PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL BACHARELADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS Anuê do Canto Palma O DIREITO DE ACESSO E EXERCÍCIO DE CARGOS PÚBLICOS PELOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA: PRIVILÉGIO OU JUSTIÇA Porto Alegre, 2007 ANUÊ DO CANTO PALMA O DIREITO DE ACESSO E EXERCÍCIO DE CARGOS PÚBLICOS PELOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA: PRIVILÉGIO OU JUSTIÇA Trabalho de conclusão apresentado como requisito parcial para a obtenção de grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Elton Somensi de Oliveira Porto Alegre, 2007 Anuê do Canto Palma O DIREITO DE ACESSO E EXERCÍCIO DE CARGOS PÚBLICOS PELOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA: PRIVILÉGIO OU JUSTIÇA Trabalho de conclusão apresentado como requisito parcial para a obtenção de grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovada pela Banca Examinadora em _____ de _____________ de 2007. Banca Examinadora: ________________________________________ Prof. Elton Somensi de Oliveira - PUCRS ________________________________________ ________________________________________ AGRADECIMENTOS Agradeço à Deus pela força interior e a luz que sempre me deu, à minha mãe, Neli, o exemplo de vida, amor, abnegação e dedicação, ao meu pai, André, meu grande incentivador, ao meu irmão mais novo, Kauê, por ter me suportado até hoje e pelo seu bom exemplo, à minha família, por ser o alicerce de tudo o que sou e serei, aos meus amigos por estarem sempre por perto, ao professor Jarbas de Mello Lima, a excelente administração desta Faculdade, aos professores, o seu inestimável conhecimento, e aos meus colegas de faculdade, a compreensão nos momentos difíceis. Agradeço, em especial, ao Professor Elton Somensi de Oliveira, e a Professora Lívia Haygert Pithan, pelo carinho, dedicação, disposição e competência com que me orientaram neste trabalho. “Alguns homens não têm firmeza de caráter. Assemelham-se a uma bola de cera e podem ser moldados em qualquer aspecto concebível. Não possuem forma e consistência definitivas e são inúteis no mundo. Essa fraqueza, indecisão e ineficiência precisam ser vencidas. Existe no verdadeiro caráter cristão alguma coisa de indomável, que não pode ser moldada nem subjugada pelas circunstâncias adversas. Os homens precisam ter, moralmente falando, espinha dorsal, uma integridade que não é vencida pela lisonja, pelo suborno ou o terror” Ellen G. White "A busca constante por uma autenticidade possível confere dignidade e sentido à nossa vida”. Ernest Sarlet RESUMO O presente Trabalho de Conclusão do Curso de Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tem por escopo abordar o problema da crescente dificuldade encontrada por pessoas membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que possuem por preceito de fé a guarda do sábado bíblico, em participar de certames públicos que são realizados neste dia (pôr-do-sol de sextafeira até o pôr-do-sol de sábado). Busca-se nesse trabalho evidenciar que a igualdade no acesso a cargos públicos, enquanto direito que decorre de uma relação de justiça social, reside na busca do que é justo, no sentido daquilo que é devido a cada pessoa-cidadão membro de um Estado Democrático de Direito e que tem como fim último a busca da dignidade da pessoa humana. São analisadas, ainda, jurisprudências de tribunais pátrios aplicáveis ao objeto deste trabalho, visando demonstrar o tratamento e as soluções aplicadas pelos tribunais. Palavras-chave: liberdade religiosa, liberdade de crença, liberdade de culto, justiça social, igualdade, dignidade da pessoa humana. ABSTRACT The present Law School final research paper of the Catholic University of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, has as a main objective address the problem of the increasing difficulty found among people who are members of the Seventh-day Adventist Church, who observe the Sabbath, regarding their attendance of public functions, held on this day (from Friday’s sunset until Saturday’s sunrise). We sought through this paper to highlight the equality in the access to public offices, while a right of social justice, lies on the search of what is fair, while the right each person-citizen has as a member of a Democratic Law State, which has as a final goal the search for human being’s dignity. As for this matter, jurisprudences were analyzed with the intention to show the treatment and the solutions applied by the courts. Key Words: observance, social justice, social right, human being’s dignity. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil IADS – Igreja Adventista do Sétimo Dia STF – Supremo Tribunal Federal SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10 1 JUSTIÇA SOCIAL .................................................................................................12 1.1 CONCEITUAÇÃO ...........................................................................................12 1.2 ESTRUTURA DO CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIAL ....................................13 1.2.1 Alteridade .............................................................................................15 1.2.2 Dever.....................................................................................................15 1.2.3 Adequação ...........................................................................................16 1.3 FORMULAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DA JUSTIÇA SOCIAL ..........17 2 LIBERADE RELIGIOSA ........................................................................................18 2.1 LIBERDADE DE CRENÇA..............................................................................21 2.2 LIBERDADE DE CULTO.................................................................................27 2.3 LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA ..............................................30 3 ACESSIBILIDADE A CARGOS PÚBLICOS – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA .............................................................................................................33 3.1 ACESSO À CARGO PÚBLICO .......................................................................33 3.2 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA ...............................................37 3.2.1 Fundamentos jurisprudenciais desfavoráveis aos membros da IASD..........................................................................................................................37 3.2.2 Fundamentos jurisprudenciais favoráveis aos membros da IASD .39 3.3 EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA ...............................................42 CONCLUSÃO ...........................................................................................................45 REFERÊNCIAS.........................................................................................................53 INTRODUÇÃO A escolha de trabalhar sobre o tema da liberdade religiosa, máxime a liberdade de culto religioso dos Adventistas do 7° Dia, justifica-se por não se vislumbrar uma tutela efetiva no ordenamento jurídico atual, que assegure os direitos dos adeptos dessa denominação religiosa de poderem manter os seus princípios de natureza religiosa, que inclui o culto sagrado do Sábado (guarda do sétimo dia bíblico) sem terem que, muitas vezes, sacrificarem os seus direitos constitucionais (acesso a cargos públicos, participação em concursos públicos de vestibulares, etc.). A delimitação do tema do trabalho reside no âmbito do direito da liberdade religiosa, máxime do direito de liberdade de crença e de culto religioso que envolve o respeito ao dia de descanso do sábado bíblico - guarda do sábado pelos Adventistas do Sétimo Dia e religiões afins, bem como na plena garantia constitucional de todos os cidadãos de poderem participar em certames públicos – direito de acesso e exercício de cargos públicos. O desenvolvimento dessa problemática se faz essencial para a busca efetiva das garantias dos cidadãos diante do poder de limitação e ingerência do Estado na esfera privada dos indivíduos, bem como a consolidação do Estado Democrático de Direito, que visa respeitar, considerar e respaldar o indivíduo na sua integralidade (inteireza) em harmonia com a pluralidade de pessoas e idéias. Assim, busca-se identificar se existe uma preponderância de direitos e princípios aplicáveis ao caso concreto analisado e avaliar as normas e princípios que os Adventistas do Sétimo Dia se utilizam para buscar guarida dos seus direitos. 1 11 A pesquisa tem um enfoque de natureza teórica, partindo de uma revisão bibliográfica do tema, bem como de uma análise da jurisprudência pátria, artigos especializados e revistas diversas, para que se possa trazer maior luz e compreensão ao objeto do trabalho. O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro capítulo, tematiza igualdade como um direito social, mediante a análise e explicação da teoria da justiça, que trará luzes e subsídios para um melhor entendimento do problema proposto. Tal problema reside na busca do que é justo, entendido como o que é devido a cada pessoa-cidadão membro de um Estado Democrático de Direito, que tem como fim último a busca da dignidade da pessoa humana. Usou-se como estribo na pesquisa do primeiro capítulo a melhor doutrina do Prof. Luis Fernando Barzotto, tendo como diretriz o seu artigo, Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. O segundo capítulo procura perscrutar o direito fundamental de liberdade religiosa, assim como os seus principais desdobramentos em liberdade de crença, culto e organização religiosa. Já no terceiro capítulo demonstra-se que o direito de acesso à ocupação de um cargo público é um direito de todos os cidadãos, independente da sua crença religiosa. Outrossim, analisa-se as correntes jurisprudências pátrias aplicáveis ao objeto do trabalho, bem como casos concretos de pessoas Adventistas do Sétimo Dia que são ocupantes de cargos públicos. 1 JUSTIÇA SOCIAL 1.1 CONCEITUAÇÃO Luis Fernando Barzotto no seu artigo, Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito, discorre sobre à dignidade da pessoa humana e a justiça social no sentido de que numa sociedade democrática moderna a concepção de dignidade terá sentido universal e igualitário, permitindo-se falar em dignidade imanente (inata) aos seres humanos, constituindo-se, então, premissa essencial que todos indivíduos são possuidores de dignidade, portanto, se todos possuem a mesma dignidade, possuíram também, fundamentalmente, a mesma igualdade, igualdade esta que será absoluta, enquanto membros de uma mesma comunidade. Numa sociedade democrática, cujo escopo é a justiça social, enfatiza-se o sujeito do bem comum, como fim último da lei, porquanto, “todo ato em conformidade com a lei beneficia igualmente a todos”. Com efeito, numa sociedade de iguais a justiça social “tem por objeto aquilo que é devido ao ser humano simplesmente pela sua condição humana”, resultando, portanto, em uma colaboração na obtenção do bem comum (sujeito da justiça social), bem como numa devida participação de todos os membros do bem comum (termo da justiça social)1 No mesmo artigo Barzotto expressa que “a justiça social exige de cada um aquilo que é necessário para a efetivação da dignidade da pessoa humana dos outros membros da comunidade, ao mesmo tempo em que atribui a cada um os direitos correspondentes a esta dignidade.”2 Podemos inferir do texto em análise que todos os seres humanos, enquanto pessoas, são iguais, dotadas dos mesmos direitos e deveres, e, portanto, toda 1 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito & Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 114-116. 2 Idem, p. 118. 1 13 desigualdade em aspectos constitutivos da pessoa, quer seja de natureza física (racial – raça dominante ou em maior número), mental (privilégio a uma ideologia pessoal ou política dominante) ou espiritual (desrespeito e/ou desconsideração à crença e à manifestação de culto de outrem), deve ser afastada, sob pena de ser descaracterizada a justiça social.3 A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), no seu capítulo da ordem social, objetiva a justiça social, visto que, “devem ser atribuídos a todos os bens (que formam o conteúdo do bem-estar) necessários ao pleno desenvolvimento de sua personalidade”. Tal desiderato constitucional poderá ser atingido “por mecanismos típicos da justiça social, atribuindo a todos o mesmo direito, independente de características particulares, ou por meio de mecanismos de justiça distributiva”.4 1.2 ESTRUTURA DO CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIAL Para Barzotto o “conceito de justiça diz respeito a realização de um determinado bem, e, portanto, deve-se determinar qual é o bem buscado pela justiça social” 5 Para se fazer uma estruturação do conceito de justiça social deve-se levar em conta: 1) Tipo de relação social; 2) Especificação de qual tipo de atividade em que a justiça social é aplicada; 3) Exploração da manifestação na espécie justiça social dos elementos do gênero justiça – alteridade, dever e adequação.6 A alteridade consiste em considerar uma relação de justiça entre sujeitos diferentes. Ela (alteridade) “aponta para o fato de a justiça só ter lugar entre sujeitos distintos”7. O dever significa que por alguma razão necessária será atribuído algo devido a alguém, sem que isso implique num favorecimento de ordem (natureza) 3 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito & Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 118. 4 Idem, p. 119-120. 5 Ibidem. 6 Ibidem. 7 Ibidem. 1 14 subjetiva. A adequação será a determinação do critério – razão de proporcionalidade - do que é devido a alguém. A relação regulada pela justiça social é a do indivíduo para com a comunidade, tratando propriamente daquilo que é devido à comunidade, determinando quais são os deveres em relação a todos os membros da comunidade. Assim, a justiça social regulando “as relações do indivíduo com a comunidade, não faz mais do que regular as relações do indivíduo com outros indivíduos, considerados apenas na sua condição de membros da comunidade”8 O bem comum é o objeto da justiça social pretendido diretamente, sendo que o bem dos indivíduos (partícipes) da comunidade serão considerados indiretamente. Com efeito, todo ato que busca diretamente o bem comum, alcança indiretamente o bem de cada membro da comunidade.9 O tipo de atividade em que a justiça social tem aplicação é aquela na qual se regula “uma prática social mais complexa, a prática do reconhecimento”10. A justiça incidente sobre um determinado tipo de atividade social manifesta-se na exata medida em que uma pessoa respeita e reconhece os outros como pessoas, caracterizando, assim, uma prática de mútuo reconhecimento no seio de uma comunidade. O Prof. Barzotto assevera que: A justiça social, pois, suprime toda sorte de privilégios, no sentido de uma desigualdade de direitos. Cada um só possui os direitos que aceita para os outros, ou seja, cada um é sujeito de direito na mesma medida em que reconhece o outro como sujeito de direito. A recusa no reconhecimento destrói a comunidade dos sujeitos de direito. Aquele que não é reconhecido como sujeito de direitos no interior da comunidade, também não é sujeito de deveres. Na medida em que os demais membros não reconhecem os direitos de alguém, este fica desobrigado de reconhecer os direitos dos 11 demais. 8 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito & Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 121-122. 9 Idem, p. 122. 10 Idem, p. 123. 11 Ibidem. 1 15 1.2.1 Alteridade O ser humano em quanto considerado como pessoa humana é membro de uma comunidade específica. Ele é o outro (alter) numa relação de justiça social, sendo assim, o sujeito beneficiado na relação de justiça. A pessoa humana é visualizada como sendo partícipe do todo e não na sua singularidadeindividualidade, portanto é em virtude da sua qualidade de pessoa humana que o ser humano é considerado como titular de direitos e deveres na ótica da justiça social.12 A pessoa humana deve ser considerada como um ser concreto, visto que existe de fato. Ela é, igualmente, um ser individual, porque é um todo em si mesmo, não podendo ser considerada como mero fragmento de um todo maior. Não se pode olvidar que a pessoa humana tem raciocínio próprio, peculiar, estando apta para autodeterminar-se nos atos da vida pessoal, capacitada a viver como bem entender e habilitada a conhecer a verdade por si mesma, por intermédio da livre razão. Por derradeiro, deve-se considerar a pessoa humana como um ser social, que só consegue desenvolver-se na sua plenitude, vivendo em comunidade com seus pares (outras pessoas).13 1.2.2 Dever O dever está vinculado à relação social de justiça, que é de dar à alguém aquilo que lhe é devido. O dever exsurge da relação de reconhecimento mútuo das pessoas membros de uma comunidade. Com efeito, numa comunidade, uma pessoa humana só será considerada como membro, isto é, como parte integrante da mesma, tão-somente, se ela for reconhecida pelas outras pessoas humanas membros da mesma comunidade, adquirindo então o status ou à condição de membro. Essa relação de reconhecimento, acarreta à reciprocidade entre os membros, que dá fundamento ao dever de justiça do indivíduo para com a 12 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito & Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 123-124. 13 Idem, p. 125. 1 16 comunidade e vice-versa. Logo, na justiça social, será a reciprocidade que definirá o que é devido entre os membros.14 1.2.3 Adequação Na justiça há um modo de identificar aquilo que é devido a cada um. No que tange a justiça social este modo está associado à igualdade na dignidade da pessoa humana, que é uma igualdade básica, por conseguinte, absoluta. O termo “dignidade da pessoa humana” consubstancia-se no princípio subjacente à justiça social de que toda “pessoa humana é digna, merecedora de todos os bens necessários para realizar-se como ser concreto, individual, racional e social”. Em qualquer comunidade estabelecida sobre o princípio da dignidade da pessoa humana deve ocorrer um consenso, entre seus membros, do que seja uma determinada concepção de vida boa, em que “todos consideram a todos como sujeitos merecedores dos bens que integram a vida boa, apenas em virtude da sua condição de pessoas humanas”.15 Num caso concreto, de justiça social, para se saber o que é devido à alguém, deve-se: [...] atentar para os bens de que o ser humano é merecedor em virtude da sua condição humana. Um desses bens é a capacidade de autodeterminação. A ausência desse bem nega uma das exigências 16 derivadas da dignidade da pessoa humana. [...] Assim, se a igualdade absoluta (igualdade na dignidade) não for preservada, tornará qualquer ato injusto do ponto de vista da justiça social. Isso posto, a dignidade será o padrão de adequação da determinação daquilo que é devido na justiça social.17 14 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito & Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 126. 15 Idem, p. 128. 16 Idem, p. 129. 17 Ibidem. 1 17 1.3 FORMULAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DA JUSTIÇA SOCIAL Na justiça social a fórmula de dever está em dar “a todos a mesma coisa”, porquanto “todos” indica a totalidade-universalidade das pessoas humanas que compõem a comunidade. A configuração de uma sociedade em uma comunidade se processa no exato momento em que os indivíduos de uma sociedade passam a reconhecerem-se como partícipes de um projeto comum universal de realização de uma determinada concepção de vida boa para os seus membros. Esse projeto comum universal adquiri um caráter normativo essencial, visto que os bens que o compõe são reconhecidos como concepção de vida boa – liberdade, igualdade, etc.estando assegurados como direitos. O status ou condição de pessoa participante da comunidade se caracteriza na medida em que, a mesma passa a engajar-se e pugnar pela garantia dos mesmos (iguais) direitos para todos. Por conseqüência, pode-se inferir como imperativo categórico, as regras de que “cada um deve respeitar nos outros os mesmos direitos que exige para si”, bem como a de que “todos têm os mesmos direitos que exige para si”.18 O fundamento ético da justiça social consiste em exigir de cada um o que está disposto a atribuir aos outros como membros da comunidade. O caráter social do ser humano fundamenta a justiça social, sobretudo porque este (ser humano) possui uma necessidade intrínseca e extrínseca de conviver e realizar-se em sociedade (comunidade), ou seja, em comum, com o outro (semelhante ou próximo), o que acaba por envolvê-lo numa rede de relações e deveres, implicando, assim, numa conscientização, aceitação e reconhecimento mútuo do status de pessoa humana membro de uma comunidade dotada dos mesmos direitos e deveres dos demais. 18 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito & Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 130. 2 LIBERADE RELIGIOSA O autor Rafael Llano Cifuentes faz uma indagação em seu livro sobre a liberdade de religião, e após isso, lança as seguintes respostas. [...] em que medida tem o homem direito de pensar livremente em matéria de religião? [...] na medida em que a liberdade religiosa desenvolve-se no terreno da verdade religiosa de acordo com os retos ditames da própria consciência. [...] tem direito a pensar de tal maneira sempre e quando fundamente o seu juízo na boa fé, isto é, na sinceridade interior conseguida 19 depois duma procura honesta da verdade. O mesmo autor aduz, ainda, que “o direito à liberdade religiosa desenvolvese em diferentes planos, que vão do pensamento íntimo e da vivência particular (plano pessoal) até a sua expressão social e comunitária (plano social)” e que esse mesmo direito “será mais pleno e efetivo, se o Estado não se limita exclusivamente a proclamá-lo mas se dedica vigorosamente a promover medidas que favoreçam o seu exercício de fato”20 A liberdade religiosa, na perspectiva de Fernando Retamal, é vista como “un concepto dinámico, que se va perfeccionando a la par del avance de la doctrina sobre los derechos humanos.” Tece considerações no sentido de que, o tratamento da liberdade religiosa deixou de centralizar-se na verdade para centrar-se prioritariamente na pessoa humana, que ostenta uma dignidade natural, proveniente de um Direito do Homem, prévio ao Estado, hodiernamente revestido de um caráter constitucional. Ressalta, ainda, que a liberdade religiosa é um bem em si mesma, para o indivíduo e para a sociedade, possuindo uma dimensão política, visto ser parte integrante do bem comum da sociedade. Em decorrência disso, surge o dever ou mister do Estado de promover e tutelar a liberdade religiosa com a máxima amplitude possível, respeitando os princípios básicos da ordem social. Todavia, isso 19 CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2ed. atual. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 94. 20 Idem, p. 186 e 190. 1 19 reclama uma nova forma de relação Estado-Igreja, que relegue qualquer resquício de confessionalidade estatal, bem assim, qualquer laicismo estatal que em nome do respeito à liberdade de consciência, termine por asfixiar e impedir, de fato, as expressões públicas de fé dos crentes. Aliás, Fernando Retamal, compreende a liberdade religiosa como uma imunidade de coação, garantida pelo reconhecimento civil de uma esfera de autonomia inerente a cada pessoa, grupo social e comunidade.21 Pontes de Miranda, em seus Comentários à Constituição de 1967, explica que “a liberdade de religião especializa a liberdade de pensamento, pois que a vê somente no que concerne à religião”. Também explica que a liberdade de pensamento nem sempre é tangencial com a de consciência. Ademais, assevera que “a liberdade de consciência e a de crença são inconfundíveis”, pois “o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal direito”.22 A liberdade religiosa é um gênero do qual afloram 3 espécies (modalidades) de liberdades, a saber: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa. Todavia, nos deteremos mais profundamente nas liberdades de crença e de culto, porquanto guardam maior liame com o objeto deste trabalho. A liberdade religiosa está incluída entre as liberdades espirituais, sendo que “a liberdade religiosa configura, em um sentido amplo, a liberdade do espírito em matéria religiosa ou de opção do indivíduo em matéria de religião”23 No entendimento de Milton Ribeiro a liberdade religiosa, quando vista numa acepção ampla, não é um direito, mas um complexo de direitos relacionados à questão da liberdade em razão da religião. Com efeito, essa perspectiva acaba possibilitando maior compreensão da abrangência do conceito em determinadas 21 RETAMAL, Fernando. Precht Pizarro, Jorge, 15 Estudios sobre Libertad Religiosa en Chile Universidad Católica de Chile. Rev. chil. derecho. [online]. ago. 2006, vol.33, no.2 [citado 11 Abril 2007], p.401-407. Disponible en la World Wide Web: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S071834372006000200011&lng=es&nrm=iso>. ISSN 0718-3437. 22 PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969. 2ed. rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1971. Tomo V. p. 118-119. 23 COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação (Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 76. 2 20 situações fáticas e momentos históricos. Nesse feixe de direitos, cuja denominação recebe de liberdade religiosa, estão abarcadas dois direitos essenciais e fundamentais para uma garantia mínima à liberdade de religião, a liberdade de crença e de culto.24 Alexandre de Moraes escreve que a liberdade religiosa constitucionalizada é “verdadeira consagração de maturidade de um povo”, abrangendo o preceito constitucional de maneira ampla, “pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto”, portanto, qualquer “constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e a própria diversidade espiritual”.25 Na lição de José Afonso da Silva, a liberdade religiosa é um pouco complexa pelas implicações que ela suscita, sobremaneira no que tange a sua exteriorização, sendo compreendida por “três formas de expressão (três liberdades): (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de culto; (c) a liberdade de organização religiosa.”26 No que concerne ao direito da liberdade religiosa Maria Luiza Whately Barretto compreende que, em face da sua natureza, a liberdade religiosa pode apresentar-se em modalidades diferentes. Intimamente qualquer pessoa pode ter o culto ou fé que desejar, sem ter o seu sentimento religioso perturbado ou violentado pelo Estado. Entrementes o mesmo não acontece quanto às manifestações dos sentimentos religiosos que se acham subordinadas a interesses de ordem pública, dos bons costumes e dos interesses da coletividade.27 24 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Univ. Mackenzie, [2002]. p. 33-34 25 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 75. 26 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 251. 27 BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p. 250. 2 21 2.1 LIBERDADE DE CRENÇA A liberdade de crença diz respeito às opções de fé do indivíduo, a sua capacidade e faculdade de adotar uma crença religiosa ou não, bem como o direito de atuar conforme os ditames de sua crença própria, sem ser molestado ou sofrer pressão de qualquer natureza para que estabeleça, mude ou abandone suas crenças ou convicções religiosas. O Prof. José Afonso da Silva aduz que a liberdade de crença religiosa abarca a liberdade de escolha de uma determinada religião, a liberdade de aderir a qualquer religião, denominação ou seita religiosa, a liberdade - ou o direito - de mudar de religião já estabelecida, a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu ou agnóstico. Entretanto, “não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros”. Em suma, todas as pessoas têm a garantia (direito) de poder aderir ou recusar a qualquer crença religiosa, adotar o ateísmo ou exprimir agnosticismo, inclusive, podendo criar sua própria religião, bem assim seguir qualquer corrente filosófica, científica ou política.28 Os direitos dos cidadãos estão garantidos na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), independentemente da existência ou não de crença religiosa, conforme se pode verificar da redação do art. 5° inciso VIII, verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (...) 28 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 93 e 252. 2 22 O notável jurista, Pontes de Miranda, diz que “a liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença” e que “liberdade de religião é liberdade de se ter a religião que se entende, em qualidade, ou em quantidade, inclusive não se ter”.29 Referido jurista, ao fazer considerações sobre o princípio da liberdade de religião, acaba por trazer maior luz e entendimento sobre o conteúdo do art. 153, §§ 5º e 6º da CRFB/1967, que podem ser engendrados (aplicados) perfeitamente ao art. 5, inc VIII, da CRFB/1988, supracitado: No estado atual do princípio, a liberdade de religião está esvaziada de qualquer elemento de desigualdade, ou de despotismo (preponderância): é direito individual fundamental, que independe de qualquer escalonamento, em virtude de maior ou menor número de adeptos, ou de outro fator diferente. O qualificador universal “todos” não se refere à religião, mas ao indivíduo. O princípio não diz “Todas as religiões são livres”, porém “Todos os indivíduos têm liberdade de religião”. A fórmula “Todas as religiões são livres” apenas junta o grupo dos indivíduos que têm a mesma religião. Por isso mesmo, no enunciado mais exato e básico está implícito o princípio de igualdade: “Todos os indivíduos têm liberdade de religião” significa “Todos 30 os indivíduos têm igual direito à liberdade religiosa”. O Prof. José Afonso da Silva, ainda, faz um comentário contextual do art. 5°, inciso VIII da Constituição da República Federativa do Brasil, dissecando-o em partes, o que acaba por trazer maior clareza sobre o conteúdo do artigo, ora examinado. Assevera que essa regra é válida para que todos gozem de integral liberdade de convicção filosófica, política e de crença religiosa, portanto, garantindose o exercício dessa liberdade para que ninguém perca qualquer direito. No seu entendimento, “ninguém significa pessoa alguma, sujeito algum ou nenhum sujeito”, exprimindo “uma universalidade em benefício de todas as pessoas” independente da cor, raça, sexo, origem, nacionalidade, credo religioso etc. O art. 5°, inc. VIII, contém “uma garantia individual, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que sendo violada, gera direito subjetivo à correção do abuso por via administrativa e judicial”, 29 PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969. 2ed.rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1971. Tomo V. p. 119 e 123. 30 Idem, p. 123. 2 23 estando protegido pela regra constitucional, qualquer direito, não apenas os direitos fundamentais. 31 A expressão “motivo de crença religiosa” designa algo que move, que gera uma ação, tendo um sentido de causa, isto é, aquilo que seria a causa de privação de direito. A regra do art. 5°, inc VIII é proibitiva e a negativa do sujeito da proposição (“ninguém” será = “sujeito algum” será) significa que nenhuma crença religiosa pode motivar ou causar a privação de qualquer direito. A regra aludida está expressa na voz passiva com um agente indeterminado, portanto, se fosse expressa na voz ativa, a proibição poderia ser dirigida a um sujeito universal (“ninguém poderá privar alguém de direitos por motivo de crença religiosa”). Considerando-se que o sujeito mais desrespeitador das liberdades, seja o Poder Público, então, a norma com esse sujeito expresso ficaria assim “O Poder Público não privará ninguém de qualquer de seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”.32 Já quanto à expressão “salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta” é dito que essa ressalva institui um direito individual, o de escusa de consciência ou imperativo de consciência, ou seja, o direito de recusar prestar determinadas imposições que contrariem as convicções religiosas ou filosóficas do interessado. A escusa de consciência (ou imperativo de consciência) deriva da própria liberdade de crença ou de convicção filosófica ou política, entretanto, esse direito individual – escusa de consciência ou imperativo de consciência – pode sofrer restrição objetiva com o escopo de ser mantido o equilíbrio do princípio da isonomia, visto que, o escusante fica, em virtude da sua escusa, liberado de cumprir obrigação a todos imposta, o que lhe é causa de um benefício individual decorrente de um tratamento diferenciado, o qual é resultado da quebra do princípio do tratamento igual para situações iguais.33 31 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 95. 32 Idem, p. 96. 33 Idem, p. 97. 2 24 Da expressão “e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”, verifica-se que pode ocorrer privação de direitos do escusante, se este recusar-se a cumprir prestação alternativa, que, evidentemente, deverá ser compatível com suas convicções. Note-se que a prestação alternativa é que constitui a sanção para a escusa de consciência considerada nesse dispositivo constitucional. O dever de prestação alternativa depende de fixação em lei, caso esta não se verifique, isto é, inexista determinação legal de cumprimento de prestação alternativa, a mesma não poderá ser imposta, mesmo diante de uma eventual escusa. Por conseguinte, se o titular do direito de escusa também descumprir à prestação alternativa prevista em lei, é que, então, estará sujeito a qualquer penalidade estatuída na lei referida (art. 5°, VIII, in fine). Esta penalidade, que é uma norma de decisão – norma de conduta fixada em lei –, consiste na regra de privação do direito prevista no art. 15, IV, da CRFB, a saber, suspensão dos direitos políticos.34 A liberdade de crença é timbrada essencialmente pelo seu caráter interno, possibilitando a pessoa humana desenvolver sua própria orientação de fé, formar sua perspectiva de mundo e de vida, bem como eleger os valores que considerar essenciais, sendo, portanto, inalienável por natureza. Mesmo que a liberdade de crença seja cerceada ou proibida legalmente, a norma jurídica não poderá imiscuirse na crença (fé) de alguém, em virtude da crença existir somente no interior do indivíduo, isto é, no seu foro íntimo.35 Comunga dessa mesma opinião Maria Luiza Whately Barretto ao dizer que tanto a consciência como a crença são sempre livres, indevassáveis pelo Estado, não necessitando de proteção constitucional ou legal, pois o objeto de cogitação do direito é a religião, o culto religioso, o cerimonial, a prática (exteriorização) da consciência e da crença. Outrossim considera à crença como sendo um “estado especial da alma humana, interior, inviolável, pessoal”, “problema interno do homem”, “problema de fé”, uma “cogitação que não precisa ser, necessariamente exteriorizada, mediante o culto, a religião, o rito”. Ademais, aduz que “alguém pode 34 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 97. 35 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Univ. Mackenzie, [2002]. p. 34-35. 2 25 participar de culto ou religião sem ter crença ou fé”, como pode “haver culto sem fé ou crença, bem como “pode haver crença ou fé sem culto”.36 Uma implicação positiva da liberdade de crença é a de ter e manifestar livremente as crenças adotadas, decorrendo daí, o direito ao proselitismo ou a explanação e a difusão da fé. Nessa linha escreveu Maria Emília Corrêa da Costa a respeito das dimensões internas e externas da crença religiosa. Asseverou que a garantia à crença ou às convicções religiosas possuem uma “dimensão interna do indivíduo – um espaço de autodeterminação no que tange ao fenômeno religioso -, que não pode ser violado”, não podendo o indivíduo “ser prejudicado por professar ou deixar de professar certas crenças, ainda que estas não estejam revestidas de manifestações externas”. Já quanto à dimensão externa, disse ela, nada mais é do que um agir lícito, que “faculta ao indivíduo atuar segundo as suas convicções religiosas e mantê-las frente a terceiros, livre de quaisquer embaraços, pressões ou coações”, visto que a exteriorização do fenômeno religioso “implica uma diversidade de condutas e uma multiplicidade de comportamentos”.37 A implicação negativa da liberdade de crença reside no direito de resguardo do indivíduo sobre a existência e o conteúdo da sua crença, bem como o direito ao silêncio sobre suas convicções religiosas, cabendo a si a decisão voluntária de manifestar ou não a própria crença, livre de pressões ou coações por parte de poderes públicos ou terceiros, para que, assim, seja evitado qualquer forma de discriminação em razão da religião.38 Corrobora essa corrente de pensamento Rafael Llano Cifuentes ao dizer que no plano pessoal o direito à livre decisão em matéria religiosa exige naturalmente a ausência de todo o constrangimento externo no desenvolvimento das convicções religiosas, constituindo-se como único meio lícito de se provocar uma confissão de fé numa pessoa os meios externos de exposição doutrinária e a eventual persuasão decorrente desta. Aduz, aliás, que a ausência de coação direta não é o suficiente, 36 BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p. 249-250. 37 COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação (Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 84-85. 38 Idem, fl. 86. 2 26 sendo “necessário que não exista qualquer tipo de discriminação jurídica baseada em razões religiosas”, importando, por conseguinte, que ninguém seja perseguido, sancionado, impedido ou obstado de ocupar determinados cargos, ou restringido nos seus direitos, por professar determinada crença. Deveras, nunca permitir-se-á discriminações quando estas atinjam direitos ligados à dignidade humana, pois, tanto a igualdade jurídica, como, o direito à liberdade religiosa, são postulados essenciais do Direito natural. Assim, por exemplo, o credo religioso não pode supor um elemento positivo ou negativo, na admissão de funcionários públicos, professores de cargos estatais, alunos em universidades públicas ou privadas etc.39 No plano social, a liberdade religiosa, para Rafael Llano Cifuentes, é a garantia do direito ao exercício público e comunitário da religião, que tem repercussões externas, posto que, a natureza social do homem exige uma comunicação extra-subjetiva dos sentimentos internos e, frequentemente, uma expressão comunitária das vivências particulares. Demais disso, as diferentes religiões comumente preceituam determinados atos culturais [e religiosos] que devem ser feitos coletivamente, por isso, o direito à liberdade religiosa deve ser defendido também, para ser pleno, na sua dimensão externa, social e comunitária, pois, é a natureza social, tanto do homem quanto da religião, que reclama comunidades religiosas. Menciona, ainda, que o direito ao exercício religioso no plano social é condição sine qua non para o exercício de outros direitos decorrentes deste como, por exemplo: a) Direito das comunidades para se regerem segundo normas próprias; b) Direito a ensinar em público e a testemunhar a fé pela pregação e imprensa; c) Direito a expor livremente o valor peculiar de sua doutrina para a organização da sociedade e para a vitalização de toda a atividade humana.40 39 CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2ed. atual. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 187-188. 40 CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2ed. atual. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 189-190. 2 27 2.2 LIBERDADE DE CULTO O direito à liberdade de culto está garantido na Constituição da República Federativa do Brasil nos seguintes art. 5° inciso VI e art. 19 inciso I, verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...) Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (...) José Afonso da Silva faz a seguinte explanação sobre a liberdade de culto: A religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidade aos hábitos, às tradições, na forma da 41 religião escolhida. Liberdade de culto é a “extensão exteriorizada, vivida, da liberdade de crença religiosa ou, simplesmente, liberdade de religião”, é “direito fundamental, assegurado em si e não só institucionalmente”. Na liberdade de culto, di-lo Pontes de Miranda, há elemento novo, onde as doses de liberdade de pensamento e de liberdade física caracterizam graus de combinação entre as duas liberdades. Portanto “compreendem-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso”. A liberdade de culto supõe contato com outros homens ou com objetos que interessam a outros homens, em vez de ser 41 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 252. 2 28 liberdade do indivíduo sozinho, máxime, porque “toda religião se prende ao que se pensa e ao que se pratica com intuito de culto. Mas o que é culto? Pontes de Miranda o define como sendo “a forma exterior da religião: religião + relação com os outros homens + ação”.42 Na opinião de Maria Luiza Whately Barretto, no campo jurídico, o culto é entendido como “a manifestação das próprias crenças religiosas do mundo externo, o conjunto de todos os atos externos (práticas e omissões), com os quais se patenteia a fé religiosa”. Entende também que “a liberdade de culto diz respeito às manifestações ligadas à religião que se tem”, sendo portanto passível de restrição imposta por lei e regulamentos de polícia. Conclui o seu pensamento aduzindo que, em verdade, “não há religião sem culto, porque as crenças não constituem, por si mesmo, uma religião”, portanto se “não existir culto ou ritual correspondente à crença, pode haver posição contemplativa, filosófica, jamais religião”.43 A liberdade de culto para Milton Ribeiro ”difere da liberdade de crença na medida em que é a exteriorização e a demonstração plena da liberdade de religião que reside interiormente”.44 No entender de Maria Luiza Whately Barretto o dispositivo constitucional em análise busca o escopo de “proteger a liberdade de culto, de manifestação da fé, do pensamento, da atividade do homem”, bem assim “a projeção externa, a exteriorização, a demonstração, da consciência religiosa, da crença, da fé”. Faz referência, também, que o dispositivo no inc. VI, art. 5° da Constituição Federal de 1988, visa resguardar o Princípio da Isonomia, tendo em vista que o mesmo prevê “igualdade para os iguais e desigualdade para os desiguais”.45 42 PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969. 2ed. rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1971. Tomo V. p. 124, 129, 136 e 155. 43 BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p. 250. 44 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Univ. Mackenzie, [2002]. p. 38. 45 BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p. 249-250. 2 29 José Afonso da Silva faz considerações sobre a liberdade de culto plasmada no art. 5°, inciso VI, da Constituição da República Federativa do Brasil explicitando que, a constituição ampliou essa liberdade, prevendo-lhe uma garantia específica, isto é, assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Menciona que diferentemente das constituições anteriores não condiciona o exercício dos cultos à observância da ordem pública e dos bons costumes, aludindo que, tanto o conceito de ordem pública como o de bons costumes são vagos e indefinidos, servindo mais para intervenções arbitrárias do que de tutela dos interesses gerais. Salienta que, consoante dispositivo constitucional, a liberdade de exercício dos cultos está assegurada sem condicionamentos, estando, outrossim, protegido os locais de culto e suas liturgias, só que essas, na forma da lei. Evidentemente faz parte da liberdade de exercício dos cultos, que não está sujeita a condicionamento, definir os locais do culto e suas liturgias. Os cultos poderão ocorrer em locais típicos, como templos, edificações com características peculiares de cada religião, bem como em locais não típicos, nada obstante, necessários ao pleno - ou à perfectibilização do - exercício da liberdade religiosa. Ademais, “a liberdade de culto se estende à sua prática nos lugares e logradouros públicos”, merecendo proteção da lei, enfim, “cumpre aos poderes públicos não embaraçar o exercício dos cultos religiosos (art. 19, I) e protegê-los, impedindo que outros o façam”.46 Para o conspícuo Pontes de Miranda, o Estado (ou qualquer poder público) “não pode estabelecer culto religioso, nem dar subvenção a culto ou cultos, direta ou indiretamente; nem lhes embaraçar o exercício, material ou moralmente”. Mas o que significa estabelecer, subvencionar ou embaraçar cultos religiosos? O próprio Pontes de Miranda responde a essa indagação, explicitando que: “Estabelecer” cultos religiosos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa, ou de propaganda. “Subvencionar cultos religiosos” está no sentido de concorrer, com dinheiro, ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça a atividade religiosa. “Embaraçar o exercício” dos cultos religiosos significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de 47 atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso. 46 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 252-253. 47 PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969. 2ed. rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1970. Tomo II. p. 185. 3 30 O exercício da liberdade de culto, na ótica de Maria Emília Corrêa da Costa, tem que ver com a “exteriorização, através de rituais, cerimônias, símbolos ou aparatos, da religião professada”, quer seja em locais próprios destinados a tais fins, quer seja em locais públicos. Entende como vertente negativa da liberdade de culto o “direito de não ser obrigado a participar de quaisquer atos religiosos”, ressaltando que é no campo da liberdade de culto onde reside grande parte das questões controvertidas ou de relevo jurídico em matéria de liberdade religiosa, que acabam por suscitar “problemas de colisão com outros valores também protegidos pelo Direito”. Em face da possibilidade de conflito de valores, é que a liberdade de culto, em determinadas situações, poderá ser limitada pelo Estado, entrementes, “há que se atentar para as motivações de eventuais limitações, que não podem implicar, ainda que indiretamente, uma restrição indevida à liberdade de culto”, máxime porque “a atual previsão constitucional pátria assegura a liberdade de exercício dos cultos religiosos sem imposição de condições”. Ressalta que, como meio de solução para casos concretos concernentes a questão da liberdade de culto, dever-se-á lançar-se mão do princípio da proporcionalidade quando a liberdade de culto “defrontar-se com outros direitos, liberdades ou garantias”, posto que, a liberdade de culto “deverá submeter-se à ponderação com outros bem constitucionalmente protegidos, sofrendo restrições em função de tal ponderação, na medida exata da proteção de todos os direitos envolvidos”.48 2.3 LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA No prisma de José Afonso da Silva a liberdade de organização religiosa tem que ver com à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado. No que tange à relação Estado-Igreja, três são os sistemas observados, cada qual com suas gradações: confusão, união e a separação. Na confusão, o Estado se confunde com determinada religião, sendo um Estado teocrático, como, por exemplo, o Vaticano e os Estados islâmicos. Já na união, verificam-se relações jurídicas entre o Estado e determinada Igreja no que concerne 48 COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação (Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 88-89 e 92. 3 31 à sua organização e funcionamento, ocorrendo, comumente, a participação ou ingerência do Estado na designação dos ministros religiosos, nos cargos ocupados por estes e nas suas remunerações. Na separação pode existir tanto o indiferentismo, a neutralidade ou imparcialidade, como a colaboração nas relações Estado-Igreja, podendo ocorrer, até mesmo, uma separação mais rígida para um sistema que admite certos contados entre o Estado e as igrejas.49 Leciona, ainda, José Afonso da Silva, que “a República principiou estabelecendo a liberdade religiosa com a separação da Igreja do Estado”, antes mesmo da constitucionalização do novo regime, com o Decreto 119-A, de 7.1.1890, da lavra de Ruy Barbosa, expedido pelo Governo Provisório. Nessa esteira, explica que: A Constituição de 1891 consolidou essa separação e os princípios básicos da liberdade religiosa (arts. 11, §2°; 72, §§ 3° a 7°; 28 e 29). Assim, o Estado brasileiro se tornou laico, admitindo e respeitando todas as vocações religiosas. O Decreto 119-A/1890 reconheceu personalidade jurídica a todas as igrejas e confissões religiosas. O art. 113, item 5°, da Constituição de 1934 estatuiu que as associações religiosas adquiriram personalidade jurídica nos termos da lei civil. Os princípios básicos 50 continuaram nas constituições posteriores até a vigente [CRFB/1988] [...] A garantia da liberdade religiosa das confissões e comunidades religiosas deriva da liberdade religiosa individual. Nesse passo, a liberdade de organização religiosa “apresenta uma dimensão coletiva, tendo em vista a formação de grupos na sociedade civil com identidade religiosa, os quais também são objeto de tutela”. A neutralidade do Estado em matéria religiosa tem como corolário o princípio da separação das confissões religiosas do Estado, que contribui, em grande medida, para proteção das coletividades religiosas. O Brasil apresenta um modelo de Estado laico, adotando claramente o princípio da separação entre Estado e organizações religiosas. Em virtude disso, a neutralidade do Estado brasileiro mostra abertura à multiplicidade de crenças e organizações religiosas, não interferindo diretamente nas questões religiosas e nas próprias organizações religiosas. Essa mesma neutralidade impõe ao poder público – na figura de seus representantes - que se abstenha de tomar quaisquer medidas ou fundamentar quaisquer decisões, quer 49 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 253-254. 50 Idem, p. 254. 3 32 sejam administrativas ou judiciais, com base em entendimentos religiosos, pois “os valores ou interesses religiosos não podem ser usados como parâmetros ou como elementos norteadores dos atos estatais”. No entanto, são percebidos no Brasil, alguns resquícios de um passado, não muito distante, de um Estado, outrora, confessional, posto que, “por quase quatrocentos anos, a sociedade brasileira viveu em meio à vinculação oficial entre o Estado e uma religião [católica]”. Com efeito, a relevância da neutralidade do Estado em matéria religiosa se evidencia na exata medida em que “promove a convivência pacífica entre as diferentes confissões religiosas, garantindo a liberdade religiosa de forma ampla em uma sociedade caracterizada pelo pluralismo religioso”. Ademais, estende-se às confissões religiosas “os mesmos direitos garantidos aos indivíduos em matéria religiosa”, assegurando-se, portanto, o direito “a formação de associações ou grupos com fins religiosos, a realização de reuniões para aquela finalidade, o estabelecimento de locais apropriados para culto, a divulgação e pregação de sua doutrinas, etc.”51 51 COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação (Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 94, 97-98 e 106. 3 ACESSIBILIDADE A CARGOS PÚBLICOS – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA Neste capítulo será abordado o caso concreto do acesso a cargos públicos por membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), que possuem por dogma de fé a guarda do sábado bíblico como forma de expressão de seu culto religioso. Será analisado a possibilidade de conciliação (harmonização) entre o exercício do direito de liberdade de religião ou liberdade religiosa, pelos membros da IASD, máxime o exercício de direito de crença e de culto, com o direito de acesso à cargo público constitucionalmente assegurado na CRFB/1988. Outrossim, será feito uma breve análise e cotejo entre as correntes jurisprudências aplicáveis ao caso concreto para que se possa fazer uma síntese conclusiva. 3.1 ACESSO À CARGO PÚBLICO O acesso à cargo público está assegurado, constitucionalmente, a todo os brasileiros, que preencham os requisitos estabelecidos em lei, verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...) Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, 3 34 publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) Na lição de José Afonso da Silva a acessibilidade à função pública é uma manifestação especial da liberdade de ação profissional, que está inserida no art. 5º, inciso XIII, da CRFB/1988. Entende que o art. 37, inciso I, na sua primeira norma, que é de eficácia contida e aplicabilidade imediata, reconhece acessibilidade a todos os brasileiros à função administrativa, de sorte que a lei a ela referida não cria o direito previsto, antes o restringe ao prever requisitos para seu exercício. Essa lei está limitada pela própria regra constitucional, de tal forma que os requisitos nela fixados não poderão importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a correta observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa. Aduz, ainda, que o princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos visa essencialmente realizar o princípio do mérito que se apura mediante investidura por concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei.52 Leciona Hely Lopes Meirelles que as normas do art. 37, inc. I e II da CRFB/1988 dispõem sobre a acessibilidade aos cargos públicos, funções e empregos públicos, bem assim, a obrigatoriedade de concurso público. Expõe que a Constituição Federal ao estabelecer a acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas a todos os brasileiros, quer sejam natos ou naturalizados, assegurou-lhes, conseqüentemente, o direito de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, excepcionando-se as ressalvas constitucionais (art. 12, § 3°). Note-se que a acessibilidade aos cargos públicos, funções e empregos públicos está 52 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 260 e 663. 3 35 condicionada ao preenchimento dos requisitos estabelecidos em lei. No entanto, apesar da autorização legal da Administração de prescrever certas exigências que entenda conveniente para a admissão de servidores, cujo fito deverá ser de atingir eficiência, moralidade e aperfeiçoamento da Administração, é-lhe vedado estabelecer condições que afrontem as garantias asseguradas no art. 5° da Constituição Federal, proibindo-se, assim, qualquer distinção baseada em sexo, idade, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Em face do princípio da isonomia os requisitos estabelecidos em lei “hão de ser apenas os que, objetivamente considerados, se mostrem necessários e razoáveis ao cabal desempenho da função pública”. Em suma, se determinado cargo ou emprego público pode ser exercido indiferentemente por pessoas de qualquer credo religioso, a discriminação fundada nesse atributo (qualidade, peculiaridade) pessoal do candidato será indevida.53 O concurso público é obrigatório, excetuando-se os cargos em comissão e empregos com essa natureza, para a “investidura em cargo ou emprego público, isto é, ao ingresso em cargo ou emprego isolado ou em cargo ou emprego público inicial da carreira na Administração direta e indireta”. O concurso é “meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público”, mas também serve para “propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CRFB/1988”. Como os concursos não têm forma ou procedimento estabelecido na Constituição, é de suma importância que sejam precedidos de uma regulamentação legal ou administrativa para que os candidatos estejam inteirados de suas bases e matérias exigidas. Com efeito, ministra Hely Lopes Meirelles, a finalidade precípua do concurso público é selecionar os candidatos mais aptos e capazes, para que tal fim aconteça, a Administração tem liberdade para “estabelecer as bases do concurso e os critérios de julgamento, desde que o faça com igualdade para todos os candidatos, tendo, ainda, o poder de 53 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25ed. Atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 393-395. 3 36 alterar as condições e requisitos de admissão dos concorrentes”, para melhor atender o interesse público.54 Alexandre de Moraes afirma que existe um verdadeiro direito do cidadão de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, pois este é o verdadeiro agente do poder, no sentido de ampla possibilidade de participação da administração pública. Além disso, explica que a ”investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista na lei”. Faz menção de que o Supremo Tribunal Federal – STF é intransigente em relação à imposição à efetividade do princípio constitucional do concurso público, como regra a todas as admissões da administração pública, ressalvando-se as exceções legais. Por isso, as autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista estão sujeitas à mesma regra de aplicação do princípio constitucional do concurso público, que envolve a administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.55 54 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25ed. Atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 396-398. 55 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 332-333. 3 37 3.2 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA 3.2.1 Fundamentos jurisprudenciais desfavoráveis aos membros da IASD Em seu voto, denegatório da segurança pleiteada, no Mandado de Segurança nº 70002025906 do 2º Grupo de Câmaras Cíveis em Porto Alegre, o Des. Nélson Antônio Monteiro Pacheco explicita que existe um choque entre o princípio constitucional de crença individual com o princípio impositivo do concurso público à Administração no caso concreto do acesso a cargos públicos por membros da IASD. Em síntese, o Des. Nélson Antônio Monteiro Pacheco opta por sobrepor a aplicação do princípio do concurso público sobre o princípio de crença religiosa, visto que, sustenta que o objeto do mandado de segurança não diz com a privação de direitos por motivo de crença religiosa (art. 5º, VIII, da CF), mas com a de convicção de natureza estritamente pessoal que se não dobra às exigências ordinárias comumente postas aos demais cidadãos em dada sociedade. Aduz que conceder a segurança pleiteada pelo candidato ao Cargo de Juiz de Direito Substituto implicaria em fazer discriminação favorecedora daqueles que professem determinada fé, o que é proibido pela Constituição. Além disso, tece considerações concernentes a possíveis dificuldades as quais poderia enfrentar o candidato, caso passasse no certame para exercer o cargo público que escolheu. Ademais, indaga que sendo o candidato tão radical praticante de sua religião, como poderia julgar questões envolvendo divórcio, aborto e assemelhadas?56 O Des. Wellington Pacheco Barros negou provimento ao agravo de instrumento, Nº 70011459534, interposto por candidatas adventistas do sétimo dia que tiveram indeferido o pedido de antecipação de tutela em decisão interlocutória, nos autos da ação ordinária, que objetivava a adequação do princípio religioso professado pelas agravantes com o horário da realização das provas para o 56 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança Nº 70002025906, 2º Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 11/05/2001. 3 38 concurso do Magistério estadual. Em seu voto, o Des. Wellington Pacheco Barros, asseverou que o Brasil é um país laico, significando que, em face disso, não pode existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões, bem como proteger à liberdade dos descrentes, velando, portanto, pela pureza do princípio de igualdade religiosa, mas mantendo-se à margem do fato religioso, sem incorporá-lo à sua ideologia. Além disso, aduziu que se faz necessário preponderar sobre a individualidade o interesse público de que os candidatos aprovados em concurso público desempenhem a carreira sob as mesmas regras, disciplinas, horários, etc., dos demais, a começar pela submissão às provas do concurso público de ingresso nos mesmos moldes dos outros candidatos e nas mesmas condições de local, ou seja, de uma sala de aula cheia, com vários fiscais, candidatos levantando, sentando, deslocando-se ao banheiro, interpelando fiscais acerca de alguma intercorrência, etc. Concluiu seu voto aludindo que os professores podem ter carga horária que contemple a noite de sexta-feira, os dias de sábado, para o exercício da profissão, bem como consabido ser o dia de sábado usualmente destinado a reuniões, conselhos de classe, etc., atividades todas das quais as agravantes estariam ausentes.57 Nessa linha é o entendimento da Desembargadora Federal Silvia Goraieb, na apelação em mandado de segurança n° 2004.72.00.017119-0/SC, em que a União Federal apelou requerendo a reforma da sentença que deferiu o pedido de concessão de segurança para que o candidato membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia pudesse realizar as provas do Concurso Público para Juiz Substituto do Trabalho de Santa Cantarina em horário diverso do marcado no Edital, pois este conflitava com a sua crença de que o sábado é um dia sagrado. A referida desembargadora deu voto favorável pelo provimento da apelação, pois vislumbrou existir uma série de violação de princípios constitucionais na pretensão do impetrante. Entendeu que do confronto entre o direito constitucional da liberdade religiosa em face de princípios como, legalidade, igualdade e isonomia, estes últimos devem prevalecer. Asseverou que com o indeferimento do pedido do impetrante não se estará intervindo em suas manifestações e convicções religiosas, apenas, estar57 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 70011459534, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Wellington Pacheco Barros, Julgado em 27/07/2005. 3 39 se-á garantindo a igualdade de condições de todos os candidatos. Explica que não cabe à administração responsável pelo concurso público adaptar seus atos consoante os preceitos da religião de cada candidato, e que, a realização das provas em horário diverso do estabelecido afronta o princípio da legalidade, bem assim o princípio da igualdade, haja vista que se estaria privilegiando um candidato em decorrência de sua crença religiosa, pois ele não se sujeitaria às mesmas regras previstas no edital, que são atribuídas a todos os candidatos inscritos no concurso. Conclui seu voto sustentando que o princípio constitucional da igualdade deve sobrepor-se ao direito constitucional da liberdade de crenças, porquanto não pode o impetrante ser tratado com distinção, pois a finalidade do concurso público é exatamente a igualdade entre os concorrentes.58 3.2.2 Fundamentos jurisprudenciais favoráveis aos membros da IASD No Mandado de Segurança nº 70002025906 do 2º Grupo de Câmaras Cíveis em Porto Alegre, o Desembargador Araken de Assis relata sucintamente que o impetrante membro da IASD, deve observar o sábado como dia de guarda, até o pôr-do-sol, abstendo-se de atividades seculares. Refere que o impetrante pugna o direito de realizar a prova em outro horário, respaldado no art. 5º, VI e VIII, da CF/88. Deferiu a liminar justificando a relevância dos fundamentos e o risco de a medida se tornar ineficaz, se concedida ulteriormente, autorizando o candidato a realizar a prova no dia 16-02-00, das 20h17min até as 24h, isto é, em horário diverso dos demais candidatos, haja vista que o concurso se realizaria sem a participação do impetrante. Em seu voto Araken de Assis explanou que a Administração há de se guiar, em primeiro lugar, pelos princípios e valores constitucionais, por conseguinte, a realização do concurso no sábado privaria o cidadão de concorrer por motivo religioso, infringindo dois direitos fundamentais: o da liberdade de crença (art. 5º, VIII, da CF/88) e o do acesso a cargos públicos (art. 37, I). Assevera que incumbe a Administração o dever de harmonizar o princípio da igualdade, que governa o concurso público, com o da liberdade de crença, que inclui a obrigatória observância 58 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AMS – Apelação em Mandado de Segurança Nº 200472000171190/SC, 3ª Turma, Relator: Silvia Maria Gonçalves Goraieb, julgado em 22/08/2005. 4 40 pelo praticante de certos princípios. Ressalta que a escolha de dias consagrados (sábado e domingo), para realizar tais provas, impede, na prática, a participação dos integrantes de minorias confessionais, cujos princípios são rígidos, no certame público, e os desfavorece. Além disso, aponta que a maioria religiosa católica no Brasil, em tese, não poderia participar de provas e atividades profanas no domingo, dia de guarda católico, todavia em virtude de adesão meramente formal de muitas pessoas à Igreja Católica Apostólica Romana o veto fica relativizado. Em face disso, as autoridades administrativas, baseadas nesta e em outras conveniências, sentemse à vontade para realizar provas nos dias consagrados e surpreendem-se com impugnações análogas às do impetrante, restringido por força do cumprimento do seu dogma confessional. Por fim, aduz o desembargador Araken de Assis que, mesmo sendo o caso de difícil resolução, a proporcionalidade entre o princípio da igualdade, sob cuja égide todos concorrem a cargos públicos, e o da liberdade de crença, insculpido no art. 5º, VIII, o conduz, a reconhecer o direito do impetrante a realizar a prova em horário distinto e especial.59 O Desembargador Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, em voto vencido, no agravo de instrumento n° 70016550485, explica que a controvérsia estabelecida no recurso situa-se em torno do direito do agravante de realizar a prova do concurso público para o cargo de Monitor Interno do Município de Entre-Ijuís, marcada para um sábado pela manhã, em horário especial, a partir das 18 horas (após o pôr-dosol), pois o recorrente é membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que tem o sábado como dia sagrado, destinando-se ao descanso e às práticas religiosas, no período sagrado que vai do pôr-do-sol de sexta-feira até o pôr-do-sol de sábado. Ressaltou que o candidato teve o seu requerimento administrativo, de permanecer incomunicável entre a hora de início da prova até o entardecer, quando poderia começar a realizar as provas do concurso, indeferido pela autoridade administrativa. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, afirmou que a atual Constituição Federal, no dispositivo do artigo 5º, inciso VIII, estabeleceu apenas duas restrições a liberdade de crença religiosa: a) obrigação legal a todos imposta; b) e recusa em cumprir prestação alternativa fixada em lei. Deveras, no caso concreto, não se trata, evidentemente, de recusa no cumprimento de prestação alternativa, restando, 59 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança Nº 70002025906, 2º Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 11/05/2001. 4 41 portanto, o reconhecimento de que a determinação do horário das provas constante do edital seria obrigação legal a todos os candidatos imposta. Entretanto, na realidade, não se trata de obrigação legal, mas de determinação da comissão de concurso, que pode ser perfeitamente modificada para atender à situação concreta do recorrente sem quebra do princípio da isonomia, que é a pedra de toque dos certames públicos. No caso em tela, embora se deva admitir os transtornos causados à administração, não é possível deixar de se reconhecer a perfeita viabilidade da compatibilização dos interesses da administração em fazer cumprir o edital de concurso (legalidade) com a flexibilização do horário de início da prova no caso do recorrente, respeitando-se o seu direito fundamental de liberdade de crença religiosa. Em suma, concluiu o desembargador que, no caso concreto, existe uma colisão entre os princípios constitucionais da legalidade (art. 37, “caput”), da isonomia (art. 5º, “caput”) e da liberdade de crença religiosa (art. 5º, VI), importando, necessariamente, numa ponderação dos princípios constitucionais envolvidos, o que resulta na prevalência ao direito fundamental da liberdade de crença religiosa, alterando-se o horário da prova para o atendimento da convicção religiosa do impetrante sem grave afronta aos princípios da legalidade e da isonomia.60 Na esteira desse pensamento o Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon, relator da remessa ex officio em Mandado de Segurança n° 2002.70.00.068143-9/PR, com pedido de liminar, impetrado por candidatos a concurso público, contra ato da Diretora-Geral da Escola de Administração Fazendária do Paraná – ESAF, objetivando fosse determinada a realização da prova em horário diverso do marcado, pelo fato de pertencerem à Igreja Adventista do Sétimo Dia, que tem o sábado como dia sagrado. Firmou posicionamento, Luiz Carlos de Castro Lugon, de que a liberdade de culto, assegurada pela Constituição federal, deve, sempre que possível, ser respeitada pelo Poder Público na prática de seus atos, pois a liberdade de culto compreende, além da garantia de exteriorização da crença, a garantia de fidelidade aos hábitos e cultos, como ocorrido no caso 60 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 70016550485, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nélson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 19/10/2006. 4 42 concreto, em que o sábado é considerado dia de guarda para a religião dos impetrantes.61 3.3 EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA Considerando-se os casos concretos supra-referidos, e após isso, feito uma rápida análise e cotejo entre as duas correntes jurisprudenciais estudadas, verificase existir total e plena possibilidade de efetivar-se a participação em certames públicos de pessoas que possuem por preceito de fé a guarda do sábado bíblico, sem ocorrer discriminação, aviltamento ou desrespeito a liberdade religiosa de qualquer pessoa. Neste tópico, são mencionados alguns casos de pessoas que são adventistas do sétimo dia e ocupantes de algum cargo público, cujo fito será de corroborar a corrente que defende a possibilidade do acesso e exercício de cargos públicos por estas pessoas. O desembargador Nélson Antônio Monteiro Pacheco, argumenta que um candidato adventista do sétimo dia que professe a guarda do sábado bíblico, ainda que consiga passar em um concurso, dificilmente poderia exercer o cargo público que escolheu, em virtude da sua crença religiosa. Tal argumento, no entanto, pode ser refutado com o exemplo fático do Dr. John Silas da Silva, Juiz de Direito da 8ª Vara da Comarca de Arapiraca em Alagoas, que comprova faticamente, pela sua história de vida, a possibilidade do exercício da função pública sem que haja comprometimento da fé religiosa. O aludido Juiz de Direito, que é adventista do sétimo dia, também é Professor de Universidade Federal, portanto, infere-se que cumule dois cargos públicos. O Dr. John Silas da Silva, em entrevista concedida à Revista Adventista, mencionou o fato de ter pedido ao Reitor da Universidade Federal na qual leciona, juntamente com outros membros da igreja adventista, para 61 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Remessa “Ex Offício” em Mandado de Segurança Nº 2002.70.00.068143-9/PR, 3ª Turma, Relator: Luiz Carlos de Castro Lugon, Julgado em 22/06/2004. 4 43 que fosse alterada a data do vestibular que havia sido marcado para um dia de sábado, mostrando-lhe que os adventistas do sétimo dia não fazem prova nesse dia. Explica que o Reitor aceitou o pedido de alteração do horário, pois compreendeu a dificuldade dos adventistas, não marcando mais vestibulares no sábado desde aquela ocasião62 Além disso, bem se pode referir o caso de outra pessoa adventista do sétimo dia ocupante de cargo público, a saber, a Dra. Dulce Maria Sant’ Eufemia Cecconi, que ocupa o cargo de Desembargadora no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sendo integrante da Primeira Câmara Cível, especializada em matéria tributária e fiscal. Note-se que a Dra. Dulce já ocupa um cargo público a bastante tempo, pois graduou-se em Direito em março de 1969 e, em maio de 1970, ingressou na Magistratura Estadual do Paraná, ocupando, primeiramente, o cargo de Juiz Substituto. Em 1973, foi aprovada em concurso para o cargo de Juiz de Direito. Durante vinte e cinco anos atuou em diversas Comarcas do Estado e sempre teve, como mesma referiu, em entrevista concedida a Rubens Lessa, “o privilégio” de participar nas atividades da sua igreja, demonstrando, claramente, que é possível existir conciliação entre a vida religiosa privada e a vida profissional pública. No mais, ao ser questionada se por ser adventista encontrou alguma dificuldade no exercício da sua função, afirmou que “o fato de ser adventista nunca dificultou o exercício, em si, da função judicante”, exceto as participações em extensões, congressos, seminários, etc., por causa da guarda do sábado.63 Em entrevista, concedida a Michelson Borges, Cristiane Marques de Souza que tem 27 anos, casada, adventista de nascimento, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás, ex-delegada da Polícia Civil e atualmente exercendo a função de promotora de Justiça do Estado de Goiás, relata que durante o concurso, para o cargo de promotora de Justiça do Estado, uma das provas foi marcada para o sábado, o que inviabilizaria a sua participação no certame, estando disposta até mesmo a abrir mão do concurso, para não ter que transigir quanto aos princípios em que acreditava – santificação do sábado bíblico, como dia de 62 SILVA, John Silas da. Julgamento sereno [entrevista]. Revista Adventista, Tatuí, SP, Ano 100, n. 1, p. 5-6, jan. 2005. 63 CECCONI, Dulce Maria Sant’ Eufemia. Exemplo: a melhor forma de testemunhar [entrevista]. Revista Adventista, Tatuí, SP, Ano 100, n. 11, p.5-6, nov. 2005. 4 44 descanso designado por Deus. Felizmente, conta que conseguiu, administrativamente, autorização para ficar confinada no dia da prova de sábado, permanecendo sozinha das 13h às 18h30 (término do pôr-do-sol), tendo começado a fazer as provas às 19h e terminando às 23h15.64 Por derradeiro, concluímos a exposição desse tópico, com o caso concreto do adventista do sétimo dia Vanderley de Oliveira Silva que vem consolidar a efetivação da possibilidade de acesso a cargos públicos por membros dessa denominação religiosa ou de qualquer outra, que possuem por dogma de fé o imperativo de consciência da guarda do sábado natural. O Dr. Vanderley ocupa, atualmente, o cargo público de juiz de terceira entrância, cargo final na magistratura, na capital do Pará. Este juiz destacou-se na sua região pela sua grande contribuição na motivação e recuperação de detentos, sendo que, imbuído de seu espírito de cristão comprometido com sua fé, levou muitos presos a converterem-se da vida do crime que levavam para uma reintegração social. Essa história de vida mostra que os valores cristãos de uma pessoa, ao revés de obstaculizar o acesso de um indivíduo ao exercício de um cargo público, pode até mesmo servir de auxílio para um melhor desenvolvimento da função pública.65 64 SOUZA, Cristiane Marques de. Vivendo o que é Direito [entrevista]. Conexão JÁ, Tatuí, SP, Ano 1, n. Especial, p. 6-7, 2006. 65 SILVA, Vanderley de Oliveira. Comprometido com Cristo. Revista Adventista, Tatuí, SP, Ano 102, n. 1188, p.6-7, Maio. 2007. CONCLUSÃO 1. Nas sociedades democráticas modernas a concepção de dignidade possui um caráter universal e igualitário, sendo reconhecido a dignidade imanente (inata) a todos os seres humanos. Por conseguinte, constituiu-se premissa essencial que todos possuem a mesma dignidade, consequentemente, possuindo a mesma igualdade, igualdade esta que é absoluta, enquanto membros de uma mesma comunidade. 2. Todos os seres humanos, enquanto pessoas, são iguais, dotadas dos mesmos direitos e deveres, e, portanto, toda desigualdade fundada em aspectos constitutivos da pessoa, quer seja de natureza física (racial – raça dominante ou em maior número), mental (privilégio a uma ideologia pessoal ou política dominante) ou espiritual (desrespeito e/ou desconsideração à crença e à manifestação de culto de outrem) são inadmissíveis em qualquer sociedade/comunidade que possua por fim último a busca da dignidade da pessoa humana. 3. A pessoa humana é um ser concreto, visto que existe de fato. É, igualmente, um ser individual, porque é um todo em si mesmo, não podendo ser considerada como mero fragmento de um todo maior. É dotada de raciocínio próprio, peculiar, ou seja, apta para autodeterminar-se nos atos da vida pessoal, capacitada a viver como bem entender e habilitada a conhecer a verdade por si mesma, por intermédio da livre razão. Além disso, a pessoa humana é um ser social que só consegue desenvolver-se na sua plenitude, vivendo em comunidade com seus pares (outras pessoas). 4 46 4. Em que pese, uma comunidade ser pautada pela aplicação da justiça social, em que a dignidade da pessoa humana é a sua pedra de toque, deve-se preservar a mesma igualdade na dignidade de seus membros, sob pena de, desintegração da comunidade em decorrência da existência de atos injustos do ponto de vista da justiça social. 5. O status ou condição de pessoa participante da comunidade - que tem a dignidade como padrão de adequação de determinação do que é devido a cada um se caracteriza na medida em que, a mesma passa a engajar-se e pugnar pela garantia dos mesmos (iguais) direitos para todos membros da comunidade. 6. O caráter social do ser humano implica numa convivência em comunidade, ou seja, envolve-o numa rede de relações e deveres com o outro (semelhante ou próximo), implicando, necessariamente, numa conscientização, aceitação e reconhecimento mútuo do status de pessoa humana para todos os membros da comunidade a qual está inserido, portanto, tendo os mesmos direitos e deveres dos demais. 7. A liberdade religiosa está incluída entre as liberdades espirituais, visto que, configura a liberdade do espírito em matéria religiosa ou de opção do indivíduo em matéria de religião, sendo, portanto, uma especialização da liberdade de pensamento atrelada à religião. 8. O direito à liberdade religiosa desenvolve-se em diferentes esferas, quer seja na do pensamento ou na da vivência particular (plano pessoal), quer seja na da expressão social e comunitária (plano social). Compreende uma imunidade de coação, garantida pelo reconhecimento civil de uma esfera de autonomia inerente a cada pessoa, grupo social e comunidade, assegurando o respeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e a diversidade espiritual. 9. A liberdade religiosa é um bem em si mesma, tanto para o indivíduo como para a sociedade, pois possui uma dimensão política, visto ser parte integrante do bem comum da sociedade. Por isso, o Estado tem o dever ou encargo de promover 4 47 e tutelar a liberdade religiosa com a máxima amplitude possível, respeitando os princípios básicos da ordem social. 10. Com efeito, a liberdade religiosa é um complexo de direitos relacionados à questão da liberdade em razão da religião. Nesse feixe de direitos estão abarcadas dois direitos essenciais e fundamentais para uma garantia mínima à liberdade de religião, a saber, a liberdade de crença e de culto. 11. Da liberdade de religião afloram 3 espécies (modalidades) de liberdades, a saber: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa. 12. A liberdade de crença diz respeito às opções de fé do indivíduo, a sua capacidade e faculdade de adotar uma crença religiosa ou não, bem como o direito de atuar conforme os ditames de sua crença própria, sem ser molestado ou sofrer pressão de qualquer natureza para que estabeleça, mude ou abandone suas crenças ou convicções filosóficas, políticas ou religiosas. 13. A liberdade de crença é timbrada essencialmente pelo seu caráter interno, possibilitando a pessoa humana desenvolver sua própria orientação de fé, formar sua perspectiva de mundo e de vida, bem como eleger os valores que considerar essenciais, sendo, portanto, inalienável por natureza. 14. Uma implicação positiva da liberdade de crença é a de ter e manifestar livremente as crenças adotadas, decorrendo daí, o direito ao proselitismo ou a explanação e a difusão da fé. A implicação negativa da liberdade de crença reside no direito de resguardo do indivíduo sobre a existência e o conteúdo da sua crença, bem como o direito ao silêncio sobre suas convicções religiosas, cabendo a si a decisão voluntária de manifestar ou não a própria crença, livre de pressões ou coações por parte de poderes públicos ou terceiros, para que, assim, seja evitado qualquer forma de discriminação em razão da religião. 15. Liberdade de culto é um direito fundamental de exteriorização e de demonstração plena da liberdade de religião internalizada na pessoa humana, decorrente da liberdade de crença religiosa, que está caracterizada, em certo grau, 4 48 na combinação das liberdades de pensamento e física. Compreende-se na liberdade de culto, o direito de oração e práticas de atos próprios de manifestações de cada religião, quer seja em espaços privados (em casa, igrejas) ou públicos (logradouros, espaços públicos ou comuns). 16. O culto é a forma exterior da religião: religião + relação com os outros homens + ação. É a manifestação das crenças religiosas em atos externos nos quais se patenteia a fé religiosa de uma pessoa, cujo fim é a satisfação e revelação dos anseios da alma do seu manifestante. Em face disso, inexiste religião sem culto ou ritual, porque as crenças não constituem, por si mesmo, uma religião. Portanto se não existir culto ou ritual correspondente à crença, no máximo poderá ocorrer uma posição contemplativa, filosófica, por parte de um indivíduo, jamais o exercício da religião. 17. Os cultos poderão ocorrer em locais típicos, como templos, edificações com características peculiares de cada religião, bem como em locais não típicos, nada obstante, necessários ao pleno - ou à perfectibilização do - exercício da liberdade religiosa. O exercício da liberdade de culto, na sua vertente positiva ocorre na exteriorização, através de rituais, cerimônias, símbolos ou aparatos, da religião professada em locais próprios destinados a tais fins ou em locais públicos. A vertente negativa da liberdade de culto consiste no direito da pessoa humana não ser obrigada a participar de quaisquer atos religiosos, manifestações ou cultos. 18. Liberdade de organização religiosa tem que ver com à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado. Na relação Estado-Igreja são observados três sistemas: confusão, união e separação. Na confusão, o Estado se confunde com determinada religião, sendo um Estado teocrático. Já na união, verificam-se relações jurídicas entre o Estado e determinada Igreja no que concerne à sua organização e funcionamento. Na separação pode existir tanto o indiferentismo, a neutralidade ou imparcialidade, como a colaboração nas relações Estado-Igreja, podendo ocorrer, até mesmo, uma separação mais rígida para um sistema que admite certos contados entre o Estado e as diversas igrejas. 4 49 19. A neutralidade do Estado em matéria religiosa tem como corolário o princípio da separação das confissões religiosas do Estado, que contribui, em grande medida, para proteção das coletividades religiosas. O Brasil apresenta um modelo de Estado laico, adotando claramente o princípio da separação entre Estado e organizações religiosas. Em virtude disso, a neutralidade do Estado brasileiro mostra abertura à multiplicidade de crenças e organizações religiosas, não interferindo diretamente nas questões religiosas e nas próprias organizações religiosas. Com efeito, a relevância da neutralidade do Estado em matéria religiosa se evidencia na exata medida em que fomenta a convivência pacífica entre as diferentes confissões religiosas, garantindo a liberdade religiosa de forma expansível numa sociedade caracterizada pelo pluralismo religioso. 20. Ademais, em face da dimensão coletiva da liberdade religiosa estendese às confissões religiosas os mesmos objetos de tutela garantidos aos indivíduos em matéria religiosa, assegurando-se, portanto, o direito a formação de associações ou grupos na sociedade civil com identidade religiosa, a realização de reuniões de cunho religioso, o estabelecimento de locais apropriados para culto, a divulgação e pregação de sua doutrinas etc. 21. A acessibilidade à função pública é uma manifestação especial da liberdade de ação profissional. No art. 37, inciso I, reconhece-se a acessibilidade a todos os brasileiros à função administrativa, na forma da lei. Esta lei, no entanto, não pode importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a correta observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa. Logo, é vedado a Administração estabelecer condições que afrontem as garantias asseguradas no art. 5° da Constituição Federal, proibindo-se, assim, qualquer distinção baseada em sexo, idade, raça, trabalho, credo religioso e convicções filosóficas ou políticas. 22. Em face do princípio da isonomia os requisitos estabelecidos em lei devem ser apenas os que, objetivamente considerados, se mostrem necessários e razoáveis ao cabal desempenho da função pública. Em suma, se determinado cargo ou emprego público pode ser exercido indiferentemente por pessoas de qualquer 5 50 credo religioso, a discriminação fundada nesse atributo (qualidade, peculiaridade) pessoal do candidato será indevida. 23. O princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos visa essencialmente realizar o princípio do mérito que se apura mediante investidura por concurso público de provas ou de provas e títulos. A Constituição Federal ao estabelecer a acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas a todos os brasileiros, consequentemente, assegura-lhes o direito de acesso (exercício efetivo) aos cargos, empregos e funções públicas. 24. Todo cidadão tem o direito de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, pois é o verdadeiro agente do poder, no sentido de ampla possibilidade de participação da administração pública. Todavia, tal acesso só ocorrerá por intermédio de concurso público que é obrigatório, em regra, para a investidura em cargo ou emprego público na Administração direta e indireta. Isso posto, a plena garantia de participação ao concurso público obrigatório por lei, torna-se uma condição sine qua non para o acesso (investidura) ao cargo público almejado. 25. Um dos argumentos sustentados pela não participação dos adventistas do sétimo, dia em horário especial (diferenciado), nos certames para acesso a cargos públicos, é de que a Administração não pode se dobrar a convicção de natureza estritamente pessoal (religiosa) de cada candidato, devendo estes cumprirem (ou adequarem-se) às exigências ordinárias comumente postas aos demais cidadãos numa sociedade, pois qualquer concessão dessa ordem implicaria em discriminação favorecedora daqueles que professem uma determinada fé, o que é proibido pela Constituição. Todavia, tal entendimento resulta na inviabilização da participação dos adventistas do sétimo dia nos certames e, consequentemente, no exercício constitucional de acesso a cargos públicos. 26. Outro argumento contrário ao direito de acesso a cargos públicos pelos adventistas é que, no caso concreto, deve preponderar sobre a individualidade o interesse público de que os candidatos aprovados em concurso público desempenhem a carreira sob as mesmas regras, disciplinas, horários, sustentandose até mesmo que, essas regras devem começar desde a submissão às provas do 5 51 concurso público de ingresso nos mesmos moldes dos outros candidatos e nas mesmas condições de local, ou seja, de uma sala de aula cheia, com vários fiscais, candidatos levantando, sentando, deslocando-se ao banheiro, interpelando fiscais acerca de alguma intercorrência. 27. Entrementes, a Administração há de se guiar, em primeiro lugar, pelos princípios e valores constitucionais, por conseguinte, a realização do concurso no sábado privaria o cidadão, que tem o Sábado como dia consagrado, de concorrer por motivo religioso, pois impediria na prática a participação de minorias religiosas, infringindo dois direitos fundamentais: o da liberdade de crença (art. 5º, VIII, da CF/88) e o do acesso a cargos públicos (art. 37, I). Por isso, nestes casos peculiares, incumbe a Administração o dever de harmonizar o princípio da igualdade, que governa o concurso público, com o da liberdade de crença, que inclui a obrigatória observância pelo praticante de certos princípios. A proporcionalidade entre o princípio da igualdade e o da liberdade de crença conduz ao reconhecimento do direito de uma pessoa, que alega imperativo de consciência, a poder realizar a prova em horário distinto e especial. 28. A Constituição Federal, no dispositivo do artigo 5º, inciso VIII, estabeleceu apenas duas restrições à liberdade de crença religiosa: a) obrigação legal a todos imposta; b) e recusa em cumprir prestação alternativa fixada em lei. Entretanto, no que tange a acessibilidade a cargos públicos, forçoso é o reconhecimento de que a determinação do horário das provas constante do edital não é uma obrigação legal a todos os candidatos imposta. Ao revés, se trata de determinação da própria comissão de concurso, que pode ser perfeitamente modificada para atender à situação concreta dos adventistas do sétimo dia sem a quebra do princípio da isonomia, que é a pedra de toque dos certames públicos. 29. Entende-se que a liberdade de culto, assegurada pela Constituição federal, deve, sempre que possível, ser respeitada pelo Poder Público na prática de seus atos, pois a liberdade de culto compreende, além da garantia de exteriorização da crença, a garantia de fidelidade aos hábitos e cultos, como ocorrido no caso concreto, em que o sábado é considerado dia de guarda para a religião dos adventistas do sétimo dia. 5 52 30. Considerando os casos concretos de pessoas que são adventistas do sétimo dia e que conseguiram passar em certames públicos para poderem ocupar cargos na esfera pública (Desembargadores, juízes, Delegados), apresentados neste trabalho, bem como a análise e cotejo entre as duas correntes jurisprudenciais estudadas, verifica-se existir total e plena possibilidade de efetivar-se a participação em certames públicos de pessoas que possuem por preceito de fé a guarda do sábado bíblico, sem ocorrer discriminação, aviltamento ou desrespeito a liberdade religiosa de qualquer pessoa, desde que seja mantida a garantia de resguardo do candidato até o momento da realização das provas aplicadas no concurso. REFERÊNCIAS BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p. 249-254 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. 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