19 de novembro de 2013 RECONHECIMENTO DE PROPRIEDADE SOBRE LEITOS E MARGENS PÚBLICOS A. ASPETOS GERAIS 1. Muitos particulares, assim como empresas, ocupam, na atualidade, terrenos situados sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis. Caso pretendam obter o reconhecimento da sua propriedade sobre tais parcelas, estão obrigados a demonstrar que esses terrenos já eram propriedade privada antes de 1864 ou 1868, consoante as situações, e apenas o poderão fazer até ao dia 1 de julho de 2014. E a situação é tanto mais grave que, caso não o façam, o Estado poderá, por exemplo, vir a promover a sua desocupação ou cobrar taxas pela sua utilização. 2. Concretamente, nos termos da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que aprovou a LEI TITULARIDADE DOS DA RECURSOS HÍDRICOS (“LTRH”), o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas. Acresce que as margens e, assim, o domínio público hídrico podem ir até um limite de 50 ou 30 metros além da linha da água, consoante estejam em causa as águas do mar ou as restantes águas navegáveis ou flutuáveis. Por sua vez, é de salientar que o domínio público hídrico encontra-se sujeito ao REGIME GERAL DO DOMÍNIO PÚBLICO, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, pelo que os bens que aí se integrem encontram-se fora do comércio jurídico: (i) não podem ser objeto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado, (ii) não são suscetíveis de aquisição por usucapião, e (iii) são impenhoráveis (de onde decorre que são também insuscetíveis de serem dados em garantia). Cumpre ainda referir que os imóveis que integram o domínio público apenas podem ser submetidos ao uso privativo por particulares mediante um título de utilização – mediante, por exemplo, licença ou concessão – e a sua utilização implica o pagamento de taxas. 3. Por sua vez, à luz do disposto na LTRH, quem pretender obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deverá fazê-lo através de uma ação de reconhecimento de propriedade privada. 4. Em face do breve enquadramento feito, isto significa que, a menos que os interessados façam prova de que as mencionadas parcelas já eram propriedade privada antes de 1864 ou 1868, consoante os casos, o Estado pode (i) impor a desocupação dos prédios situados em domínio público hídrico, (ii) ordenar a demolição das construções que nele se encontrem implantadas e/ou a reposição dos prédios na situação anterior à ocupação indevida, ou, se possível, (iii) proceder à cobrança de taxas pela sua utilização privativa. B. RECONHECIMENTO DE PROPRIEDADE SOBRE LEITOS E MARGENS PÚBLICOS 5. Conforme se referiu já, quem pretender obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis poderá fazê-lo por via judicial, mediante a interposição de uma ação de reconhecimento de propriedade privada. No que se refere a esta ação, importa começar por referir que a via judicial tem um limite temporal: tal ação terá de ser intentada até ao dia 1 de julho de 2014. Com efeito, à luz do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, o prazo para intentar a referida ação judicial terminava no dia 1 de janeiro de 2014, porém, o Decreto n.º 181/XII, de 18 de outubro, recentemente aprovado pela Assembleia da República, veio alterar a LTRH precisamente para estender o prazo e dar mais tempo aos interessados para exercerem os seus direitos em juízo. É ainda de realçar que também se determina, no referido Decreto n.º 181/XII, que a LTRH deverá ser novamente revista até 1 de julho de 2014, de forma a definir-se os requisitos e prazos necessários para a obtenção do reconhecimento de propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas de mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis. 6. Em seguida, cabe notar que, não obstante estarem em causa questões relacionadas com o domínio público, a respetiva ação deverá ser intentada junto dos tribunais judiciais comuns – mais concretamente, junto do tribunal da comarca onde se encontre o imóvel –, e não junto dos tribunais administrativos. A razão prende-se com o facto de a questão que aqui está em causa – o reconhecimento da propriedade privada – ser uma questão de direito privado. 7. No que respeita à prova a fazer, para a procedência da ação terá de se provar, através de documentos, que o imóvel em causa era, por título legítimo – como a compra e venda, a herança, entre outros –, objeto de propriedade particular antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868. No caso de não existirem documentos que o comprovem, ainda se poderão considerar particulares os terrenos em relação aos quais se prove que, antes das datas indicadas, se encontravam na posse de particulares (ou seja, é necessário demonstrar a propriedade privada através de outros meios de prova, como a testemunhal). Acresce que, quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868 se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, poderão, da mesma forma, considerar-se particulares os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, se encontravam na posse de particulares. 8. Além do regime que se acaba de explicitar, interessa ainda abordar os regimes constantes do artigo 15.º, n.º 3, da LTRH, que não se afiguram especialmente claros e, nessa medida, poderão até dificultar o reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos inseridos sobre leitos e margens públicos. Nos termos do artigo 15.º, n.º 3, da LTRH, o regime que acabamos de descrever não parece ser aplicável a dois casos: (i) os terrenos em causa foram desafetados do domínio público; (ii) os terrenos em causa estiveram na posse pública pelo período necessário à formação de usucapião. Em relação ao primeiro caso, que é mais claro, entende-se que no caso de a propriedade privada ter sido adquirida na sequência de um ato de desafetação, os interessados não necessitam provar que os terrenos em causa eram particulares em data anterior a 31 de dezembro de 1864 ou 22 de março de 1868, consoante os casos. Este regime é, pois, mais favorável aos particulares que pretendam fazer valer os seus direitos de propriedade que aquele acima descrito. No que toca ao segundo caso, a solução do legislador é muito mais problemática: “*n+ão ficam sujeitos ao regime de prova estabelecido nos números anteriores os terrenos que *…+ hajam sido mantidos na posse pública pelo período necessário à formação de usucapião”. À luz desta disposição são possíveis, pelo menos, duas interpretações completamente díspares: (i) caso o imóvel estivesse na posse de privados durante o prazo para usucapião, não seria necessário recorrer à dificílima prova de que o imóvel era propriedade privada de particulares antes de 1864 ou 1868 – ou seja, neste caso, os particulares conseguiriam mais facilmente o reconhecimento da propriedade privada que no regime geral; (ii) caso os terrenos se encontrem na “posse de entidades públicas” pelo período necessário à formação de usucapião, os particulares deixam de poder demonstrar que tais terrenos eram sua propriedade privada, uma vez que estes passaram a ser parte integrante do domínio público. A norma em causa é, pois, especialmente ambígua, podendo defender-se duas interpretações completamente diferentes. Se, à partida, é verdade que se pode entender que a usucapião, neste caso, aproveita às entidades públicas, a verdade é que, à luz dos cânones da interpretação consagrados no Código Civil, tal interpretação parece afastar-se inadmissivelmente da letra da lei. Nestes termos, é crucial que o legislador, logo que revisite a LTRH, esclareça este aspeto. C. SÍNTESE CONCLUSIVA 9. Em face do exposto, a importância de intentar atempadamente a referida ação de reconhecimento de propriedade privada reside, precisamente, na insegurança jurídica que decorre tanto para os cidadãos e demais entidades que possuam terrenos situados na orla costeira ou confinantes com cursos de água navegáveis ou flutuáveis, e que podem ver os seus direitos afetados nos termos expostos, como ainda para as próprias instituições de crédito que tenham prestado alguma garantia sobre tais imóveis. Posto isto, resta recomendar que se inicie o mais rapidamente possível a preparação e instrução das respetivas ações judiciais, uma vez que, por um lado, o prazo para intentar a mencionada ação termina a 1 de julho de 2014 e, por outro, a obtenção da prova documental requerida é extremamente difícil. Jorge Silva Sampaio [email protected]