Foto: Sérgio Fernando Larizzatti DOMÍNIO ARCHAEA REINOS CRENARCHAEOTA, EURYARCHAEOTA E KORARCHAEOTA Arqueas Número de espécies No mundo: 108 No Brasil: ? Conhecidas no estado de São Paulo: 4 Estimadas no estado de São Paulo: ? Methanosphaera sp. * s microrganismos do Domínio Archaea são considerados únicos, com propriedades metabólicas extraordinárias e filogenia particular. Compreendem os microrganismos anaeróbios mais sensíveis ao oxigênio, os termófilos mais extremos e halófilos cujas enzimas são adaptadas a elevadas concentrações salinas. Apesar da organização celular procariótica, são organismos evolutivamente distintos das bactérias (Domínio Bacteria), em função de características de organização do genoma, expressão gênica, composição celular e filogenia. As Archaea são divididas em três Reinos: Crenarchaeota, Euryarchaeota e Korarchaeota. O conhecimento da filogenia e taxonomia do Domínio Archaea é fundamental na compreensão da ecologia microbiana de ecossistemas extremos. Os estudos taxonômicos ainda são raros, com um notável direcionamento para as espécies anaeróbias produtoras do gás metano, de ampla aplicação em tratamentos anaeróbios de resíduos e geração de biogás. Os dados existentes sobre Archaea no estado de São Paulo restringem-se ao isolamento e identificação de organismos metanogênicos presentes em sistemas de tratamento anaeróbio e sedimentos. Não existem registros de isolados do Domínio Archaea caracterizados a nível de espécie de linhagens em coleções de culturas brasileiras. * Micrografia eletrônica de varredura de células procarióticas metanogênicas de um biodigestor anaeróbio. DIVERSIDADE NO DOMÍNIO ARCHAEA ROSANA FILOMENA VAZOLLER1,2, GILSON PAULO MANFIO1 & VANDERLEI PEREZ CANHOS3 Coleção de Culturas Tropical (CCT), Fundação André Tosello, Rua Latino Coelho, 1301, 13087-010 Campinas, SP, e-mail: [email protected] 2 Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo Av. Dr. Carlos Botelho, 1465, 13560-970 São Carlos, SP, e-mail: [email protected] 3 Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) Rua Professor Zeferino Vaz, s/nº, 13081-970 Campinas, SP, e-mail: [email protected] 1 2 1. Introdução Os recentes estudos sobre filogenia, baseados na análise de seqüências do ácido ribonucléico ribossomal (RNAr), revelaram que a vida na Terra é dominada pelos microorganismos. São três as divisões que definem a organização filogenética atual dos seres vivos, os Domínios Bacteria, Archaea e Eukarya. Os dois primeiros Domínios compreendem os organismos constituídos por células procarióticas e o último engloba aqueles formados por células eucarióticas (Sly, 1998). O Domínio Archaea é caracterizado por microrganismos procarióticos evolutivamente distintos dos organismos alocados no Domínio Bacteria (Adams, 1995). Uma grande variedade de Archaea possui metabolismo anaeróbio obrigatório, enquanto que outras espécies são encontradas em ambientes extremos, tais como fontes geotermais, hábitats com elevada salinidade, solos e sistemas aquáticos altamente ácidos ou alcalinos. Pode-se dizer que certas espécies de Archaea definem claramente os limites de tolerância biológica nos extremos físicos e químicos da vida na Terra. O Domínio Archaea consiste de três divisões, representadas na Figura 1: Crenarchaeota, que contém as Archaea redutoras de enxofre hipertermófilas; Euryarchaeota, que compreende uma grande diversidade de organismos, incluindo as espécies metanogênicas, as halófilas extremas e uma espécie hipertermófila; e Korarchaeota, uma divisão descrita mais recentemente, que engloba organismos hipertermófilos pouco conhecidos, ainda não cultivados em laboratório. A Figura 1 mostra a árvore filogenética de Archaea, baseada na comparação de seqüências do RNAr 16S (Madigan et al., 1977; http://www.prenhall.com/~brock). Várias espécies de Archaea são quimiorganotróficas, utilizando diferentes compostos orgânicos como fonte energética para seu crescimento. É usual a ocorrência em Archaea de vias metabólicas semelhantes àquelas encontradas em organismos do Domínio Bacteria. Como exemplo disto há o fato de que o catabolismo da glicose em halófilas extremas e hipertermófilas se processa, basicamente, pela via de Entner-Doudoroff. Entretanto, alguns organismos apresentam vias bioquímicas raras, como as células metanogênicas, que, através de sistemas enzimáticos únicos, produzem o gás metano. O metabolismo autotrófico é bastante usual entre as metanogênicas e em muitos hipertermófilos (Sowers, 1995; Madigan et al., 1997). Os organismos halófilos extremos habitam locais hipersalinos, geralmente em regiões quentes e secas que estimulam a evaporação, com conseqüente aumento na concentração de sais na água, sedimentos e solo. Diversos hábitats hipersalinos têm servido como fonte para estudos de organismos que se desenvolvem em altas concentrações de íon sódio, da ordem de 105-142 g/L (água do mar = 10.6 g/L), como o Great Salt Lake (Utah, EUA), lagos de soda (África e Austrália) e o Mar Morto (este último com 40 g/L de íon sódio e 44 g/L de magnésio). As Archaea metanogênicas, por sua vez, são amplamente distribuídas na natureza em ambientes anóxicos, cujos potenciais de oxi-redução são da ordem de 300 mV, tais como: sedimentos aquáticos profundos, pântanos, trato digestivo de ruminantes e animais homeotérmicos, biodigestores anaeróbios de tratamento de resíduos e aterros sanitários. 18 R.F. Vazoller, G.P. Manfio & V.P. Canhos A diversidade de Archaea hipertermófilas pode ser observada em ambientes geotérmicos: gêisers, fendas de vulcões com emissão de vapores (em geral sulforados) e fendas no leito oceânico. Os hábitats mais comumente estudados localizam-se em países com focos de atividade geotérmica, como os Estados Unidos (notadamente, no Yellowstone National Park; Combie & Runnion, 1996), Islândia, Itália e Nova Zelândia (Oremland, 1988; Vazoller, 1989; Madigan et al., 1997). Em 1995, Carl R. Woese apresentou suas impressões sobre o surgimento do novo Domínio Archaea, em final de 1977. O autor registrou que o aparecimento repentino das Archaea (inicialmente denominadas Archaebacteria, Archeobacteria ou Archeote) - negando dogmas da Biologia, como a divisão dos seres vivos em eucariontes e procariontes, de acordo com a presença de núcleo organizado e maquinaria genética - ocasionou uma revolução na classificação dos organismos, pois surgia uma terceira forma de vida, cuja estrutura celular é procariótica, mas, em nível molecular e genético, guarda grandes semelhanças com organismos eucarióticos. A noção de dicotomia da vida entre eucariontes e procariontes, que ainda domina a Biologia e influencia, em particular, a percepção sobre o grupo Archaea, está sendo lentamente revista por grupos atuantes em microbiologia. A diversidade e biologia das Archaea representam uma enorme contribuição à compreensão da Ecologia Microbiana (Woese, 1995). Os membros do Reino Crenarchaeota apresentam a ramificação mais profunda na árvore fiologenética universal, representados por organismos dos gêneros Desulfurococcus, Pyrodictium, Sulfolobus, Thermococcus, Thermofilum e Thermoproteus. Em seguida, observam-se os grupos de Euryarchaeota, extremamente diversos, incluindo Archaeoglobus spp., os halófilos extermos Halobacterium spp. e Halococcus spp., os metanogênicos Methanobacterium spp., Methanococcus spp., Methanosarcina spp., Methanospirillum spp. e Methanothermus, além das metanogênicas halófilas. Os organismos termo-acidófilos do gênero Thermoplasma, caracterizados pela ausência de parede celular, representam um grupo distinto associado aos Euryarchaeota. Methanopyrus sp., um metanogênico hipertermófilo, capaz de se desenvolver a 110 °C, se encontra bastante próximo ao ponto de radiação de Crenarchaeota e Euryarchaeota. O Reino Korarchaeota, descrito mais recentemente, engloba organismos hipertermófilos pouco conhecidos, identificados a partir de seqüências de rDNA 16S isoladas de fontes termais terrestres, porém ainda não-cultivados em laboratório. Na prática, as Archaea são estudadas e agrupadas de acordo com o seu metabolismo e fisiologia, sendo alocadas em diversos grupos, como: as metanogênicas, os halófilos extremos (ou hiperhalófilos) e os termófilos extremos (ou hipertermófilos). Sem dúvida, as espécies de Archaea mais conhecidas são as metanogênicas, cuja classificação taxonômica molecular data de 1979, realizada por Balch e colaboradores (Balch et al., 1979). Provavelmente, pela facilidade de estudos de ambientes anóxicos, ou mesmo pela sua importância em saneamento ambiental, existem cerca de 66 espécies de metanogênicas descritas, em contraste com aproximadamente 24 espécies de hipetermófilas e 18 de halófilas extremas (Sowers, 1995; Adams, 1995; Madigan et al., 1997). Contudo, o número de novas espécies descritas nestes dois últimos grupos vem aumentando, em razão do crescente interesse em estudos da diversidade de Archaea em novos ambientes, que empregam metodologias moleculares para a identificação dos organismos através de DNA extraído diretamente das amostras. Os organismos do Domínio Archaea apresentam uma ampla diversidade metabólica e distribuição em hábitats considerados inóspitos aos demais seres vivos. Pouco se sabe, porém, sobre sua importância funcional nestes ecossistemas e sobre a atuação dos mesmos nos processos biogeoquímicos em ambientes não extremos. Além disso, em termos tecnológicos, as descobertas de novos produtos microbianos gerados em ambientes extremos (e.g., enzimas extremófilas) realça o potencial de exploração deste grupo de organismos como fonte de novas alternativas para a Biotecnologia. O emprego dos organismos metanogênicos em saneamento ambiental é amplamente conhecido e busca a mineralização anaeróbia da matéria orgânica. Porém, as perspectivas se ampliam de forma marcante, por exemplo, na bioprospecção de enzimas resistentes a condições extremas (e.g., temperaturas da ordem de 80-100°C) presentes em Pyrococcus spp., Thermococcus spp., Thermofilum spp. e Thermoproteus spp. (Vazoller, 1995). Em pesquisa básica e Biotecnologia, podem ser relacionadas outras aplicações de Archaea, tais como: a manipulação genética de moléculas termoestáveis e a produção de compostos químicos e combustíveis (biogás e álcool). Considerando-se que os bioprocessos de Archaea ocorrem sob temperaturas, salinidade e/ou pH Archaea 19 marcadamente superiores aos dos organismos comumente empregados em biotecnologia, estes seriam extremamente atraentes para o desenvolvimento de novas tecnologias. Uma gama diversa de substâncias de interesse industrial pode ser produzida pelo metabolismo termófilo extremo: ácidos orgânicos, vitaminas, aminoácidos, antibióticos e produtos bioativos (e.g., estimuladores de crescimento de tecido celular). Algumas Archaea, como Sulfolobus spp., podem processar reações de biotransformação estereo-específicas em moléculas de hidrocarbonetos (Vazoller,1995). No estado de São Paulo, registra-se algum conhecimento sobre Archaea metanogênicas. As pesquisas originais, voltadas principalmente para aplicações tecnológicas, estão descritas em relatórios internos da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), em sua maioria coordenados por Gregori (1979-1980) e Novaes (1982-1988), e em dissertações e teses de Mestrado e Doutorado do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos (USP). Publicações técnicas sobre operação de biodigestores anaeróbios reforçam o interesse da indústria pelo tema (Souza et al., 1991). Os trabalhos sobre Archaea metanogênicas relacionados no estado de São Paulo são descritos por Badra (1993), Vazoller (1989, 1995, 1997) e Vazoller et al. (1988). Figura 1. Árvore filogenética do Domínio Archaea, baseada na comparação de seqüências do RNAr 16S (baseada em Madigan et al., 1997 http://www.prenhall.com/~brock). Figura 1. Árvore filogenética do Domínio Archaea, baseada na análise de seqüências do RNAr 16S (baseada em Madigan et al., 1997; http://www.prenhall.com/~brock). 20 R.F. Vazoller, G.P. Manfio & V.P. Canhos 2. Diversidade Archaea Halófilas Extremas: É um grupo de organismos que habita ambientes altamente salinos, como: lagoas com elevada concentração salina (e.g., Ca, Mg, Na) ou mesmo a superfície de alimentos preservados por salmora. Os hábitats das Archaea halófilas extremas são denominados hipersalinos e as espécies em cultivo laboratorial podem requerer entre 1,5 e 4 M de NaCl para crescimento. A concentração elevada de sódio é essencial para a manutenção da estabilidade da parede celular em alguns organismos, como em Halobacterium spp. (Madigan et al., 1997), por exemplo. Dentre os ambientes naturais hipersalinos mais estudados encontram-se os sistemas lacustres com salinidade ao redor de 10 vez a da água do mar, com predomínio de sais de sódio e presença de sulfatos e pH ligeiramente alcalino. As espécies halófilas extremas são, em geral, quimiorganotróficas aeróbias obrigatórias, com raros representantes halófilos anaeróbios. Podem ainda apresentar a propriedade de síntese de energia mediada pela luz, na ausência de bacterioclorofilas, através da ação de bacteriorodopsinas (Madigan et al., 1997). As espécies de Archaea hiperhalófilas são classificadas filogeneticamente em 8 gêneros e 18 espécies, através da seqüência do RNAr 16S e de características morfo-fisiológicas (composição de parede celular, presença de flagelos, coloração de Gram, tolerância à salinidade, plasmídeos e conteúdo de G+C do DNA). São descritos os gêneros: Haloarcula, Halobaculum, Halobacterium, Halococcus, Haloferax, Halorubrum, Natronobacterium e Natronococcus (Staley et al., 1989; Madigan et al., 1997). Os organismos apresentam, na sua maioria, morfologia celular em forma de cocos e bacilos. Os ambientes mais estudados localizam-se em zonas hipersalinas de regiões temperadas, como os lagos salgados em Utah e na Califórnia (EUA), bem como o Mar Morto. Archaea Metanogênicas: As Archaea metanogênicas são microorganismos anaeróbios obrigatórios, que requerem condições anóxicas de crescimento, e altamente redutoras, com potenciais de oxi-redução na ordem de 300 mV (Sowers, 1995). Provavelmente, a característica mais evidente das metanogênicas está relacionada com sua especificidade de substratos para crescimento e produção de metano. São conhecidos até o momento dez substratos para a metanogênese: formiato, monóxido de carbono, metanol, 2-propanol, aminas metiladas, dimetilsulfeto, metilmercaptanas e acetato, sendo universal o dióxido de carbono, que necessita de hidrogênio como doador de elétrons. Os metanogênicos apresentam metabolismo quimiorganotrófico ou autotrófico. Apesar de requererem condições fastidiosas para crescimento e anaerobiose obrigatória, esses organismos são amplamente distribuídos na natureza, sendo encontrados em diversos ambientes associados à decomposição de matéria orgânica e/ou atividades geoquímicas. As arqueas metanogênicas atuam no passo final de consórcios microbianos presentes em sedimentos aquáticos, pântanos, gêisers, interior de árvores e sistemas de tratamento de resíduos, como biodigestores anaeróbios e aterros sanitários. Sob o ponto de vista ecológico, o metabolismo metanogênico é dependente da presença de outros microorganismos, cuja atividade no meio anaeróbio gera os precursores para a metanogênese (Vazoller, 1995). As Archaea metanogênicas representam um grupo de microrganismos polifilético, compreendendo 3 Ordens, com 8 Famílias e 21 gêneros. Apresentam morfologia comum às células procarióticas, com forma de bacilos de diferentes tamanhos, cocos, sarcinas e filamentos. Algumas representantes apresentam propriedade de coloração Gram-positiva e outros Gram-negativa, sendo a taxonomia baseada essencialmente em métodos moleculares, através da comparação de seqüências do RNAr 16S. Análises morfo-fisiológicas facilitam a classificação primária em nível de gênero. A Ordem Methanobacteriales compreende a Família Methanobacteriaceae, com os gêneros Methanobacterium, Methanobrevibacter e Methanosphaera, contendo 18 espécies; e a Família Methanothermaceae, com o gênero Methanothermus e duas espécies. A Ordem Methanococcales congrega as Famílias Methanococcaceae, gênero Methanococcus, com 7 espécies; Methanomicrobiaceae, com os gêneros Methanoculleus, Methanogenium, Methanolacinia, Methanomicrobium e Methanospirillum, com 13 espécies; Methanocorpusculaceae, gênero Methanocorpusculum, com 5 espécies; Methanoplanaceae, gênero Methanoplanus, com duas espécies; Methanosarcinaceae, com os gêneros Methanococcoides, Archaea 21 Methanohalobium, Methanohalophilus, Methanolobus, Methanopyrus, Methanosaeta, Methanosarcina; e Methanothrix, com 19 espécies (Sowers, 1995). A bioquímica da formação de metano é encontrada apenas nas Archaea metanogênicas. A metanogênese é uma reação que proporciona um fluxo de prótons nas células e pode suportar um mecanismo quimiosmótico de produção de energia e ATP. A produção de metano pode, portanto, ser encarada como um marcador taxonômico para a identificação de Archaea. Alguns dos microrganismos apresentam fluorescência sob iluminação ultravioleta decorrente da presença do cofator F420 (Oremland, 1988; Vazoller, 1995). Archaea Hipertermófilas: A divisão Crenarchaeota compreende microrganismos capazes de crescer em temperaturas extremas (e.g., acima do ponto de ebulição da água, com ótimo acima de 80 ºC), conhecidos como hipertermófilos. Estes organismos foram inicialmente observados em amostras de solos e águas geotermais contendo enxofre elementar e sulfetos. Posteriormente, os primeiros microrganismos hipertermofílicos foram isolados de comunidades microbianas em fendas termais vulcânicas no leito oceânico, sob temperaturas de 100 °C. Essas descobertas culminaram com a descrição do Domínio Archaea (Adams, 1995). Os hipertermófilos são, em sua maioria, anaeróbios obrigatórios, quimiorganotróficos ou quimiolitotróficos, que, de alguma forma, utilizam compostos de enxofre no seu metabolismo. O estudo de uma variedade de hábitats terrestres e aquáticos resultou no isolamento de diversas espécies hipertermófilas, com morfologia peculiar, em geral esféricas e irregulares, ou mesmo organismos com ausência de parede celular (Thermoplasma acidophilum). A taxonomia das espécies é baseada em métodos moleculares (análise de seqüência do RNAr 16S), fisiologia (crescimento sob diferentes temperaturas e pH), morfologia celular, coloração de Gram e conteúdo de G+C do DNA. A classificação dos hipertermófilos compreende organismos distribuídos em pelo menos 4 Ordens. A Ordem Thermoproteales engloba a Família Thermoproteaceae, com os gêneros Pyrobaculum, Thermofilum e Thermoproteus, isolados de áreas geotérmicas continentais, e a Família Desulfurococcaceae, com os gêneros Desulforococcus, Pyrodictium, Staphylothermus e Thermodiscus, isolados de regiões marinhas geotérmicas profundas e não profundas. A Ordem Thermococcales, com os gêneros Pyrococcus e Thermococcus, compreende organismos isolados de ambientes marinhos profundos e não profundos. A Ordem Sulfolobales, com os gêneros Acidianus, Desulfurolobus, Metallosphaera, Stygiolobus e Sulfolobus, apresenta organismos isolados de ambiente marinhos não profundos e águas continentais. Organismos do gênero Thermoplasma, Ordem Thermoplasmatales, isolados de áreas geotérmicas continentais, apesar de apresentarem temperatura máxima de crescimento ao redor de 67 ºC, são considerados, para estudo, junto ao grupo dos hipertermófilos (Adams, 1995). Existem ainda alguns organismos não classificados, isolados de ambiente marinho não profundo e profundo, incluindo-se neste grupo os organismos do gênero Hyperthermus (Adams, 1995). As Archaea hipertermófilas redutoras do íon sulfato são alocadas no gênero Archaeoglobus e as Archaea hipertermófilas metanogênicas, nos gêneros Methanococcus, Methanopyrus, Methanothermus (Adams, 1995). Assim como os demais gêneros de hipertermófilos, estes organismos também são isolados de ambientes marinhos geotermais. Os organismos dos gêneros Thermotaga e Aquifex, filogeneticamente alocados no Domínio Bacteria, são, em geral, estudados em conjunto com as Archaea devido ao seu hábitat marinho hipertermófilo. 3. Estado do conhecimento A existência de um terceiro Domínio de seres vivos, Archaea, suscitou indagações da comunidade científica sobre a sua evolução, biologia e papéis ecológicos. Muito embora este grupo de microrganismos apresente uma grande diversidade metabólica, um ponto comum é indiscutível, a sua ocorrência em hábitats com extremos de temperatura e pH, salinidade elevada e anaerobiose estrita. As condições iniciais de formação da Terra certamente possibilitaram o surgimento das Archaea, representadas, por exemplo, pelos hipertermófilos e metanogênicos 22 R.F. Vazoller, G.P. Manfio & V.P. Canhos utilizadores de hidrogênio. Contudo, é certo que a história da evolução dos seres vivos no planeta está relacionada ao Domínio Archaea, fato evidenciado pelo parentesco filogenético entre Archaea e Eukarya (Adam, 1995; Sowers, 1995; Woese, 1995). Relatos sobre Archaea na literatura são concentrados em estudos conduzidos em regiões temperadas do globo, sendo ainda incipientes os estudos em regiões tropicais. Na América Latina, países como Brasil, Colômbia, México e Uruguai destacam-se no conhecimento sobre as Archaea metanogênicas em biorreatores anaeróbios (diversos trabalhos citados no Anais dos Simpósios Internacionais de Digestão Anaeróbia, 1988 e 1991). Em especial, no Brasil, foram desenvolvidos dois programas de formação de recursos humanos para estudo da biologia de microorganismos metanogênicos. Em 1982, um projeto conduzido pela Sociedade Brasileira de Microbiologia na Universidade de São Paulo promoveu o treinamento de cerca 50 profissionais sobre microorganismos presentes em processos biológicos anaeróbios, destacando-se procedimentos práticos para o isolamento de organismos anaeróbios estritos, como Archaea metanogênicas. Em 1987, o projeto Formação de Recursos Humanos em Microbiologia da Digestão Anaeróbia, financiado pela FINEP e CNPq [Projeto CNPq 701651/87.3-SBIO/FV (CG), 19871991] e conduzido na CETESB, envolveu essencialmente treinamento de pessoal em técnicas laboratoriais para isolamento de microorganismos anaeróbios estritos. O grupo de pesquisadores da CETESB (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo), no período de 1978 a 1990, trabalhou efetivamente na pesquisa de metanogênicos, sendo uma das instituições pioneiras no isolamento de culturas, algumas delas preservadas por métodos convencionais de subcultivo e estoque à temperatura ambiente ou sob nitrogênio líquido (Vazoller & Rech, 1992). Na coleção de culturas da CETESB, ainda no ano de 1990, encontravam-se estocadas a temperatura ambiente ou sob nitrogênio líquido culturas de Arcahea metanogênicas originárias de amostras de biodigestores de lodo de esgoto, isolados pioneiramente pela Bióloga Dra. Rosana Elda Gregori (relatórios internos da CETESB 1979-1980). As culturas estocadas foram identificadas como pertencentes ao gênero Methanobacterium (Vazoller, 1989) e listadas no Catálogo Nacional de Culturas (Canhos et al., 1989). Estudos posteriores (Vazoller, 1988) revelaram o isolamento de metanogênicas do gêneros Methanosaeta (sin. Methanothrix) e Methanosarcina em sistemas de tratamento anaeróbio de esgotos sanitários. Em 1992, o Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo obteve seus primeiros resultados no estudo de metanogênicas em aterros sanitários (Badra, 1993), destacando-se neste sistema organismos dos gêneros Methanobacterium e Methanococcus. Em 1995, estudos adicionais sobre a metanogênese termofílica da vinhaça resultaram no isolamento de duas culturas de metanogênicos termófilos, identificados como Methanobacterium sp. e Methanosarcina sp. (Vazoller, 1995), através do emprego de métodos clássicos de caracterização de Archaea, tais como: morfologia, fluorescência sob luz UV, produção de metano e avaliação do consumo e utilização de substratos orgânicos e inorgânicos. Nenhum método de preservação de culturas metanogênicas foi indicado nos trabalhos realizados por Badra (1993) e Vazoller (1989; 1995). Recentemente, técnicas moleculares estão sendo aplicadas no estudo de organismos metanogênicos no Laboratório de Processos Anaeróbios, Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, em conjunto com a Coleção de Culturas Tropical, da Fundação André Tosello, Campinas. Esse trabalho constitui-se em uma iniciativa pioneira para a introdução de metodologias moleculares para o estudo de Archaea em reatores anaeróbios, empregando técnicas de amplificação de rDNA 16S a partir de DNA isolado diretamente de amostras do reator, identificação dos organismos através de seqüenciamento e análise filogenética do rDNA 16S, estudos de diversidade (DGGE de região espaçadora rDNA 16S-23S) e detecção de organismos específico por hibridização in-situ com sondas fluorescentes. Não há registros no estado de São Paulo de resultados de pesquisa sobre ocorrência e diversidade de Archaea em ambiente tropical/sub-tropical. No entanto, existem vários hábitats extremamente atraentes para o desenvolvimento de tais estudos, destacando-se regiões estuarinas de mangue (Baixada Santista e Cananéia), regiões costeiras do estado, sedimentos aquáticos de lagos e rios do cerrado paulista, fontes termais (Araçatuba) e sistemas anaeróbios de tratamento de rejeitos diversos (esgotos sanitários, vinhaça de processo de produção de etanol e efluentes de indústria de papel e celulose). Archaea 23 4. Prioridades para o desenvolvimento dos estudos Percebe-se claramente que o Domínio Archaea é pouco conhecido e explorado em todos os ramos da Microbiologia. No que se refere à sistemática e taxonomia, não há nenhum esforço acadêmico concentrado, mesmo que individual, na direção de aprofundar o conhecimento sistemático deste grupo de organismos no estado de São Paulo. Algumas iniciativas atuais ainda são incipientes e necessitam de apoio de agências de fomento e desenvolvimento científico para a sua consolidação. É necessário um esforço direcionado à formação de profissionais em microbiologia anaeróbia, isolamento (solos, sedimentos, água, sistemas de biorreatores etc.) e taxonomia polifásica de Archaea. Os cursos de Pós-Graduação em Microbiologia devem introduzir e estimular o conhecimento sobre a microbiologia de Archaea, reconhecida internacionalmente como prioritária para desenvolvimento, particularmente em ecologia microbiana e bioprospecção para biotecnologia. 5. Bibliografia Anais do V International Anaerobic Digestion Symposium. 1988. Bologna, Itália. Anais do VI International Anaerobic Digestion Symposium. 1991. São Paulo, SP, Brazil. Adams, M.W.W. 1995. Thermophilic Archaea: an overview. In: Archaea a laboratory manual: Thermophiles. Robb, F.T. & Place, A.R. (eds.). New York: Cold Spring Harbor Laboratory Press. p. 3-7. Badra, R.J. 1993. 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