o livro didático no contexto de transição dos Paradigmas da história Seria ingenuidade pensar que a produção didática brasileira mantém-se totalmente alheia ao debate teórico e historiográfico que ocorre em âmbito nacional e internacional. O livro didático absorve, em maior ou menor medida, as mudanças que ocorrem no debate acadêmico nacional, no mercado editorial, nos programas de pós-graduação, etc. Esse movimento historiográfico, por sua vez, articula-se ao debate acadêmico internacional através das diversas abordagens discutidas na Europa e nos Estados Unidos. A recente produção historiográfica brasileira estabeleceu diálogo com a nova história francesa, com a historiografia social inglesa e tem revisto com criticidade sua associação com a produção marxista. Nessas articulações, têm sido ampliados os instrumentos de análise, abrindo-se inúmeras possibilidades de pensar o ensino de história. Cabe questionar, pois, em que medida essas novas tendências no campo da produção historiográfica acadêmica, verifica das acentuadamente na década de 1980, fazem eco no livro didático produzido na década de 1990. Se, como afirmei anteriormente, o livro didático tem sido visto como o principal, senão o único, instrumento pedagógico para o ensino de história, vale a pena conferir de que forma as novas orientações historiográficas sistematizadas em nível acadêmico repercutem na produção didática, de consumo direto no ensino fundamental e médio. ? correto pensar que o livro didático é o elo de ligação entre a produção acadêmica e o professor de história, cujas possibilidades de leitura - seja por razões financeiras, de formação, de tempo, etc. -, não vão, em geral, muito além dos limites do livro didático distribuído gratuitamente pelas editoras. As obras didáticas adotadas para análise nos limites deste trabalho não esgotam a produção brasileira da década de 1990. Antes, foram buscadas obras representativas de duas situações: as de uso mais acentuado pelos professores das redes municipal e estadual de ensinol1 de Passo Fundo e obras cuja proposta pedagógica aparentasse, através do título e apresentação, ou mesmo pela projeção do autor, uma inovação teórica e metodológica. Acredito que os livros examinados, seja do ensino fundamental ou do ensino médio, refletem em boa medida as tendências teóricopedagógicas atuais. As obras estão indicadas no quadro a seguir, pela ordem de preferência dos professores. 1 Para a defini ão das obras da rede municipal (ensino fundamental). utilizei-me de um levantamento realizado pela professora lronita Machado junto à Secretaria Municipal de Educação de Passo Fundo. As obras do ensino médio relativas apenas à rede estadual são fruto de observação no acompanhamento de estágios que realizo através da Universidade de Passo Fundo. Ver segunda parte do livro. Quadro 1 - Apresentação das obras e autores analisados Autores Obras Grau Ano 2? 1995 - 2. ed. Gilberto Cotrim História e consciência do Brasil Francisco de Assis Silva História do Brasil Florival Cáceres História do Brasil Gilberto Cotrim e ?lvaro D. de Alencar História para uma geração consciente Nelson Piletti e Claudino Pileni História e vida I? Adhelllar Marques. Flávio Beruni e Ricardo Faria História: os caminhos do homem Ricardo Dreguer e Eliete Toledo '. Sonia do Carmo e Eliane Souto '" Carlos Guilherme Mota e Adriana 1992 2? 1993 1990 - 7. ed. E d i S a M o M oS Obs. Obra única Obra única Obra única a Coleção 5' a 8' série - quatro volumes 1990 A t Coleção 5" a 8' série - quatro volumes I? 1993 - 3. ed. L ê Coleção 5' a 8' série - quatro volumes História-cotidiano e mentalidades História passado e presente I? 1995 A t I? 1994 - 2. ed. A t História e Civilização I? 1995 - 2. ed. ? t Coleção 5' a 8' série - quatro volumes Coleção 5' a 8' série - quatro volumes Coleção 5" a 8' série - quatro volumes Lopez ** Obras que se enquadram no segundo critério de seleção adotado: a aparência inovadora. •• Obra que foi contemplada na análise em virtude do renome de Carlos Guilherme Mota na produção historiográfica nacional. embora não tenha sido citada por nenhum professor. Definidas e justificadas as obras, explicitarei os procedimentos metodológicos e questões norteadoras que orientam a análise dos livros didáticos. Não constitui propósito deste estudo realizar propriamente uma análise de conteúdo das obras, embora se tenha utilizado tal procedimento como via de passagem para fazer referências a respeito das opções ou filiações teóricas dos autores. Busca-se, pois, fazer comparações entre a proposta pedagógica do livro didático e os enunciados básicos das três tendências paradigmáticas teorizadas no capítulo anterior - positivismo, marxismo e nova história - no sentido de verificar de que forma essas tendências se apresentam nas obras. Alguns pressupostos básicos conduzem metodologicamente a investigação: •todos os livros didáticos corporificam determinado projeto pedagógico. A concepção de história ou de ensino do autor é fruto de uma opção teórica que, implícita ou explicitamente, está presente na obra; •o autor de livros didáticos, assim como o historiador, é essencialmente um selecionador. Enquanto este último seleciona, dentre incontáveis manifestações humanas, aquelas que julga serem mais importantes para o processo histórico, o primeiro privilegia, entre os já consagrados fatos históricos, aqueles que julga dignos de serem repassados através do ensino fundamental e médio; •essa seleção não é aleatória; ela é feita por autores situados historicamente, condicionados pelos mais diversos interesses - a sua época, a classe à qual pertencem, o mercado editorial, enfim, pelos próprios limites da teoria pela qual optaram. O cruzamento das propostas do livro com as tendências paradigmáticas irá sendo construído ao longo da análise, através de questões específicas oriundas do debate teórico e historiográfico atual. Nesse sentido, foram selecionadas algumas questões norteadoras que concentram maior probabilidade de oferecer respostas às indagações da investigação, uma vez que se manifestaram de forma acentuada na polêmica do campo das mudanças paradigmáticas. Essas questões estão agrupadas em torno de cinco eixos centrais explicitados em seqüência: Concepção de história •Que proposta o autor oferece para o ensino de história: o estudo do passado? A memorização de fatos e datas? A relação passado-presente? A reflexão e transformação social? •Concepção de ensino •O autor propõe aos professores e alunos a condição de meros executores das propostas contidas no livro didático ou aponta a necessidade de caminharem como sujeitos no processo de ensino-aprendizagem? •O livro se limita a apresentar a informação pronta e acabada, a verdade histórica, ou possibilita a compreensão do processo de construção da história, dando a conhecer as práticas e relações sociais que interagem na produção historiográfica? • O livro didático possibilita a multiplicidade de leituras e interpretações históricas ou constitui-se em espaço privilegiado para apenas um discurso e uma história? Periodização • Há o enfrentamento de questões referentes à temporalidade, tais como o etapismo, a evolução linear e progressiva da história? • Propõe o rompimento com a cronologia tradicional baseada no esquema quadripartite francês ou no modelo marxista da evolução dos modos de produção? • O livro estabelece uma relação crítica com a tradicional segmentação passado-presente-futuro? • Promove o estudo da história a partir de problemáticas do presente, como forma de dar sentido à análise histórica? •Objetos, fontes e bibliografias • A ampliação do universo de objetos e temáticas verificado na produção historiográfica especializada é absorvida pelo livro didático? São contemplados temas como sexualidade, lazer, família, mulheres, velhice, feitiçaria, criança, saúde, loucura, etc.? • O livro oferece aos alunos e professores possibilidades de diálogo com diferentes fontes historiográficas, tais como jornais, revistas, filmes, músicas, documentos, etc.? • O referencial bibliográfico incorporado ao livro didático apresenta obras orientadas pela nova história francesa ou pela historiografia social inglesa? Sujeitos históricos • Qual é o tratamento dispensado aos sujeitos históricos? Há exaltação de heróis? Há preocupação em resgatar a história dos excluídos historicamente, as ditas minorias? A ênfase no estudo das camadas populares recai na passividade ou na resistência à dominação? Busca destruir mitos, tais como a democracia racial, o mito da passividade popular, etc.? Essas são algumas das inúmeras preocupações que norte iam a análise das obras. Ainda que estejam apresentadas, para fins de exposição, de maneira dissociada, são questões profundamente imbricadas que, em seu conjunto, poderão contribuir para a explicitação das principais tendências paradigmáticas subjacentes aos livros didáticos em questão. Concepção de história Os livros didáticos tomados como objeto de análise não constituem um corpo homogêneo de idéias e interpretações. A sistematização das informações que os livros oferecem sobre essa questão mostrou-se bastante complexa, em virtude da diversidade de posições entre os autores e das próprias contradições internas das obras. Posto isso, apresento no Quadro 2 uma tentativa de síntese das posições dos autores, com base no discurso que utilizam na apresentação de suas obras. Quadro 2 - Síntese das concepções de história subjacentes às obras Concepção de história Grupo I - História Enfoque entendida Fatos Autores/obras - PILETTI e PILETTI/ como estudo do passado: verificação de causas e conseqüências de fatos históricos. históricos História e Vida. - CARMO e SOUTO/Historia passado e presente Grupo 2 - Compreende a história Produção -COTRIMlHistória e Consciência do Brasil material da vida - SILVA/ História do Brasil como possibilidade de transformação social; estudo da ação dinâmica dos homens em seu espaço social, econômico. político, etc. -MARQUES, BERUTTI e FARIA. História: os caminhos do homem. - C?CERESl História do Brasil. - COTRIM e ALENCAR/ História para uma geração consciente. Grupo 3 - Busca no passado explica- Cotidiano ções e soluções para as indagações do presente, através do estudo dos acontecimentos do dia-a- dia. - DREGUER e TOLEDO/ Cotidiano e Mentalidades. Grupo 4 - Propõe a compreensão Experiência - MOTA e LOPEZ/ da trajetória do homem - como viveram. o que pensaram e construíram - sem, no entanto, explicitar intenções para tal humana História e civilização. proposta. Os grupos 3 e 4 foram apresentados em separado no quadro a fim de evitar qualquer arbitrariedade. entretanto aproximam-se consideravelmente no que se refere ao enfoque. Conforme o exposto, as concepções de história podem ser classificadas em quatro grupos. Grupo 1 o primeiro grupo é constituído por aqueles autores que concebem a história como estudo dos fatos passados, narrados principalmente a partir de fontes documentais escritas. Ao historiador cabe a tarefa de fazer a leitura das fontes, construir a verdade histórica e dela tornar-se guardião. A postura desses autores expressa-se nas seguintes afirmações: "A história é contada principalmente por meio do estudo dos documentos escritos, que podem ser lidos e entendidos pelo historiador. Se um povo deixou apenas sinais não escritos sobre sua vida, torna-se difícil para o historiador contar com precisão a história desse povo"2 (grifo meu). Em outra obra, aparece o seguinte posicionamento: "Os historiadores são, portanto, os guardiões da memória da humanidade. Seu trabalho é descobrir o máximo possível a respeito dos fatos que já aconteceram para registrá-los e assim impedir que sejam esquecidos"3. Essa interpretação da história permite inferir a posição teórica subjacente a esses livros didáticos, ou seja, tratase de um enfoque positivista, que se fundamenta em premissas, tais como: a crença em torno da verdade histórica; o privilégio dos fatos; a proposição de uma história dada, acabada e não construída socialmente e, finalmente, a concepção de história arrumada factualmente num esquema linear de causas e conseqüências. Essa última questão encontra e textualmente explícita no conceito de história que o autor apresenta: "A história estuda os fatos do passado e tenta verificar suas causas (por que ocorreram) é suas conseqüências (os acontecimentos que provocaram)"4. 2 PILETTI. Nelson: PILETTI. Claudino. História e vida. São Paulo: ?tica, 1990. v, 1. p.8. 3 CARMO. Sonia do: COUTO. Eliane. História passado e presente. 2. ed. São Paulo: Atual. 1994. v. l. p. 7. 4 PILETTI.: PILETTl. Op. cit., p. 7. Grupo 2 o segundo grupo de autores, bem mais numeroso, coloca-se, ao menos no âmbito do discurso, diante de uma concepção de história que poderia ser denominada militante, isto é, defende a proposição de que o sentido da história é a transformação social. Nas palavras de um dos autores: "Estudar história não é decorar um amontoado de datas, nomes ou reproduzir fatos e feitos. Estudar nossa história é adquirir consciência do Brasil. Consciência do que fomos para transformar o que somos" 5. Apesar de, no conjunto do livro, não se evidenciar uma renovação radical, essas obras apresentam tentativas de operacionalizar um ensino de história que denote uma relação dinâmica entre homem e natureza. Assim, os autores indicam conceitos de história da seguinte ordem: "A história estuda a ação transformadora do homem em seu espaço social " . Ou ainda, "história é o resultado da ação dinâmica de todo ser humano, independente da cor, origem, credo, religião, posição socioeconômica, ideologia, etc."7 6 Pode-se observar, nesse grupo de autores, a utilização de expressões tipicamente de orientação marxista, tais como ideologia, elite dominante, modos de produção, etc. Uma das obras apela quase que literalmente para o pensamento marxiano quando afirma que "o homem começa a estabelecer diferença entre ele e os animais a partir do ponto em que começa a produzir"8. Marx e Engels, em A ideologia alemã, diziam: "Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal"9 Grupos 3 e 4 o terceiro e o quarto grupos de autores enfatizam a necessidade de contemplar, no estudo da história, a vida dos homens em sociedade, resgatando aspectos de sua vida cotidiana, tais como vestimentas, alimentação, moradia, enfim, a experiência humana. A diferença é que, na primeira proposta, essas questões são centrais, ao passo que, na segunda, esses aspectos cotidianos são inseridos como apêndices de uma história essencialmente econômica e social. Dessa forma, os autores afirmam: "Estudamos história para saber de que maneira os homens e as mulheres do passado viveram. Ou seja, tudo o que escreveram, construíram, cantaram e pintaram desde que começaram a ser diferentes dos outros animais"10. Os autores do terceiro grupo utilizam-se de um discurso totalmente orientado pela nova história francesa, como é demonstrado na seguinte passagem do livro: A maioria dos livros didáticos de história é semelhante ao telescópio(. .. ), analisam a história dos homens através dos grandes temas da economia, da política e da sociedade. Nosso livro, porém é mais parecido com o microscópio( .. .): analisa a história através de pequenos acontecimentos do dia-a-dia dos homens, isto é, os que dizem respeito à saúde, família, educação, sexualidade, moradia11 Le Goff ilustra esse enfoque historiográfico que privilegia os temas da vida privada como sendo a história com lupa12. Concepção de ensino Um dos debates mais polêmicos e atuais em termos de ensino é o que opõe transmissão x construção do conhecimento. Tradicionalmente, tem-se instituído uma espécie de divisão do trabalho entre a educação básica e a educação superior, cabendo a esta última tarefa de produzir o conhecimento e, à primeira, a tarefa de socializá-lo. Inúmeras vozes têm se manifestado contra tal segmentação, apontando as possibilidades de constituir-se, também no ensino fundamental e médio, espaços de construção do conhecimento. Sendo o livro didático um instrumento privilegiado de socialização do conhecimento produzido no meio 5 6 7 8 COTRIM. Gilberto. História e consciência do Brasil. 2? grau. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 1995. p. 4. MARQUES: BERUITI: FARIA. História: os caminhos do homem. 3. ed. Belo Horizonte: Ed. Lê. 1993. p. 10. SILVA. Francisco de Assis. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Modema. 1992. p.3. MARQUES: BERUTI1: FARIA. Op. cit.. p. 11. 9 MARX. K.: ENGELS. F. Op. cit., p. 27. 10 MOTA. Carlos Guilherme: LOPEZ. Adriana. História e civilização. 2. ed. São Paulo: ?tica. 1995. p. 4. 11 DREGUER, Ricardo: TOLEDO. Eliete. História. cotidiano e mentalidades. São Paulo: Atual. 1995. p. 5. 12 Ver LE GOFF (1995). Op. cit. acadêmico, é pertinente verificar de que forma os conteúdos estão sendo veiculados. A análise realizada nas obras oferece indicativos para a constituição de duas linhas metodológicas. Um primeiro grupo, constituído pela maioria dos autores13, apresenta uma proposta pedagógica que não oferece espaço para a multiplicidade de leitura historiográfica, para o confronto ou divergência de opiniões. Trata-se de um enfoque histórico único e simplificado, onde apenas um discurso se impõe e toma o ar de verdade. Em raras ocasiões, os autores colocam em discussão determinadas versões historiográficas e, quando o fazem, é para criticar uma visão já superada e substituí-Ia por outra, com o mesmo tom de verdade definitiva, como ilustra esta afirmação do autor: "A historiografia oficial brasileira criou o mito da independência pacífica do Brasil, mas esta pacificidade só existiu nos livros ufanistas de história. Algumas províncias não aceitaram o governo do Rio de Janeiro e se rebelaram (. .. )"14. Os autores, em geral, não oferecem diferentes e divergentes posições diante do conhecimento histórico. Não há preocupação em possibilitar aos professores e alunos o acesso ao saber na condição de sujeitos; esses são tratados como consumidores de informações, sendo o livro didático o canal de transmissão. Criticando tal concepção de ensino, Selva Guimarães Fonseca destaca que ela pode representar, na prática, inibir a autonomia, a criatividade e a subjetividade do professor. Separam o sujeito do objeto. O saber aparece como algo externo à escola, produzido cientificamente em outras esferas, consagrando, assim, uma concepção de ciência descolada do social e de uma história factual e excludente15• Um segundo grupo de autores,16, em número reduzido, propõe uma metodologia dinâmica e crítica, oferecendo mais de uma visão sobre determinados temas. Apresenta a tentativa de romper com a reprodução de uma história única, desafiando professores e alunos a se colocarem como sujeitos do processo de ensino-aprendizagem, assumindo o debate e o posicionamento crítico como regra de convivência escolar. Procura demonstrar que a história não é dada, mas construída socialmente e reconstituída segundo a ótica do historiador. Isso se manifesta tanto no discurso dos autores quanto no desenvolvimento da obra. Tratando do trabalho do historiador, aparece a seguinte afirmação: "O historiador, no seu trabalho, utiliza um método para conhecer uma determinada sociedade (...) As interpretações dependem, portanto, do historiador, das fontes, da análise que se faz das fontes e da realidade na qual o historiador está inserido"17. Há, pois, uma deliberada intenção dos autores em demonstrar a própria historicidade da história, evidenciando para o estudante os mecanismos da construção da historiografia. A adoção dessa linha metodológica para o ensino de história abre perspectivas de formar um aluno atuante que, conhecendo e compreendendo os processos de produção do conhecimento histórico, concebe a história como construção feita por diferentes sujeitos, dotados de interesses, vontades e intenções contraditórias. O pluralismo, a diversidade de idéias e posturas, tão aceitos no âmbito da academia, passam a merecer espaço também em alguns livros didáticos. Rompe-se a discrepância entre a história produzida no meio acadêmico e a difundida nas escolas de ensino fundamental e médio através das obras didáticas. Periodização Os historiadores têm sido capazes de inovar a pesquisa histórica em variados aspectos, como na incorporação de novos temas, objetos, métodos e fontes. Todavia, periodizar ou datar a história para fins de exposição é uma das mais complexas tarefas que se impõem ao historiador. Nessa questão, o livro didático mantém estreita dependência em relação aos marcos tradicionais, ou seja, não se observam significativas mudanças na antiga periodização fundamentada na visão teleológica, progressiva e determinista, com seqüências preestabelecidas. A discussão atual aponta para três possibilidades de periodização histórica: O esquema quadripartite francês, baseado na cronologia linear, que divide a história em idades; o modelo marxista, que periodiza a história segundo a evolução dos modos de produção, denotando a lógica do progresso presente nessa concepção; a opção do ensino por eixos temáticos, que rompe com um paradigma cronológico preestabelecido. O ensino de história que se pauta por eixos temáticos não obedece a qualquer critério de evolução ou hierarquia entre as sociedades, propondo o indefinido, a história como produto da prática social, um vir-a-ser. Assim, o ensino acontece a partir de proposições temáticas advindas da experiência cotidiana dos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Considerando que uma das obras analisadas não se enquadre inteiramente, embora se aproxime dessa última indicação, apresentarei uma variável: a abordagem cronológica sem regras gerais de evolução. Veja-se a distribuição das obras no Quadro 3. 13 Nesse grupo. encontram-se os seguintes autores: PILETTI. PILETTI (1990). COTRIM (1995), SILVA (l992), C?CERES(1993). COTRIM e ALENCAR(l990). CARMO e SOUTO (1994). 14 C?CERES, Florival. História do Brasil. 2? grau. São Paulo: Moderna, 1993. p. 150. 15 FONSECA (1995). Op. cit., p. 128-129. 16 Fazem parte desse grupo MARQUES, BERUTTI E FARIA (1993), DREGUER e TOLEDO (1995), MOTA e LOPEZ (1995). 17 MARQUES; BERUTTI; FARIA (1993). Op. cit., p. 20-21. Quadro 3 - Periodização adotada nas obras Tendência Enfoque Obras I Autores Paradigmática Política Ensino por período,. baseado no esquema francês. História Geral: Pré-História. Idade Antiga. Medieval. Moderna e Contcmporânea. História do Brasil: - História e Vida - PILETTI. PILETTI - História e consciência do Brasil COTRIM - História do Brasil - SILV A - História do Brasil - C?CERES Colônia, Império, República. - História para lima geração consciente - COTRIM e ALENCAR - História-passado e presente CARMO e SOUTO Ensino por período baseado na Marxista - História - os caminhos do homem MARQUES, BERUTTI, FARIA evolução dos modos de produção. Nova história Nenhuma obra se apresenta com francês tais características. Ensino por períodos bascados na Indeflnida, c/ - História - cotidiano e cronologia, sem regras gerais de tendências do 1? e 30 grupos mentalidade - DREGUER E Ensino por eixos temáticos. evolução e hierarquias entre os TOLEDO. grupos humanos. Como se pode perceber pela observação do quadro, a grande maioria das obras adota a periodização cronológica tradicional, fundamentada no esquema quadripartite francês, que nos foi legado por herança da civilização ocidental européia-cristã. Nessa perspectiva temporal, há pouco espaço para a incorporação de novas abordagens, porque a lógica estabelece um encadeamento causal entre os acontecimentos. Nas palavras de Déa Fenelon, o único critério que o historiador positivista tem para organizar o seu trabalho é o cronológico. Coleta documentos, faz pesquisa, trabalhando exaustivamente para a reconstrução da história. ? por isso que temos as histórias contadas com princípio, meio e fim, com relações causais explícitas entre um fato e outro18. Apesar de ser duramente combatida por inúmeros autores, a periodização historiográfica pautada pela idéia de evolução e progresso ainda é amplamente adotada, tratando-se de uma tradição cujo peso não deve ser subestimado. O segundo modelo de periodização é oferecido pelo paradigma marxista. Apenas uma obra propõe a periodização fundamentada nos modos de produção. Assim, a obra de Marques, Berutti e Faria, apresentada em quatro volumes, coerentemente com o título História: os caminhos do homem, dá a conhecer a caminhada da humanidade desde o homem primitivo, que evolui passando por diversas etapas: as comunidades primitivas, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e, finalmente, o socialismo. A história do Brasil vai sendo enquadrada dentro desse esquema, muitas vezes como estudo de caso para exemplificar o modo de produção em questão. A opção em substituir a cronologia tradicional pela evolução dos modos de produção não significa uma ruptura com a temporalidade unidirecional. Não se observa em tal periodização uma proposta inovadora, que ambicione romper com a linearidade e com o etapismo. Na verdade, esse modelo é bastante semelhante à periodização por idades, propiciando, grosso modo, a seguinte comparação: comunidades primitivas = Pré- História; escravismo = Idade Antiga; feudalismo = Idade Média; capitalismo mercantil = Idade Moderna; capitalismo = Idade Contemporânea. Além de sofrer esse tipo de crítica, a periodização pelos modos de produção é combatida pelo fato de não favorecer a incorporação e análise de formações sociais que não se enquadrem nos critérios de evolução e hierarquia existentes entre os modos de produção. Assim, a China Antiga, os reinos germânicos, os impérios africanos, a América Latina, entre outros, não merecem espaço significativo nos manuais científicos ou didáticos. Comprovando que o livro didático não foge aos limites dos paradigmas tradicionais no que se refere à temporalidade, foi constatada a ausência de propostas baseadas no ensino por eixos temáticos. Essa metodologia constitui uma das propostas mais atuais em termos de ensino de história no ensino fundamental e médio, tendo sido experimentada e debatida da França, inserida na orientação da nova história19. 18 Cf. FENELON, Déa. Pesquisa em história: perspectiva e abordagens. In: FAZENDA, Ivani Catarina (Orgs.). Metodologia da pesquisa educacional. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1991. p. 121-122. 19 Ver LE GOFF, Jacques. A história nova. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 11-29. N o Brasil, foram publicadas algumas experiências de ensino por eixos temáticos, realizadas em caráter experimental, por iniciativa de professores de ensino fundamental e médio e universitários, em escolas isoladas20. Entretanto, o estado de São Paulo foi o primeiro a implantá-lo através de programa curricular para toda a rede, desde 1990, no ensino fundamentaI 21. Na justificativa da proposta paulista, encontra-se a seguinte argumentação: o recurso aos eixos temáticos liberta o ensino de História dos conteúdos fixos, cuja aparente unidade é dada pelo "estudo do período". Nesta opção não há conteúdos ou seqüências obrigatórios; os professores têm a liberdade de, juntamente com os alunos, escolher temas, assuntos, épocas que se deseja estudar. A mudança supõe uma visão de História que não exige o conhecimento de toda a História da humanidade em todos os tempos, mas capacidade de reflexão sobre qualquer momento da História.. 22 Essa opção de ensino rompe com os paradigmas temporais preestabelecidos, desafiando professores e alunos a resgatarem a heterogeneidade das experiências humanas a partir da ação concreta dos sujeitos, da prática social. Assim, o livro didático não comporta tal ensino, uma vez que é fruto da construção, do momento, do indeterminado. Definindo em conjunto o eixo temático com o qual se vai trabalhar, vem a exigência de repensar o tempo, criando novas leituras do processo e demarcando-o em relação à proposta, sem a obrigatoriedade dos marcos tradicionais. Essa proposta de ensino tem gerado inúmeras polêmicas, com autores alertando para o risco de se pulverizar a história, perdendo a noção de totalidade e o sistema de referências temporais. Philippe Ariês, debatendo com outros expoentes da nova história francesa sobre o ensino por eixos temáticos, destaca que "a história nova deve possuir um determinado sistema de referência. Se os alunos não tiverem já nenhum conhecimento do mais elementar sistema cronológico, nem sequer poderão compreender uma visita ao museu"23. Apesar de nenhuma obra pautar-se pelo ensino temático, existe um livro que tenta substituir tanto a periodização por idades quanto a dos modos de produção, propondo uma abordagem cronológica. Os autores argumentam sobre essa opção da seguinte forma: Buscaremos dividi-Ia (a história) de acordo com a passagem do tempo, isto é, analisaremos em conjunto o modo de vida dos povos que viveram na mesma época mas em lugares diferentes. Contudo não estabeleceremos regras gerais de evolução de um período a outro, pois cada povo desenvolveu sua história de acordo com suas próprias necessidades. Nosso objetivo é estudar essas diversas formas de vida sem estabelecer hierarquias ou critérios de evolução24. . Assim, os autores distribuem em quatro volumes a história da humanidade desde os primeiros homens até o século XX. Comparado às outras abordagens, teríamos o seguinte quadro: 20 Ver CABRINI (1987) e NEVES (1985). op. cit. 21 Cfe. SAO PAULO (estado) Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estados e Normas Pedagógicas. Proposta curricular para o ensino de história. 1? grau São Paulo: SE/Cenp. 1992. 22 Idem, p. 12. 23 Ver LE GOFF (1995). Op. cit., p. 11. 24 DREGUER e TOLEDO (1995). Op. cit., p. 10. Quadro 4 - Comparativo entre os modelos de periodização adotados Aboordagem Idades Modos de produção Vol.1 Primeiros Pré-História e Idade Comunidades homens ao séc.V Antiga Vol.2 Séc.V ao Idade Média primitivas e escravismo Feudalismo Vol.3 Séc.xVII e XVIII Idade Moderna Capitalismo VolA Séc.XIX e XX Idade Capitalismo / Contemporânea Experiências socialistas Cronológica Séc.XVI mercantil Como se pode observar, essa abordagem não institui uma radical renovação na questão temporal, mas propõe uma saída para a problemática da evolução. Admite que dentro do mesmo período histórico coexistem diferentes formações sociais e procura inseri-Ias no livro didático. Orientados por uma concepção de evolução e progresso, os livros didáticos apresentam dificuldades em estabelecer a relação passado-presente na história ensinada. Na verdade, a trajetória da humanidade começa a ser desenrolada na 5? série, e o aluno só irá estudar atualidade na 8? série, quando chega a vez da história contemporânea; ou na 6? série, caso a coleção adote o clássico esquema de estudar a história do Brasil na 5 ? e 6? séries e a história geral na 7? e 8? séries. Na verdade, os livros propõem, no discurso, um ensino de história dinâmico e crítico, que possibilite a compreensão da realidade social em que o aluno está inserido, mas não favorecem esse tipo de análise. Em raras ocasiões, os autores sugerem a discussão de questões atuais na forma de atividades que o aluno desenvolva juntamente com o professor. Em geral, as obras resumem-se a repositórios de informações e não fornecem os meios de inter-relação passadopresente; não se evidencia um compromisso do autor com o presente, que oriente o olhar sobre o passado. O ensino de história não se constrói a partir de problemáticas do presente - método regressivo -, mas pela narração do passado, cujo método é progressivo. Não há, pois, na atual abordagem temporal das obras, espaço para que os autores trabalhem com qualquer momento do tempo, discutindo simultaneamente diferentes temporalidades. O desafio de dialogar com as questões do presente, dando sentido ao estudo da história, ainda está por ser enfrentado na produção didática brasileira. Objetos, fontes e bibliografias N a medida em que se amplia o campo das pesquisas históricas, através da incorporação de novas temáticas e da pluralização das fontes utilizadas, o mercado editorial também aponta algumas novidades. Pode-se observar, contudo, uma renovação mais radical do ponto de vista estético do que nas questões centrais, de conteúdo. No que se refere à inclusão de novos objetos de análise historiográfica, os livros didáticos mostram-se extremamente tímidos. Se, por um lado, todos os autores buscam renovar o tratamento dado aos velhos temas, resgatando a participação popular em alguns momentos históricos, por outro, não se observa a inserção de novos temas, originados da pesquisa historiográfica recente, do cotidiano e das mentalidades. Dessa forma, temas relacionados ao social continuam ausentes do livro didático; algumas cenas do cotidiano aparecem eventualmente, enfocando aspectos pitorescos, geralmente ligados ao modo de vida da elite. Ainda que manifestem a intenção de "colocar em plano superior a problemática social e econômica, reservando à história política apenas a análise necessária"25, a maioria dos autores dá ênfase às relações de produção e não às mentalidades. Pode-se inferir na maior parte das obras26 a filiação ao pensamento marxista, no que se refere aos objetos historiográficos. Nesse sentido, destacam-se como temas sociais, entre outros, a resistência indígena e africana à escravidão, a luta da classe operária, os movimentos insurreicionais de Canudos e Contestado, enfim, a luta de classes. Também aparece como preocupação central desses autores a destruição de alguns mitos presentes na historiografia tradicional, tais como a democracia racial, a submissão pacífica do escravo africano, a indolência do nativo, a epopéia do descobrimento do Brasil, a idéia de homogeneidade do povo brasileiro, a independência sem luta, etc. Embora de forma incipiente, aparece a tentativa de um grupo de autores27 de incorporar à análise histórica novos objetos de investigação, tais como mulheres, sexualidade, feitiçaria, alimentação, moradia, etc. Essas questões não 25 SILVA (1992). Op. cit., p. 3. 26 PILETTI, PILETTI (1990), COTRIN (1995), SILVA (1992), C?CERES (1993), CARMO e SOUTO (1994), COTRIN e ALENCAR (1990). 27 MARQUES, BERUTTI, FARIA (1993), DREGUER e TOLEDO (1995), MOTA e LOPEZ (1995). constituem o eixo condutor das obras, contudo são tratadas com seriedade dentro de um contexto histórico. o referencial bibliográfico apresentado nas obras é coerente com a tendência paradigmática. Esse segundo grupo de autores faz uso de um conjunto de obras cuja orientação advém da nova história francesa e da historiografia social inglesa. Aparecem constantemente citados os seguintes autores: Lucien Febvre, Marc Bloch, Jacques Le Goff, Philippe Aries, Georges Duby, Eric Hobsbawm, Edward Thompson, Cristopher Hill, etc. No primeiro grupo de autores, cuja orientação na definição dos objetos de análise é marxista, o arcabouço bibliográfico traz autores como Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Leo Huberman, Paul Singer, Ruggiero Romano, etc. Nenhum autor da nova história francesa é citado. Quanto à inclusão de novas fontes de análise histórica, os livros didáticos analisados apresentam a composição demonstrada no Quadro 5, em seqüência. Quadro 5 - Principais fontes de análise histórica presentes nas obras Autores Fontes Jornais Revistas Textos Textos Documentos Filmes Músicas Charges Obras Poemas Sim Em parte Piletti, Piletti Sim Sim Sim Sim Sim Não Não Não de arte Em parte Cotrim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não Não Em parte Silva Não Não Não Sim Em parte Não Não Em parte Sim Não Marques, Berutti, Faria Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Cáceres Não Não Não Não Não Não Não Em parte Em parte Não Dreguer, Toledo Em parte Em parte Não Não Não Não Não Não Sim Não Cotrim, Alencar Não Não Não Não Sim Não Não Não Sim Não Carmo, Souto Em parte Em parte Não Sim Sim Não Não Não Sim Não Mota, Lopez Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim ? possível afirmar que a maior renovação que o livro oferece reside no aspecto da utilização de diferentes linguagens de análise histórica. A fim de modernizar a abordagem metodológica, os autores oferecem o diálogo com fontes até então pouco exploradas na produção didática. Cabe observar que essas fontes não se constituem em instrumentos de pesquisa do autor para a produção da obra, mas em elementos a serem utilizados pelo professor e pelo aluno em sala de aula. Assim, constata-se a presença de trechos de textos historiográficos, documentos escritos, gravuras e obras de arte como as fontes mais indicadas nos livros; em menor escala, aparecem jornais, revistas, textos literários e, finalmente, fontes como filmes, músicas, charges e poemas ocupam o último lugar na preferência dos autores. A ampliação das possibilidades de leitura histórica através da incorporação de novas fontes, de novos objetos e do diálogo com novos referenciais bibliográficos, embora não represente uma revolução documental, trata-se, sem dúvida, de uma tentativa de dar um caráter progressista ao livro, sem romper definitivamente com os paradigmas preestabelecidos, como é possível observar nos eixos anteriormente analisados - concepção de história, concepção de ensino e periodização. Sujeitos históricos Conforme o exposto no item anterior, os livros didáticos analisados, em geral, não fazem a proposição de incluir na análise historiográfica os sujeitos que, tradicionalmente, estiveram à margem da história - a criança, a mulher, o analfabeto, o pobre, etc. No caso da história do Brasil, temos o caboclo, um personagem que, assim como o africano e o nativo, foi abusivamente explorado desde o período colonial até nossos dias, não sendo contemplado em nenhuma das obras analisadas. Em relação às obras investigadas, é possível afirmar que os livros não persistem naquela análise tradicional de culto aos heróis. Em algumas obras, chega a ser feita a conversão do herói para o anti-herói, caso em que o autor, apresenta a figura de d. Pedro I nos seguintes termos: "Já como príncipe regente, D. Pedro I usou forças militares para dispersar a massa e permitir que seu pai partisse levando o que roubara do Banco do Brasil. D. Pedro estreava na política brasileira com um ato de violência contra o povo"28. José Bonifácio, conhecido tradicionalmente como o Patriarca da Independência, é apresentado pelo autor como um político reacionário e antipopular: "Em junho C .. ) D. Pedro assinou a convocação de uma Assembléia Constituinte. José Bonifácio, que era contra a convocação, terminou por aceitá-Ia, mas insistiu na idéia de que a eleição fosse pelo voto censitário, o que tiraria do povo o direito de eleger representantes"29. 28 SILVA (1992). Op. cit., p. 118. 29 Idem, p. 120. Ainda que essa discussão esteja inseri da no contexto do absolutismo europeu, alguns grupos propunham maior participação popular nas questões políticas. Se, por um lado, os heróis são transformados em antiheróis, observa-se a inclusão de outros, caso de Zumbi, exaltado em diversas obras30, conforme indica esta exemplificação: "Zumbi foi o grande chefe dos negros de Palmares. Era ele quem coordenava O povo negro nas lutas pela defesa do quilombo. Em razão de sua coragem, inteligência e bravura, sua fama espalhava-se por toda a região. Os negros o consideravam invencível"31. O que se observa no livro didático, na verdade, são grandes paradoxos. Quase todos os autores que defendem a importância das camadas populares no processo histórico propõem "quebrar a imagem falaciosa de que somente a elite e seus míticos heróis constróem a história"32, entretanto não conseguem estender isso para além da história do nativo e do africano. Esses dois sujeitos históricos têm recebido um pequeno espaço no livro didático, com abordagens razoavelmente críticas33, enfocando as suas lutas e resistências, mas o livro, em seu conjunto, faz a crítica ao vencedor e omite a história do vencido, destrói alguns mitos e não recupera a experiência das minorias excluídas da história. Acredito que essa orientação metodológica dos livros didáticos deva-se muito mais à opção dos autores, em razão da aceitação de suas obras no mercado, do que à suposta ausência de produção historiográfica. Boa parte das pesquisas realizadas nas décadas de 1980 e 1990 contemplou uma história voltada para o social, no âmbito do cotidiano e das mentalidades. Apenas duas obras34 fazem citação a um importante trabalho de Laura de Mello e Souza sobre feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonia135, o que denota o pouco interesse em incorporar novas pesquisas no livro didático. O fato é que a maioria dos professores está bastante arraigada a um tipo de história: a que aprendeu na escola ou na universidade. Obras que proponham uma renovação mais profunda, cuja abordagem desconhecem, assusta-os, sendo preferível, pois, incrementar aqui ou ali do que inventar o novo. O objetivo sustentado no decorrer deste capítulo foi o de evidenciar, através de alguns pressupostos de análise, as tendências paradigmáticas predominantes nos livros didáticos. A tentativa de enquadrar as obras nessa ou naquela tendência, além de ser tarefa impossível, dada a diversidade de posturas dos autores, não faz parte dos propósitos deste trabalho. Considerando que, ao longo do capítulo, muitas questões foram sendo respondidas, limitar-me-ei agora a nuclear algumas idéias fundamentais. No que se refere à concepção de história dos autores, observa-se, em geral, um discurso que nega a tradição positivista de um ensino de história neutro, apegado aos fatos do passado. Aparece fortemente presente a proposição de um ensino de história pautado na reflexão e na idéia de transformação social, do qual se pode inferir uma orientação marxista. Tal discurso, entretanto, não vem acompanhado de uma metodologia que lhe dê sustentação, uma vez que a maioria dos autores limita-se a oferecer informações sobre o conteúdo histórico, de forma desvinculada das práticas sociais do presente. São raras as situações em que o livro favorece uma reflexão em que o aluno possa perceber-se parte integrante da história. Boa parte dos autores omite qualquer referência aos métodos de produção do conhecimento histórico, proporcionando a leitura de uma história dada e não construída socialmente, pela interação de diferentes grupos sociais; não confronta a multiplicidade de leituras e interpretações históricas, impondo ao aluno apenas um discurso, uma única história. A orientação da nova história francesa, no que se refere à noção de múltiplas temporalidades, passa longe do livro didático. A maioria absoluta dos autores adota a periodização baseada nos paradigmas positivista e marxista, pautada pela noção de evolução linear e progresso. Não há o rompimento com a cronologia tradicional, unidirecional. A forma privilegiada de exposição do conteúdo é a narrativa, não havendo qualquer proposta em torno da históriaproblema. A maior renovação do livro didático ocorre em nível estético, através da incorporação de novas linguagens de análise histórica. Assim, fontes que antes ficavam restritas ao historiador, tais como documentos históricos, jornais de época, textos historiográficos, são incorporados ao livro didático para reconhecimento de alunos e professores. Há uma discussão recente acerca do ensino de história que defende o prazer como elemento indispensável do processo pedagógico36. Nessa perspectiva, o contato com uma diversidade de fontes proporcionaria também aos alunos e professores o prazer da pesquisa advinda do diálogo com diferentes linguagens e experiências humanas. 30 A exaltação de Zumbi aparece nas seguintes obras: PILETTI, PILETTI (1990, p. 83); SILVA (1992, p. 59 e 188); e COTRIM e ALENCAR (1990, p. 78). 3 1 COTRIN (1995). Op. cit., p. 74. 3 2 SILVA (1992). op. cit., p. 3. 3 3 ? exceção de CARMO e SOUTO, que apresentam uma visão romântica do índio, primitivo, omitindo as condições atuais de abandono desse grupo social. 3 4 São as obras de MOTA e LOPEZ (1995) e MARQUES, BERUTTI, FARIA (1993). 3 5 A obra a que me refiro é de SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 3 6 SILVA, Marcos A . da. História: o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 1995. Percebe-se, no tratamento dispensado aos sujeitos históricos, um discurso que defende a incorporação da história do vencido, mas que não ultrapassa a história do africano e do nativo como representantes de tal grupo. Os novos temas propostos pela nova história francesa raramente são contemplados nas obras, mesmo naquelas com propostas mais progressistas. CAIMI, Flávia Eloisa. O livro didático no contexto de transição dos paradigmas da História. In: CAIMI, Flávia Eloisa; MACHADO, Ironita A. P.; DIEHL, Astor Antônio (Org.). O livro didático e o currículo de história em transição. Passo Fundo: UPF, 2002, p. 77-111.