as necessidades de crescimento econômico, geração
de emprego e distribuição de renda.
Alternativas
Um país como o Brasil, dada a gravidade das questões
sociais que precisa resolver, necessita de um projeto nacional
de desenvolvimento com políticas alternativas às que vêm sendo propostas pelo Fundo. O projeto soberano de desenvolvimento, em sintonia com a política externa de afirmação desempenhada pelo governo Lula, exige que as políticas econômicas (fiscal, monetária e comercial) sejam formuladas
autonomamente, sem a ingerência do Fundo Monetário Internacional.
Neste sentido, só devem ser consideradas aceitáveis as
metas que sejam definidas com a sociedade brasileira, almejando o projeto nacional de desenvolvimento. Metas que visam o superávit primário ou taxas de inflação isoladamente
não contribuem para aquele projeto, antes o tornam inviável.
Na verdade, como pudemos observar ao longo dos últimos
anos, a estabilidade de preços não tem se concretizado no desenvolvimento, ao contrário do que prometiam aqueles que
defendem o FMI.
Torna-se assim cada vez mais evidente: o que é de fundamental importância para dar estabilidade ao desenvolvimento é a retomada dos investimentos. E esta retomada só ocorrerá a partir de uma política pública voltada para este fim.
Não há crescimento econômico sem reativação da demanda
e sem investimento produtivo. E não há investimento produtivo sem ampliação do crédito. O crédito é o instrumento eco97
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
nômico que permite a antecipação dos recursos monetários,
possibilitando a ocorrência das transações necessárias para
que se possa realizar a produção e o consumo. Em um país
com altas taxas de desemprego e com a produção estagnada,
a acessibilidade ao crédito favorece a trajetória para o funcionamento pleno da economia, a ampliação da riqueza e o desenvolvimento social e econômico. Um país como o Brasil não
pode manter uma relação crédito produtivo/PIB tão irrisória
(27%, contra 70% no Chile 110% nos EUA, e 160% na Alemanha). A retomada do desenvolvimento passa, ainda, pelos
investimentos em infra-estrutura, empregadores de força de
trabalho e garantidores de um melhor ambiente econômico
para a ampliação dos investimentos.
Além disso, a priorização do financiamento interno se
constitui num importante instrumento de promoção da soberania econômica. A história recente do Brasil nos permite
concluir que a vulnerabilidade externa decorrente da
centralidade da necessidade de divisas tem figurado ao longo
dos anos como um dos principais obstáculos ao livre desenvolvimento do país. Se o país deseja se empenhar em um processo soberano de desenvolvimento, é necessário estimular as
transações em moeda nacional, que não pressionem o balanço de pagamentos, dispondo das divisas (dólares) para adquirir aquilo que for estritamente necessário para o país, como,
por exemplo, os produtos cuja tecnologia ainda não somos
capazes de produzir. E um processo de desenvolvimento autônomo deve incluir ainda, obviamente, o estímulo a uma ciência e a tecnologia dominadas e desenvolvidas internamente, reduzindo assim nossa dependência externa.
Portanto, é necessária a ação do Banco Central para que
se amplie o crédito, o que passa pela confrontação dos interesses daqueles que lucram com a dívida pública. Com a ampliação do crédito, a política monetária poderia, assim desempenhar sua verdadeira função, que é garantir a circulação da produção e da renda, e não a sua acumulação e concentração, como as elevadas taxas de juros têm propiciado.
Diante do descalabro das finanças públicas é indispensável
98
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
discutir a fixação de um teto para o gasto orçamentário com
as dívidas financeiras
Outra forma de política econômica é o controle de capitais. Esta medida, que vem sendo adotada em alguns países,
sendo o caso mais recente o da Argentina, pode funcionar de
diversas maneiras e tem um papel estratégico em uma economia global em que ocorre o predomínio hegemônico e político de uma divisa sobre todas as outras. Funciona, ainda,
no sentido de conter a volatilidade cambial e os seus efeitos
nocivos sobre a economia. Também neste caso, é indispensável discutir a fixação de um percentual máximo das exportações de capital para o serviço da dívida externa, ou ainda mais
coerentemente, um percentual máximo do saldo da balança
comercial para aquele serviço, induzindo os países credores a
que diminuam significativamente suas barreiras comerciais.
Finalmente, cabe destacar que a não renovação do Acordo está profundamente associada à reorientação da política
econômica e à necessidade de ampliação do debate franco e
democrático de políticas alternativas, que visem a construção
de um projeto soberano de desenvolvimento, capaz de conduzir à resolução dos graves problemas sociais do país e preservar a sintonia com os compromissos presentes no debate político que elegeu o presidente Lula. Não faria, portanto, o
menor sentido deixar de renovar com o Fundo, mas continuar executando as políticas contidas em seu receituário, como
a manutenção das elevadas taxas de superávit primário, ao
longo do mandato do presidente Lula.
Condições políticas
A atual política externa brasileira tem sido considerada o
ponto alto do governo Lula até aqui. Posicionou-se contrária à
guerra do Iraque e à política unilateral norte-americana de combate ao terror; tem tentado colocar a justiça social e o combate
à fome e à miséria como temas prioritários em diversos foros
internacionais (o World Economic Forum e a reunião do G-8,
99
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
em Evian, por exemplo); tem articulado os países em desenvolvimento no sentido de contrabalançar o poder dos países
mais ricos, como no caso do G-3 (Brasil, África do Sul e Índia)
e o G-22 (grupo de países em desenvolvimento interessados no
avanço substancial das negociações em agricultura na rodada
de Doha da OMC); tem procurado revitalizar a integração latino-americana, engajando recursos do BNDES na integração
física com países fronteiriços, contrariando os EUA; tem tentado negociar uma Alca não abrangente, com o intuito de evitar
a negociação de temas aos quais o Brasil é sensível; faz da aproximação de países africanos uma de suas prioridades. A visita
a Cuba justamente no regresso de uma viagem aos Estados
Unidos, sem tocar publicamente na questão da violação dos
direitos humanos pelo regime cubano, serviu para a mídia carimbar, com o rótulo de independente, a política externa brasileira e realçar a sua diferença em relação à política externa do
governo FHC.5 Até agora, de fato, a política externa do atual
governo tem feito justiça ao discurso anti-hegemônico do Presidente Lula no dia de sua posse:
“A democratização das relações internacionais sem
hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto o desenvolvimento e consolidação da democracia no
interior de cada estado.”(grifo adicionado)6
Quando se passa à comparação das respectivas políticas
econômicas domésticas, no entanto, fica muito mais difícil,
senão impossível, identificar qualquer sinal de ruptura substantiva entre os governos Lula e FHC. Mais do que isso, em
certos aspectos, a política econômica do governo Lula tem sido
mais ortodoxa que a de FHC, como mostra a adoção da meta
de superávit primário de 4,25% do PIB. A renovação do acordo
com o Fundo seria decorrência da manutenção do modelo econômico herdado do governo FHC, já que essa instituição tem
sido o seu principal avalista. Levando-se em conta que o FMI é
um dos principais agentes da hegemonia americana no plano
econômico, é flagrante a contradição entre a orientação geral
100
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
anti-hegemônica da política externa do governo Lula e a renovação de um acordo com o FMI. Exige-se que a política econômica do governo Lula acompanhe a sua política externa quanto ao caráter de inovação que exibe.
Votos não faltaram ao presidente Lula para tanto. Consagrado pela segunda maior votação obtida em regimes
presidencialistas, não caberiam qualificações no que tange o
clamor por mudanças que se expressou nas urnas. Tais qualificações, contudo, não somente foram feitas, como foram
abraçadas por integrantes do governo que chegaram a afirmar que seria estelionato eleitoral se o Governo Lula não adotasse o continuísmo na política econômica. Um dos principais argumentos nesse sentido é de que a coalizão de esquerda que elegeu Lula não teria obtido assentos suficientes no
Congresso para consolidar a ruptura. Bobagem. O atual governo precisou cooptar setores da direita justamente para
implementar as reformas constitucionais pregadas pelo “mercado”, e é essa agenda que esgarça e sobrecarrega a articulação política de sustentação do governo, levando à reedição de
vários vícios do atual sistema político brasileiro, como o troca-troca de partidos e a compra de votos. Constituições devem ser estáveis por definição e a quantidade de votos necessária para a sua modificação não pode ser considerada como
pré-condição política de governabilidade.
Não é só da esquerda que se ouvem críticas à ortodoxia
da política econômica do governo Lula. O empresariado nacional soma-se ao coro generalizado da sociedade brasileira
por uma redução mais rápida das taxas de juros. Não é por
falta de apoio doméstico, portanto, que a mudança de modelo econômico não foi implementada. O modelo econômico
não foi mudado porque o atual governo optou pela sua manutenção, respondendo à crise de endividamento que vive o
Brasil com a surrada política de conquista de confiança dos
mercados financeiros internacionais. Em suma, ao ganhar as
eleições, a cúpula petista substituiu a coalizão de alguns setores do empresariado com trabalhadores, que levou Lula à vi101
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
tória, por um pacto com a banca internacional7: políticas ortodoxas e reformas em troca do fim da especulação que elevou a cotação do dólar na virada do ano.
Já foi dito que a história não se repete a não ser como
farsa. Infelizmente, esse não parece ser o caso brasileiro, que,
ao que tudo indica, , segue os passos da Argentina pré-crise
ao não perceber que a política ortodoxa acaba por minar a
política de conquista de confiança da qual é fruto: adota-se a
austeridade fiscal para que se poupem recursos para o pagamento da dívida pública, que leva à recessão econômica ao
inibir os gastos e investimentos públicos, a qual, por sua vez,
leva à diminuição da arrecadação fiscal, a qual leva o governo em questão a praticar mais austeridade, que provoca mais
recessão...é o circulo vicioso recessivo ortodoxo experimentado pela Argentina recentemente. Não há como satisfazer o
mercado quando se adota essa política, porque ela não leva a
estabilização da relação dívida pública/PIB
Hoje, a despeito do esforço de integração Sul-americana
empreendido pelo governo Lula, parece haver uma grande distância entre os governo Lula e Kirchner. Isso prejudica a Argentina, porque o Fundo passou a exigir da Argentina que seguisse o exemplo de austeridade brasileiro. Ainda assim,
Kirchner conseguiu negociar um acordo com o Fundo em que
foi estabelecido um superávit primário de 3% do PIB em 2004
e nada mais de concreto para os anos posteriores (os credores
e o FMI queriam uma meta mais ambiciosa para garantir o
pagamento da dívida a ser reestruturada). Além disso, também resistiu a pressões do Fundo para estabelecer um
cronograma de aumento das tarifas de serviços privatizados.
Kirchner está certo, não quer sacrificar, em prol do pagamento
da dívida argentina, o incipiente crescimento obtido e, visivelmente, descarta o modelo de conquista de confiança com a
recusa de aumento das tarifas de serviços privatizados.
A crise do neoliberalismo na América Latina enseja a guinada do governo Lula na direção das verdadeiras mudanças.
102
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Há apoio doméstico para tanto; as conseqüências do
neoliberalismo já estão bem demonstradas pelas crises brasileira e argentina; a autoridade do FMI, principal instrumento
da consolidação de políticas neoliberais, se viu abalada pela
sua inépcia em solucionar a sucessão de crises internacionais
iniciadas na Ásia em 1997, e essas mesmas crises também
abalaram a crença dogmática na globalização como panacéia para o desenvolvimento econômico. Só falta a esse governo entender melhor o momento histórico em que vivemos
e virar o leme na direção certa.
BOX
A Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais é uma rede de organizações da sociedade civil, sem fins
lucrativos, não partidária e com finalidade pública. Fundada
em 1995, reúne atualmente 64 organizações5 filiadas com o
objetivo comum de acompanhar e intervir em questões relativas às ações de instituições financeiras multilaterais (IFMs)
no Brasil, como o Grupo Banco Mundial, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento - BID e o Fundo Monetário Internacional - FMI.
O conjunto de organizações filiadas inclui movimentos
sociais, entidades sindicais, institutos de pesquisa e assessoria, associações profissionais e ONGs de todas as regiões do
país, com atuação em âmbito local, regional e nacional. Essas organizações trabalham em diversos temas e setores das
políticas públicas, como educação, saúde; trabalho; seguridade
social; infância; infra-estrutura; meio ambiente; agricultura;
reforma agrária; urbanização, e planejamento econômico,
entre outros.
Os principais objetivos da Rede Brasil são:
• manter um espaço coletivo de socialização de informações e
de discussão sistemática sobre as políticas e projetos desenvolvidos pelo Governo brasileiro com recursos financeiros e/ou aporte
técnico de IFMs;
1
103
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
• promover a articulação de estratégias de ação comuns frente
ao Governo brasileiro - executivo, legislativo e judiciário - e às
IFMs;
• contribuir para a democratização dos processos de formulação das políticas públicas no Brasil financiadas por IFMs,
através de ampla participação da sociedade civil e do Congresso Nacional;
• exercer influência visando à democratização, participação
e transparência dos processos relativos à elaboração e
implementação das políticas das IFMs, bem como à transformação da própria estrutura de poder destas instituições.
Mais informações: [email protected]
www.rbrasil.org.br
Notas
1
Artigo originalmente publicado na Revista Democracia viva n.o 19
2
Membro da Coordenação Executiva da Rede Brasil em 2003
3
Membro do Conselho Regional de Economia / RJ e membro da
Coordenação Nacional da Rede Brasil
4
5
Economista do Instituto de Políticas Agrícolas para o Cone Sul
A atual coordenação nacional da Rede Brasil é formada por: Guilherme Carvalho, do Fórum da Amazônia Oriental (Faor); Hélio Meca,
do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Iara Pietricovsky,
do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Magnólia Said, do
Centro de Pesquisa e Assessoria (Esplar); Márcio Pontual, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Marcos Faro de Castro, da
Rede Brasil; Mário Mantovani, do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento; Sílvia
Marques Calichio, do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Formad).
104
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
6
Entidades filiadas: Ação Educativa; Alternativa para a Pequena
Agricultura do Estado do Tocantins; Associação Brasileira de ONGs;
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids; Associação Global de
Desenvolvimento Sustentado; Centro de Assessoria Multiprofissional;
Centro de Cultura Luiz Freire; Centro de Educação e Assessoria Popular; Centro de Pesquisa e Assessoria; Comissão Regional de Atingidos
por Barragens; Comissão Regional dos Atingidos por Barragens do Rio
Iguaçu; Confederação Nacional dos Bancários; Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social; Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Agricultura; Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação; Confederação Nacional dos Trabalhadores
nas Indústrias da Alimentação, Agroindústrias, Cooperativas de
Beneficiamento de Cereais e Indústrias do Meio Rural; Conselho Regional de Economia da 11ª Região; Conselho Regional de Economia
do Rio de Janeiro; Coordenação Nacional de Entidades Negras;
Coordenadoria Ecumênica de Serviços; Ecologia e Ação; Equipe Educação Popular e Parauapebas; Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional/Cáceres; Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional; Federação Interestadual de Sindicatos e Engenheiros; Federação Nacional dos Urbanitários; Fórum Bahia Azul;
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais Para o Meio Ambiente e Desenvolvimento; Fórum da Amazônia Oriental; Fórum de
Desenvolvimento e Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul; Fórum
em Defesa da Zona Costeira do Ceará; Fórum Mato-Grossensse de
Meio Ambiente e Desenvolvimento; Fórum Pró- Conservação da
Natureza no Paraná; Fundação Centro Brasileiro de Referência e Apoio
Cultural; Fundação SOS Mata Atlântica; Grupo Ambientalista da
Bahia; Grupo de Articulação Cidadania Popular – Centro Josué Castro; Instituto Ambiental Vidágua; Instituto Brasil Central; Instituto
Brasileiro de Análises Sócio- Econômicas; Instituto Brasileiro de Inovações Pró- Sociedade Saudável; Instituto de Estudos SócioEconômicos; Instituto de Economistas do Rio de Janeiro; Instituto de
Políticas Alternativas para o Cone Sul; Instituto Polis; Instituto Sociedade, População e Natureza; Instituto Sócioambiental; Instituto
Terramar; Instituto Terrazul; Internacional de Serviço Público; Laboratório de Sociologia do Trabalho – UFSC; Instituto de Estudos
Ambientais; Movimento dos Atingidos por Barragens – Polo Sindical;
105
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Núcleo Amigos da Terra; Núcleo de Estudos sobre a Sociedade Contemporânea; Rede Cerrado de ONGs; Rede Mata Atlântica; Centro
de Estudos e Ação da Mulher Urbana e Rural; Sindicato dos Economistas do Distrito Federal; Sindicato dos Economistas do Rio de Janeiro; Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do
Mobiliário de Bento Gonçalves; Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Santarém; Sociedade Afrosergipana de Estudos e Cidadania; Vitae
Civilis – Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz.
7
Ainda que, por outro lado, o governo Lula tenha sido acusado
de omissão por não tocar publicamente na questão de violação dos
direitos humanos em Cuba.
8
A transcrição do discurso de posse do presidente Lula pode ser
encontrada no portal do Ministério das relações Exteriores
(www.mre.gov.br)
9
O vice-presidente José Alencar é um símbolo dessa coalizão, ou
de sua tentativa pelo menos; os ministros Furlan e Roberto Rodrigues,
também.
106
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
FMI EXPANDE ATIVIDADES
POLÍTICAS 1
O FMI está reforçando suas atividades de “diálogo” com parlamentares em todo o mundo. Ver o “Informe do Grupo de Trabalho de Diretores Executivos
sobre o Fortalecimento da Comunicação com Legisladores Nacionais”, no endereço: http://www.imf.org/
external/np/ed/2004/ecnl/esl/indexs.htm .
Tal “diálogo” (ou estratégia de cooptação?) é importante para o FMI, em especial porque os parlamentares têm a competência constitucional de supervisionar o processo orçamentário e aprovar reformas econômicas em seus países.
Alguns exemplos de atividades de “diálogo” com
parlamentares incluem:
1
·
Funcionários e Diretores Executivos do FMI
reúnem-se com parlamentares em suas visitas a países membros e quando parlamentares visitam Washington.
·
Em seminários e oficinas realizados em diversos países (Zâmbia, Indonésia, República
dos Camarões, Gana, Bangladesh, Sri Lanka,
etc.), funcionários do FMI têm discutido com
parlamentares sobre os papéis, programas e
atividades do Fundo.
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 02/2004” em
12/02/2004 no endereço: http:www.rbrasil.org.br.
107
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
·
Desde 1995, o FMI tem oferecido “treinamento”
em um instituto em Viena (Joint Vienna Institute)
para parlamentares de países da Europa central e
oriental (economias em transição do socialismo
para o capitalismo). Esse instituto realizou 18 seminários entre 1995 e 2003.
·
O FMI tem participado de conferências na União
Inter-Parlamentar.
·
O FMI tem colaborado com a Organização Global de Parlamentares Contra a Corrupção.
Embora tais atividades alegadamente visem a melhorar
a compreensão do papel do FMI nos diversos países membros, elas fazem parte de uma estratégia para facilitar a
implementação dos ajustes estruturais. É freqüente que o FMI
concentre seus esforços em parlamentares chaves que sejam
titulares de comissões parlamentares.
Isto significa que o FMI está intensificando sua estratégia de “internalização” de suas políticas nos diversos países do mundo. A sociedade civil deve permanecer alerta
para que a vontade do povo, expressa mediante o processo
eleitoral democrático - e não a vontade do FMI e parlamentares “treinados” pelo Fundo - prevaleça como fonte
de critérios para a formulação e implementação de políticas públicas.
Além disso, o FMI interfere na política dos países por
outros meios. Um exemplo aparece no livro resenhado na
revista Carta Capital. O livro resenhado foi “A Melhor Democracia Que o Dinheiro Pode Comprar” , do jornalista Greg
Palast*
*
(ver http://cartacapital.terra.com.br/site/
exibe_materia.php?id_materia=1310&
PHPSESSID=b2464a63ad8fd2b8c08d4540eb2ffb83).
108
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Nessa resenha, a revista indica que, segundo apurado por
Palast, o Fundo Monetário Internacional (FMI) foi usado para
apoiar a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso,
em 1998. Segundo Palast, o Secretário do Tesouro americano
à época, Robert Rubin, ajudou a manter o real em alta antes da
eleição, garantindo a recomposição de reservas cambiais por
meio de um empréstimo do FMI, diante de inevitável desvalorização do real após as eleições. Diz um trecho da resenha:
“O real, que seria desvalorizado pesadamente logo
depois da vitória eleitoral, escreve Palast, ‘permaneceu
em alta antes da eleição porque os Estados Unidos
deixaram clara sua intenção de substituir as reservas
perdidas por um pacote de empréstimos do FMI’”.
Todos sabem que o FMI foi criado como um organismo
para agir na área da economia, e não para interferir no campo
da política. No entanto, dada a baixíssima transparência de
seus processos decisórios, o Fundo pode até ser usado
(indevidamente) para influenciar um processo eleitoral de democracias como a brasileira.
No caso da eleição de Lula, o processo foi um pouco
diferente. Não houve apoio ao real durante a campanha.
Por que terá sido?
Seja qual for a resposta, uma verdade é que o FMI não
deveria ser usado para fins políticos. Não deveria ser aceito
que uma organização internacional tenha a capacidade de
influenciar o processo democrático em qualquer país.
A única solução para isto é apoiar a adoção de reformas que tornem as instituições financeiras multilaterais
(IFMs) como o FMI, o Banco Mundial e o Banco Inter-americano de Desenvolvimento (BID) mais transparentes e mais
democráticas.
109
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
110
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A DEMOCRACIA BRASILEIRA
NOVAMENTE EM XEQUE1
O FMI anunciou ontem oficialmente, mediante publicação da
“nota à imprensa” nº 03/217, que a instituição aprovou uma extensão por 15 meses, e aumentou em US$ 6,6 bilhões, o acordo de crédito
stand-by com o Brasil. Ver http://www.imf.org/external/np/sec/pr/
2003/pr03217.htm.
Embora o anúncio oficial tenha ocorrido ontem, a imprensa –
originalmente, ao que consta, a Agência Reuters – havia noticiado o
fato no fim de semana de 13-14 de dezembro, sendo o assunto replicado
nos jornais em 14-dez.-2003. No dia 16-dez.-2003 (hoje), é publicada,
em inglês, também na internet, na página eletrônica do FMI, a Carta
de Intenções, assinada em 21-nov.-2003 por Antonio Palocci e Henrique
Meirelles, e dirigida ao sr. Horst Kohler (ver http://www.imf.org/
External/NP/LOI/2003/bra/04/index.htm). Mas qual o papel da opinião pública brasileira nisso tudo? Resposta: papel de mero espectador
passivo, ou talvez nem isso.
De fato, surpreende muito que o conteúdo do programa de reformas e os compromissos assumidos pelo governo brasileiro perante o
FMI não tenham sido democraticamente debatidos com a sociedade
brasileira. A Rede Brasil promoveu, juntamente com a Frente Parlamentar em Defesa do Financiamento Público e da Soberania Nacional, em duas sessões, nos dias 06 e 12 de novembro de 2003, um seminário na Câmara dos Deputados. O tema do seminário era: “Renovar
com o FMI: Para Quê?”
Afora esse seminário, não houve qualquer debate público relevante
no Brasil sobre as relações do atual governo com o FMI. É um absurdo que
as negociações do novo acordo tenham se dado praticamente a portas
fechadas, entre alguns técnicos do Ministério da Fazenda e alguns outros
do FMI. Isto porque as conseqüências do acordo são de extrema relevância
1
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 14/2004” em
16/12/2003 no endereço: http:www.rbrasil.org.br.
111
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
para a vida dos brasileiros em geral.
É estranho, por exemplo, que a Carta de Intenções comemore o
fato de que a política fiscal do governo Lula tenha excedido as metas
do acordo celebrado entre o governo anterior e o FMI. Diz a Carta de
Intenções, num tom de elogio, que o superávit primário alcançou 5,1%
do PIB no final de setembro de 2003 – sem mencionar que isto implicou em restrições na capacidade do Estado de realizar gastos com políticas sociais (saúde, educação, etc.).
A Carta de Intenções ainda anuncia que “o processo de privatização
de bancos federalizados foi retomado”. Isto significa que o governo se
compromete com o FMI a dar continuidade ao programa, promovido
desde o governo FHC, de privatizar bancos públicos (certamente abrangendo agora a privatização dos bancos estaduais que sobraram da onda
de extermínio: os dos estados do Maranhão, Piauí, Ceará e Santa
Catarina).
A Carta de Intenções anuncia ainda que o governo se compromete com a aprovação de reformas que dêem “autonomia operacional”
ao Banco Central. Mas a quem serve um banco central autônomo?
Além disso, a Carta de Intenções ressalta que uma parcela importante
de investimentos em infra-estrutura deverão ocorrer sob o esquema
PPP (Parcerias Público-Privadas), mecanismo discutível por prever garantias públicas (isto é, garantias que em última instância se extrairão do contribuinte) a investimentos privados.
A Rede Brasil repudia que os métodos adotados pelo governo e pelo
FMI para a determinação dos conteúdos das reformas vinculadas às
operações de crédito com o Brasil sejam negociações com baixíssimo
grau de publicidade e de transparência. As negociações deveriam ser
trazidas ao público, ser objeto de apreciação e de amplo debate pelo
Congresso Nacional e pela opinião pública brasileira. Não deveriam ser
conduzidas por pequenos grupos de técnicos.
O público brasileiro tomou conhecimento por meio da Agência
Reuters – e em seguida por documentos em inglês, publicados em página eletrônica do FMI – que o futuro do Brasil foi mais uma vez hipotecado pelo governo em nome de reformas exigidas por organismos internacionais. Mais uma vez, a democracia brasileira sai perdendo. E saem
ganhando os interesses que controlam as organizações financeiras multilaterais.
112
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
MONITORANDO
O BANCO MUNDIAL
113
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
114
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
MÚLTIPLOS
TENTÁCULOS DO BANCO MUNDIAL *
Foi anunciada ontem (19-fev.-2004) a aprovação de
mais um empréstimo do Banco Mundial ao Brasil. Trata-se de
um crédito de 505,05 milhões de dólares, ou R$ 1,5 bilhão (à
taxa de 2,98). O “Documento de Programa” (DP), que descreve os objetivos do empréstimo, foi publicado no endereço:
http://www.obancomundial.org/content/
_downloadblob.php?cod_blob=1200
O título do novo empréstimo (“Primeiro Empréstimo
Programático para o Crescimento Eqüitativo e Sustentável”)
é enganoso. Isto porque o belo nome esconde o que, na verdade, corresponde a uma vasta operação do Banco para a
implementação de reformas com profundo alcance em múltiplas áreas de políticas públicas nacionais e com importantes
impactos sobre a vida dos brasileiros.
Apesar do título dado ao empréstimo, não há demonstração, no “Documento de Programa” (DP), de que as reformas apoiadas pelo Banco contribuirão efetivamente para a “eqüidade” e “sustentabilidade” das políticas públicas no Brasil.
No jargão do BM, o empréstimo apóia uma “agenda
de crescimento” que consiste “não apenas em aprovar leis (ou
emendas constitucionais, etc.), mas também em (a) definir
abordagens a interações público-privado, (b) reforçar a capacidade de agências para planejar e regular e (c) aplicar leis e
regulamentos de maneira consistente e previsível”. Mas “pre*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 03/2004” em 20/
02/2004, em http://www.rbrasil.org., com o título “Novo Empréstimo Exibe
Múltiplos Tentáculos do Banco Mundial”.
115
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
visível” para quem? Planejar e regular no interesse de quem?
As áreas abrangidas pelo empréstimo incluem:
(a) políticas de transporte (ferroviário, rodoviário e
multimodal) e logística comercial, atingindo rodovias,
ferrovias e alfândegas;
(b) apoio à estruturação e aprovação da política de PPP
(parcerias público-privado), incluindo a apoio ao grupo de
trabalho já existente no Ministério do Planejamento dedicado
ao tema;
(c) apoio à reforma da lei de falências;
(d) apoio à implementação da reforma do sistema
financeiro (impulsionada pela aprovação da Emenda
Constitucional 040 de 29/05/2003, que modificou o artigo
192 da Constituição);
(e) apoio à privatização dos últimos bancos estaduais (DP,
item 158);
(f) políticas relativas aos fundos de pensão;
(g) reforma da regulação do setor de seguros, atingindo o
Instituto de Resseguros do Brasil (IRB);
(h) política antitruste (o BM deseja uma nova lei que
instrumentalize a implementação da política antitruste - ver
DP, item 110);
(i) reforma tributária, inclusive federalização do ICMS (DP,
item 215);
(j) política de crédito (o BM deseja combater políticas de
crédito público para habitação e agricultura - DP, item 154),
incluindo o setor das cooperativas de crédito, com impactos
sobre programas como o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) (DP,
item 181);
(k) política de inovação tecnológica;
(l) programas do BNDES-BNDESPAR, da FINEP e do
SEBRAE;
(m) política de propriedade intelectual;
116
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
(n) política ambiental, em especial o apoio à implementação
de mecanismos de mercado para comercialização de licenças
de emissão de gases, sob o Protocolo de Kyoto (DP, itens 201207);
(o) revogação de direitos trabalhistas (flexibilização do
mercado de trabalho, incluindo o esvaziamento da autoridade
da justiça trabalhista - DP, item 217);
(p) reforma do sistema judicial, para eliminar “ineficiências”
na proteção de tribunais a contratos, derivadas de “incertezas
sobre os fundamentos de decisões judiciais” (DP, item 221);
(q) política comercial, inclusive apoio a reformas
conducentes à criação da ALCA;
(r) “assistência técnica”, consistente em apoio a Ministérios
que proponham contratar técnicos para implementação das
reformas priorizadas pelo Banco Mundial.
Enfim, o empréstimo do BM é de abrangência gigantesca,
sendo o primeiro fruto do “Documento de Assistência ao País”
2003-2004, que não foi discutido nem negociado com a sociedade civil brasileira. As indicações acima não esgotam as
áreas de políticas públicas que o BM pretende atingir com as
ações derivadas do empréstimo.
Evidentemente, o novo empréstimo do BM revela os múltiplos tentáculos dessa instituição, que, com o aval do governo
brasileiro, abraçam e desmancham as capacidades do Estado
antes voltadas para assegurar a prevalência do interesse público. Sob várias das reformas patrocinadas pelo BM, as políticas
públicas são reduzidas a meros instrumentos destinados a dar
segurança aos investidores, sem oferecer comparável proteção
a trabalhadores, consumidores, cidadãos e às suas aspirações
de eqüidade, sustentabilidade e justiça.
Diante disso, resta a pergunta: quem de fato governa a
sociedade brasileira, se o atual governo (como o anterior) parece, a seu turno, ser em grande parte governado por agências como o BM?
117
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
118
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
EFEITOS RUINOSOS
DAS POLÍTICAS DO BANCO MUNDIAL *
Em abril de 1996, o presidente do Banco Mundial,
James Wolfensohn, reconheceu, em carta a uma rede de organizações da sociedade civil, que os programas de ajuste estrutural patrocinados pelo Banco deveriam ser modificados.
Wolfensohn admitiu que seria necessário adaptar os ajustes
estruturais do Banco para que passassem a oferecer uma “contribuição máxima para a redução da pobreza” e passassem a
levar em conta “o impacto das reformas em grupos diferentes”. E, para determinar quais tipos de mudanças os programas de ajuste estrutural deveriam sofrer, Wolfensohn solicitou ajuda à sociedade civil.
A partir daí foi criada a Structural Adjustment
Participatory Review Initiative (SAPRI), um projeto de investigação participativa por um período de cinco anos, cobrindo os
impactos dos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial em vários países e contando com a colaboração de centenas
de organizações da sociedade civil na documentação de fatos,
mediante entrevistas, seminários, oficinas, fóruns de debate e
outros meios. A pesquisa abrangeu os programas de ajuste estrutural nos países: Bangladesh, El Salvador, Equador, Filipinas, Gana, Hungria, México e Zimbábue. A rede que reunia
os participantes da pesquisa ganhou o nome de Structural
Adjustment Participatory Review Initiative Network (SAPRIN).
Os resultados da pesquisa foram submetidos a uma revisão
por diversos Fóruns Nacionais em diferentes países e foram
finalmente publicados no livro: The Structural Adjustment
Participatory Review Initiative Network – SAPRIN, Structural
Adjustment. The Policy Roots of Economic Crisis, Poverty and
*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 07/2004” em
15/03/2004, no endereço: http://www.rbrasil.org.br
119
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Inequality, London, Zed Books, 2004.
O livro revela como os ajustes estruturais do Banco Mundial afetaram de maneira altamente danosa a vida de inúmeras
comunidades mundo afora. Alguns exemplos dos efeitos perversos das políticas de ajuste do Banco Mundial incluem:
· A liberalização comercial no Zimbábue provocou a destruição da indústria local, que encolheu em 20%.
· Políticas de reforma do mercado de trabalho conduziram
ao fechamento em massa de pequenas empresas no Equador, que empregavam parte substancial da força de trabalho.
· Os aumentos dos preços dos serviços de saúde e de remédios
nas Filipinas agravou a propagação de doenças contagiosas.
· Modificações na legislação trabalhista em El Salvador anularam proteções que estabeleciam discriminação positiva para
mulheres.
· Na Hungria, o preço de serviços privatizados aumentou proporcionalmente ao dobro do crescimento dos salários, causando problemas insolúveis para famílias pobres.
· Com a privatização de serviços de utilidade pública (água,
energia, etc.) em vários países, as tarifas aumentaram e não
houve melhora na prestação do serviço ou na cobertura.
· Apenas os grandes agricultores com acesso a recursos têm
sido capazes de se beneficiar de reformas das políticas agrícolas
no México.
Evidentemente, o livro contém dezenas de outros exemplos
de resultados extremamente danosos advindos das políticas de
ajuste estrutural nos diversos países abrangidos pela pesquisa. Sobre a obra, escreveu o professor Fantu Cheru, ex-Relator Especial
da ONU sobre ajustes estruturais: “É uma excelente descrição de
como os direitos humanos das pessoas estão sendo sacrificados
no altar do livre mercado em nome do desenvolvimento”.
Trata-se, portanto, de um documento valioso, com subsídios importantes para as organizações que monitoram as
atividades das instituições financeiras multilaterais.
120
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
O DOCUMENTO DE ESTRATÉGIA PARA
O BRASIL (2003-2007) *
Foi publicado ontem (09/12/2004), pelo Banco Mundial (BM), no endereço http://www.obancomundial.org/
index.php?action=/content/view_folder&cod_object=1792, o
documento de estratégia conhecido como CAS (Country
Assistance Strategy) 2003-2007 para o Brasil. A publicação
de uma versão em português está prometida pelo Banco.
Embora o documento afirme que foram consultados grupos da sociedade civil no processo de elaboração de seu conteúdo, nem a Rede Brasil, nem outros atores importantes da sociedade civil brasileira participaram efetivamente desse processo.
O CAS vem repleto da retórica usual do Banco. Contudo, em meio a tal retórica, permanece claro que os programas apoiados pelo Banco incorporam a visão de que o desenvolvimento se faz por meio do crescimento econômico essencialmente impulsionado pelo mercado – o que é contestável.
Por outro lado, objetivos centrais do planejamento estratégico do Banco e sua coordenação política com o Fundo
Monetário Internacional podem ser identificados no parágrafo
179 do documento, que assinala:
“O principal objetivo do apoio do Banco para
assegurar a estabilidade macroeconômica é a
redução de vulnerabilidades por meio de
gerenciamento eficaz da dívida e de uma estrutura mais robusta para a política fiscal, ori*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 13/2003” em
10/12/2003, no endereço: http://www.rbrasil.org.br.
121
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
entada para obter a maior credibilidade dos investidores. Enquanto o Brasil for apoiado por
um programa do FMI, o banco complementará
este programa nas suas áreas de expertise, tais
como gerenciamento da dívida, seguridade social, reformas em outras áreas de despesas estruturais e gerenciamento de gastos públicos.
Na ausência de um tal programa, o Banco poderia desenvolver o seu próprio trabalho
macroeconômico”.
Como está claro no trecho destacado:
(a) No planejamento plurianual da alocação de seu crédito
para o Brasil, o BM se posiciona como um perfeito parceiro do FMI, seguindo as mesmas políticas daquela instituição;
(b) O BM adotará políticas que “complementarão” programas do FMI;
(c) Fora da vigência de um acordo com o FMI, o banco continuará a adotar políticas na área macroeconômica (evidentemente, as mesmas que são apoiadas pelo FMI);
(d) Assim como ocorre com os empréstimos do FMI, os do
Banco Mundial servirão para obter “maior credibilidade
dos investidores”, e não para apoiar políticas que sejam
justas e verdadeiramente eqüitativas, mesmo que desagradem a investidores;
(e) O BM estará influenciando a implementação de políticas
muito controvertidas (reforma fiscal e previdenciária) que
deveriam ser influenciadas e ter seu conteúdo determinado pela vontade dos eleitores brasileiros, e não por instituições financeiras multilaterais e suas condicionalidades.
Há, também (ver parágrafo 185), a previsão, de que o
122
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
sistema judicial receberá a assistência do tipo AAA (Atividade
Analítica de Aconselhamento) para que não se torne um obstáculo às reformas estruturais apoiadas pelo Banco e pelo FMI,
em benefício do mercado – isto é, dos investidores – e não dos
cidadãos e trabalhadores. Com a previsão de exercer influência sobre o aparelho judicial, o Banco alcança o funcionamento do sistema de freios e contra-pesos como elemento
essencial da democracia brasileira.
Em resumo, a forma de atuação do BM, assim como a de
sua instituição-irmã, o FMI, continuam sendo altamente deletérias dos valores da democracia brasileira. O conteúdo dos
programas de assistência financeira não são amplamente
debatidos com a sociedade interessada, seus resultados são
muitas vezes completamente criticáveis e injustos, e a pressão exercida por meio de condicionalidades não tem origem
democrática, sendo, portanto, ilegítima.
Esta situação permanece porque o governo brasileiro aquiesce a ela, quando deveria contribuir para que fosse adotado
um padrão de relacionamento com as organizações financeiras multilaterais que fosse verdadeiramente soberano.
123
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
124
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
EMPRÉSTIMO DE AJUSTE E
CONDICIONALIDADES AMBIENTAIS *
1 - Introdução
O governo brasileiro está negociando um novo empréstimo com o Banco Mundial (BM), no valor de US$ 1 bilhão.
A Rede Brasil obteve informações sobre a nova operação, a
seguir resumidas.
2 – A natureza do empréstimo
O novo empréstimo (assim como vários outros aprovados pelo BM para o Brasil) é de “ajuste econômico”. Isto significa que o objetivo primordial da operação é fornecer recursos para o gerenciamento da dívida pública brasileira,
avolumada em decorrência das taxas de juros extremamente
elevadas, praticadas desde a era do governo de Fernando
Henrique Cardoso. O ajuste financeiro propiciado pelo empréstimo, sendo mais importante que os objetivos de investimento para o desenvolvimento, ocorre no contexto de preocupações geradas pelo fato de que, desde 2003, o Brasil tem
exportado mais capitais do que importado, em suas relações
com o BM e com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Portanto, os recursos serão todos destinados ao Tesouro Nacional para fazer caixa e auxiliar no equilíbrio financeiro da União, sem que a mínima parte seja empregada
em investimentos para o desenvolvimento.
*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 11/2004”
em 19/05/2004, no endereço: http://www.rbrasil.org.br
125
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
3 – Condicionalidades ambientais
Porém, por meio de exigências formuladas pelo BM, o
empréstimo acabará tendo muitas outras finalidades. É que
os recursos para o ajuste financeiro, evidentemente, não vêm
de graça: há um preço econômico e um preço político pagos
pela sociedade brasileira para obter o dinheiro emprestado. O
preço econômico são os juros cobrados pelo BM, com taxas
atraentes, comparativamente a taxas cobradas por outros
agentes financeiros. Este preço não é problema. O problema
está no preço político, que é extremamente elevado.
De fato, como em outras operações de empréstimo do BM,
também nesta, o Banco exige que um amplo programa de reforma de políticas públicas seja adotado pelo governo e
implementado para que o crédito seja concedido e desembolsado. No caso do empréstimo atualmente em negociação, a área
de políticas públicas escolhida em acordo entre o Ministério da
Fazenda (MF) e o BM é a de políticas ambientais, sob a principal
responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Assim, sem empregar um centavo em projetos de investimento, o BM, por meio de condicionalidades que faz incidir
sobre a operação de empréstimo, adquire um poder imenso
de interferir na formulação e implementação de políticas públicas brasileiras. Neste caso, as políticas serão da área
ambiental, abrangendo medidas nas seguintes frentes de atuação do MMA: (a) Sistema de Gerenciamento Ambiental;
(b) Agenda Verde (mata atlântica, cerrado, etc.); (c) Agenda
Marrom (segurança química; agentes contaminantes; etc.);
(d) Agenda Azul (recursos hídricos) ; (e) sustentabilidade
ambiental em setores selecionados (prevenção e controle do
desmatamento; Programa de Desenvolvimento sustentável
para a Amazônia – PAS; política de resíduos; sustentabilidade
ambiental e sistema tributário; etc.).
4 – Preocupações da Sociedade Civil
São várias as preocupações da sociedade civil em relação
a este novo empréstimo. Entre tais preocupações, incluem-se
as seguintes:
126
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
·
Condicionalidades – Preocupa o fato de que
continua a prática da adoção de extensas
condicionalidades, correspondentes a exigências de
implementação de reformas em políticas públicas, para
que o mutuário (no caso, o Brasil) tenha acesso ao crédito multilateral. O sistema de relacionamento entre os
governos nacionais e o bancos multilaterais deveria resguardar, com a própria sociedade, a capacidade de determinar soberanamente, por meio de ampla representação democrática de interesses, o conteúdo e as metas
das políticas públicas adotadas no país. O papel dos bancos multilaterais, de distribuir fundos para financiar o
desenvolvimento, não deveria ser exercido de modo a
marginalizar o papel da representação democrática de
interesses na definição das políticas e dos meios escolhidos pela sociedade para buscar o crescimento eqüitativo e sustentável.
·
Monitoramento – Considerando que várias
das políticas ambientais abrangidas pela operação de financiamento terão impacto muito importante para a
sociedade e para a sustentabilidade ambiental do desenvolvimento econômico, é necessário que um processo de monitoramento eficiente pela sociedade civil seja
desenvolvido. Portanto, será vital que sejam estabelecidos com antecipação indicadores claros, a fim de que o
processo de monitoramento possa ocorrer sob regras
claras, que contemplem os interesses da sociedade e a
liberdade de acesso a informações.
·
Transparência – Embora haja um esforço do
governo no sentido de dar alguma transparência ao processo de negociação deste empréstimo, os resultados ainda são muito limitados. Ainda não há disposição do MF e
do BM no sentido de abrir para o amplo escrutínio público os processos decisórios que resultam na definição dos
conteúdos de documentos extremamente relevantes,
como os chamados “Documentos de Programa”. Assim,
seria de crucial importância que se estabelecessem me127
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
canismos para que a sociedade participasse (a) do processo de
formulação das políticas e reformas adotadas no âmbito da operação de empréstimo e (b) do processo de avaliação da
implementação das reformas e políticas propostas.
·
Condicionalidades relacionadas ao comércio – Há
grande preocupação da sociedade civil com a possibilidade de
que sejam incluídas, entre as condicionalidades, algumas que
se refiram a áreas de política comercial. Nestes casos, que atendem aos esforços do sistema multilateral da área econômica
em atingir uma “coerência” (coherence) entre políticas financeiras e comerciais, pode haver o favorecimento de medidas de
liberalização comercial que “esvaziem” possibilidades de negociação comercial do Brasil em outros fóruns. Pode, também,
haver conflito entre o atendimento da condicionalidade de política comercial e tratados de política ambiental já firmados
pelo Brasil. Portanto, será necessário evitar que potenciais interesses da sociedade brasileira em negociações comerciais sejam frustrados por reformas eleitas como condicionalidades
pelo BM nesta operação de empréstimo. Será necessário, também, formular salvaguardas que assegurem sempre o respeito
à sustentabilidade ambiental decorrente inclusive de compromissos internacionais já assumidos pelo Brasil.
·
A assistência técnica – A sociedade civil preocupase, também, com o Empréstimo de Assistência Técnica
(Technical Assistance Loan – TAL) que deve acompanhar o
empréstimo de ajuste. A preocupação aí reside no fato de que
os TALs são geralmente usados para montar redes gerenciais
especializadas. Tais redes gerencias são verdadeiras forças-tarefas do BM, formadas de consultores não concursados e escolhidos pela sua disponibilidade para serem supervisionados
sob critérios de eficiência e competência técnica formulados
pelo BM. E, normalmente, esses critérios não refletem debates desenvolvidos pela sociedade em torno de temas controversos e relevantes para a execução de políticas e reformas.
Assim, será importante, também nesse campo, prevenir que
tais redes gerenciais atuem no sentido de tornar distorcidos
os processos de implementação e avaliação do programa de
ajuste e de seus projetos.
128
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
5 – Conclusões
É lamentável que o Brasil continue tolerando que as instituições financeiras multilaterais (IFMs) mantenham a prática de incluir, em seus pacotes de empréstimo, como condições
para acesso ao crédito, exigências relativas a implementação
de reformas em diversas áreas de políticas públicas com impacto direto sobre a vida dos cidadãos e a sustentabilidade
ambiental. Seria necessário que o governo brasileiro decidisse
estabelecer uma nova forma de relacionamento com as IFMs,
a fim de que os verdadeiros interesses dos diversos grupos sociais pudessem ser respeitados.
Mesmo sob um padrão de relacionamento com as IFMs
em que continua a ocorrer uma subordinação do governo aos
desígnios dessas organizações, é possível à sociedade civil, no
caso do empréstimo atualmente negociado com o BM, zelar
para que: (i) sejam adotados antecipadamente critérios claros de monitoramento da implementação dos projetos; (ii) se
evite a inclusão, no pacote de ajuda financeira, de
condicionalidades em favor da liberalização comercial, que
tragam prejuízo à sustentabilidade ambiental ou esvaziem
possibilidades de negociação comercial em fóruns como as
reuniões ministeriais da ALCA ou da OMC; (iii) sejam feitos
reais progressos em termos da criação de mecanismos
participativos, que dêem maior transparência aos processos
decisórios definidores dos conteúdo de documentos importantes que integrem o programa de empréstimo; e (iv) o TAL
seja regulamentado de forma a promover os interesses da sociedade.
129
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
130
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A ASSISTÊNCIA TÉCNICA E AS REDES GERENCIAIS *
1. Introdução
Este informe visa a oferecer uma descrição de como o
Banco Mundial (BM) opera na implementação de seus programas no Brasil. Conforme será visto abaixo, o BM opera por
meio das atividades de “assistência técnica”, responsáveis pela
criação e administração de “redes gerenciais”. Foi tomado como
exemplo o caso do empréstimo de assistência técnica associado ao “Primeiro Empréstimo Programático de Ajuste para o
Crescimento Eqüitativo e Sustentável”, aprovado pelo Banco
em fevereiro de 2004. Essencialmente, o modus operandi do
BM, na implementação de programas, é muito semelhante ao
do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
2. O Empréstimo Principal
Em 21-jun.-2004, o governo brasileiro assinou com o
BM um contrato de empréstimo no valor de US$ 505 milhões.
Trata-se de recursos oferecidos pelo Banco para reforçar o caixa do Tesouro Nacional. A operação, que é um empréstimo de
“ajuste econômico” (destinado a equilibrar as reservas internacionais do Brasil) ganhou o nome elegante de “Primeiro
Empréstimo Programático de Ajuste para o Crescimento Eqüitativo e Sustentável”. Este empréstimo havia sido aprovado em
fevereiro de 2004 pela diretoria do BM. A Rede Brasil publicou
sobre isto, em 20-fev.2004, o Informe RB n° 03 / 2004 [1].
Agora, com a recente aprovação da operação pelo Senado Federal, e assinatura do contrato respectivo, começam a
se fazer visíveis os detalhes do modus operandi do Banco Mun*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 16/2004” em 14/
07/2004, no endereço: www.rbrasil.org.br, com o título “Saiba como opera
o Banco Mundial na implementação de reformas”.
131
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
dial e a direção das reformas a serem impulsionadas pelo governo.
As reformas – anunciadas de modo genérico no “Documento de Programa” (DP) do empréstimo, em fevereiro de
2004 – constituem, em seu conjunto, uma espécie de
“contraprestação”, generosamente oferecida pelo Brasil ao seu
credor (o Banco Mundial). Na prática, as reformas foram
“compradas” (por assim dizer) pelo Banco Mundial, com o
oferecimento dos US$ 505 milhões para equilibrar as contas
do governo. As reformas incluem:
·
políticas de transporte (ferroviário, rodoviário e
multimodal);
·
política de PPP (parcerias público-privado);
·
nova lei de falências;
·
sistema financeiro;
·
privatização dos últimos bancos estaduais;
·
fundos de pensão; Instituto de Resseguros do Brasil (IRB);
·
política antitruste; federalização do ICMS;
·
política de crédito (o BM deseja combater políticas de crédito público para habitação e agricultura - DP, item 154)
·
cooperativas de crédito, com impactos sobre programas
como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) (DP, item 181);
·
política de inovação tecnológica;
·
programas do BNDES-BNDESPAR, da FINEP e do SEBRAE;
·
política de propriedade intelectual;
·
implementação de mecanismos de mercado para
comercialização de licenças de emissão de gases, sob o Protocolo de Kyoto (DP, itens 201-207);
·
revogação de direitos trabalhistas (flexibilização do mercado de trabalho, incluindo o esvaziamento da autoridade da
132
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
justiça trabalhista - DP, item 217);
·
reforma do sistema judicial, para eliminar “ineficiências”
na proteção de tribunais a contratos, derivadas de “incertezas sobre os fundamentos de decisões judiciais” (DP, item
221);
·
política comercial, inclusive apoio a reformas conducentes
à criação da ALCA.
Tudo isto, e muito mais, está abrangido no “Documento de
Programa” (DP) do empréstimo principal. Até que o Banco Mundial fez um ótimo negócio: com relativamente poucos recursos
para reforçar as reservas internacionais do Brasil, obteve do governo grandes compromissos para a implementação de reformas
abrangentes, que incidirão (ou estão incidindo) sobre inúmeras e
importantes políticas públicas do país, sem que a sociedade tenha
discutido apropriadamente o mérito de todas elas.
Mas como pode ocorrer tanta reforma, de maneira pouco
visível, e com grande impacto sobre a vida dos cidadãos? A resposta está no papel desempenhado pelos empréstimos de assistência técnica, conforme explicitado abaixo.
3. O Empréstimo Correlato: Assistência Técnica
3.1. Montando a rede gerencial
De fato, além do empréstimo principal brevemente descrito acima, foi aprovado pela diretoria do BM, em 08-jul.-2004,
um outro empréstimo, correlacionado ao primeiro. Trata-se de
um “Empréstimo de Assistência Técnica” (EAT), associado ao
“Primeiro Empréstimo Programático de Ajuste para o Crescimento Eqüitativo e Sustentável”. Enquanto o empréstimo principal serve apenas para equilibrar o caixa do tesouro, o EAT
aportou US$ 12 milhões para gastos efetivos nos ministérios.
E para quais gastos serve este dinheiro? Para gastos com
a montagem e custeio do funcionamento de “redes gerenciais”
de consultores e técnicos, que trabalharão dentro dos ministérios do governo brasileiro, enquanto são teleguiados e pagos
133
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
com recursos do Banco Mundial. Assim, o EAT serve como um
instrumento crucial para assegurar, mediante a operação de
redes gerenciais especializadas, e fiéis a critérios muitas vezes
duvidosos, que as reformas “compradas” pelo Banco Mundial
serão eficazmente implementadas.
Segundo documentos (chamados PID e PID-AS) do BM,
que descrevem o “BRASIL-Empréstimo Programático de Reforma para a Competitividade” e o “Programa de Assistência
Técnica para o Crescimento Sustentável e Eqüitativo”[2], as
redes gerenciais, neste caso, serão coordenadas a partir do Ministério da Fazenda, “que estabeleceu uma unidade para servir
de contato operacional com o Banco” (PID, item 6). Isto constitui a base de uma grande rede gerencial para a implementação
das reformas previstas no Documento de Programa.
Ora, o PID-AS assinala que a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda será a unidade de coordenação geral do programa. A SPE será responsável (i) pela
condução de um diálogo com o BM sobre a implementação de
reformas; e (ii) pela avaliação geral e monitoramento da
implementação das reformas, incluindo a consolidação da informação sobre implementação. Está previsto no PID (item 6)
que desembolsos serão feitos de acordo com normas que dispensam licitação.
A partir da SPE do Ministério da Fazenda, os tentáculos
da rede gerencial se espalham pela máquina do governo. O
PID-AS indica que o projeto envolverá “várias entidades nos
Ministérios da Fazenda, Justiça, Transportes e Ciência e
Tecnologia”. A rede gerencial utilizará aí as chamadas “Unidades de Coordenação de Projetos” (UCPs), que cuidarão de diversos aspectos da implementação de reformas “compradas”
tanto pelo BM quanto do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Está previsto ainda que:
(i)
134
a UCP do Ministério da Fazenda será responsável pelo
gerenciamento financeiro, contratações e elaboração de
relatórios para as atividades de implementação do próprio Ministério da Fazenda e do Ministério da Justiça;
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
(ii)
“a estrutura de UCPs no Ministério dos Transportes”
será de uma pessoa em cada UCP (o Coordenador de
Projeto, ou CP);
(iii)
as reformas serão implementadas inicialmente por duas
UCPs (uma no Ministério da Fazenda, sob a SPE, e outra no Ministério da Ciência e Tecnologia, sob a Secretaria Executiva) e três CPs localizados no Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes – DNIT,
na Agência nacional de Transportes Terrestres – ANTT
e na Agência Nacional de Transportes Aquaviários –
ANTAQ; e
(iv)
haverá uma supervisão exercida por “líderes de equipe
nomeados para redigir os termos de referência ou
especificações para as atividades” (PID-AS, item 6)
3.2. O setor de seguros
Também está abrangida no programa de assistência técnica uma ação para reforma o setor da indústria de seguros no
Brasil. Assim, o programa de assistência técnica prevê que a
SUSEP (Superintendência de Seguros Privados) adotará um
“Plano de Ação para reforçar” (melhor seria dizer “reformar”)
“regulamentos e supervisão da indústria de seguros” (PID-AS,
item 4, iii).
3.3. Treinamento de juizes
O PID-AS ressalta, ainda, que haverá uma ênfase em
reformas que visem a “melhorar o ambiente para os negócios”
(improving the business environment), especialmente na área
da política antitruste e na política de proteção a credores (da
nova lei de falência, apoiada pelas IFMs).
Assim, a assistência técnica prevê o “treinamento de
juizes e funcionários dos tribunais” e a “avaliação da
performance do sistema judicial na resolução de disputas econômicas nos setores público e privado” (PID-AS, item 4, ii).
135
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Além disso, está prevista, também, por meio de atividades do
Ministério da Fazenda e do Ministério da Justiça, “o treinamento (...) de juizes e tribunais para implementar a nova legislação
de falências” (PID-AS, item 4, iii).
3.4. Salvaguardas afastadas
O BM tem uma política de “salvaguardas” que em tese
oferecem alguns critérios para que os programas do Banco respeitem uma série de bens e direitos (tais como a propriedade
cultural, direitos atingidos sob reassentamentos involuntários,
os habitats naturais, direitos dos povos indígenas, etc.). Recentemente, o BM começou a discutir internamente a revogação
dessas “salvaguardas” para empréstimos oferecidos a países
de renda média, como o Brasil. As salvaguardas, contudo, ainda estão em vigor.
Embora as reformas contempladas pelo pacote de empréstimo abranjam áreas como a criação do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo- MDL (sob o Protocolo de Kyoto), bem
como o apoio a parcerias público-privadas, inclusive para o desenvolvimento de transporte aquaviário, foi considerado que nenhum tipo de política de salvaguarda está “acionada” pelo empréstimo de assistência técnica (EAT). Ocorre que o simples
fato de se tratar de um EAT não deveria elidir a responsabilidade
do BM em “acionar” algumas salvaguardas relevantes. O
acionamento das salvaguardas deveria resultar, aliás, de um processo de consulta à sociedade, ao longo das fases de
implementação dos diversos projetos abrangidos pelo empréstimo principal.
4. Conclusões
Os US$ 12 milhões do EAT serão, é claro, suficientes
para custear a organização e funcionamento de vários UCPs e
CPs e capilarizações por qualquer setor da máquina administrativa brasileira ao longo de muito tempo. Isto representa um poder enorme para o Banco Mundial e um empobrecimento do
136
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
debate público sobre os detalhes das reformas implementadas,
que deveriam envolver, por exemplo, a formulação de “termos
de referência” e “critérios de avaliação” negociados amplamente com grupos sociais, inclusive assegurando uma participação
pública e plural, que refletisse a diversidade de interesses e pontos de vista presentes na sociedade
Não é aceitável que os bancos multilaterais, apenas por
emprestarem dinheiro, adquiram a prerrogativa de exercer um
controle gerencial tão penetrante, e mesmo diretivo, sobre as
reformas de políticas públicas que afetam profundamente a
vida dos brasileiros.
O “toma-lá-dá-cá” que está em jogo não é justo: alguns recursos são oferecidos pelos bancos multilaterais para
equilibrar as contas do Estado sob um modelo de política
macroeconômica que alimenta sempre mais a dívida, sendo
isto usado para que os mesmos bancos multilaterais (em prol
de que interesses?) montem, nas entranhas dos ministérios e
das agências regulatórias, as redes de administradores que respondem com mais efetividade aos desideratos formulados por
técnicos dos bancos e não às aspirações dos trabalhadores e
consumidores brasileiros.
137
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Notas:
[1] HYPERLINK http://www.rbrasil.org.br/publicacoes/
notas_tecnicas/
nota_tecnica.php?nota_tecnica_id=Th9qmcuNDq&pg=1
http://www.rbrasil.org.br/publicacoes/notas_tecnicas/
nota_tecnica.php?nota_tecnica_id=Th9qmcuNDq&pg=1
[2] Trata-se do “Initial Project Information Document” (PID)
e do “Project Information Document – Appraisal Stage (PIDAS). Ver:
HYPERLINK http://www.obancomundial.org/
content/_downloadblob.php?cod_blob=1370 http://
www.obancomundial.org/content/
_downloadblob.php?cod_blob=1370
e
HYPERLINK http://www.obancomundial.org/content/
_downloadblob.php?cod_blob=1369
http://
www.obancomundial.org/content/
_downloadblob.php?cod_blob=1369
138
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
ASSISTÊNCIA TÉCNICA:
SOCIEDADE CIVIL PROPÕE INOVAÇÕES *
Hoje foi noticiada, em diversos jornais, a aprovação de
um empréstimo do Banco Mundial ao Brasil, no valor de US$
505 milhões, para a área ambiental. As negociações relativas ao
empréstimo foram objeto de análise do Informe RB n.º 11, de 19/
05/2004 [1].
Ao contrário do que as matérias jornalísticas de hoje deram a entender, trata-se de um empréstimo de ajuste, cujos recursos não serão usados em investimentos para o desenvolvimento, mas sim em recomposição de reservas do Tesouro Nacional.
Muito embora o empréstimo tenha esse caráter, está
em curso a negociação, entre o governo e o Banco Mundial, de
uma operação correlata: a de um empréstimo de assistência
técnica (EAT). O valor deste empréstimo está ainda sendo determinado e poderá corresponder a cerca de US$ 10 milhões.
A sociedade civil está em entendimentos com o Ministério
do Meio Ambiente (MMA) para trabalhar na criação de mecanismos participativos inovadores. Tais mecanismos poderão dizer
respeito a: (1) procedimentos de avaliação da implementação de
programas que integram as “condicionalidades ambientais” do
empréstimo principal; e (2) procedimentos de formulação de “termos de referência” para o trabalho de consultores. Está apresentada a proposta de que sejam criados mecanismos de participação
de representantes de organizações e movimentos sociais nessas
duas instâncias de decisão.
É objetivo do MMA, no âmbito do EAT, viabilizar o
aporte de recursos o mais rapidamente possível e de modo
que também contemple a participação da sociedade. O MMA,
contudo, tem a preocupação de que a possível participação
*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 19/2004” em
25/08/2004, no endereço: http://www.rbrasil.org.br
139
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
da sociedade não implique em acréscimos de complexidades
burocráticas que tornem excessivamente morosos os processos decisórios. Por isso os mecanismos a serem criados deverão priorizar também a agilidade dos procedimentos.
Há previsão informal de que será criada no MMA uma
“Coordenação de Projetos” do empréstimo principal. As inovações propostas dizem respeito aos seguintes mecanismos:
(a) Para fins de avaliação da implementação de programas, provavelmente serão criadas comissões interministeriais (envolvendo ao menos o MMA e mais um ministério). A proposta
em discussão é que seja instituída a participação de representantes da sociedade civil nessas comissões interministeriais
(que passarão a ser comissões interministeriais ampliadas),
com orçamento proveniente do EAT.
(b) Para fins de formulação de termos de referência para consultores de programas e projetos, provavelmente serão criados
conselhos técnicos ad hoc (que colherão a opinião inclusive do
Banco Mundial). A proposta em discussão, neste caso, é que
haja também participação de representantes da sociedade civil no funcionamento de tais conselhos técnicos ad hoc (que
passarão, portanto, a ser conselhos técnicos ampliados), também com apoio orçamentário de recursos oriundos do EAT.
Ao que tudo indica, as inovações institucionais, se
implementadas, poderão marcar um avanço significativo nas
relações entre o governo, a sociedade civil e o Banco Mundial,
contrastando com o padrão de prestação de assistência técnica
descrito no Informe RB n.º 16, de 14/07/2004 [2].
Notas
[1] Ver:
http://www.rbrasil.org.br/publicacoes/artigos/
artigo.php?artigo_id=yZzvjPyJpJ&pg=1
[2] Ver:
http://www.rbrasil.org.br/publicacoes/artigos/
artigo.php?artigo_id=klEADczNMa&pg=1
140
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
SALVAGUARDAS NA MIRA *
1 – INTRODUÇÃO
Uma das entidades do Grupo Banco Mundial (GBM),
a chamada International Finance Corporation (IFC), ou
Corporação Financeira Internacional (CFI), está engajada em
um processo de revisão de algumas de suas políticas internas.
Este Informe analisa brevemente a proposta de revisão de políticas e indica possíveis conseqüências para a sociedade civil.
2 – CONTEXTO GERAL
A Corporação Financeira Internacional (CFI), é uma
das cinco entidades que atualmente compõem o chamado
“Grupo Banco Mundial” (GBM). As outras quatro são: o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
(BIRD), a Associação Internacional para o Desenvolvimento
(AID), o Centro Internacional para a Resolução de Disputas
sobre Investimentos (CIRDI) e a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (AMGI). Essas entidades foram criadas ao longo dos anos (ver Quadro 1 abaixo), para atender a
finalidades diversas.
QUADRO 1
ENTIDADES DO GRUPO BANCO MUNDIAL
Nome
Ano de Criação
BIRD
1944
CFI
1956
AID
1960
CIRDI
1966
AMGI
1988
*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 20/2004” em
08/09/2004 no endereço: http:www.rbrasil.org.br.
141
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
A CFI é uma instituição que adquire importância crescente, dado o fato de que é ela o “braço” do GBM dedicado a
oferecer empréstimos para empresas privadas, cada vez mais
beneficiadas com créditos multilaterais, muitas vezes em detrimento de possibilidades de investimentos do setor público.
Assim como o BIRD, a CFI tem políticas internas que se
aplicam às suas operações e que, em tese, têm o objetivo de
salvaguardar os direitos de grupos sociais, no que se refere ao
direito de informação (Política de Informação) e a direitos sociais, ambientais e de povos indígenas (Política de Salvaguardas). As regras de tais políticas estipulam exigências quanto a
publicação de informações, avaliação ambiental, proteção a
habitats naturais, reassentamentos involuntários, respeito à
saúde comunitária, aplicáveis a operações financeiras da CFI e
a seus beneficiários. A atual Política de Salvaguardas da CFI é
composta de 10 políticas específicas, nas seguintes áreas: (1)
Avaliação Ambiental; (2) Habitats Naturais; (3) Gestão de
Pragas; (4) Silvicultura; (5) Segurança de Barragens; (6)
Hidrovias Internacionais; (7) Povos Indígenas; (8)
Reassentamento Involuntário; (9) Propriedade Cultural; e (10)
Trabalho Forçado e Trabalho Infantil. [1]
Além disso, da Política de Salvaguarda da CFI, foram
derivados padrões seguidos por Agências de Crédito à Exportação, bem como certos princípios, que passaram a ser
adotados por mais de 20 bancos privados (inclusive, no Brasil, os bancos Itaú e Itaú BBA, envolvendo, também, recursos
do BNDES), e que se tornaram conhecidos como “Equator
Principles”, ou “Princípios do Equador”. [2]
3 – REFORMAS PROPOSTAS
A CFI está propondo uma reforma completa em sua
Política de Informação e em sua Política de Salvaguardas. No
lugar das 10 salvaguardas específicas hoje existentes (ver acima), a CFI quer adotar determinados “padrões de desempenho” (performance standards) para os empréstimos oferecidos a empresas privadas. Tais “padrões de desempenho” são
142
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
referências muito menos precisas do que as salvaguardas ainda hoje adotadas, e permitem uma flexibilidade muito maior
– dando margem a abusos muito maiores – na
implementação de projetos com financiamento da CFI.
De fato, ao invés de afirmar claramente determinados objetivos para proteger direitos, o sistema dos “padrões de
desempenho” dá ampla liberdade às empresas tomadoras de
empréstimos. Assim, de acordo com o documento da CFI,
[3] que conceitua o novo sistema, a própria entidade multilateral terá menos responsabilidades diretas na proteção de direitos. É o que está indicado no documento mencionado: “De
acordo com os novos Padrões de Desempenho propostos pela
CFI, os clientes [isto é, as empresas privadas] são responsáveis por avaliar, administrar e informar sobre os impactos
sociais e ambientais de seus projetos”. E mais: “A função da
CFI deve ser apoiar e supervisionar seus clientes [...]” [3, item
15]. Da posição de entidade “obrigada” a cumprir salvaguardas, a CFI passa a exercer o papel de “supervisionar” clientes.
Como se vê, a reforma das políticas de informação e de
salvaguardas da CFI aprofunda radicalmente a privatização dos
programas de empréstimo da instituição, deixando pouco espaço para mecanismos verdadeiramente participativos baseados
em regras públicas que atribuam responsabilidades precisas e
diretas à organização multilateral.
4 – PERIGOS PARA A SOCIEDADE CIVIL
São evidentes os perigos implícitos na proposta de reformas das políticas da CFI. Por um lado, tais perigos decorrem do fato de que as salvaguardas efetivas passam a estar
completamente diluídas, não havendo suficiente clareza sobre os direitos a serem preservados, com responsabilidade direta da CFI. Por outro lado, a CFI está propondo um processo
de “consultas” aos grupos interessados que é completamente
açodado e insuficiente, talvez no intuito de aprovar as reformas rapidamente e nos termos que menos interessem a várias comunidades, beneficiando desigualmente os futuros
143
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
tomadores de empréstimos, a saber, as empresas privadas.
O processo de consulta divulgado pela CFI [4] prevê
os seguintes eventos:
A) Reunião com banqueiros para discutir os Princípios do
Equador (Londres, 16 de setembro 2004)
B) Reunião com ONGs Internacionais (Washington, D.C.,
4 de outubro 2004)
C) Oficina com representantes da sociedade civil (Rio de Janeiro, 27-29 de setembro 2004)
D) Oficina com representantes da sociedade civil (Manila,
Filipinas, 27-29 de outubro 2004)
E) Oficina com representantes da sociedade civil (Nairobi,
Quenia, 29 de novembro-1 de dezembro 2004)
F) Oficina com representantes da sociedade civil (Instambul,
Turquia, 13-15 de dezembro 2004)
Com esse processo apressado do que chama de “consultas”, e sem a construção de uma metodologia negociada
com a sociedade civil para discutir as mudanças a serem
introduzidas, a CFI pretende legitimar o que talvez seja uma
porta aberta para a prática de abusos por parte das empresas
que se beneficiam de seus empréstimos.
144
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
5 – CONCLUSÃO
Não deveria caber a uma instituição multilateral, formada por Estados, promover a privatização de seus processos, em benefício de grupos econômicos e sem estabelecer claramente, por meio de regras públicas, salvaguardas efetivas
para os direitos de comunidades sociais.
Ao proceder com a aparente preocupação de legitimar
apressadamente as reformas propostas, mas sem o intuito
claro de construir uma agenda que contemple verdadeiramente
as aspirações da sociedade, a CFI confirma que serve de instrumento para favorecer grupos privilegiados, em detrimento
dos direitos de comunidades e povos em busca de um tratamento equânime, inclusivo e justo.
Notas:
[1] – Ver as políticas específicas de salvaguardas da CFI em:
http://www.ifc.org/ifcext/policyreview.nsf/
e11ffa331b366c54ca2569210006982f/
1790644170c3547485256dfe0056243d?OpenDocument
[2] – Sobre os Princípios do Equador, ver:
http://www.equator-principles.com/ga1.shtml
e
http://www.equator-principles.com/
[3] – Ver o “Documento Conceitual” da CFI em:
http://www.ifc.org/ifcext/policyreview.nsf/
AttachmentsByTitle/Concept+Paper+Spanish/$FILE/
Concept+Paper+Spanish.pdf
[4] – Ver a tabela de consultas em:
http://www.ifc.org/ifcext/policyreview.nsf/
AttachmentsByTitle/Consultation+Timetable/$FILE/
consultation+timetable.pdf
145
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
146
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
CFI TEM PROCESSO DELIBERATIVO
DEFEITUOSO1
1 – INTRODUÇÃO
Em 23 de setembro de 2004, a Corporação Financeira
Internacional (CFI) – braço do Grupo Banco Mundial (GBM)
que se dedica a oferecer empréstimos ao setor privado –, ignorando as críticas vindas da sociedade civil, deliberou aprovar um empréstimo de US$ 30 milhões para a Amaggi Exportação e Importação Limitada (a seguir designada
“Amaggi”), empresa da família de Blairo Maggi, governador
do estado do Mato Grosso.
A aprovação do empréstimo em favor da Amaggi ocorreu apesar das críticas feitas pela sociedade civil à atuação
das empresas do grupo e ao avanço da cultura de soja na
Amazônia, responsável por danos ao meio ambiente e por riscos impostos aos direitos de grupos sociais.
A Rede Brasil obteve informações sobre a decisão da CFI.
O presente Informe analisa essa decisão e destaca falhas no
processo deliberativo, que, no caso, revelam a orientação da
entidade multilateral no sentido de apoiar o grande agro-negócio, e não diretamente os pequenos agricultores, apoiando processos de abertura de corredores de exportação que não beneficiam claramente o desenvolvimento eqüitativo regional e que
resultam em prejuízos à sociedade e ao meio ambiente.
1
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 22/2004”
em 03/11/2004, no endereço: http://www.rbrasil.org.br
147
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
2 – O EMPRÉSTIMO
O empréstimo de US$ 30 milhões aprovado pela CFI para
a Amaggi tem o objetivo de apoiar o estabelecimento de centros
de coleta de soja e silos com 250.000 toneladas de capacidade
de estocagem e, ao mesmo tempo, atender a crescente necessidade de capital de giro da empresa. A operação prevê, para o repagamento, um período de carência de 2 anos e o pagamento do
empréstimo num prazo de 8 anos. A taxa de juros será a LIBOR
de seis meses (equivalente a 2,6% em setembro 2004) mais
3,6% ao ano, sendo o contrato garantido com hipoteca sobre a
terra e outros ativos.
3 – JUSTIFICATIVAS PARA A APROVAÇÃO
3.1 Sustentabilidade ambiental e social
Ao aprovar o empréstimo, a CFI considerou que a entidade multilateral trará impactos positivos sobre o desenvolvimento do setor de soja em Mato Grosso, como resultado de
atividades de assessoramento e orientação que oferecerá à
Amaggi, para fins de gerenciamento ambiental sustentável.
Por outro lado, a CFI considerou também que o empréstimo
incentivará o desenvolvimento, pois estenderá práticas de
manejo ambiental sustentável a cerca de 500 pequenos produtores que são pré-financiados pelo grupo Amaggi e facilitará o diálogo com interessados em questões relacionadas ao
cultivo da soja.
Além disso, o Conselho de Diretores da CFI, embora admitindo que o desmatamento na região amazônica tem como
uma das causas a expansão do cultivo da soja no Mato Grosso, afirmou claramente que uma equipe de técnicos pôde concluir, após diligências, que “as operações da própria Amaggi
obedecem plenamente as diretrizes ambientais e sociais da
CFI/GBM” (CFI, “Relatório ao Conselho e Diretores sobre
uma Proposta de Investimento na Expansão da Amaggi Brasil”, 23/09/2004, a seguir designado “Relatório”, p. ii).
148
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Houve, ainda, a consideração de que o empréstimo se
coaduna com o Documento de Estratégia ao País, conjuntamente discutido pelo Banco Mundial e pela CFI em dezembro
de 2003. Nesse sentido, destacou-se que a Amaggi adotou
um Sistema de Manejo Ambiental e Social consistente com
as políticas ambientais e sociais da CFI/GBM (CFI, “Relatório”, p. 2). Há ênfase também no fato de que a Hermasa
Navegação Limitada (a seguir designada “Hermasa”), uma
empresa de embarcações pertencente ao grupo da família
Maggi, é um meio de transporte para o escoamento da soja
exportada que demonstra eficiência de custos e contribui para
a geração de rendas de exportação.
3.2 – Servir aos poderosos
O Conselho de Diretores da CFI também considerou que
pode haver um “potencial conflito de interesses” no caso da
operação, uma vez que se tratava de um empréstimo multilateral concedido a uma empresa controlada pela família de um
poderoso político, que é governador de um estado da federação
no Brasil. Mas o Conselho, embora reconhecendo que “É prática da CFI evitar transações nas quais os interessados ocupem
posições políticas executivas proeminentes”, decidiu ir avante
com o “investimento”. As justificativas oferecidas para isso foram que (CFI, “Relatório”, p. 13): (i) a Amaggi já é um cliente
da CFI e um motor do crescimento recente da economia brasileira; (ii) a CFI está desempenhando um papel chave em orientar a expansão da empresa de modo que haja estrito cumprimento de exigências ambientais; (iii) o investimento na
Amaggi promoverá a agenda ambiental da empresa e da CFI
em um setor sensível e relevante para o Brasil e o resto do
mundo; (iv) a CFI “teve extensas discussões com a Companhia [Amaggi] sobre a importância de se manter um
distanciamento nas relações entre as atividades do senhor
[Blairo] Maggi enquanto governador e as operações da Companhia”. Assim, quanto as possíveis interferências políticas do
governo do estado nas atividades da empresa e em políticas
públicas relevantes, a CFI alega ter feito uma “completa e cui149
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
dadosa análise das questões implicadas” e resolveu aprovar o
empréstimo.
3.3 – Consultas suficientes?
A CFI registrou ter encorajado a Amaggi a implementar
um “plano de consulta e informação” (public consultation and
disclosure plan). Isto resultou em atividades nas quais “a duração total [...] foi de aproximadamente duas horas e meia” (CFI,
“Relatório, p. 11). Além disso, registraram-se consultas feitas
em Querência (em 08/08/2004), Cuiabá (13/07/2004),
Sorriso (20/07/2004) e Sapezal (12/08/2004). Segundo a
CFI, os participantes dessas atividades de consulta manifestaram apoio e valorizaram o compromisso da Amaggi com o
cultivo sustentável da soja.
4 – FALHAS ESPANTOSAS
A linguagem fria do “Relatório”, com base no qual a CFI
aprovou o empréstimo para a Amaggi, revela falhas graves
no processo deliberativo da entidade, faz crer que as “consultas” realizadas foram completamente insuficientes e corrobora a necessidade de que haja maior transparência e maior
participação da sociedade civil nos procedimentos deliberativos
de todos os aspectos do envolvimento da Amaggi com a CFI.
4.1 Pó de Soja Pode Ter Causado Mortes
Assim, espanta que fatos amplamente conhecidos do público brasileiro não tenham sido considerados pela diretoria
da CFI quando decidiu aprovar o empréstimo à Amaggi. Por
exemplo, a imprensa de Porto Velho, Rondônia, noticiou no
início de setembro de 2004 – antes, portanto, da aprovação
do empréstimo à Amaggi – que vários problemas de saúde
pública decorrem do funcionamento da Hermasa (do grupo
da família Maggi). Conforme publicado na Imprensa Popular, “Promotora está convencida de que pó de soja matou duas
150
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
mulheres” [1]. Segundo o órgão de imprensa,
“A promotora de Justiça Aidée Maria
Moser Torquato Luiz, da Promotoria
de Justiça do Meio Ambiente de
Rondônia, está convencida de que o pó
de soja e outros resíduos sólidos lançados ao ar pelo Terminal Graneleiro
da Hermasa (Grupo Maggi), nesta
Capital, causaram a morte por problemas respiratórios de duas mulheres que moravam no bairro Novo Estado, na margem do rio Madeira, onde
se localiza o terminal.”
Além disso, a mesma reportagem registra:
“Dezenas de outros moradores da região estão atualmente com doenças
respiratórias, irritação nos olhos e na
pele. A promotora Aidée Maria acredita igualmente que eles são vítimas
da poluição causada pelo Terminal da
Hermasa e pelas manobras do porto
graneleiro”.
A operação das empresas do grupo Maggi, portanto, trazem problemas severos que prejudicam a qualidade de vida e
a saúde dos habitantes da região. Conforme indica a reportagem citada,
“Os moradores dizem que até hoje o
pó da soja continua poluindo o ar, sujando as casas e prejudicando a quali151
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
dade de vida de crianças, jovens e adultos – principalmente das crianças e dos
idosos. Suspeita-se que a presença de
agrotóxicos no grão aumentem o envenenamento do ar pela poeira contaminada.”
4.2 Investimento Beneficia Poucos e Degrada a Região
A atuação das empresas do grupo Maggi, segundo a mesma notícia, em nada tem contribuído para o desenvolvimento sustentável da região. As empresas, ao contrário, praticam
“crimes ambientais”, segundo a notícia, e exploram um corredor de exportação para mercados globais, sem praticamente gerar benefícios para o desenvolvimento eqüitativo de comunidades da região. Nesse sentido, destaca o órgão de imprensa:
“Os rondonienses mal percebem a riqueza que atravessa o Estado, chega a
Porto Velho, e partem do Terminal da
Hermasa formando os maiores comboios fluviais do Brasil.”
Por outro lado, é corrente a opinião local de que as atividades do grupo Maggi trazem malefícios múltiplos, que vão
desde o sofrimento imposto a moradores de comunidades locais até prejuízos ambientais irreparáveis. Nesse sentido, a
mesma reportagem assinala o depoimento de morador local:
“’Além de poluir a Capital, a soja é nociva a Rondônia por ser uma
monocultura que favorece o latifúndio, concentra riqueza, aumenta o va152
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
zio demográfico da região e acelera a
desertificação de regiões inadequadas
para a agricultura como o Vale do
Guaporé’ – diz Teodoro Saraiva, morador em Porto Velho.”
O mesmo morador observa ainda:
“Imóveis rurais perderam valor em
Mato Grosso com a expansão dos
campos de soja. A soja começa penetrar no Vale do Guaporé, em
Rondônia, fazendo populações tradicionais venderem suas terras por preço vil”
Como poderia um processo de “consulta” ter passado
por cima desses fatos? Como poderia uma “completa e cuidadosa análise das questões implicadas”, mencionada no
“Relatório” da CFI, ter ignorado essa realidade estampada nos
jornais e objeto de processo oficial conduzido por autoridade
pública?
As opiniões acima são corroboradas por pesquisadores
acadêmicos, da Unicamp, que se pronunciaram na forma
seguinte sobre o assunto [2]:
“A hidrovia do Madeira-Amazonas é
um exemplo marcante de discussão
da função das redes geográficas nos
espaços do território nacional em que
a economia se volta à interesses
exógenos ao lugar”
Em suas conclusões, os pesquisdores destacam:
153
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
“nos projetos dos ‘corredores de soja’,
as hidrovias posicionaram-se como eixos prioritários, respondendo aos reclamos do agribusiness e do imperativo da
exportação”, favorecendo a que “o crescimento econômico, sob a direção das
grandes empresas, condu[za] inevitavelmente à concentração de renda [...].
Além disso, a opinião pública brasileira tem reconhecido
que a cultura da soja praticada pelo grande agro-negócio é uma
“nova ameaça” à floresta amazônica, uma vez que avança com
máquinas e insumos químicos sobre terras, muitas vezes aumentando o desmatamento e expulsando os pequenos agricultores [3].
É aparente, portanto, que faltam políticas públicas capazes de efetivamente incorporar o interesse público local, promovendo, com base nisso, o desenvolvimento eqüitativo e
ambientalmente sustentável da região.
4.3 – Política e Negócios
Embora a CFI declare que tenha mantido “extensas discussões com a Companhia [Amaggi] sobre a importância de
se manter um distanciamento nas relações entre as atividades do senhor [Blairo] Maggi enquanto governador e as operações da Companhia”, o “Relatório” da entidade multilateral não deixou claro para a diretoria se o senhor Blairo Maggi
alienou sua posição de acionista das empresas do grupo.
Isto complica a situação, diante de fatos como as contribuições feitas à campanha política do atual governador. Segundo noticias da imprensa [4], a Amaggi Exportação e Importação Ltda., beneficiaria do empréstimo concedido pela
CFI, forneceu em 2002 a segunda maior doação para a campanha do atual governador. As doações foram as seguintes,
segundo a imprensa [4]:
154
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
“Dos mais de R$ 10 milhões da arrecadados pelo socialista [Blairo Maggi],
declarados em 700 páginas ao TRE, 3,2
milhões foram doados pelo próprio candidato do PPS [Blairo Maggi]. A empresa Amaggi Exportação e Importação
Ltda, foi o segundo maior doador, com
2,931 milhões; Hermasa Navegação
da Amazônia, R$ 450 mil; Lúcia Borges
Maggi, com R$ 600 mil e Fertipar Fertilizantes Paraná, com R$ 250 mil.”
Parece difícil se falar em “separação” entre atividades
políticas e empresariais em tais condições. E será que a necessidade de capitalização da Amaggi, atendida pelo empréstimo
da CFI, não decorre em parte de déficits atribuíveis a doações
políticas da empresa? Como assegurar que o empréstimo (o
atual e ao menos um outro empréstimo concedido no passado pela CFI à Amaggi) não se prestará a ser usado na política? Nada disso ficou explicitamente considerado em suficiente detalhe pela CFI (cf. CFI, “Relatório”).
Por outro lado, como governador, o senhor Blairo Maggi
tem dito à imprensa que apóia a legalização do cultivo e da
comercialização dos transgênicos,[5] incluindo obviamente
a soja transgênica, o que beneficiará as suas empresas. Disse,
ainda, que a Amaggi plantará soja transgência em 2005. Segundo o jornal Valor Econômico, o governador disse “que o
grupo controlado por sua família pretende plantar soja
transgênica na próximo safra, a 2005/06” [6]. E, como se
sabe, o assunto da legalização dos organismos geneticamente modificados é muito controvertido e amplamente criticado
pela sociedade civil. O apoio à reforma da lei dado por Blairo
Maggi é político, o benefício será econômico em prol da
Amaggi e a possível ameaça é ambiental.
Isto tampouco foi considerado pela CFI ao tomar a decisão
de conceder o empréstimo à Amaggi em 23 de setembro de 2004.
155
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Finalmente, deve ser considerado que o governador Blairo
Maggi já se posicionou contra a demarcação de terras indígenas. Segundo noticiado na imprensa [7], professores do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Mato
Grosso enviaram carta ao governador Maggi, em 2003, para
dissuadi-lo de solicitar ao Ministro da Justiça que terras indígenas no Mato Grosso não fossem demarcadas. O quanto
isto pode ser benéfico, ou não, aos negócios do grupo Maggi –
a despeito do que conste do Sistema de Manejo Ambiental e
Social da Amaggi – não se sabe, mas deveria ser investigado e
sem dúvida deveria constar explicitamente de considerações
sobre as quais a diretoria da CFI devesse se pronunciar ao
decidir sobre o empréstimo.
5 - CONCLUSÕES
É espantoso e inaceitável que uma entidade multilateral,
como a CFI, tenha procedimentos de deliberação tão defeituosos a ponto de gerar decisões de concessão de empréstimos
extremamente problemáticos e que trazem riscos visíveis à
sociedade.
Sabe-se que, apesar dos reclamos da sociedade civil, a
CFI insistiu em classificar a operação de empréstimo à Amaggi
como pertencente à chamada “categoria B”, negando-se a
classifica-la na “categoria A”, o que exigiria um exame mais
cauteloso dos vários potenciais riscos inerentes ao investimento.
As “consultas” realizadas pela CFI obviamente foram
também defeituosas. Conforme registrou manifestação do
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (FBOMS), que reúne mais de
1.200 entidades da sociedade civil, “não foi consultada a
maioria dos atingidos potenciais pelas mudanças propostas,
tais como povos indígenas e comunidades locais.” [8]
As falhas no processo deliberativo da CFI são gritantes e
deslegitimam a sua atuação, nos moldes atuais, e reforçam
os argumentos contrários à reforma das políticas de informação e de salvaguardas que a entidade quer adotar no futu156
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
ro próximo (ver Informe RB nº 20, de 08/09/2004), contra
as posições críticas já manifestadas pela sociedade civil em
todo o mundo.
Notas:
[1] Ver “Promotora está convencida que pó de soja da
Hermasa matou duas mulheres”, no endereço:
http://www.imprensapopular.com/
see.asp?codnews=1393&categoria=reportagem – consultado em 04/10/2004
2] Ver “A soja rumo ao norte”, no endereço:
http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-02-27/
mat_28859.htm – consultado em 04/10/2004.
[3] Ver Ednei de Genaro e Prof. Dr. Ricardo Castillo,
“O Papel do Modal Hidroviário na Logística do Transporte
de Cargas no Território Brasileiro: Uma Análise a Partir da
Configuração Territorial. O Exemplo da Hidrovia do Madeira-Amazonas”, no endereço:
http://www.cibergeo.org/agbnacional/VICBG-2004/
Eixo5/e5%20150.htm – consultado em 04/10/2004.
[4] Ver “Maggi gastou 22 vezes mais do que Antero”,
matéria do Diário de Cuiabá, reproduzida no endereço:
http://www.dentinho.com.br/integras.asp?cod=2651
– consultado em 04/10/2004
[5] Ver Agência Brasil, “Blairo Maggi defende texto da
Lei de Biossegurança aprovado no Senado”, no endereço:
http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/brasil/
1772501-1773000/1772636/1772636_1.xml – consultado em 01/11/2004
157
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
[6] Ver “Blairo Maggi deve plantar soja transgência em
2005”, da fonte “Valor Econômico”, matéria reproduzida
no endereço:
http://www.agrolink.com.br/noticias/
pg_detalhe_noticia.asp?cod=20200 – consuldado em 01/
11/2004
[7] Ver “professores da UFMT enviam carta para Blairo
Maggi” matéria da fonte “Folha do Estado”, de Cuiabá,
reproduzida no endereço:
http://www.universiabrasil.net/html/
noticia_efgeh.html# - consultado em 04/10/2004
[8] Ver nota do FBOMS no endereço:
http://www.fboms.org.br/noticias/noticias.htm –
consultado em 04/10/2004
158
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
ESTRATÉGIAS SUB-NACIONAIS:
NORTE E NORDESTE *
No dia 09-dez.2003 foi publicada na internet o chamado CAS (Country Assistance Strategy) 2004-2007 para o Brasil
(ou “Estratégia de Assistência ao Brasil 2004-2007”) do Banco
Mundial (BM). Esse é o instrumento utilizado pelo BM para
o planejamento plurianual da alocação de créditos a países
(no caso, o Brasil). Veja a respeito o “Informe RB n.º 13 /
2003 publicado em http://www.rbrasil.org.br/publicacoes/
n o t a s _ t e c n i c a s /
nota_tecnica.php?nota_tecnica_id=rZaSVc8vXU&pg=1
Um outro documento (Documento de Apresentação),
ao qual a Rede Brasil teve acesso, descreve discussões do BM
sobre o CAS 2004-2007 para o Brasil. O Documento de Apresentação contém informações relevantes, a seguir resumidas.
·
Influências sobre o PPA 2004-2007 – O documento afirma claramente que, na administração do CAS, o BM tem
como referência básica o PPA (Plano Plurianual). Diz o
documento: “O cerne da estrutura de monitoramento e
de avaliação proposta para o CAS é o próprio plano
plurianual do governo e seus objetivos.” A estratégia do
BM é, portanto, trabalhar em cima dos objetivos do PPA,
para influenciar a sua execução usando o impacto do poder de alocação de seus créditos.
·
Apoio do BM à PPP – O documento afirma explicitamente que o BM apoia esquemas de PPP (parcerias públicoprivadas). Este apoio está explicitado no CAS e já no primeiro empréstimo do BM aprovado para o Brasil em 2004
*
Texto originalmente publicado como “Informe nº 05/2004” em 01/03/
2004, no endereço: http://www.rbrasil.org.br
159
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
(ver Informe RB n° 2 /2004; sobre a PPP, ver Informe RB
n.º 4, publicados em http://www.rbrasil.org.br/
p u b l i c a c o e s / n o t a s _ t e c n i c a s /
nota_tecnica.php?nota_tecnica_id=Th9qmcuNDq&pg=1
e http://www.rbrasil.org.br/publicacoes/artigos/
artigo.php?artigo_id=rB1VBDqZuO&pg=1 respectivamente). Na visão de grupos da sociedade civil, os esquema de PPP contribuem para o desmantelamento dos serviços de interesse público.
·
Parcerias com o BID (exemplo da política educacional) –
Há ainda, no documento, a indicação clara de que o BM
trabalhará em parceria muito afinada com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O jargão das IFMs
para isto é “harmonização.” Diz o documento: “as estratégias e programas do Banco [Mundial] e do BID para o
Brasil são complementares dentro de uma estrutura geral
semelhante de prioridades temáticas.” O documento
acrescenta ainda: “As duas instituições concordaram em
assegurar uma harmonização ainda maior”. Essa
harmonização chega ao detalhe de uma divisão de trabalho entre os dois bancos. Sobre isto, diz o documento: “Um
exemplo de complementaridade operacional é o foco do
BID sobre a educação secundária enquanto o Banco [Mundial] focaliza a educação primária”.
·
Estratégias sub-nacionais (exemplos do Norte, Nordeste e
Tocantins) – O documento indica que o BM trabalhará,
também, com base em estratégias sub-nacionais (regionais e estaduais). Diz o documento: “Nossa estratégia para
o Nordeste se desenvolve com base na experiência de trabalho com estados e em consultas com interessados locais”. Diz ainda o documento: “Um exercício de estratégia semelhante está sendo desenvolvido para a Região
Norte”. Finalmente, o documento se refere ao “Projeto
de Desenvolvimento Regional Sustentável para o
Tocantins”, o qual constitui, na descrição do documento,
“o primeiro passo na implementação de uma ‘Estratégia
160
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
de Assistência Estadual’ para Tocantins – um primeiro do
que esperamos será uma série de estratégias estaduais [...]
principalmente no Nordeste e no Norte.” Aqui, também,
a coordenação próxima com o BID está indicada.
As informações acima revelam que, no período do CAS
2004-2007, o Banco Mundial pretende influenciar não apenas as políticas públicas federais de âmbito nacional, mas também aquelas com componentes regionais e estaduais. E, para
isto, contará com uma coordenação com o BID.
A sociedade civil necessita permanecer alerta para que
os programas desses bancos multilaterais deixem de exercer
influência indevida – e muitas vezes com impactos sociais e
ambientais altamente negativos – sobre a formulação e
implementação de políticas públicas no Brasil.
161
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
162
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
POLÍTICAS SEMELHANTES EM
VÁRIOS CONTINENTES *
No dia 07-ago.-2004, em uma “Consulta Nacional” realizada em Nova Delhi, diversas organizações da sociedade civil
rejeitaram veementemente Documento de Estratégia de País
(DEP) 2004, ou Country Assistance Strategy (CAS) 2004, do
Banco Mundial. A rejeição foi anunciada por grupos que incluíam amplas alianças de organizações da sociedade civil nas áreas de mineração, exploração de florestas, barragens e energia
hidrelétrica. As informações estão em nota à imprensa de 10ago.-2004, publicada por diversas entidades, incluindo: Manthan
Adhyayan Kendra, South Asia Network on Dams, Rivers and
People, National Forum of Forest People and Forest Workers
(NFFPFW Jharkhand Jangal Bachao Andolan, Focus on the Global South, Environment Support Group, Delhi Forum, Citizens
Concern for Dams and Development (CCDD).
O Banco Mundial foi severamente criticado pelas organizações da sociedade civil, com base nos seguintes fundamentos:
·
Deficiências no processo de consulta à sociedade, inclusive a
falta de prazo para as comunidades se pronunciarem.
·
Ausência de previsão e oportunidade para que haja consultas a parlamentares nacionais e estaduais.
·
Ausência de devidas e prévias informações sobre o documento de estratégia, que procura influenciar políticas econômicas sociais e ambientais, tendo o Banco publicado o
texto na internet com o prazo de apenas três semanas para
comentários.
*
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 18/2004” em 11/
08/2004, no endereço: http://www.rbrasil.org.br, com o título “Solidariedade à Sociedade Civil na India, Mobilizada Contra o banco Mundial”.
163
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
·
A presença de motivação, retoricamente camuflada, de
privatizar setores importantes da economia do país.
·
Completa ausência (no CAS) de referências a falhas
abismais em reformas impulsionadas pelo Banco, inclusive ao fato de que eleitores rejeitaram as políticas
do Banco ao substituírem, mediante o voto popular, os
governos locais em Andhra Pradesh, Karnataka e
Madhya Pradesh, que aderiam a elas
·
O prazo de consultas estabelecido pelo Banco tinha em
vista a data de reunião da diretoria da entidade em Washington, D.C., no dia 26 de agosto, e não a necessidade de informação a ser divulgada e debatida com a sociedade e com o governo.
Os protestos da sociedade civil na Índia, contra os métodos do Banco Mundial e contra conteúdos do CAS 2004,
mostram como o Banco age de maneira semelhante em
todos os países tomadores de empréstimos. Está ocorrendo
na Índia, como tem ocorrido no Brasil, desrespeito a grupos sociais sobre os quais incidem os programas do Banco
e há, também, o emprego de métodos para influenciar a
adoção de reformas altamente questionáveis pela ausência
de mecanismos que assegurem a efetiva participação da
sociedade e dos representantes do povo nos parlamentos.
Assim sendo, a Rede Brasil se solidariza com as organizações da Índia, em protesto contra os métodos e as políticas do Banco Mundial em seu país e reitera que igualmente rejeita a adoção de métodos e políticas semelhantes
no Brasil.
164
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
MONITORANDO
O BID
165
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
166
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
O BID COMO ATOR ESTRATÉGICO NA
AMÉRICA LATINA E NO CARIBE
Marcus Faro * e Magnolia Said **
1 – Introdução
O Banco Inter-americano de Desenvolvimento (BID)
foi criado em 1959 para oferecer assistência financeira para
o desenvolvimento de países pobres da América Latina e do
Caribe (ALC). O objetivo declarado do Banco, segundo o
seu Convênio Constitutivo, artigo 1, era de “contribuir para
a aceleração do processo de desenvolvimento econômico e
social dos países em desenvolvimento da região, coletivamente e individualmente”.
Porém, o BID rapidamente se tornou um meio para a
formulação de políticas de interesse de seus maiores acionistas. Os Estados Unidos são o acionista com maior poder
individual de voto (30 %), seguido da Argentina (10,75 %),
Brasil (10,75 %), México (6,91 %), Venezuela (5,76 %),
Japão (5 %), Canadá (4 %) e outros 39 países com menos
de 3 % de poder individual de voto. Evidentemente, a distribuição do poder de voto se torna a base de um jogo de interesses estratégicos sobre a condução das políticas do Banco.
E mesmo uma coalizão entre todos os países da ALC,
tomadores de empréstimo, não seria suficiente para mobilizar mais da metade do poder de voto. Esta condição seria
necessária para pôr as políticas do Banco verdadeiramente
*
Assessor Político da Rede Brasil
**
Diretora-Presidente do Esplar-Centro de Pesquisa e Assessoria,
Membro da Coordenação Executiva da Rede Brasil
167
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
a serviço da maioria dos sócios – os países em desenvolvimento da ALC – mas é impossível de ser efetivada sob a atual estrutura de governança da instituição.
Assim, o BID é mantido como refém de interesses que
não são os das inúmeras sociedades nas quais são
implementados os projetos financiados pela instituição. Uma
análise das estratégias de desenvolvimento social e de
integração regional do BID e das relações do Banco com a
sociedade civil indicam isto claramente.
2 – A Estratégia de Desenvolvimento Social do BID
O BID tem uma visão economicista do processo de desenvolvimento social. Tal visão domina o apoio oferecido pelo
BID a programas sociais, conforme se vê nos documentos
“Supporting Reform in the Delivery of Social Services” – N°
SOC-101, aprovado pelo Banco em 1996, e “Social
Development Strategy”, de Fevereiro de 2003 (SDS-2003),
atualmente em consideração pelo Banco.
De fato, desde os anos 1960, em que o BID apoiava investimentos em infraestrutura de serviços públicos, tais como
educação, os empréstimos do BID para aplicação em programas sociais mudaram. Assim, nos anos 1980, o foco em expansão de infraestrutura física de serviços sociais (e.g. escolas, hospitais, clínicas) foi abandonado em favor de uma preocupação com a “qualidade” dos serviços. Porém, isto, na
prática, significou que o BID passou a procurar incentivar
“eficiência” em termos de “retornos por dispêndio”, projetando tais retornos como se fossem de investimentos privados em um mercado.
Desde então, os empréstimos do BID para aplicação em
áreas sociais vêm explicitamente acompanhados de “um forte componente de reformas” (SOC-101, p. 5). Tais reformas, em um programa ou mesmo em um setor de serviços
sociais, resultam de uma estratégia do Banco orientada para:
(a) esclarecer os objetivos das políticas; (b) encorajar múlti168
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
plas fontes de oferta; (c) fazer os recursos premiar resultados, deixando a oferta definir inputs; e (d) promover
descentralização cautelosamente (SOC-101, p. 10). Estes
componentes estratégicos do BID adotados como critérios
básicos para o apoio financeiro às políticas sociais dos países
tomadores de empréstimo têm um alcance econômico, focalizando a segurança de investimentos privados, e não primordialmente o cosumo, ou subsídio ao consumo, dos cidadãos.
Portanto, os componenetes estratégicos para fundamentar as reformas de programas sociais, quando explicitados pelo
Banco, correspomdem a: (i) evitar que objetivos considerados incompatíveis com o equilíbrio fiscal sejam priorizados
por governos; (ii) encorajar que empresas privadas passem a
oferecer serviços que possam ser considerados como “insuficiente ou deficientemente” providos pelo setor público; (iii)
assegurar que os serviços respondam a demandas efetivas,
sendo considerados mais eficiente para isto a oferta por meio
do setor privado, capaz de criar “mercados competitivos” em
programas sociais; (iv) evitar a simples devolução de poder
de decisão a autoridades locais, assegurando que haja uma
“correta” estrutura de governança e incentivos “corretos”
para orientar a tomada de decisões (SOC-101, pp. 10-14).
Por outro lado, para tornar as reformas de programas sociais aceitáveis, o Banco desenvolveu uma retórica favorável
aos princípios de “universalidade”, “solidariedade” e
“sustentabilidade” das políticas sociais nas áreas de saúde e
nutrição, educação, habitação e mercados de trabalho. Contudo, o significado real de tais princípios é dado pelos conceitos,
estabelecidos pelo próprio Banco (SDS-2003), segundo os quais:
· a “universalidade” das políticas sociais deve estar subordinada a “constrangimentos impostos pela dimensão produtiva da sociedade” (ou seja, o mercado);
· a “solidariedade” deve significar “a responsabilidade
compartilhada entre os setores público e privado para o financiamento de programas sociais” e “eficiência” na alocação
de recursos (ou seja, avanços em direção à privatização e promoção da focalização);
169
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
· a “sustentabilidade”, além de importar em esforços
de realizar consultas e disseminar informação, deve se referir
sobretudo à manutenção de “equilíbrio fiscal e financeiro”
de políticas sociais, cujos objetivos permanecem, portanto,
secundários em relação à disciplina econômica favorável primordialmente ao funcionamento dos mercados, e não ao
bem-estar social obtido por outros meios.
O BID enfatiza, ainda, a “ineficiência” de leis públicas
de licitação, que, segundo o Banco, atrapalham a alocação
de recursos via empréstimos que contribuem para a reforma
da política social em favor do uso “eficiente” de recursos
(SDS-2003, p. 13). Nesse sentido, a criação de “Fundos de
Investimento Sociais” encorajados pelo BID são um meio de
evitar a incidência de tais regras.
As reformas na área de política social defendidas pelo
BID, portanto, não passam de mudanças destinadas a criar
mercados privados em diversas áreas de serviços e de cooperação social, que necessitariam estar apoiadas em noções
compartilhadas de interesse público. Criar mercados para as
políticas sociais, ou torná-las escravizadas mercados financeiros, significa destruir instituições públicas sob o argumento falacioso de que uma alocação eficiente de recursos, feita
por investidores privados, gerará um padrão de investimentos que propiciará o acesso eqüitativo de todos os consumidores a bens essenciais como saúde, educação e habitação.
3 – Integração Regional na Visão do BID
3.1 Abrindo mercados Via Integração regional
A visão economicista do BID se repete, também, no que
se refere às políticas que o Banco estabeleceu para apoiar a
intergração regional no continente americano. Em outras palavras, as políticas definidas na estratégia do Banco em favor
da integração regional, inclusive na dimensão da infraestrtura
170
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
física, na verdade, são meios de abrir mercados para grandes
empresas em regiões e setores onde ainda estão ausentes. Os
parágrafos abaixo explicitam isto.
3.2 A IIRSA
Todos sabem que está em curso um processo no qual
tem sido negociada a integração da América Latina, em várias dimensões. Uma dessas dimensões é a da “integração
física”, que tem sido impulsionada por processos associados
à chamada IIRSA (ver www.iirsa.org). Isto ocorre num contexto em que o BID tem oferecido apoio essencial ao muito
criticado “Plan Puebla Panamá”, bem como à “Integração
da Infraestrutura Regional na América do Sul” (IIRSA) e,
aparentemente, aspira a se tornar o banco da Área de Livre
Comércio das Américas (ALCA), defendida pelos Estados
Unidos.
A IIRSA é um mega-projeto, que reúne diversos projetos
sub-regionais de construção de estradas, hidrovias, barragens
e outras obras, nos seguintes “eixos” de desenvolvimento
(www.iirsa.org/esp/plan/Plan_de_ Accion.pdf):
•
Eixo Mercosul (São Paulo-Montevideo-Buenos AiresSantiago).
•
Eixo Andino (Caracas-Bogotá-Quito-Lima-La Paz).
•
Eixo Interoceânico Brasil-Bolivia-Peru-Chile (São Pau
lo-Campo Grande-Santa Cruz-La Paz-Ilo-MataraniArica-Iquique).
•
Eixo Venezuela-Brasil-Guyana-Suriname.
•
Eixo Multimodal Orinoco-Amazonas-Plata.
•
Eixo Multimodal del Amazonas (Brasil-ColombiaEcuador-Perú)
•
Eixo Marítimo do Atlântico.
171
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
•
Eixo Marítimo do Pacífico.
•
Eixo Neuquén-Concepción.
•
Eixo Porto Alegre-Jujuy-Antofagasta.
•
Eixo Bolívia-Paraguai-Brasil.
•
Eixo Peru-Brasil (Acre-Rondônia).
A IIRSA tem o apoio dos seguintes agentes financeiros
multilaterais: o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), a Corporación Andina de Fomento (CAF), o Fondo
Financiero para el Desarollo de la Cuenca del Plata
(FONPLATA) e o Banco Mundial (BM). Estes agentes têm
oferecido os meios financeiros para a implementação dos projetos.
Porém, o processo de integração via projetos administrados sob a IIRSA tem sido em grande parte liderado pelo BID.
O Banco tem inclusive organizado capacidades relevantes para
o desenvolvimento das condições institucionais conducentes
à implementação das políticas de integração no continente.
Neste sentido, é importante entender que o BID tem uma
estratégia de integração hemisférica, que, na verdade, vai
muito além dos projetos da IIRSA, conforme será descrito
abaixo.
3.3 – A Visão do “Novo Regionalismo”
Em 23 de julho de 2003, o BID adotou o seu “documento de estratégia” para a integração regional (“Integración regional: documento de estratégia” – GN-2245-1). Este documento (a seguir citado como DEIR) constitui uma das sete
grandes estratégias do BID nas seguintes áreas de atuação:
(1) modernização do Estado; (2) políticas de competitividade;
(3) desenvolvimento social; (4) integração regional; e (5)
meio ambiente.
Segundo o prólogo do DEIR, as sete grandes estratégias
172
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
compõem um “novo marco estratégico” do Banco. Este novo
marco estratégico, de acordo com o BID, “propõe ações para
melhorar o bem-estar da população da região, pondo ênfase
nos setores mais pobres”. Mas a realidade é bem outra: o BID
tem uma visão estreitamente economicista de desenvolvimento, muito distante de concepções mais abrangentes, que valorizam o desenvolvimento humano integral, inclusive as relações com o meio ambiente saudável, saberes tradicionais,
modos de vida e culturas de comunidades.
A estratégia de integração do BID é baseada em uma visão parcial do que se deve considerar como “integração” entre sociedades distintas. A visão de integração regional do BID
é anunciada como sendo a do chamado “novo regionalismo”.
O “novo regionalismo” descarta as possibilidades de desenvolvimento de políticas nacionais autônomas ou a prevalência
de um justo equilíbrio de interesses no processo de integração.
Assim, o BID afirma que “as velhas iniciativas de integração
do pós-guerra na América Latina e Caribe estavam desenhadas para respaldar uma estratégia de industrialização mediante a substituição de importações”. Este enfoque de desenvolvimento econômico, segundo o BID, “perdeu vigência com
a crise dos anos oitenta” (DEIR, p. 1).
A visão do BID é no sentido de que a integração regional
“agora é parte integral das reformas estruturais que os países
têm levado a cabo desde os anos oitenta”. Na mesma linha, o
BID entende que a integração regional deve “complementar
políticas orientadas para integrar as economia ao resto do
mundo, estimular mercados privados e modernizar instituições, com vistas a alcançar um bom posicionamento frente
as forças da globalização” (idem). Com isto, o BID abre corredores de acesso e condições vantajosas para empresas explorarem recursos naturais não-renováveis (minerais, gás,
petróleo) e de biodiversidade na região.
É evidente o intuito do BID de abrir mercados para gran173
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
des empresas da economia global, fomentando sua participação em projetos de infra-estrutura, com amplas facilidades
institucionais e financeiras, ao mesmo tempo em que descarta como “velhas” as políticas de desenvolvimento e integração
impulsionadas pelo Estado enquanto representante do povo e
promotor do interesse público.
3.4 – As Políticas de Integração Regional Apoiadas pelo
do BID
Com base nessa visão estreitamente economicista de
integração regional, que põe tudo a serviço da “globalização”
impessoal, o BID propõe linhas prioritárias de ação, dentre as
quais se destacam:
• criação de mercados regionais;
• abertura geral ao sistema de comércio mundial; e
• reforma regulatória (que o banco eufemisticamente
chama de “outros bens públicos regionais”) em áreas como
energia, telecomunicações e seguros
Nos campos de consolidação de mercados regionais, promoção de infra-estrutura, “fortalecimento” institucional e reforma regulatória, o BID propõe:
·
trabalhar em prol da eliminação as barreiras
tarifárias e não tarifárias;
·
apoiar processos de liberalização de serviços;
·
apoiar a “capacitação” de agentes negociadores nos
fóruns de política comercial para favorecer a transição ao livre comércio e mitigar seus efeitos negativos;
·
apoiar o avanço da IIRSA e do seu equivalente mais
ao norte, o “Plan Puebla Panamá”;
·
promover a coordenação de políticas
macroeconômicas entre países, inclusive a “compatibilização”
174
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
de políticas cambiais e harmonização de políticas fiscais e de
sistemas tributários; e
·
apoiar as negociações da ALCA e seus programas,
bem como os cursos de treinamento da OMC.
A estratégia do BID para a integração, portanto, é de
grande envergadura e abrange aspectos físicos e econômicos fundamentais em diversas sociedades do continente. O
BID chega mesmo a cogitar da “integração política”, entendendo como tal “a progressiva convergência [dos] sistemas
jurídicos e políticos [dos países], assim como a criação de
instâncias supranacionais que impulsionem essas convergências” (DEIR, p. 9).
O DEIR indica, também, que o BID adotará
prioritariamente a “Cooperação Técnica Regional” como meio
de atingir seus objetivos em apoio à IIRSA, ao Plan Puebla Panamá, à ALCA, a processos de integração no Caribe e aos programas do Instituto para la Integración de la América Latina
(INTAL), mantido pelo Banco em Buenos Aires. Além disso, o
BID utilizará recursos do FOMIN – Fondo Multilateral de
Inversiones (braço do BID, criado em 1993, dedicado a prover
financiamento ao setor privado) para financiar o envolvimento
de empresas privadas nas obras de infra-estrutura.
Na área de “liberalização de serviços”, o BID apoiará os
esforços em prol de quatro modalidades de liberalização: (a)
comércio transfronteiriço; (b) presença comercial; (c) consumo no exterior; e (d) movimento de pessoas físicas. É impressionante e sintomático que esta agenda do BID seja, na
verdade, uma cópia da política de liberalização de serviços da
OMC! Em outras palavras, a política para serviços do BID é
praticamente uma repetição do que está previsto no artigo I,
2 do chamado “Tratado Geral sobre Serviços” ou GATS (General Agreement on Trade in Services) da OMC. Ainda em consonância com o GATS, o BID põe ênfase especial na
liberalização de serviços financeiros, também priorizada pelo
FMI e pelo Banco Mundial. Assim, o BID passa a ser também
um meio de internalização ex ante de reformas comerciais,
175
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
que deveriam ser negociadas em fóruns apropriados, e não
diretamente implementadas por meio de esquemas de cooperação técnica de baixa visibilidade e accountability.
3.5 – Um Banco para a ALCA
É importante ressaltar que o BID tem liderado ativamente
o processo de integração regional nas Américas. E, como visto
acima, a integração física, baseada em grande parte nos megaprojetos Plan Puebla Panamá e IIRSA, atende a interesses de
grande empresas e protege os seus investimentos. Além disso,
o BID tem uma visão abrangente e articulada desses processos de integração e se beneficia das formulações e dos serviços de apoio técnico obtidos a partir do INTAL (ver:
www.iadb.org/intal/).
Em muitos aspectos, as reformas apoiadas pelo BID reproduzem as políticas preconizadas pelo FMI, pelo Banco Mundial, pela OMC e pelos defensores do modelo de integração
do tipo TLCAN (Tratado de Livre Comércio da América do
Norte) ou NAFTA (North American Free Trade Agreement),
que contém proteções exageradas aos investimentos privados
diante do interesse público (ver artigo 11 do NAFTA) e que
muitos querem ver reproduzidas em uma futura ALCA. Há
uma ênfase na subordinação da integração sub-regional à
integração regional e desta à “globalização”. Tanto assim que,
desde 1996, o INTAL trabalha sob uma nova visão conceitual
e operativa “que responde às mudanças ocorridas no cenário
da integração regional na América Latina e Caribe, assim
como frente à vigorosa corrente de globalização das economias surgida nos últimos anos a nível mundial”
(www.iadb.org/intal/objetivo.htm).
Nesse sentido, parece claro que o BID se vê como um
candidato natural a desempenhar o papel de banco, ou principal agente financeiro, da ALCA. De fato, o BID entende que
a ALCA pode ser construída aos poucos, em um processo
incremental – o que redundaria em baixa visibilidade da es176
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
tratégia como um todo e despertaria assim menos controvérsias. A visão incrementalista do BID está indicada no DEIR
(p. 12), nos seguintes termos: “No marco da construção da
ALCA, acordos bilaterais entre países ou sub-regiões podem
servir como apoio (“building blocs”), na medida em que neles
se produzam precedentes que sejam consistentes com um
acordo hemisférico [...]”.
Em resumo, em sua estratégia de integração, o BID afirma claramente que “apoiará a participação dos países em
iniciativas de integração como a ALCA, os acordos com a EU
[União Européia] e com países da Ásia, na medida em que o
solicitem” (DEIR, p. 16).
4 – Driblando a Representação Democrática de Interesses
4.1 O isolamento do BID e suas conseqüências
Não se pode deixar de observar que as políticas do BID,
além de operarem em favor da abertura de mercados lucrativos para empresas privadas, derivam de processos de decisão
opostos à representação democrática de interesses.
Embora tenha um escopo de atuação regional – o que,
em tese, poderia favorecer práticas mais democráticas – o BID
na verdade reproduz interesses, práticas e tendências comuns
às outras Instituições Financeiras Multilaterais, mormente no
que se refere a:
1- Relação com os governos dos países restrita a poucos
órgãos do Executivo;
2- Inexistência de mecanismos de responsabilização, prestação de contas e informação circunstanciada de livre e fácil
acesso sobre suas políticas e operações de crédito;
3- Inexistência de mecanismos de controle social sobre a
execução de suas políticas;
177
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
4- Insuficiência e ineficácia de políticas de salvaguarda
no planejamento e implementação de suas operações, reduzindo preocupações relativas a questões ambientais, populações indígenas, reassentamento involuntário e questões de
gênero, a meros formalismos;
5- Ao modo nebuloso como são apresentados os dados
sobre suas operações, não se tendo os elementos para compreender os reais objetivos e funções de algumas de suas operações no Documento de Assistência, por exemplo;
6- À distância entre as diretrizes políticas estabelecidas
nos projetos e a sua operacionalização;
7- À não previsão, na estrutura dos projetos, de condições físicas e financeiras para o seu monitoramento por parte
das organizações da sociedade civil.
4.2 Diálogos frustantes
Como se sabe, nos anos de 1990, vendo-se abalados por
uma crise de legitimidade, derivada da constatação de que
seus programas não haviam contribuído para a superação
dos acentuados níveis de pobreza nos países, os bancos multilaterais passaram a fomentar um novo tipo de relação com a
sociedade civil, sem a intermediação dos Estados nacionais.
O BID sempre foi resistente a processos participativos.
Porém, como estava sendo alvo de críticas em todo o mundo,
iniciou um movimento de aproximação com as organizações
da sociedade civil, através de ações combinadas de: formação
de opinião, construção de análises sobre políticas e estabelecimento de parcerias. Assim, o BID passou a utilizar mecanismos de interlocução informal com a sociedade civil, mas
sem efetividade em termos de incorporação dos pontos de vista
das comunidades ao conteúdo das políticas.
Com isso, o BID passou a realizar principalmente diálogos
informais de âmbito nacional e regional. Além disso, constituiu, mais recentemente, um Conselho de Assessores em al178
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
guns países e criou o Mecanismo de Investigação Independente (MII). Contudo, na prática, tais mecanismos não têm resultado mudanças no tratamento dado às populações e às organizações que atuam diretamente nas áreas de projetos implantados com recursos do BID.
É certo que o BID definiu uma política de participação.
Porém, na prática ela está mais afeta a um espaço meramente consultivo e problematizador, pois o poder efetivo de decisão sobre as políticas de assistência aos países se faz diretamente entre os governos e Banco. A participação efetiva da
sociedade é frustrada também porque os grupos sociais são
chamados para interagir com o Banco, em geral, apenas na
fase final das discussões, quando a política e sua estratégia já
foram definidas e acordadas entre Banco e o governo.
Igualmente defeituosos são os processos relativos à decisão e elaboração do “Documento de País”. No Brasil, participam de tais processos apenas funcionários do Banco e representantes dos Ministérios do Planejamento e da Fazenda, não
ocorrendo envolvimento sequer da casa do Congresso Nacional que deveria apreciar criteriosamente o “Country Paper”,
o Senado Federal. Vale salientar que a apreciação política das
operações de empréstimo é completamente precária, resumindo-se à consideração legislativa de Mensagem enviada pelo
Poder Executivo (Presidência da República/Ministério da Fazenda) ao Congresso Nacional, focalizando-se os aspectos meramente financeiros de cada operação de empréstimo, sem
que haja um debate mais amplo sobre o mérito das políticas
em causa, nem sobre o conteúdo das reformas vinculadas a
tais operações.
Por outro lado, a sociedade civil tem pouca informação
sobre o processo de construção do Documento de País e, quando tem, a informação vem calcada num diálogo pouco substantivo e restrito a temas que não são prioritários para o BID.
E quando provocado sobre temas prioritários, o Banco dialoga, mas não aprofunda os debates, e trata a questão de forma
fragmentada e não contextualizada.
179
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
As consultas regionais em geral, resumem-se à apresentação de informações sobre o Banco e discussão de temas específicos, sem guardar relação com as consultas anteriores.
Portanto, tais consultas não são mecanismos de negociação
ou de decisão. Ademais, a participação é descontínua e focalizada muitas vezes sobre ONGs previamente reconhecidas
pelo Banco como facilmente manipuláveis e cooptáveis e distanciadas de posicionamentos mais críticos, consolidados em
fóruns ou articulações da sociedade civil.
O Conselho Assessor é constituído por organizações e movimentos escolhidos pelo BID, podendo reunir-se mais de uma
vez por ano, por iniciativa deste. Porém, sua agenda é tão fluida quanto a das consultas regionais ( informes e temas). O
modo como a reunião é conduzida e as questões são colocadas faz parecer que a sociedade civil pode, de fato, influenciar
as políticas do Banco. Mas isto não passa de uma ilusão.
Por todos esses motivos, permanece falha a própria utilização dos instrumentos criados pelo BID, como o MII por
exemplo. Esse mecanismo foi criado no sentido de contribuir
para a mitigação dos impactos negativos identificados pela
população atingida pelo projeto em execução. O objetivo seria garantir a qualidade do resultado do projeto. Na realidade
seus procedimentos não são cumpridos do modo estabelecido, como pode-se identificar no histórico do Projeto da Usina
Hidrelétrica de Canabrava, no Brasil.
A impressão que se tem é que o BID ainda não assimilou, de um modo mais amplo, a necessidade de reformas em
seu interior que impliquem na institucionalização efetiva, de
instrumentos de diálogo com a sociedade, de transparência e
de acesso à informação.
Apaziguar os ânimos, oferecendo participação por meio
desses instrumentos, reafirmar retoricamente a política de participação, fazer promessas, demonstrar receptividade e preocupação quanto à demandas e denúncias apresentadas pela
sociedade civil, têm sido os resultados da prática diálogo in180
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
conseqüente promovido pelo BID. Ou seja, nada de concreto
para superar definitivamente os indicadores de pobreza e as
profundas desigualdades em que está envolta a região da ALC.
5 – Observações Finais
Contrariamente ao que se esperava, no caso do Brasil, o
governo Lula se esmerou, mais do que os governos precedentes, no estreitamento de relações com as Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs), demonstrando uma maior disposição de efetivar políticas assimiladas a partir de receituários divulgados por essas organizações. Hoje existem importantes similaridades e consensos entre a agenda do governo e as
agendas dos Bancos Multilaterais, ao ponto de tanto o Banco
Mundial como o BID terem assento oficial em espaços de discussão e definição de políticas nacionais, contribuindo formalmente para o direcionamento dos recursos orçamentários do Brasil. Para outros países da região – com exceções parciais, como a do governo de Kirchner, na Argentina – tem
sido difícil evitar que as IFMs detenham um grande poder de
determinar o conteúdo e o timing de reformas de políticas
públicas, inclusive as políticas sociais e os processos de
integração regional
Porém, com sua visão estreitamente economicista da
integração e do desenvolvimento social, o BID certamente não
é o melhor candidato a ser o banco da integração no continente americano ou para se encarregar de promover o bem-estar
dos povos da região. Existem outros mecanismos de cooperação financeira e não-financeira, ou novas e mais transparentes instituições poderiam ser criadas com maior
representatividade social, para tais finalidades. Por exemplo: a
sociedade pode reivindicar representação formal em órgãos
como o Comitê de Direção Executiva da IIRSA; as políticas sociais poderiam ser impulsionadas por esquemas cooperativos
financiados pela tributação de movimentação especulativa de
capitais, sob fiscalização da sociedade civil, e assim por diante.
181
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Além disso, para que o Banco cumprisse uma real política de participação que resultasse num melhor e mais aprimorado controle social de suas ações em cada país seria de
extrema importância a participação de legisladores eleitos pelo
povo e da sociedade civil no debate sobre o Documento de
País. Seria indispensável o acesso às informações detalhadas
sobre os fundamentos das operações de ajuste estrutural e
setorial (sobretudo os memorandos de liberação de parcelas
de empréstimo), aos documentos sobre projetos (memorandos, relatórios e avaliações), às discussões e deliberações do
Conselho Diretor e das Assembléias de Governadores bem
como às avaliações de políticas nacionais e uma prestação de
contas nos Parlamentos sobre suas atividades no país.
Deveria, também, ser adotado o princípio de que todos
os documentos do Banco, relativos aos países tomadores de
empréstimo, são públicos e necessitam estar sempre disponíveis no idioma de cada país aos quais disserem respeito as
diversas políticas. Igualmente, deveria ser seguido o princípio
de que a sociedade civil é sujeito estratégico para fins de
monitoramento das políticas e projetos do Banco.
As instituições devem servir às legítimas aspirações das
comunidades – inclusive suas avaliações autônomas sobre os
impactos ambientais e sociais dos projetos de infra-estrutura
–, e não simplesmente aos interesses de grandes empresas em
auferir lucros para poucos.
182
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
BID FAVORECE ATIVAMENTE A PPP1
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
tem se movimentado com desenvoltura em apoio à viabilização
de esquemas de parceria público-privada (PPP) no Brasil.
Segundo o jornal Valor Econômico (16/06), está sendo
preparada a criação de um fundo de ações, apoiado pelo BID
com créditos de US$ 1 bilhão a US$ 5 bilhões, para dar garantias aos investidores privados, que se beneficiarão dos esquemas de PPP. O BID e o governo, segundo o mesmo jornal,
pretendem atrair também bancos estrangeiros.
Além disso, o governo planeja a criação de um outro
“fundo garantidor” (capitalizado com ações de primeira linha, provavelmente incluindo ações de importantes empresas públicas brasileiras) a ser administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
RISCOS DOS ESQUEMAS DE PPP
·
risco tecnológico (o empreendimento pode se tornar
defasado por inovação tecnológica não absorvida, ficando o
público sem o serviço de qualidade e sem que possa beneficiar-se de um ajuste de preço para menos);
·
risco de demanda (pode cair a demanda pelo serviço,
permanecendo a obrigação de o Estado remunerar o ente privado);
1
Texto originalmente publicado como “Informe RB nº 12/2004” em 16/
06/2004, em http://www.rbrasil.org.
183
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
·
risco de competição (competidores, inclusive com capital nacional, podem oferecer serviços melhores ou mais
baratos, que não poderão ser preferidos pelo Estado para oferta
ao público durante o período de contrato de PPP);
·
risco cambial (a depreciação da moeda local pode trazer prejuízos quando o financiamento do empreendimento é
em moeda estrangeira):
·
risco de inadimplência (pode ocorrer elevada taxa de
inadimplência da parte dos consumidores, permanecendo a
obrigação de o Estado remunerar o ente privado);
·
risco regulatório (o Estado pode, em resposta ao clamor público, reformar a regulação do setor de atividades em
causa, o que poderá importar em responsabilidade do Estado
para indenizar o ente privado, caso o equilíbrio financeiro do
contrato de PPP seja atingido);
·
risco de impacto social ou ambiental negativo (as
leis de PPP, como é caso do texto do PL nº 2546 / 2003, muitas vezes não prevêem a obrigatoriedade de consultas públicas ou de licenciamento ambiental, permanecendo privados
e pouco transparentes os procedimentos de decisão, com
maiores chances de os projetos terem impactos como o aumento de preços dos serviços, a repressão salarial, o desemprego e a degradação ambiental).
A Rede Brasil distribuiu a todos os Deputados federais e
a todos os Senadores documento em que analisa vários dos
riscos da PPP, resumidos no quadro cima. Os mecanismos
institucionais para administrar tais riscos não estão claros no
projeto de lei que tramita no Congresso Nacional para a criação da PPP (ver Informe RB nº 4/2004, no endereço: http:/
/www.rbrasil.org.br/publicacoes/artigos/rB1VBDqZuO/
Informe_04.doc).
184
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
Por outro lado, não há discussão suficiente sobre as conseqüências da criação dos “fundos garantidores” (também
chamados “fundos fiduciários”) e sua utilização como meios de oferecer garantias extremamente generosas, com duração de muitas décadas (o governo acena com 45 anos e as
empresas querem 70 anos) a grandes investidores privados.
Se não forem apropriadamente regulamentados, tais fundos poderão se constituir em mais um componente da ciranda financeira, da qual o Brasil foi feito escravo, ao destinar mundos e fundos ao pagamento de uma dívida pública
inesgotável.
185
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
186
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
BID: O BANCO DA ALCA?
1 – Introdução
Este informe tem por objetivo realizar uma breve análise da estratégia de integração do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID). O BID tem oferecido apoio essencial ao muito criticado “Plan Puebla Panamá”, bem
como à “Integração da Infraestrutura Regional na América do Sul” (IIRSA) e, aparentemente, aspira a se tornar o
banco da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA),
defendida pelos Estados Unidos.
2 – A IIRSA
Todos sabem que está em curso um processo no qual
tem sido negociada a integração da América Latina, em
várias dimensões. Uma dessas dimensões é a da “integração
física”, que tem sido impulsionada por processos associados à chamada IIRSA (ver www.iirsa.org).
A IIRSA é um mega-projeto, que reúne diversos projetos sub-regionais de construção de estradas, hidrovias,
barragens e outras obras, nos seguintes “eixos” de desenvolvimento (www.iirsa.org/esp/plan/Plan_de_ Accion.pdf):
·
·
·
Eixo Mercosul (São Paulo-Montevideo-Buenos
Aires-Santiago).
Eixo Andino (Caracas-Bogotá-Quito-Lima-La Paz).
Eixo Interoceânico Brasil-Bolivia-Peru-Chile (São
Paulo-Campo Grande-Santa Cruz-La Paz-IloMatarani- Arica-Iquique).
187
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
·
·
·
·
·
·
·
·
·
Eixo Venezuela-Brasil-Guyana-Suriname.
Eixo Multimodal Orinoco-Amazonas-Plata.
Eixo Multimodal del Amazonas (Brasil-ColombiaEcuador-Perú)
Eixo Marítimo do Atlântico.
Eixo Marítimo do Pacífico.
Eixo Neuquén-Concepción.
Eixo Porto Alegre-Jujuy-Antofagasta.
Eixo Bolívia-Paraguai-Brasil.
Eixo Peru-Brasil (Acre-Rondônia).
A IIRSA tem o apoio dos seguintes agentes financeiros multilaterais: o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Corporación Andina de Fomento (CAF), o
Fondo Financiero para el Desarollo de la Cuenca del Plata
(FONPLATA) e o Banco Mundial (BM). Estes agentes têm
oferecido os meios financeiros para a implementação dos
projetos.
Porém, o processo de integração via projetos administrados sob a IIRSA tem sido em grande parte liderado
pelo BID. Este banco tem inclusive organizado capacidades
relevantes para o desenvolvimento das condições
institucionais conducentes à implementação das políticas
de integração no continente. Neste sentido, é importante
entender que o BID tem uma estratégia de integração
hemisférica, que, na verdade, vai muito além dos projetos
da IIRSA, conforme será descrito abaixo.
3 – A Integração É Uma de Sete Estratégias
Em 23 de julho de 2003, o BID adotou o seu “documento de estratégia” para a integração regional
(“Integración regional: documento de estratégia” – GN-
188
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
2245-1). Este documento (a seguir citado como DEIR)
constitui uma das sete grandes estratégias do BID nas seguintes áreas de atuação: (1) modernização do Estado; (2)
políticas de competitividade; (3) desenvolvimento social;
(4) integração regional; e (5) meio ambiente.
É estranho que o BID veja-se envolvido em áreas como
a “modernização do Estado”, quando não deveria imiscuirse em assuntos com evidentes implicações de natureza política.
De qualquer modo, segundo o prólogo do DEIR, as
sete grandes estratégias compõem um “novo marco estratégico” do Banco. Este novo marco estratégico, de acordo
com o BID, “propõe ações para melhorar o bem-estar da
população da região, pondo ênfase nos setores mais pobres”. Mas a realidade é bem outra: o BID tem uma visão
estreitamente economicista de desenvolvimento, muito distante de concepções mais abrangentes, que valorizam o desenvolvimento humano integral, inclusive as relações com
o meio ambiente saudável, saberes tradicionais, modos de
vida e culturas de comunidades.
4 – A Visão do “Novo Regionalismo”
A estratégia de integração do BID é baseada em uma
visão parcial do que se deve considerar como “integração”
entre sociedades distintas. A visão de integração regional
do BID é anunciada como sendo a do chamado “novo regionalismo”. O “novo regionalismo” descarta as possibilidades de desenvolvimento de políticas nacionais autônomas ou a prevalência de um justo equilíbrio de interesses
no processo de integração. Assim, o BID afirma que “as
velhas iniciativas de integração do pós-guerra na América
Latina e Caribe estavam desenhadas para respaldar uma
189
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
estratégia de industrialização mediante a substituição de
importações”. Este enfoque de desenvolvimento econômico, segundo o BID, “perdeu vigência com a crise dos anos
oitenta” (DEIR, p. 1).
A visão do BID é no sentido de que a integração regional “agora é parte integral das reformas estruturais que
os países têm levado a cabo desde os anos oitenta”. Na mesma linha, o BID entende que a integração regional deve
“complementar políticas orientadas para integrar as economia ao resto do mundo, estimular mercados privados e
modernizar instituições, com vistas a alcançar um bom
posicionamento frente as forças da globalização” (idem).
Com isto, o BID abre corredores de acesso e condições vantajosas para empresas explorarem recursos naturais nãorenováveis (minerais, gás, petróleo) e de biodiversidade na
região.
É evidente o intuito do BID de abrir mercados para
grandes empresas da economia global, fomentando sua participação em projetos de infra-estrutura, com amplas facilidades institucionais e financeiras, ao mesmo tempo em
que descarta como “velhas” as políticas de desenvolvimento
e integração impulsionadas pelo Estado enquanto representante do povo e promotor do interesse público.
5 – As Políticas Apoiadas pelo do BID
Com base nessa visão estreitamente economicista de
integração regional, que põe tudo a serviço da “globalização”
impessoal, o BID propõe linhas prioritárias de ação, dentre
as quais se destacam:
·
·
190
criação de mercados regionais;
abertura geral ao sistema de comércio mundial;
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
·
e
reforma
regulatória
(que
o
banco
eufemisticamente chama de “outros bens públicos regionais”) em áreas como energia, telecomunicações e seguros
Nos campos de consolidação de mercados regionais,
promoção de infra-estrutura, “fortalecimento” institucional
e reforma regulatória, o BID propõe:
·
trabalhar em prol da eliminação as barreiras
tarifárias e não tarifárias;
·
apoiar processos de liberalização de serviços;
·
apoiar a “capacitação” de agentes negociadores
nos fóruns de política comercial para favorecer
a transição ao livre comércio e mitigar seus efeitos negativos;
·
apoiar o avanço da IIRSA e do seu equivalente
mais ao norte, o “Plan Puebla Panamá”;
·
promover a coordenação de políticas
macroeconômicas entre países, inclusive a
“compatibilização” de políticas cambiais e
harmonização de políticas fiscais e de sistemas
tributários; e
·
apoiar as negociações da ALCA e seus programas,
bem como os cursos de treinamento da OMC.
A estratégia do BID para a integração, portanto, é de
grande envergadura e abrange aspectos físicos e econômicos fundamentais em diversas sociedades do continente. O
BID chega mesmo a cogitar da “integração política”, entendendo como tal “a progressiva convergência [dos] sistemas jurídicos e políticos [dos países], assim como a criação de instâncias supranacionais que impulsionem essas
convergências” (DEIR, p. 9).
191
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
O DEIR indica, também, que o BID adotará
prioritariamente a “Cooperação Técnica Regional” como
meio de atingir seus objetivos em apoio à IIRSA, ao Plan
Puebla Panamá, à ALCA, a processos de integração no
Caribe e aos programas do Instituto para la Integración de
la América Latina (INTAL), mantido pelo Banco em Buenos
Aires. Além disso, o BID utilizará recursos do FOMIN –
Fondo Multilateral de Inversiones (braço do BID, criado
em 1993, dedicado a prover financiamento ao setor privado) para financiar o envolvimento de empresas privadas
nas obras de infra-estrutura.
Na área de “liberalização de serviços”, o BID apoiará
os esforços em prol de quatro modalidades de liberalização:
(a) comércio transfronteiriço; (b) presença comercial; (c)
consumo no exterior; e (d) movimento de pessoas físicas.
É impressionante e sintomático que esta agenda do BID
seja, na verdade, uma cópia da política de liberalização de
serviços da OMC! Em outras palavras, a política para serviços do BID é praticamente uma repetição do que está
previsto no artigo I, 2 do chamado “Tratado Geral sobre
Serviços” ou GATS (General Agreement on Trade in Services)
da OMC. Ainda em consonância com o GATS, o BID põe
ênfase especial na liberalização de serviços financeiros, também priorizada pelo FMI e pelo Banco Mundial. Assim, o
BID passa a ser também um meio de internalização ex ante
de reformas comerciais, que deveriam ser negociadas em
fóruns apropriados, e não diretamente implementadas por
meio de esquemas de cooperação técnica de baixa visibilidade e accountability.
192
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
6 – CONCLUSÃO
O BID tem liderado ativamente o processo de
integração regional nas Américas. A integração física, baseada em grande parte nos mega-projetos Plan Puebla Panamá e IIRSA, atende a interesses de grande empresas e
protege os seus investimentos. Além disso, o BID tem uma
visão abrangente e articulada desses processos de integração
e se beneficia das formulações e dos serviços de apoio técnico obtidos a partir do INTAL (ver: www.iadb.org/intal/).
Em muitos aspectos, as reformas apoiadas pelo BID
reproduzem as políticas preconizadas pelo FMI, pelo Banco Mundial, pela OMC e pelos defensores do modelo de
integração do tipo TLCAN (Tratado de Livre Comércio da
América do Norte) ou NAFTA (North American Free Trade
Agreement), que contém proteções exageradas aos investimentos privados diante do interesse público (ver artigo
11 do NAFTA) e que muitos querem ver reproduzidas em
uma futura ALCA. Há uma ênfase na subordinação da
integração sub-regional à integração regional e desta à
“globalização”. Tanto assim que, desde 1996, o INTAL trabalha sob uma nova visão conceitual e operativa “que responde às mudanças ocorridas no cenário da integração regional na América Latina e Caribe, assim como frente à
vigorosa corrente de globalização das economias surgida
nos últimos anos a nível mundial” (www.iadb.org/intal/
objetivo.htm).
Nesse sentido, parece claro que o BID se vê como um
candidato natural a desempenhar o papel de banco, ou
principal agente financeiro, da ALCA. De fato, o BID entende que a ALCA pode ser construída aos poucos, em um
processo incremental – o que redundaria em baixa visibilidade da estratégia como um todo e despertaria assim menos controvérsias. A visão incrementalista do BID está
193
Monitorando as
Instituições Financeiras Multilaterais
indicada no DEIR (p. 12), nos seguintes termos: “No marco da construção da ALCA, acordos bilaterais entre países
ou sub-regiões podem servir como apoio (“building blocs”),
na medida em que neles se produzam precedentes que sejam consistentes com um acordo hemisférico [...]”.
Em resumo, em sua estratégia de integração, o BID
afirma claramente que “apoiará a participação dos países
em iniciativas de integração como a ALCA, os acordos com
a EU [União Européia] e com países da Ásia, na medida
em que o solicitem” (DEIR, p. 16).
Porém, com sua visão estreitamente economicista da
integração e do desenvolvimento, o BID certamente não é
o melhor candidato a ser o banco da integração no continente americano. Existem outros fundos, ou novos e mais
transparentes mecanismos financeiros poderiam ser criados com maior representatividade social, para essa finalidade. A sociedade deve acompanhar o “avanço” do processo de integração, reivindicando, inclusive, representação formal em órgãos como o Comitê de Direção Executiva da IIRSA. As instituições devem servir às legítimas aspirações das comunidades – inclusive suas avaliações autônomas sobre os impactos ambientais e sociais dos projetos
de infra-estrutura –, e não simplesmente aos interesses de
grandes empresas em auferir lucros para poucos.
194
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