Uma carta aos adictos
Muita gente me questiona, como posso entender o que se passa na alma, no “coração” e na
cabeça de um dependente químico, sendo eu apenas uma profissional de saúde e não
pertencer a nenhum grupo de mútua-ajuda. E a cada pessoa que me dirige essa pergunta,
deixo como resposta uma reflexão ou outra pergunta:- Então, para ajudar um hipertenso,
preciso ser também hipertensa? E a quem possui o transtorno bipolar de humor ou quem
sofre de depressão, bulimia, anorexia ou até mesmo de esquizofrenia? Para compreendêlos e ajudá-los preciso de fato também ser portadora desses diagnósticos?
E hoje, aos meus 50 anos de vida, acrescento à minha resposta os 12 Passos de Alcoólicos
Anônimos, uma bela filosofia de vida que tive o prazer em conhecer e vivenciar, ainda que
não alcoólica e/ou adicta.
Bill e Bob me foram apresentados há algum tempo, através da literatura específica de
Alcoólicos Anônimos; e quando entrei em contato com suas primeiras linhas algo novo me
aconteceu. E a cada passo, dos 12 descritos, que eu lia e percorria, me vinham respostas
precisas e exatas para um emaranhado de sentimentos que eu experimentava naquele
momento de minha vida. Como se eu vivenciasse um novo despertar, que somado ao o que
o mundo científico me apresentava, a vida me pareceu bem mais simples do que eu
imaginava, e por isso mais bela.
Os 12 princípios me apontavam uma direção, como uma bússola que não deixa seu
navegante em alto mar se desviar de sua rota.
E fui seguindo, ora para o Sul, ora para o Norte, mas com tranqüilidade e leveza, na certeza
de que eu havia descoberto um tesouro. Encontrá-lo era uma questão de tempo. Bastava
seguir aquela rota, aquele mapa que caiu em minhas mãos e me tornaria uma pessoa mais
rica em sabedoria e direção. E assim fui eu, em busca deste tesouro, passo a passo, e no
meu ritmo. E nos caminhos mais escuros e sombrios, fazia uma pausa, desligava o barco e
descansava, me contentando apenas em receber o leve toque de uma brisa em meu rosto.
Há poucos meses completei 50 anos de vida. Uma idade que me faz relembrar com
intensidade alguns momentos que vivenciei. E nesta rede de lembranças peguei-me
refletindo sobre um sentimento em especial: o sentimento de impotência. Impotência
diante da minha idade que avança a cada dia, impotência diante do outro e de suas
escolhas, diante da morte de um ente querido, diante de um amor que se foi ou diante de um
caminho escolhido e percorrido por um filho.
Por quantas vezes, cometo os mesmos erros esperando resultados diferentes? E do alto
de minha arrogância, preciso me curvar e acreditar humildemente que eu não preciso
caminhar sozinha e que, acima de mim existe um Poder Maior que pode devolver-me a
“sanidade”, às vezes perdida. ( Einstein dizia: “Não há nada que seja maior evidência de
insanidade do que fazer a mesma coisa dia após dia e esperar resultados diferentes).
Por quantos momentos em minha vida, me esbarro no limite do possível e preciso acreditar
e contar com o impossível, me embriagando de esperança e fé, acreditando e entregando
as minhas vontades e minha vida aos cuidados de Deus, o único que com o seu infinito Amor
me acolhe, me protege e me transforma a cada dia, a cada 24 horas.
E ao longo dessa minha caminhada me pergunto: quantas pessoas eu feri, magoei, fiz e
faço sofrer, mesmo que de forma não intencional? Por quantas vezes sou teimosa, imatura,
mesquinha e imperfeita? E para me transformar em uma pessoa melhor, é preciso me
renovar, revendo e reaprendendo o real significado do exercício do perdão, admitindo e
reconhecendo meus erros e minhas falhas, procurando transformá-los em futuros acertos.
E àqueles mais profundos, enraizados e sombrios, pedir humildemente a Deus que os
remova e me livre de minhas imperfeições.
Por quantas vezes, preciso vestir-me com a roupa da humildade e da sensatez e me propor
a reparar danos causados a mim, a um filho, a um pai, a um professor, a um paciente, a um
amigo e até mesmo a algum desconhecido?
Por quantas noites me recolho em meu quarto, em meu canto e faço uma retrospectiva
pessoal e destemida de meus atos e comportamentos, me propondo prontamente a admitir
e reparar meus erros? E é assim, dessa forma, que vou aprendendo a me relacionar
intimamente comigo mesma, com os adictos e principalmente com Deus, rogando a Ele
todos os dias, através de orações, preces, meditações e principalmente, através da leitura
de Sua palavra, que me mostre sua vontade e me dê forças para alcançá-la.
E hoje, só por hoje, procuro levar e transmitir tudo o que aprendo a outro ser humano,
através de meus conhecimentos científicos, através das minhas experiências e vivências,
através da minha caminhada cristã ou mesmo através de uma borboleta ou de um
passarinho, que por acaso, adentram na janela de minha sala à procura de uma saída e em
busca da liberdade perdida. Procuro levar a toda pessoa, adicta ou não, a mensagem de
que esses 12 princípios e passos do A.A., com certeza nos tornam pessoas melhores, mais
sensíveis, mais felizes e porque não dizer, mais sábias e libertas, a cada dia, a cada 24
horas.
E é desta forma, seguindo-os e aplicando-os primeiramente em minha vida, baseando-me
na Palavra viva de Deus e associando-os aos meus conhecimentos científicos e técnicos
que, mesmo não sendo adicta, posso olhar, escutar e compreender de forma empática, o
que um dependente químico traz em seu coração e em sua alma e, junto com ele
redescobrirmos um novo estilo de vida e um jeito diferente e saudável de viver.
Na verdade, este relato, diferente de outros que já escrevi, não deve ser considerado um
artigo propriamente dito e sim um texto, fruto de uma auto-reflexão baseada não só em
minha experiência pessoal e espiritual, como também em alguns estudos técnicos e
científicos.
Carl Gustav Jung (Psiquiatra Suíço, fundador da Psicologia Analítica), por exemplo, em
meados de 1934 passou a acreditar que o dependente químico necessita de um
relacionamento com Deus para sua libertação dos químicos, admitindo assim que apenas a
sua abordagem analítica não era suficiente para o tratamento da dependência química.
“Em 1961, Bill Wilson e Carl Jung trocaram cartas a respeito do papel de Jung na formação
de Alcóolicos Anônimos. O próprio Bill nunca deixou de insistir que o “fundador primordial”
de A.A. foi Carl Gustav Jung, que plantou as raízes de A.A. alguns anos antes da famosa
reunião entre Bill & Bob em Akron, Ohio, em 1935.”
Em uma dessas cartas para Bill Wilson em Janeiro de 1961, Jung escreveu, em referência a
um paciente de nome Roland H, que ficou sob os seus cuidados clínicos em 1931.
...”Sua fixação pelo álcool era o equivalente, num grau inferior, da sede espiritual do nosso
ser pela totalidade, expressa em linguagem medieval, pela união com Deus.”...
...”Veja você que “álcohol” em latim significa “espírito”; no entanto, usamos a mesma
palavra tanto para designar a mais alta experiência religiosa como para designar o mais
depravador dos venenos.
“A receita então é “spiritus” contra spiritum”.
Referências Bibliográficas:
1. O caminho dos 12 passos – Tratamento de dependência de álcool e outras drogas –
John
E. Burns – Edições Loyola – 2ª edição
2. Alcoólicos Anônimos na Bahia: http://www.aabahia.org.br/billjung.htm
Murray Stein (Murray Stein, Ph.D. é um Analista de formação na Escola Internacional de
Psicologia Analítica, em Zurique, na Suíça. Ele internacionalmente palestras sobre temas
relacionados com a Psicologia Analítica e suas aplicações no mundo contemporâneo.) faz
também uma referência às cartas trocadas entre Carl Jung e Bill Wilson em seu livro “Jung –
O mapa da alma – Uma Introdução”:
“Quando Bill Wilson, co-fundador dos Alcoólicos Anônimos, escreveu a Jung em 1961 e o
informou sobre o ocorrido com Roland H. (um paciente a quem Jung tinha tratado por
alcoolismo no começo da década de 1930), Jung o respondeu admitindo que o terapeuta é
essencialmente impotente ao tentar vencer a dependência de um paciente de uma
substância. Jung dizia – na minha paráfrase de sua carta – “Você precisa de um símbolo, de
um análogo que atraia a energia que foi para a bebida. Tem que encontrar um equivalente
que seja mais interessante do que beber todas as noites, que atraia o seu interesse mais do
que uma garrafa de vodca”.
Um símbolo poderoso é requerido para provocar uma importante transformação num
alcoólico, e Jung falou da necessidade de uma experiência de conversão.”
Referência Bibliográfica: Jung – O Mapa da Alma – Uma Introdução – Murray Stein –
Editora Cultrix - 2000
E agora, termino este relato parafraseando o texto de James Agrey, a Parábola da Águia,
tão conhecido por todos nós. Às vezes sinto que Deus me entregou a missão de descobrir
águias e fazê-las acreditar que podem voar. Umas aprendem mais rápido do que outras e já
estão alçando vôos tão altos que já não as avisto mais. Outras, mostram suas tentativas
com tanto empenho e dedicação que não demoram muito e já se arriscam a dar os primeiros
vôos bem sucedidos. Caem às vezes, mas não se acomodam.
E assim que se recuperam arriscam mais um vôo, tornando-se tão aptas quanto às
primeiras. E algumas demoram um pouco mais do que as outras. Talvez por sentirem medo
de se arriscarem e descobrirem a imensidão do universo com todas as suas possibilidades.
E são com estas que Deus de uma forma muito suave, gentil e respeitosa, me retira de cena.
De alguma forma que desconheço, faz com que estas águias olhem para cima, além dos
limites estabelecidos por “muros ou cercas” e as fazem descobrir que acima de suas
cabeças existe um sóbrio universo e é por ali, olhando para cima e permitindo a Sua ajuda e
a Sua presença que podem se libertar.
Nestes casos, literalmente saio de cena, de forma humilde e obediente para que apenas
Deus realize Sua grandiosa obra!
Por isso, muitas vezes é necessário admitir e reconhecer minha impotência diante de
alguns adictos e dizer “não” às minhas vaidades, ao meu orgulho, aos meus caprichos e
desejos onipotentes.
E neste percurso, me deparo mais uma vez com a mensagem que às vezes teimosamente
insisto em não seguir: que preciso escutar e obedecer a Deus acima de qualquer coisa. E
entendo que é assim, que alguns adictos finalmente levantam seus vôos mais altos e
necessários, passando a acreditar que para se transformar em uma águia basta apenas o
desejo em sê-la. E que é preciso abrir mão de alguns lugares, de alguns amigos e voar
acompanhado de outras águias, rumo ao mesmo objetivo. E só depois que alçarem vôos
bem altos e seguros que conseguirão ajudar o outro, realizando assim o 12º passo que os
grupos de mútua-ajuda sugerem e ensinam.
Se viverei mais 50 anos, não sei. Mas é com o coração encharcado de gratidão e como
cristã que sou, que me dirijo a Deus neste momento e neste dia, agradecendo a Ele por ter
me dado o privilégio de poder estar aqui durante tantos anos! Obrigada Senhor, por Suas
palavras que me transformam e me fazem renascer a cada dia.
Obrigada Jung por me fazer compreender, acreditar e aceitar que só a Ciência não basta e
que é preciso algo mais.
Obrigada Bill e obrigada Bob, que com um verdadeiro espírito de união, solidariedade,
desprendimento e amor ao próximo, me “apresentaram” e me deixaram uma linda e
funcional filosofia que me norteia a cada dia, mesmo não sendo alcoólica e/ou adicta.
Obrigada por me “emprestarem” estes 12 princípios e passos, hoje já incorporados e
gravados em minha alma.
Só por hoje eu os agradeço eternamente e levanto um brinde à sabedoria e à vida.
E a você adicto, deixo o meu carinho e a certeza de que o vôo é possível sim, desde que
você se permita.
É...não existe vôo mais seguro e mais alto do que o vôo na presença de Deus!!
Então, voa adicto... voa em busca de sua liberdade, sobriedade e de sua recuperação!
E um feliz vôo! Deus o abençoe.
Com carinho e amor, Marília - Home Page - Recuperação
“Concedei-me Senhor a serenidade necessária, para aceitar as coisas que não posso
modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para distinguir uma das
outras.”
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