UMA INQUIETANTE VOZ FEMININA QUE VEM DA MARGEM... As bases das relações humanas foram profundamente abaladas pela maneira de ser e de viver de Jesus. No seu tempo, a única glória que uma mulher poderia possuir era um corpo fecundo. Por isso a mãe de Jesus foi louvada por uma mulher do povo: “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram” (Lc.11,27). Entretanto, no Reino de Deus, esta reclusão da mulher no campo biológico sofre uma transformação radical. Não são mais os laços da carne e do sangue os motivos de sua única glória, mas a escuta da Palavra e a resposta ativa a ela. Também a mulher é chamada, para além de seu corpo, à escuta da Palavra de Deus sobre a história e a responder com sua voz como uma pessoa livre que é, ou seja, portadora de uma iniciativa e de um desejo que se expressa. Quando a mulher fica reduzida à condição de objeto e acorrentada por inteira às suas funções biológicas, perde sua voz e sua palavra. Porque a mulher é portadora de um desejo e de uma palavra, ela deixa de ser para Jesus um objeto que se possui, um instrumento que se usa e uma propriedade a dominar e a destruir. A mulher, que não está mais acorrentada às suas funções biológicas, recupera sua palavra, sua voz e torna-se protagonista na instauração do Reino de Deus. Elas são multiplicadoras de vida em contextos de sofrimento e morte. Elas aprendem do sofrimento e nele são capazes de transformação. O sofrimento as faz mais sensíveis à dor do mundo. Todas elas são mulheres que correram riscos, que experimentaram o potencial humanizador do olhar, e saíram de si para estender suas mãos e tocar o corpo de Jesus em tantos corpos feridos da história. Marginalizadas, tornaram-se as preferidas de Jesus. Algumas destas mulheres confirmaram Jesus em sua capacidade curativa, atreveram-se a tocá-lo, quebrando tabus, transgredindo proibições e experimentaram a potencia de Seu amor em sua própria pele, descobrindo sua verdade. Uma dessas mulheres nos é apresentada pelo evangelista Mateus na região dos cananeus: uma mulher sem nome, estrangeira e pagã, uma mãe de forte personalidade que reclama compaixão para sua filha enferma. Nas palavras dela Jesus pode reconhecer seus próprios pré-juizos como judeu e acolher o odre novo que aquela mulher lhe mostrava. De agora em diante o Banquete ficava aberto a todos. A cena é comovedora. Uma mulher sai ao encontro de Jesus. Não pertence ao povo eleito, pois é uma pagã. Provém do povo dos cananeus que tanto tinha lutado contra Israel. É uma mulher sozinha, não tem esposo, nem irmãos que a defendam. Talvez uma mãe solteira, viúva, ou abandonada pelos seus. Mateus só destaca sua fé. É a primeira mulher que fala em seu evangelho. Toda sua vida se resume num grito que expressa o mais profundo de seu drama. Vem atrás dos discípulos “gritando”. Não se detém diante do silêncio de Jesus, nem diante do mal-estar de seus discípulos. A dor de sua filha, “cruelmente atormentada por um demônio”, se converteu em sua própria dor: “Senhor, tem compaixão de mim”. A profunda relação entre mãe e filha impede delimitar onde começa o problema dela e o de sua filha. A mãe é também parte do problema. A enfermidade da filha não é alheia à postura da mãe, tem uma relação direta, e curar à mãe supõe curar à filha e vice-versa. Quando ela se encontra a si mesma com a ajuda de Jesus, começa a solucionar-se a situação da filha. Num determinado momento a mulher alcança o grupo, faz Jesus parar, prostra-se diante dele e de joelhos clama: “Senhor, socorre-me!” Não aceita as explicações de Jesus dedicado à sua missão em Israel. Não aceita a exclusão étnica, política, religiosa e de gênero na qual se encontram tantas mulheres, sofrendo em sua solidão e marginalização. É então quando Jesus, deixando-se afetar pela voz feminina que vem da margem, se manifesta em toda sua grandeza e humanidade. “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres!” A mulher tem razão. De nada servem outras explicações. A primeira coisa a ser feita é aliviar o sofrimento. Esta é a razão de ser da missão de Jesus: aliviar o sofrimento humano. Para Jesus a religião não era um programa a ser cumprido, mas uma vivência; graças a isso foi capaz de responder vivencialmente frente às situações novas. Sua experiência de Deus e as circunstâncias concretas (neste caso, a petição da Cananéia) lhe fizeram ver que alguém só pode estar unido a Deus se está comprometido com o ser humano. Encanta-nos este relato porque ele revela um Jesus muito humano; como todo ser humano, Ele aprende da experiência, leva a sério a proposta da Cananéia e revela-se aberto à verdade que vem da margem. Jesus, tocado pela grandeza da fé daquela mulher estrangeira, adianta a hora da salvação para os pagãos. Todos são chamados a saciarem-se no banquete da salvação de Deus. Por ser autêntico e sincero, o diálogo é frutífero. Jesus aprende e a cananéia também aprende. Realiza-se o milagre da mudança em ambos. O que o relato ressalta é a capacidade de reação de Jesus. Apesar de sua atitude inicial, sabe mudar em um instante e descobrir o que naquela mulher havia de autêntica confiança. Jesus descobre que essa mulher, alheia ao seu grupo, tem mais confiança nele que os mais íntimos que o seguem há muito tempo. No diálogo com a cananéia, Jesus é capaz de mudar sua atitude porque a mulher demonstra uma sensibilidade muito maior que aquela que Ele próprio revela. Dela, Jesus aprendeu que devia superar seus preconceitos de raça, religião, povo... Aprendeu que é preciso, antes de tudo, proteger os mais fracos e desprotegidos: uma atitude feminino-maternal. O que mais nos surpreende no relato é a capacidade de Jesus de aceitar, ou seja, de fazer seus os valores femininos que descobre naquela mulher. Jesus descobre sua “anima” e a integra, apesar da oposição do ambiente patriarcal na qual fora educado. Mt. 15,21-28: a impiedade dos preconceitos frente ao “diferente” e o descalabro dos racismos envenenam corações e fomentam as dinâmicas excludentes que envergonham a humanidade e não podem ser aceitas, pacificamente, pelos seguidores de Jesus. Há quem é preconceituoso, por questões de raça, língua, nação, religião, condição social, sexual... e nem percebe. O racismo é sutil. Está presente lá no fundo. É uma grande praga que exige grande esforço para dela se livrar. Vira sentimento que se justifica e dá forma a modos de falar, define posturas e cria as distâncias. Assim aconteceu com os discípulos de Jesus: incomodados com o clamor justo da Cananéia, impiedosamente ousaram pedir a Jesus, como indicação atrevida, o tratamento a ser dado: “Manda essa mulher embora!”. Os discípulos foram afetados pelos preconceitos do seu contexto social e religioso. O outro, o diferente, vítima do preconceito, é desconsiderado. Não conta. O preconceito é duro, nos faz insensíveis, não deixa escutar o clamor. Mata tudo. Tudo justifica, friamente. E o coração vai se petrificando, onde o outro não tem mais lugar. A mulher Cananéia grita. Usa o direito de estar na sua própria terra, visitada por Jesus, o Senhor de todos. Ele é aquele que rompe as distâncias, quebra os limites definidos pela tolice dos preconceitos. Sua presença é diferenciada e rompe paradigmas sociais, culturais, religiosos... e acolhe, compassivamente, o clamor que vem da margem. No caminho contemplativo, Jesus mesmo vai educando nosso olhar, quando nos convida a fixar-nos naquelas pobres mulheres que com a levedura preciosa de suas vidas fermentam a esperança e enobrecem tantas situações de dor. Os caminhos que percorremos habitualmente, para quê rostos nos levam? Onde colocamos os olhos enquanto caminhamos? Porque ali estará nosso coração... Das mulheres bíblicas vamos aprendendo esse modo desarmado de caminhar que nos permite prestar atenção ao outro e recebê-lo em sua originalidade e em sua diferença. Ou seja, seguir a direção da vida e poder abraçá-la sem reservas, em sua dor e em sua alegria; servir arriscando, saindo para o amor, o querer e o interesse do outro. Elas nos continuam convocando a seguir “Aquele que pertence aos que não tem nada”, e a servir-Lhe com toda nossa corporalidade, nossa energia e nossa pobreza. Quê podemos fazer, nós cristãos de hoje, diante dos gritos de tantas mulheres sozinhas, marginalizadas, maltratadas e esquecidas? FONTE: CEI-JESUÍTAS - Centro de Espiritualidade Inaciana Rua Professor Alfredo Gomes, 32 Botafogo – RJ / 22251-080 Tel.: +55 21 2246-4300 / 21 2266-4700 www.ceijesuitas.org.br