Dilly
u
Q
uer calar a boca aí fora? — diz Dilly. — Eu disse para
calar a boca aí fora que a Dilly mandou!
Diabo de corvo esse lá fora, grasnando antes mesmo de o
dia clarear e reclamando, fuçando na palmeira que nem palmeira é, mas por alguma razão a chamaram assim. Bicho esquisito,
solitário ou solitária, nem pinto nem criança, com seus augúrios
e seus enigmas.
O bicho faz Dilly se arrepiar, ah faz, e ela ocupada em guardar seus preciosos pertences por questão de segurança. Embrulha seus cristais lapidados para o caso de Cornelius, o marido,
enlouquecer a ponto de usá-los ou exibi-los na frente de Crotty,
o operário, que os arremessaria numa cerca ou numa vala como
se fossem latas velhas. Seus pequenos tesouros. Cada item a lembrar-lhe alguém ou alguma coisa. A porcelana com o desenho
de flores que Eleanora adorava; quando criança, ficava sentada
em frente à cristaleira inventando histórias sobre os ramos de
rosas e miosótis pintados com vida sobre a porcelana finíssima
—
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e o prato de bolo de dois andares. A jarra de vidro, lembrança
daquela caminhada pelo vasto cemitério no Brooklyn, no décimo segundo mês, com o homem alto e barbado, à procura de
nomes de irlandeses falecidos entre as lápides e placas mais simples, e de ter encontrado o túmulo de uma certa Matilda, a viúva de Wolfe Tone, herói do movimento pela independência da
Irlanda e da Rebelião Irlandesa de 1798, e de fazer uma pausa
para prestar-lhe uma homenagem.
Ela pede aos seus pertences que tomem conta da casa, que
fiquem de olho em Rusheen; pede aos pratos enfeitados com
peras e romãs, pede às xícaras branquíssimas de porcelana,
com suas belas bordas douradas, um pouco esmaecidas aqui e
acolá pelo roçar dos lábios — algumas trincadas pelo ímpeto de
visitantes descuidados, como aquele louco que comia por quatro, falando sem parar sobre Maire Ruadh, sabe-se lá quem foi,
algum assunto no qual Eleanora era versada. A filha passara a
vida inteira entre livros e mitologias, que a desencaminharam
desde muito cedo.
A mala já está na entrada, amarrada com uma tira de couro porque as fivelas de latão já estão um pouco frouxas. Sorte
que Con precisou viajar para longe, para a cobertura das éguas.
Dilly não quer nem choro nem lamúrias. Incrível como ele
amolecera ao longo dos anos, particularmente nos últimos nove
meses, e ela derrubada pela herpes, muitas vezes andando sonâmbula, qualquer coisa para aliviar a dor. Numa dessas ele a
encontrou à beira do tanque, jogando água em si mesma para
aplacar a cólera.
— O que foi que eu fiz de errado? — perguntava ele repetidamente, tirando e pondo o boné na cabeça, muito lento, com
ar ausente.
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— Nada, você não fez nada de errado — respondia ela, anulando os anos de atribulações.
Insistiu para que o marido levasse consigo a cadela Dixie,
pois sabia que, na hora da partida, Dixie também se deitaria no
chão e se lamentaria como se fosse gente.
Afofa as almofadas nas poltronas da sala do café da manhã,
conversa com elas, conclui que a camada de fuligem atrás da
chaminé vai funcionar como uma espécie de escudo e impedir
que pegue fogo. Conhece os hábitos de Con, de empilhar folhagens e troncos, louco por uma chama bem alta, perdulário
com a madeira a ser queimada como se não houvesse amanhã.
O grande bilhete que escreveu está colado na lareira: “Não se
esqueça de apagar o fogo antes de ir para a cama nem de puxar
o sofá de volta para o lugar.” Por alguma razão, dá corda novamente ao relógio e o coloca no lugar de sempre, virado para
baixo, batendo teimosamente.
Lá fora, na ordenha, escalda os baldes, latas e vasilhas de
leite, pois se há uma coisa que não quer sentir é cheiro de leite
azedo, um odor persistente que a aborrece e a faz recordar sensações que não deve.
O corvo reclamão continua na sua lenga lenga e ela responde com outro grito enquanto segue para o varal; vai pendurar
algumas roupas, peças dele, dela, e mais um monte de paninhos
de mesa.
Manhã fria, a grama molhada com o que restou da geada, e,
nas depressões do morrinho em frente, algumas prímulas bem
precoces são reduzidas a pedaços. Engraçado como elas brotam
num lugar e não em outro. Quando pensava em flores eram as
prímulas que lhe vinham à mente, elas e os botões-de-ouro, mas
agora pensava em outras coisas: tarefas, dívidas, a família, a
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cadela Dixie, os pacotes de sopa que misturava e depois esquentava para o lanche matinal ao lado de Con; enfim companheiros, como Dixie e seu amigo Rover antes de ele ser atropelado.
Pobre Dixie, tão sentida e desconsolada, sem querer comer durante semanas, meses, esperando o companheiro voltar.
O vento de março sacudia tudo — as roupas que ela pendura para secar, os pedaços de sacos plásticos e sacos de forragem
que ficam presos no arame farpado e fazem tanto barulho —, e
as lágrimas escorrendo em seu rosto e nariz, por causa do frio e
pela perspectiva de ficar longe por várias semanas. Potros imundos com a lama e o estrume de onde acabaram de rolar, estrume por toda parte, nas caudas e na grama que comem, os dois
potrinhos brincalhões, suas crinas cobertas de estrume, alegres
e logo a seguir tristonhos, seus gritos quase como balidos ao
perceberem que a mãe saiu do seu raio de visão. Nenhuma colina ou arbusto lhe era estranho, conhecia tudo aquilo, o lugar
onde sofrera tanto e que mesmo assim lhe era tão caro, e quantas
vezes eles quase o perderam? O meirinho um dia demonstrava
compaixão, dizia que lhe cortava o coração ver uma dama como
ela numa situação tão difícil, as contas, as contas não pagas
amarfanhadas, espetadas num prego enorme, o nome deles agora
nas páginas da Gazette. Sim, a pobreza e os campos sendo vendidos na bacia das almas, e sua filha Eleanora, a cabeça nas
nuvens, a citar o trecho de um livro que dizia que “tudo o que
uma pessoa precisa é de um lugar esplêndido e seguro”. Ainda
assim, as visitas dela eram como o céu, a lareira acesa na sala de
estar e as conversas sobre estilo; nada de sair correndo para lavar os pratos, e sim refestelar-se e conversar, ainda que soubessem que havia coisas que não podiam ser discutidas, questões
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privadas da vida que Eleanora levava. Como ela rezava para que
a filha não morresse em pecado mortal, a alma eternamente
condenada e perdida, assim como Rusheen estava quase perdida.
Houve um tempo, um “era uma vez”, em que o muro de
calcário cinza estendia-se do portão de baixo e seguia toda a vida,
passava os chalés e chegava até a cidade, demarcando suas terras; mas isso ficou no passado. Terras vendidas por nada ou quase nada para pagar juros ou contas, madeira cortada nem sempre
com a concordância do dono... O mesmo acontecia com o
musgo do pântano: qualquer um tinha permissão para entrar e
tirar musgo, guardar musgo e levar para casa em plena luz do
dia. Quantas e quantas vezes estiveram a um passo de perder
tudo aquilo? Ainda assim seu orgulho fora preservado; Rusheen
era deles, as velhas e fiéis árvores a montar guarda, e cabeças de
gado em número suficiente para pagar as despesas por uns seis
meses ou mais. Sem passar fome como pessoas desafortunadas
em outros países, reduzidas a atônitos esqueletos por chuvas,
inundações e guerras.
Madame Corvo ainda em seu poleiro, com seus grasnidos,
manhã ainda fria, mas não um frio cortante como o da semana anterior, quando teve de usar polainas para suas frieiras,
precisou arrastar o único aquecedor de quarto em quarto para
evitar que tudo ficasse úmido, que o papel de parede rasgasse, os ornamentos duros como pedra, como se estivessem queimados pelo frio. E, com uma pontada, a lembrança de quando
encostou seu rosto no rosto de uma dama de gesso chamada
Gala, e de repente o pensamento voltou àquele cemitério no
Brooklyn com o homem barbado, Gabriel, e o beijo com gosto
de neve derretida, mas, meu Deus, que fogo tinha. Gabriel,
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o homem com quem poderia ter se casado, só que não era
para ser. Adormecer todas aquelas lembranças era como abater um animal.
De certo modo estava contente por estar se aguentando,
contente porque o Dr. Fogarty finalmente lhe conseguira um
leito, após meses de enrolação e adiamentos, porque acreditava
que não havia nada de errado com ela, só os nervos e os efeitos
da herpes; explicava-lhe que a doença deixava as pessoas deprimidas e outras bobagens, que a herpes levava muito tempo para
abrandar, e ela dizendo que nunca abrandava, estava sempre lá,
pior antes da chuva, uma espécie de barômetro. Patsy, que fazia
as vezes de enfermeira e vinha duas vezes por semana cuidar
dela, lavava as feridas, lembrava de alguma coisa do seu tempo
de enfermeira, que tipo de unguento passar, sempre atenta para
que as feridas não formassem um anel em suas costas, pois esse
círculo seria fatal. Patsy chamava-as por seu nome em latim,
Herpes zoster, e explicava como a dor atingia a linha dos nervos,
algo que Dilly sabia melhor do que qualquer palavra latina quando chorava noite após noite, vendo-as vazar e sangrar, quando
nada, nenhum remédio, prece ou intervenção, podia fazer coisa alguma por ela; uma punição tão violenta que muitas vezes
achava que uma metade do seu corpo estava se amotinando
contra a outra, um castigo por algum crime terrível que talvez
tivesse cometido.
— Quanto tempo falta? — perguntava a Patsy.
— Precisam seguir o seu curso, madame — respondia, e
assim foi.
Quase todas as manhãs ela se virava para olhar no espelho
do armário, para ter certeza de que não tinham aumentado, que
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o círculo fatal não tinha se formado. E nunca esqueceria o momento em que Patsy soltou um grande “viva” e disse:
— Estamos ganhando, madame, estamos indo muito bem!
— porque as pequenas feridas tinham mudado de cor, ficaram
mais desmaiadas, sinal de que tinham resolvido ceder e que logo
as cascas começariam a cair.
Depois veio o tormento seguinte, uma questão tão íntima,
tão constrangedora que não podia ser discutida nem com Patsy
nem com o próprio Dr. Fogarty. Pediu que acreditasse que ela
estava pingando sangue — e que não a examinasse, mas receitasse algo que fizesse aquilo estancar, resistindo à ideia de ter
que se despir e ser vista seminua, ou ter suas partes íntimas
investigadas.
— Você não vai sentir dor... só um desconforto — disse ele.
— Não me peça, doutor, não me peça isso — implorou, e
ele não conseguia entender os medos, até que deixou escapar
um desabafo. — Fomos criadas na idade das trevas, doutor.
O médico resmungou, contrariado, depois abriu um biombo meio cambeta para que ela se trocasse.
Poucos dias depois ele foi pessoalmente até Rusheen para
conversar em particular com Cornelius. Quando retornaram
da sala de estar, disseram que ela teria de ir a Dublin para ficar em observação. Observar para quê? Ela não era nenhum
céu estrelado...
Dentro de casa, usa o casaco castanho de pele de camelo e
a boina angorá marrom, depois passa batom nos lábios, sem sequer olhar no espelho, e fica atenta à buzina de Buss, o motorista
contratado, que prometera estar lá às onze em ponto. Mergulha os dedos na fonte de água benta, benze-se repetidas vezes e
diz à casa:
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— Vou sair agora mas volto logo, volto logo — quando, para
sua surpresa, Buss antecipa-se e entra na cozinha. Apanhada
desprevenida e um pouco aturdida agora, porque sua hora
chegou, diz, com uma efusividade quase juvenil:
— Buss, você é o melhor homem e o melhor pastor dessa terra!
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