PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FERNANDO KEUTENEDJIAN MADY
FUNÇÃO SOCIAL DOS NEGÓCIOS JURÍDICO-ADMINISTRATIVOS
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FERNANDO KEUTENEDJIAN MADY
FUNÇÃO SOCIAL DOS NEGÓCIOS JURÍDICO-ADMINSTRATIVOS
MESTRADO EM DIREITO ADMINISTRATIVO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de
MESTRE em Direito Administrativo, sob a orientação
do Prof. Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha.
São Paulo
2012
BANCA EXAMINADORA:
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_________________________________________
Àqueles, tal como meu pai, que não
se renderam às normas postas, ao
sistema, ao status dominii, mas
ousaram em nome da consciência
ética coletiva; e a Maristela, minha
esposa.
“Se eu soubesse de algo que fosse útil para mim, mas
prejudicial à minha família, eu o rejeitaria de meu
espírito. Se eu soubesse de algo útil à minha família, mas
não à minha pátria, procuraria esquecê-lo. Se eu
soubesse de algo útil à minha pátria, mas prejudicial à
Europa, ou então útil à Europa, mas prejudicial ao
Gênero humano, consideraria isto como um crime.”
(Montesquieu)
“Os humanos são feitos um para o outro: instrui-os ou,
então, suporta-os.” (Marcus Aurelius Antoninus)
“A verdadeira felicidade está na própria casa, entre as
alegrias da família.” E: “Não há grandeza quando não
há simplicidade.” (Leon Tolstoi)
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus; agradeço também aos Professores Carlos Alberto Ferriani,
Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo de Abreu Dallari, Eliane de Oliveira Barros, Fábio
Konder Comparato, Luiz Carlos Ribeiro dos Santos, Sueli Gandolfi Dallari e Weida Zancaner
pelo exemplo que deram e pelos professores que são; igualmente agradeço a: Antonín
Leopold Dvořák, Charles de Montesquieu, Confúcio, Francisco de Assis, Gustav Mahler,
Isaias, Jean-Jacques Rousseau, Jimmy Carter, José Ortega y Gasset, Karl Marx, Keith
Richards, Leon Tolstoi, Ludwig van Beethoven, Luís Gama, Mahatma Gandhi, Marcus
Aurelius Antoninus, Martin Luther King, Neil Young, Nelson Mandela, Noel Gallagher,
Paulo de Tarso, Pete Townshend, Richard Wagner, Sidarta Gautama, Sócrates, Sófocles,
Tony Iommi, Thomas Jefferson, William Shakespeare e, precipuamente, Jesus Cristo que
estavam comigo sempre em meus momentos de angústia, insatisfação e descontentamento,
além de contribuírem em minha formação enquanto pessoa humana; também agradeço à
família Mady, cujo calor me dá contínuas alegrias e risos, a Mauro Gomes Aranha de Lima,
segundo pai, e a Ubirajara Keutenedjian Filho (in memoriam); com especial gratidão a meu
irmão, Cadu, minha mãe, Carolina, e meu pai, Charles, pela paciência, suporte e orientação
fiel, honesta e corriqueira durante toda minha existência; com ternura e amor a Maristela pelo
apoio e companheirismo doado a mim durante todos os momentos difíceis que
compartilhamos e vencemos; e, por fim, agradeço, especialmente, ao Professor Sílvio Luís
Ferreira da Rocha por ter acreditado em mim e me orientado com extrema paciência e
compreensão, além de continuamente me instigar a aprender e a evoluir enquanto ser humano.
RESUMO
Almeja-se neste trabalho demonstrar possibilidades de aplicação do princípio da
função social aos negócios jurídicos administrativos com suas especificidades.
Justifica-se a necessidade científica de seu estudo pelo fato de que, a despeito de se
tratar de um princípio constitucional implícito, não recebeu da doutrina tratamento adequado e
amplo na seara dos negócios jurídicos da Administração.
A metodologia utilizada foi a de demonstrar e identificar sua origem, estabelecer seus
efeitos em outros planos e suas diferenças com outros institutos jurídicos, conceituá-lo e, ao
final, apontar suas possíveis aplicações nas diversas atividades administrativas.
Foi abordada a visão de Direito com que se executou o exposto no início. Tratou-se de
institutos correlatos ou sobrepostos como a boa-fé objetiva, a confiança legítima na tutela do
interesse público pelo Administrador e particular.
Com a elaboração desta dissertação, apontaram-se possíveis funções ao princípio da
função social nos negócios jurídicos administrativos: integrativa, interpretativa e inibidora.
Palavras-chave: função social, princípio implícito, negócios jurídicos, direito administrativo,
contrato administrativo.
ABSTRACT
This work aims to demonstrate the possibilities of applying the principle of the social
function to administration legal transaction, with its specificities.
Justified the need of his scientific study by the fact that, despite it is a constitutional
implicit principle, doctrine did not give it adequate and ample treatment in the administration
legal transaction.
The methodology used was to demonstrate and to identify its origin to establish their
effects on other areas and their differences with other legal institutions, conceptualize it and at
the end pointing their possible applications in various administrative activities.
It was approached with the view of law exposed in the beginning. This was related to
other overlapping institutes as objective good faith, trust in the protection of legitimate public
interest and particularly by the Administrator.
In preparing this essay, was pointed to possible functions for the principle of social
function in the legal and administrative business: integrative, interpretative and inhibitory.
Keywords: social function, implicit principle, juridical transaction, administrative law,
administrative contract.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO DIREITO CIVIL
1.1.
Desenvolvimento histórico
1.2.
Várias vertentes na doutrina brasileira
2. FUNÇÃO SOCIAL DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ADMINISTRATIVOS
1
2
2
13
47
2.1.
Considerações gerais
47
2.2.
Atividades administrativas
66
2.3.
Negócio jurídico administrativo
68
2.4.
Aplicação nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual
75
2.4.1. Fase pré-contratual
81
2.4.2. Fase contratual
89
2.4.2.1. Função integrativa
91
2.4.2.2. Função interpretativa
93
2.4.2.3. Função inibidora
97
2.4.3. Fase pós-contratual
111
CONCLUSÃO
109
BIBLIOGRAFIA
111
INTRODUÇÃO
A presente dissertação visa a delimitar, na esteira do Professor Sílvio Luís Ferreira da
Rocha, em sua livre docência “Função social da propriedade pública”, a aplicação do
princípio da função social dentro do Direito Administrativo, mais especificamente nos
negócios jurídicos administrativos, devido ao fato de o mencionado autor já ter esgotado
brilhantemente o tema quando relacionado aos bens públicos.
Neste trabalho, não se propõe provar coisa alguma, mas apenas apontar direções aos
negócios praticados pelas Administrações Públicas em geral e, talvez, iniciar reflexões sobre
o assunto.
No Capítulo I, abordar-se-á o tema da função social na seara civil, em que se originou
efetivamente esse princípio, que angariou status de constitucional implícito na Constituição
Federal de 1988 e aplicação geral aos contratos com o advento do Código Civil de 2002.
No Capítulo II, conceituar-se-ão os negócios jurídicos da administração, e passar-se-á
ao tema propriamente dito. Procurar-se-á apontar possíveis efeitos do princípio da função
social nos negócios jurídicos administrativos.
1
1. FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO DIREITO CIVIL
1.1. Desenvolvimento histórico
1. A função social na doutrina contratual surgiu no fim do século XIX e nas primeiras
décadas do século XX, em países europeus: Itália, França e Alemanha, nos escritos de Rudolf
von Ihering, Léon Duguit, Enrico Cimbali e Karl Renner.
O ponto inicial no desenvolvimento histórico da incidência da função social na teoria
contratual está em Ihering, cuja elaboração foi imprescindível para a análise da função social.
“O direito é uma ideia prática, isto é, designa um fim...”.1
De grande importância é a divisão feita por Ihering entre fins individuais, relativos aos
interesses egoísticos, e sociais, ligados ao método usado pela sociedade e o Estado com o fim
de aliciar a cooperação em sua realização.2
Afora a introdução da interpretação teleológica no ordenamento jurídico, Ihering
inovou ao apontar para a necessidade de que toda proposição jurídica deve ser vista de acordo
com sua função social, mesmo que um tanto tímida ainda em sua concepção.3
2. Léon Duguit aponta para a eficácia obrigatória do acordo de vontades quando
houver solidariedade social nos embasamentos fático e social.
Duguit inferia que para haver proteção estatal da finalidade a ser alcançada pelo ato e
sua produção de efeitos, sua finalidade deve corresponder ao fim perseguido pela sociedade,
pois o Direito protege o fim, e não a vontade do sujeito. A visão metafísica do direito
subjetivo é substituída pela função social do direito subjetivo. Ora, cada indivíduo, cada grupo
1
IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. Tradução e notas Edson Bini, apresentação Clóvis Beviláqua. São
Paulo: EDIPRO, 2001.
2
Conforme trecho de sua obra: “Isto também sucede na luta pelo direito, seja o interesse ou a dor que causa a
lesão legal, ou a ideia do direito, quem impele os homens a entrar em luta, todos concorrem para trabalhar na
obra comum: — a proteção do direito contra a arbitrariedade. Atingimos o ponto ideal da nossa luta pelo direito.
“Partindo do baixo motivo do interesse, elevâmo-nos ao ponto de vista da defesa moral da pessoa, para chegar
por último a esse comum trabalho de onde deve sair a realização total da ideia do direito.
“Que alta importância assume a luta do indivíduo pelo seu direito, quando ele diz: — o direito inteiro, que foi
lesado e negado em meu direito pessoal, é que eu vou defender e restabelecer!
“Quanto está longe desta altura ideal onde a eleva tal pensamento, essa baixa região do puro individualismo, dos
interesses pessoais, dos desígnios egoístas e das paixões que um homem pouco cultivado torna como verdadeiro
domínio do direito!
“Dir-se-á, talvez, que é uma ideia tão elevada que só a filosofia do direito pode penetrá-la; não é ela de aplicação
prática, porque ninguém intenta uma ação somente pela ideia do direito” (IHERING, Rudolf von. A luta pelo
direito. Versão para e-books disponível em: <eBooksBrasil.com>, p. 30).
3
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função social dos contratos: interpretação à luz do Código Civil. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 46-47.
2
possui uma missão no organismo social do qual fazem parte, isto é, devem cumprir certas
tarefas na divisão do trabalho social.4
Diante disso, esse grande autor afirma que a teoria da declaração é a manifestação
exterior da vontade, e não um ato interno. Para o contrato ter respaldo jurídico necessita de
uma função social. Não pode ser um ato de vontade meramente individual. A vontade
somente pode ser avaliada pelo Direito posteriormente à sua transformação em ato social. É
uma objetivação, em relação a Ihering, no sentido de “socialização do direito”.
Por consequência, a causa dos contratos atrela-se a seus fins sociais ou à solidariedade.
Diferencia-se, dessa forma, fim de objeto do contrato. O segundo é o que se almeja da relação
jurídica, ou seja, a prestação. O primeiro é a razão pela qual se quer, isto é, seu motivo
determinante.
No entanto, Duguit não consegue se desatrelar do dogma da vontade. Inclusive,
quando trata da causa do contrato, esta é confundida com motivos, os quais são razões
subjetivas na formação desse negócio jurídico. Apesar disso, na formação do conceito de
função social atrelada à finalidade objetiva do ordenamento, sua contribuição foi valiosa. O
entendimento desse filósofo e jurista francês sobre função social está atrelado à ideia de um
ato de vontade caracterizado por uma finalidade social e de solidariedade social. Sua visão
com preocupações solidaristas e funcionalistas é decorrência, respectivamente, da influência
de Émile Durkheim e Augusto Comte. A principal concepção adotada do primeiro por Duguit
foi a concepção relativa ao fato de a ordem social não repousar em um contrato social, ou na
onipresença da figura estatal, mas nas solidariedades sociais objetivas engendradas pela
especialização e divisão das funções sociais.5
Frente ao esboçado, a principal contribuição desse autor, no campo do direito privado,
foi a de demonstrar que a vontade não é o único elemento a definir o conteúdo do direito, seja
nos limites do exercício do direito de propriedade, seja pelo motivo de haver fato social
anterior que justifica a declaração de vontade. Diferencia-se de Ihering por afirmar que o
interesse subjacente a essa declaração não é egoístico ou simplesmente subjetivo, ao
contrário, determina-se por fins de solidariedade social, ponto inclusive responsável por uma
alteração na maneira de interpretar a lei.
3. Uma visão igualmente interessante sobre a função social está nas obras do autor
italiano Enrico Cimbali, que foi o primeiro a utilizar efetivamente a expressão função social
4
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Trad. Márcio Pugliesi, São Paulo:Martin Claret, 2009, p. 35, 45-47
e 75.
5
COMPARATO, Fábio Konder. Visões distintas do fenômeno jurídico. In: Revista de hermenêutica jurídica.
(In)Justiça nas transições políticas.
3
para contrapor a visão individualista a uma concepção imantada de solidarismo no direito
privado. Opunha-se ao contexto existente à edição de sua obra, isto é, ao modelo servil
exegético francês, em período posterior à unificação do direito civil italiano no Código Civil
de 1865. Propunha o estudo do direito de uma nova maneira, a partir de sua análise de tecido
social e do uso de vocabulário típico dos cultores das ciências naturais, inspirados nas
construções intelectuais de Darwin, Spencer e de socialistas em geral.6
Tal autor afirmava que os instrumentos técnicos do direito romano e seus esquemas
ordenadores não acompanharam as mudanças sociais ocorridas no fim do século XIX. Era
necessária a elaboração de uma nova fase no direito, não mais subjugada à pobreza do
pensamento exegético de aplicação da lei, mas que compreenda a existência de um conjunto
de entes morais vinculados às associações, corporações e cooperativas, e a versatilidade da
experiência e riqueza da vida. Diante disso, demanda reformas legislativas para atender ao
interesse dos mais vulneráveis, em concordância às exigências de socialidade e à nova era nas
relações econômicas e sociais, as quais foram atendidas pelo parlamento italiano quando
aprovou a nova legislação social afinada a tais ideias vigentes na época.7
Para esse autor italiano, nesta nova fase por advir, o sujeito deveria ser entendido
como membro de um conjunto social (ou tecido social) em um determinado momento
histórico, sem que isso resultasse em abdicação da proteção de sua individualidade.
Cimbali, com base no Direito italiano e sua tradição jurídica nacional de caráter
comunitário, demonstra uma reação do princípio da socialidade frente ao individualismo,
evidente no Código Civil daquele país através de certas ingerências possíveis de serem
realizadas pelo Estado na proteção dos interesses e da prosperidade coletiva. A interferência
do Estado, portanto, é uma atuação benéfica para todos ao moldar a liberdade individual. O
triunfo do individualismo e a alteração na relação do indivíduo e do Estado, referente ao
capitalismo, trouxeram uma sujeição econômica, e não jurídica (daquele que possui poder
econômico diante daquele que não tem), crescente, a qual propiciou, por consequência, o
aumento da distância entre as diversas classes sociais. Ainda infere que o papel do Estado é
limitar a tendência egoísta e desorganizadora produzida pelo capitalismo através de uma força
oposta, altruísta e reorganizadora, chamada função social. Isso serviria para “temperar o
excesso de egoísmo existente entre as classes”, além de assegurar maior grau de cultura e
força para cada particular.
6
7
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit., p. 52 e s.
GROSSI, Paolo. Apud ibidem, p. 52, nota de rodapé 36.
4
O autor procura definir os limites da função da propriedade e do capital, devido às
grandes transformações ocorridas nas obrigações civis (capitalista e empregado, produtores e
consumidores etc.) decorrentes da legislação social. O contrato cumpre uma função social,
pois o ser humano individualmente não supre suas necessidades.
4. Na opinião de Fábio Konder Comparato, a concepção funcional do direito se
originou das ideias de Karl Renner, em 1904, em sua monografia Die soziale Funktion der
Retchsinstitute.8 Utiliza-se, para tanto, de premissas marxistas do direito, com cisão de
estrutura e superestrutura; esta com condições de realizar mudanças naquela. O direito é,
nesse contexto, caracterizado como instrumento de transformação, apto a modificar a função
social de qualquer instituto jurídico em prol de serem realizados objetivos econômicos
diferentes dos originais, semelhante à concepção dos sociais-democratas do século XX. Dessa
forma, é possível empregar o Estado para melhorar as condições da classe operária, com o fim
de alcançar o socialismo. A fé na legislação e no poder da lei, em que tudo é possível,
denomina-se Decretinismo.9
O presente autor austríaco faz uma distinção relevante entre função social e função
econômica. Enquanto esta é resultado de seu papel no processo produtivo, aquela está atrelada
à finalidade última da sociedade, isto é, a manutenção da espécie humana. Obviamente, tal
exame está baseado em uma explicação teleológica, de motivo, meio e finalidade; não em
uma análise de causa e efeito.
Ao partir da premissa de Marx de que as relações econômicas não correspondem
exatamente às relações jurídicas, Renner conclui que negócio jurídico não coincide com
atividade econômica. Ora, a circulação de bens ocorre via negócio jurídico de compra e venda
(direito obrigacional), contudo a produção deles não é um negócio jurídico. Em contrapartida,
institutos jurídicos servem a finalidades específicas e determinadas sob o enfoque da
economia, as quais ele denomina “função jurídica” de tais institutos. Aponta, ainda, não ser
possível indicar uma função geral para o direito, já que a cada época ou momento histórico
haveria uma função, em virtude de haver dependência entre as normas jurídicas e os processos
econômicos.
Por
conseguinte,
“a
implicação
jurídico-econômica
está
relacionada
à
instrumentalização dos institutos jurídicos para que alcancem os fins da atividade
8
Função social da propriedade dos bens de produção. In: Direito empresarial: Estudos e pareceres. 1. ed. 2. tir.
São Paulo: Saraiva, 1995.
9
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit., p. 63.
5
econômica”. Funções atributiva (principal), produtiva, distributiva e consumptiva fazem parte
de tais desideratos:
A função consumptiva está relacionada à parte que cada membro da
população tem no produto produzido anualmente pela sociedade, como seu
fundo de consumo, garantido pelos institutos jurídicos, seja por meio da
propriedade, do usufruto, e no caso de falta de outros institutos jurídicos, da
caridade. A função distributiva está relacionada à circulação de bens, na
forma jurídica da compra e da venda. E a função produtiva está vinculada a
dois institutos jurídicos: propriedade e contrato de trabalho.10
Além disso, cumpre asseverar que a função atributiva está presente em todas as outras.
A função social, por sua vez, compreende todos os efeitos decorrentes do instituto
jurídico em direção à sociedade (ou na produção capitalista), ou seja, o conjunto de funções
econômicas guiadas ao corpo social. E mais, cada função particular se embasa em uma única
função social. E, por isso, um instituto jurídico pode permanecer estático normativamente,
embora sofra modificações advindas de nuanças no cenário econômico. Em contrapartida, a
função econômica pode permanecer a mesma, mas o instituto se alterar por novidades
normativas. 11
Quando advém qualquer mutação da função dos institutos jurídicos, houve certamente
alguma alteração na própria sociedade. Se desaparecer um instituto, surgirá outro para regular
a mesma situação econômica. O conjunto de institutos jurídicos deve cumprir uma função
geral, de acordo com as exigências da sociedade. Caracteriza-se, com isso, o caráter orgânico
deles, e torna visível a conexão entre as normas de direito público com as de direito privado.
Renner situava as mudanças funcionais fora da seara jurídica por ter uma visão
“dialeticamente fechada”. Há um limite expresso por ele em seu raciocínio: uma lei não pode
contrariar por absoluto a estrutura da propriedade vigente, sob pena de ineficácia, como ficou
evidenciado pela Revolução Russa, de 1917, nas relações agrárias.
Nessas condições, a contribuição do autor com o estudo da função social foi
demonstrar a necessidade de se compreender funcionalmente o ordenamento, embora não
atribua à função social um conteúdo específico, cuja distinção entre ela e a função econômica
se tornasse possível, ponto relevante na análise do artigo 421 do Código Civil, por exemplo.
Emilio Betti é outro autor conveniente a se ressaltar, por suas teorias terem
influenciado em muito os elaboradores do Código Civil de 2002 na temática da construção do
10
Ibidem, p. 65.
BERCOVICI, Gilberto. Estado e Marxismo no debate social-democrata dos anos 1920-1930. Alaôr Caffé
Alves (Org.). In: Direito, Sociedade e Economia – leituras marxistas. Barueri: Manole, 2004.
6
11
negócio jurídico, e ao associar autonomia privada a um instrumento para consecução da
função social.12
A função social do contrato está inserida no ordenamento como princípio e cláusula
geral.13 Enquanto princípio, adverte Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a função social do contrato
informa toda a compreensão do instituto, pouco importa o ramo de Direito a que esteja ligado.
Enquanto cláusula geral, constitui um relevante instrumento de elaboração e construção
judicial, prevista no art. 421 do Código Civil.14 Não disciplina apenas o conteúdo dos
contratos, mas também o âmbito da liberdade de contratar. Portanto, é uma concepção com
amplitude maior do que a mera limitação da esfera de liberdade para se convencionar. Para
esse jurista italiano, a função social tem um valor operativo, constitutivo do contrato, cujos
efeitos alcançam inclusive sua interpretação. De maneira equivalente, tem emprego na
concretização dos preceitos contratuais singularmente considerados, isto é, contém um papel
integrativo, o qual dá ao juiz uma competência mais ativa para formar o direito para o caso
concreto.15
12
Isso é evidentemente nítido, por exemplo, em um trecho da obra de Reale intitulada Questões de Direito
Privado, quando ele dispõe na primeira das questões a serem abordadas, isto é, Diretrizes da hermenêutica
contratual, que ao tratar do sentido social dos contratos “(...) nenhum jurisconsulto é mais lúcido e preciso que
Emilio Betti, o qual, na sua clássica monografia Interpretazione della Legge e degli Atti Giuridici, Milão,
1949, após demonstrar que a mentalidade do jurista hodierno ‘é aderente ao dado fenomenológico e aos
pressupostos sociológicos do Direito, obedecendo a uma valoração concreta como ordenamento, isto é, como
ordem institucional destinada à tutela de interesses e de certos fins sociais’, esclarece como deve ser interpretada
uma declaração contratual” (REALE, Miguel. Questões de Direito Privado. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva,
2010. p. 1-2).
13
Os termos princípio e cláusula geral não têm o mesmo significado. A evolução histórica do conceito de
princípio no direito administrativo é dividida em três fases. Conforme Ricardo Marcondes Martins, a primeira
fase foi totalmente superada, em que o termo princípio era usado com seu significado comum, tratavam de
assuntos importantes e gerais. Na segunda fase, passa a ter um conceito técnico. “No momento em que o Direito
começou a ser tratado como Ciência, os juristas passaram a procurar critérios racionais por trás do conjunto
das normas jurídicas, critérios que dão estrutura ao conjunto, que dão às normas uma ordem, estabelecem uma
ordenação, um ordenamento, que estabelecem, enfim, relações de coordenação e de subordinação entre as
normas. Estudar o Direito passou a ser mais do que conhecer o conjunto de normas, conhecer esses critérios de
ordenação”. O que torna o ordenamento um todo coerente são os princípios (segunda fase). Na terceira fase,
princípio adquire um significado dissociado daquele exposto na segunda fase, isto é, passa a ser norma jurídica
que positiva um valor, determinando sua concretização na maior medida o possível. Estabelece um fim, sem
fixar o meio (através desta atribuição para as regras). Servem não só para interpretação ou invalidação de regras,
mas inclusive como disciplina de conduta do agente normativo. Por fim, adverte o autor que a terceira fase não
constituiu superação da segunda. Ambas se somaram. Criou-se uma ambiguidade: o instituto princípio jurídico
da segunda fase nada tem a ver com o instituto princípio jurídico da terceira. Esta trata de mandado de
otimização, enquanto aquela de mandamento nuclear (MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso do direito e a
constitucionalização do direito privado. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 21-27). Já cláusulas gerais,
segundo Sílvio Luís Ferreira da Rocha, são “formulações contidas na lei, de caráter genérico e abstrato, cujos
valores devem ser preenchidos pelo juiz, autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da
própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz” (Direito civil – 1: Parte geral. São Paulo: Malheiros
Editores, 2010, p. 30).
14
Op. cit., p. 27.
15
BRANCO. Op. cit., p. 68-69.
7
Ao trabalhar de forma mais abstrata, Betti propõe a função social da obrigação,
orientado pela ideia de cooperação socialmente útil entre aqueles que compõem a sociedade,
em virtude de o Estado ter concedido aos particulares a autonomia privada. A liberdade
contratual é uma necessidade imperiosa para a circulação de riquezas e a cooperação entre os
entes que compõem o tecido social.
Cumpre ressaltar que o emprego do vocábulo “concessão” está relacionado à eficácia
contratual, visto que, na concepção de Betti, o direito está separado da realidade social, a
despeito de pertencerem a um único universo, serem sensíveis a variações e mutações do
mesmo modo, que corresponderiam às alterações de um plano (direito) sobre o outro
(realidade social). Independentemente de ingerência estatal, os particulares regulamentam
seus interesses mediante relações recíprocas, segundo suas necessidades, com o fulcro de
atingir inúmeras funções socioeconômicas através de negócios jurídicos.16
Ou nas palavras do próprio Betti:
(...) o direito estatal reconhece a competência dos particulares para
disciplinar seus interesses e acrescenta a sanção jurídica conforme os
costumes e conforme a sociedade. O reconhecimento eleva o ato de
autonomia privada à dignidade de negócio jurídico. O direito estatal não
confere, mas reconhece a autonomia aos particulares, como atividade e
poder de autorregulamentação de seus próprios interesses e relações.17
16
IRTI, Natalino. Itinerari del negozio giuridico. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico
moderno: Emilio Betti e la scienza giuridica del Novecento. Milano: Giuffrè editore, 1978. p. 401-402. Tal
trecho é elucidativo, in verbis: “(...) la posizione della norma giuridica nei confronti della realtà sociale. Il
diritto non è, nella visione bettiana, un universo chiuso ed autosufficiente: ma un piano, lo strato di un cosmo,
che abbraccia altri modi e forme dello spirito umano. Il punto di vista giuridico non ha, perciò, carattere di
esclusività, ma di apertura e di compreensione: “I rapporti giuridici hanno il loro substrato in relazioni sociali
esistenti già prima e anche all’infuori dell’ordine giuridico: relazioni, che il diritto non crea, ma trova dinanzi a
sè, prevede ed orienta nella direttiva di qualifiche e valutazione normative”. Non si tratta di un luogo comune
nella douttrina, che definisce il raporto giuridico come relazione disciplinata dal diritto; ma di un principio più
profondo e prezioso. Diritto e realtà sociale costituiscono due piani – piano superiore e piano inferiore o
sottostante – di un medesimo universo, di un cosmo unitario, che registra identiche variazioni e mutamenti: “Le
qualificazioni giuridiche – precisa il Betti – si muovono e si avvicendano sopra questo piano superiore,
predisposte volta a volta da corrispondenti modificazioni che, col sopravvenire di fatti giuridici, hanno luogo
parallelamente sul piano inferire”.
La vita economico-sociale (storicamente caratterizzata dalla proprietà privata, dall’iniziativa del singolo e dalla
circulazione dei beni) rivela di per sè l’esistenza di negozi: essi “sorgono come atti coi quali i privati dispongono
per l’avvenire un regolamento impegnativo d’interessi nei loro rapporti reciproci e si sviluppano spontaneamente
sotto la spinta dei bisogni, per adempiere svariate funzioni economico-sociali, all’infuori dell’ingerenza di ogni
ordine giuridico”. Interessi, bisogni, vicende dei beni, relazioni d’affari sono regolati dai privati, già sul piano
sociale, medianti negozi: cioè, medianti strumenti impegnativi e criteri di condotta , che esigono di essere
osservati e che fruiscono della tutela del costume e della correttezza. In essi si svolge e manifesta l’autonomia
privata, che è, perciò, un potere pre-giuridico, non concesso nè delegato da una fonte superiore. Privata, non
soltanto perchè spetta ai singoli, ma perchè non discende dalle norme del diritto statale”.
17
BETTI, Emilio apud BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit., p. 71.
8
Diante do esposado, o ato de autonomia é fenômeno econômico-social, o qual apenas
posteriormente poderá – se preenchidos certos pressupostos – ser recepcionado dentro do
mundo jurídico, com ou sem imposição de limites, e, assim, receber tutela do sistema legal
(logicamente mais efetiva e vigorosa que sanções decorrentes de costumes sociais). Dessa
recepção, é gerado o negócio jurídico, uma fattispecie com conteúdo preceptivo.18 O preceito
é o próprio negócio jurídico; aquele não nasce deste. Não se pode confundir o ser do negócio
com o dever ser do preceito.19
Destarte, essa visão em comento nos demonstra valorização da autonomia privada
como elemento pré-jurídico e restringe sua eficácia na seara jurídica. Tal redução se justifica
na medida em que se exige dessa liberdade o respeito a funções socialmente relevantes,
equivalente a uma condição imposta pelo ordenamento para se reconhecer e tutelar qualquer
18
O ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, aclara a acepção do termo fattispecie em seu voto no
Recurso Extraordinário n. 390.840-5, de Minas Gerais, do modo adiante: “Distinguimos, a partir de
ASCARELLI1, cumprindo diferentes funções na linguagem jurídica, [i] os conceitos jurídicos meramente
formais, [ii] as regulae juris e [iii] os conceitos tipológicos [fattispecie].
“Os conceitos meramente formais [v.g., ônus, sujeito jurídico, direito, obrigação] estão ancorados no terreno
formal; o estudo de suas características específicas permite o desenvolvimento de uma quase topologia,
indicativa de uma série de posições lógicas.
“Os conceitos meramente formais não possuem realidade histórica própria.
“As ‘regulae juris’ consubstanciam expressões que sintetizam o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas,
sem que lhes corresponda um significado próprio. Exprimem, condensadamente, um sistema normativo, a modo
– diz Fábio Konder Comparato – de autêntica estenografia legal. Tome-se como exemplo dessa espécie de
conceito o de propriedade, que apenas assume alguma significação na medida em que tenhamos sob
consideração a função que ele cumpre no discurso do direito, de resumir toda disciplina normativa atinente ao
modo de aquisição e aos poderes, faculdades e deveres decorrentes da aquisição de uma posição jurídica
subjetiva em relação a um bem.
“A utilidade do conceito de propriedade – e isso o torna na prática insubstituível – está na enorme economia de
tempo e de energia que o seu uso permite a quem pretenda expor o conteúdo do subsistema normativo aplicável
à propriedade. Às ‘regulae juris’ é que se refere ALF ROSS em seu conhecido opúsculo.
“Os conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie] são expressões da história e indicam os ideais dos indivíduos e
grupos, povos e países; ligam-se a esquemas e elaborações de caráter, bem como a preocupações e hábitos
econômicos e a fés religiosas; à história do Estado e à estrutura econômica; a orientações filosóficas e a
concepções do mundo. Referem-se a fatos típicos da realidade. Aí encontramos conceitos cujos termos são, v.g.,
boa-fé, bom pai de família, coisa, bem, causa, dolo, culpa, erro. Atribuir significado a esses termos equivale à
identificação das espécies de fato alcançadas por um texto normativo. Os conceitos jurídicos tipológicos
[fattispecie], também ditos indeterminados, em verdade não são conceitos, mas noções.
“04. Faturamento é termo de um desses conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie]. Vale dizer, termo de uma
noção. Não desejo cansar a Corte, mas me permito lembrar que elas – as fattispecie ou ‘conceitos tipológicos’ –
não são conceitos [não podem ser entendidas como conceitos] porque os conceitos são atemporais e a-históricos
e elas – as fattispecie ou ‘conceitos tipológicos’ – são notável e peculiarmente homogêneas ao desenvolvimento
das coisas, isto é, caracterizadamente históricas e temporais” (Disponível em: <www.stf.jus.br>).
19
Nas palavras de Natalino Irti sobre Emilio Betti: “Descritta cosi la genesi del negozio sul terreno economicosociale, occorre vedere come esso varchi la soglia del diritto statale: e in particolare se, in questo passaggio al
piano superiore, l’atto di autonomia perda la propria natura o piuttosto la conservi ed esprima. Nella visione
bettiana, il passaggio al piano sovrastante nè corrompe l’originaria natura del negozio: il diritto statale,
riconoscendo la competenza dei privati in ordine alla disciplina dei loro interessi, aggiunge le sanzioni giuridiche
a quelle del costume e della società. Il riconoscimento eleva l’atto di autonomia privata alla dignità di negozio
giuridico. Il diritto statale non conferisce, ma riconesce l’autonomia dei singoli, ‘quale atività, e potestà, di
autoregolamento di proprio interessi e rapporti, spiegata dallo stesso titolare di questi’” (Op. cit., p. 403).
9
negócio jurídico. Em decorrência disso, suprime-se a concepção de se ter na vontade o
elemento unicamente necessário para se consubstanciar o negócio.20
Para Emilio Betti, a função do negócio jurídico é sua causa, ou seja, a sua razão ligada
ao seu conteúdo. Não há identificação entre ambos. Porém, conteúdo é onde os interesses das
partes, devido a escopos práticos de caráter típico e socialmente valoráveis, são regulados na
forma de preceitos. Assim, ao se verificar o conteúdo de qualquer negócio jurídico, poder-se-á
identificar a existência de regulamento com coerência própria e também uma razão prática
inerente, uma causa, “um interesse social objetivo e socialmente verificável”. O conteúdo do
negócio deve corresponder a sua razão prática.21
Por outro lado, causa deve ser compreendida em sentido teleológico e deontológico
relacionada à ideia de sociabilidade, deve ser entendida como a razão e causa típica da
autonomia privada ao estipular preceitos de negócios. Ihering se aproxima de Betti nesse
ponto, diferenciam-se apenas porque o primeiro entende ser individual, subjetivo e egoísta o
interesse que move a vontade privada; e o segundo, ser um interesse típico e objetivo. A
consciência da coletividade social, dessa forma, aprova e protege apenas a autonomia que
perseguir o interesse que lhe seja útil.22 Não se pode confundi-la com o motivo, pois este
possui nexo psicológico com a vontade, por ser interno, contingente e variável, até
contraditório em determinadas hipóteses. A causa é comum e igualitária às partes, bem como
é a relação comutativa nos contratos sinalagmáticos; a unidade funcional do contexto que é a
justificativa, a razão do contrato. Não pode ser considerada a contraprestação como tal, pois
ela é porção do todo.
Nas palavras do autor, “a causa ou razão do negócio se identifica com a função
econômico-social de todo o negócio, considerado despojado da tutela jurídica, na síntese dos
seus elementos essenciais, como totalidade e unidade funcional, em que se manifesta a
autonomia privada”. Ou, para Gerson Luiz Carlos Branco, “a causa é, em resumo, a função de
interesse social da autonomia privada”.23
Portanto, causa não é função jurídica, senão econômica e social; é uma demonstração
de que a autonomia privada é, antes de ser um fenômeno jurídico, um fenômeno social para
esse jusfilósofo italiano. A utilidade desse elemento contratual é limitar ou controlar a
autonomia privada, tanto para que a declaração preceptiva não rompa o nexo psicológico
como a importância social entre ele e o interesse objetivo. Dessa forma, as partes estão
20
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Idem, p. 72.
BETTI, Emilio, apud ibidem, p. 73.
22
IRTI, Natalino. Op. cit., p. 401-404.
23
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit., p. 76.
21
10
limitadas e, assim, não podem arbitrariamente afastar certos elementos integrantes da função
típica, atribuindo, pois, efeitos não aptos a produzir vínculos jurídicos.
É relevante ressaltar que, na concepção de Betti, liberdade contratual e função social
não se contrapõem, ou seja, ao aspecto objetivo da causa há um correspondente reflexo
subjetivo. Função social típica é o interesse objetivo, geralmente concordante com o interesse
subjetivo, que explicitou a declaração de vontade na realidade. A vontade típica se dirige à
função típica do negócio, em virtude de um interesse no caso concreto.24
A função do contrato, consubstanciada no pensamento do autor, é justificar atribuições
patrimoniais nas relações sociais. O Estado controla essa autonomia através da licitude, caso
haja oportunidade e utilidade na tutela jurídica, referente às mais diversas finalidades práticas,
conforme cada tipo contratual e as variações no decorrer da história do interesse social. Betti
exemplifica tal caráter de justificação e legitimação com a situação de não ser justo um
proprietário não usar, gozar e dispor de seu bem, salvo haja uma contraprestação, cuja
ocorrência justificará essa hipótese e o negócio jurídico funcionará como instrumento de
justificação.25
24
Ibidem, p.77-78. Branco não está convencido de que Betti tenha conseguido superar a autonomia da vontade
pela autonomia privada, pois resta certo voluntarismo em seu raciocínio. Isso porque a vontade pode não se
dirigir em direção da função social típica, em situações como reserva mental, simulação e negócios fiduciários,
ou seja, a vontade pode ser dirigida a um resultado prático, não havendo necessidade de existir seus efeitos
jurídicos. Destarte, somente se almejaria o resultado prático que se caracteriza na causa do contrato.
25
IRTI, Natalino. Op. cit., p. 404-408. Trecho ilustrativo ao parágrafo: “Il negozio è fattispecie, ma fattispecie
caratterizzata da un contenuto precettivo.
“Il precetto non nasce dal negozio, ma è il negozio. Questo non si limita a porre norme, che esigano di essere
osservate, ma è ‘immediatamente operativo degli effetti giuridici corrispondenti alla sua funzione economicosociale’. Il precetto non è, dunque, mero prennuncio o programma: esso dispone immediantamente nei raporti
reciproci e statuisce una linea di condotta fra gli interessati. L’´assetto di interessi’ non è un risultato ulteriore,
derivante del sopravvenire della sanzione giuridiche, ma s’identifica con l’immediata ‘forza operativa’ de
negozio. Nè l’essere di questa forza è in contrasto con il dover essere del precetto: ‘In verità – precisa il Betti –
tutte le valutazione normative del diritto sono formulabili in termini di dover essere, ma non per questo sono
meno efficienti ed attuali. Si tratta di un dover essere che non si contrappone alla realtà come una mera esigenza
o un non essere, ma che anzi informa di sè la realtà della vita sociale e si pono solo in antitese con ogni possibile
comportamento difforme’.
“Dunque, il negozio, prima ancora di essere elevato alla dignità di fattispecie, ha un’immediata efficacia
normatrice, che non viene rifiutata, ma accolta e resa propria dal diritto. Mentre gli altri fatti giuridici ricevono
efficacia dal diritto, il negozio si presenta provvisto, già sul piano sociale, di energia operativa: un’energia, che
esso non perde nel passaggio al piano superiore e nell’assunzione del ruolo fattispecie. L’efficacia degli altri fatti
è eteronoma (nel senso che procede dalla norma statale, e sorge e cade con essa); quella del negozio è
propriamente autonoma, poichè trova fondamento soltanto in se stessa. La teoria bettiana offre qui sorprendenti
affinità con il vecchio voluntarismo: anche la volontà privata era munita di originaria efficacia, e costringeva il
legislatore statale ad una simplice e passiva recezione...
“Il momento dell’appropriazione è comune al due indirizzi: il diritto riceve nella propria sfera la volontà o l’atto
di autonomia; e li accoglie nell’originaria natura, senza alterarli e trasformarli. Soltanto così è possibile, nella
visione bettiana ‘abbracciare in unica sintesi il piano sociale e il piano giuridico’: cioè, riconoscere ad un tempo
il contenuto precettivo del negozio e la sua funzione di fattispecie. Tra piano sociale e piano giuridico non vi è
soluzione di continuità, giacchè il negozio passa dall’uno all’altro conservando l’originaria e immediata
precettività”.
11
Ademais, se a causa é função social típica, elemento inseparável ao preceito, sua falta,
sua ilicitude ou sua irracionalidade alteram a eficácia contratual. Isso sucede quando há
contrariedade entre o interesse objetivo e a função social típica, quando o negócio jurídico
obedece a um escopo antissocial, mesmo que seus elementos individualmente sejam lícitos:
tem-se, nesse caso, relação jurídico-negocial ilícita.
A função do contrato, além de ser instrumento limitador da autonomia privada, é a
ratio juris das normas as quais emanam reconhecimento jurídico. Podem ser observadas como
ratio juris, verbi gratia, da Lei do Inquilinato ou Código de Defesa do Consumidor, normas
em cujo interesse social lapidou uma série de dispositivos que limitaram a autonomia privada
dos contratantes. Ora, esse cerceamento tem papel ligado ao resultado prático previsto do
contrato. Pode-se produzir efeito de maiores proporções do que mera relação individual, e se
atingir a própria sociedade ao delimitar o conteúdo válido de tais negócios jurídicos. A função
social, então, molda as consequências práticas do acordo celebrado pelos particulares no
sentido daquilo do qual é esperado pela sociedade. Assim sendo, a ratio juris da norma serve
como um elemento interpretativo da eficácia do negócio jurídico e, portanto, não pode
sobrepor-se a enunciados normativos que engendram os objetos para aplicação. É salutar,
nesse ponto, ressaltar uma questão posta por Betti de grandes consequências: quando não for
alcançável a função social típica, que é a ratio juris da tutela jurídica, ficará a faltar a própria
tutela jurídica. Se a causa do negócio jurídico for ilícita, o direito não reconhece o ato, tido
por nulo; e, ainda, poderá gerar reparações pecuniárias destinadas a prevenir ou eliminar seus
resultados. A causa, então, deve conter uma função de interesse social, a ser examinada pelo
juiz, no momento de analisar o caso concreto. Isso está disposto na Lei Civil nacional, mutatis
mutandis, no parágrafo único do artigo 2.035: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar
preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a
função social da propriedade e dos contratos”.
A contribuição relevante do pensamento desse jurista, é a noção funcional de causa,
apta a transpor a soberania do indivíduo na seara privada, quando houver interesse social ou
ideal de solidariedade que isso justifique. Além disso, a demonstração de ser a autonomia
privada mais do que um fato psicológico individual. Ele revelou que ela é concernente à vida
em sociedade, que delineia um fenômeno social cuja vontade não é mais que uma etapa.
12
1.2.
Várias vertentes na doutrina brasileira
5. Seria impossível abordar a função social do contrato no campo do direito privado
sem tecer alguns comentários a respeito do pensamento de Miguel Reale, já que sua
concepção culturalista impregnou o Código Civil brasileiro de 2002 e engendrou seu artigo
421 – dentre outros preceitos normativos os quais com ele se relacionam. Manifestou,
inclusive, na exposição de motivos da respectiva lei, que tal dispositivo é “condicionador de
todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em
consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da
probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita
compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à
concreção ética da experiência jurídica”.26
Para esse jurista, a função social dos contratos deriva do princípio constitucional da
função social da propriedade (art. 5º, inc. XXIII, da Carta da República). Ambas estão ligadas
a dois fenômenos que caracterizam dois modelos jurídicos: o da socialidade e o da
funcionalização.27 Não se trata de um limite à liberdade de contratar, mas sim de um elemento
que lhe integra, cuja separação é inviável. Segundo seu artigo intitulado “Função social do
26
A Exposição de Motivos do Código Civil de 2002, exarada por Miguel Reale, pode ser vista no site do Senado
Nacional: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/70319/2/743415.pdf>. Quanto ao culturalismo, ao
seguir os ensinamentos de Maria Helena Diniz, podemos caracterizá-lo como “Corrente jusfilosófica que
considera a ciência jurídica como ciência cultural, não como produto metódico de procedimentos formais,
dedutivos e indutivos, mas como um conhecimento que constitui uma unidade imanente, de base concreta e real,
que repousa sobre valorações” (Tércio Sampaio Ferraz Jr.). Tal concepção vê o direito como um objeto criado
pelo homem, dotado de um sentido de conteúdo valorativo, sendo, portanto, pertencente ao campo da cultura
(Luiz Fernando Coelho). Estuda o direito como um objeto cultural, isto é, uma realização do espírito humano,
com um substrato e um sentido. Se o substrato do direito for um objeto físico, ter-se-á um objeto cultural
mundanal ou objetivo, que corresponde ao “espírito objetivo” de Hegel e à “vida humana objetivada” de
Recaséns Siches, e a corrente culturalista que estudará será a teórica cultural objetiva, de que são representantes,
dentre outros, Ortega y Gasset, Recaséns Siches e Miguel Reale. Se seu substrato for a conduta humana, será um
objeto cultural egológico ou subjetivo, estudado pela teoria egológica do direito, representada por Carlos
Cóssio, Aftalión e outros. Quatro são as direções principais das teorias culturalistas do direito: a concepção
raciovitalista de Siches e Ortega y Gasset; a teoria de Emil Lask; o tridimensionalismo de Miguel Reale; e a
teoria egológica de Carlos Cóssio” (Dicionário jurídico. V. 1. 3. ed. rev., atual. e aum. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 1136).
27
Nas sempre lúcidas lições de Sílvio Luís Ferreira da Rocha, o princípio da socialidade “assegura a prevalência
do social, e não do individual; a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem a perda fundante da
pessoa humana”. É essa visão a adotada neste presente trabalho. Diante disso, mesmo regras que regulam
relações entre particulares devem se afinar às necessidades da coletividade, o valor da solidariedade, tendo como
ultima ratio o bem comum. Hoje, tal fenômeno é chamado por muitos de dirigismo contratual. A
funcionalização, entendida como modelo jurídico, relaciona-se a esse dirigismo, visto que se emana do
funcionalismo, “teoria que acentua os caracteres funcionais do seu objeto, mais do que sua estrutura ou as suas
propriedades estáticas (Labande); doutrina que visa adaptar a forma a função...” (DINIZ, Maria Helena.
Dicionário jurídico. V. 2. 3. ed. rev., atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 258). Portanto, demonstra a
maneira como será buscada a socialidade, ou seja, não através de formalidades, mas através da imposição de
uma função com uma finalidade ao instituto do contrato.
13
contrato”, a justificativa a essa assertiva dá-se devido ao fato de que “a realização da função
social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja
conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a
coletividade”.28
Dessa maneira, certos conceitos elaborados por Reale necessitam ser estudados com o
fim de atingirmos uma compreensão sólida de sua visão do princípio da função social
aplicado aos contratos.
Na edição da Lei Civil, sua comissão de elaboração fez uso de algumas técnicas
legislativas, como conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. Decorrente do
princípio da função social incidente nos contratos, o artigo 421 desse diploma foi descrito
através de uma cláusula geral. Na esteira de Sílvio Luís Ferreira da Rocha, conceitos jurídicos
indeterminados são “termos ou expressões vagas, imprecisas e genéricas localizadas na
hipótese de fato da norma”. Já cláusulas gerais, pautado nos ensinamentos de Nelson Nery
Júnior, são “formulações contidas na lei, de caráter genérico e abstrato, cujos valores devem
ser preenchidos pelo juiz, autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da
própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz”.29 A adoção dessas técnicas ocorreu para,
mutatis mutandis, conferir ao juiz papel excepcional de “legislador”, ou seja, para que esse
agente possa manejar certa atividade criadora no caso concreto, com o fulcro de manter o
sistema aberto às transformações sociais ocorridas e que ocorrerão, com absoluta certeza, ao
longo da História humana. Em outras palavras, a cláusula geral majora a mobilidade e a
capacidade de a norma adaptar-se à contínua evolução da mentalidade coletiva, dando
margem para que situações fáticas não vislumbradas anteriormente pelo legislador tenham
disciplina in concreto.
28
REALE, Miguel. Função social do contrato. Disponível em: <www.miguelreale.com.br/artigo>.
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Direito Civil – 1: Parte geral. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 30.
Para Cláudio Luiz Bueno Godoy, cláusula geral “é uma disposição normativa aberta, fluida ou vaga com a
finalidade de outorgar ao juiz “competências” para no caso concreto adotar a melhor solução, desenvolvendo as
normas jurídicas (Função social do contrato dos contratos – os novos princípios contratuais. 2. ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2007. Coleção Professor Agostinho Alvim, coordenação Renan Lotufo). Por outro lado,
Judith Martins-Costa considera que as cláusulas gerais são complementadas através de referências em regras
extrajudiciais, cuja concretização depende de o juiz compreender modelos de comportamento e pautas de
valoração, os quais não são descritos na norma e, às vezes, no ordenamento jurídico. Ainda, pode direcionar o
juiz a formar normas de decisão, atreladas à concretização de um valor, de diretiva ou de um padrão social,
reconhecidos como arquétipo exemplar da experiência social completa. Diverge, portanto, de Godoy, cujo
entendimento é de que tal complemento deve advir do próprio sistema. (Apud GODOY, Cláudio Luiz Bueno.
Op. cit., p. 109). Segundo Ricardo Marcondes Martins, “cláusula geral é a denominação dada ao enunciado
legislativo que positiva um princípio formal especial segundo o qual o peso da autonomia privada é enfraquecido
e o peso dos princípios opostos a ela é fortalecido; noutros termos, cláusula geral é a denominação dada ao
enunciado legislativo que torna obrigatória a ponderação no âmbito privado” (Abuso de direito e a
constitucionalização do direito privado. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 89).
14
29
Ao seguir essa concepção, não mais podemos examinar os contratos sob a ótica de um
fator estático dado pelo legislador, mas sim como modelos. Sua edição legislativa e sua
aplicação estarão sujeitas a atos de escolha que moldarão a norma conforme valores que se
almeja a concretizar, frente a fatos sociais e naturais anteriores. Ademais, por ser requisito dos
modelos jurídicos, terão projeção de dever ser, com previsão de sanção pelo descumprimento,
pelo fato de, a despeito de ser influenciado pela realidade social, ter função de delinear o
mundo do ser. E, ainda, devemos ter em conta que a pessoa é o núcleo valorativo do
ordenamento jurídico presente sempre na análise de qualquer fonte e modelo jurídico.
Função social prevista no artigo 421 do Código Civil, na opinião de Miguel Reale, é
uma cláusula geral, um modelo jurídico do direito contratual. Para o autor, o princípio da
socialidade e certos valores serão norteadores desse modelo jurídico.30
A atividade jurisdicional, para preencher tal dispositivo, deve se utilizar de conceitos
como ética da situação e invariantes axiológicas válidas em qualquer circunstância e lugar
(direitos humanos). Deve-se alcançar para sua aplicação de uma solução sistemática, ou nas
palavras desse jurista paulista: “É em todos os casos em que ilicitamente se extrapola do
normal objetivo das avenças que é dado ao juiz ir além da mera apreciação dos alegados
direitos dos contratantes, para verificar se não está em jogo algum valor social que deva ser
preservado”.31
Por derradeiro, o autor condensa seu entendimento de função social em um trecho, in
verbis:
30
Ibidem, p. 289.
REALE, Miguel. Função social do contrato. Disponível em: <www.miguelreale.com.br>. Citaremos este
trecho: “Não há razão alguma para se sustentar que o contrato deva atender tão somente aos interesses das partes
que o estipulam, porque ele, por sua própria finalidade, exerce uma função social inerente ao poder negocial que
é uma das fontes do direito.
“(...) é natural que se atribua ao contrato uma função social, a fim de que ele seja concluído em benefício dos
contratantes sem conflito com o interesse público.
“Como se vê, a atribuição de função social ao contrato não vem impedir que as pessoas naturais ou jurídicas
livremente o concluam, tendo em vista a realização dos mais diversos valores. O que se exige é apenas que o
acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade, mas represente um dos seus meios
primordiais de afirmação e desenvolvimento.
“Na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções
possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916; ou dá
preferência aos valores coletivos, promovendo a ‘socialização dos contratos’; ou, então, assume uma posição
intermédia, combinando o individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas
abertas propícias a soluções equitativas e concretas. Não há dúvida que foi essa terceira opção a preferida pelo
legislador do Código Civil de 2002.
“É a essa luz que deve ser interpretado o dispositivo que consagra a função social do contrato, a qual não colide,
pois, com os livres acordos exigidos pela sociedade contemporânea, mas antes lhes assegura efetiva validade e
eficácia.”
15
31
(...) se o contrato é o produto da autonomia da vontade, não quer dizer que
essa vontade deva ser incontrolada: a medida de seu querer nasce de uma
ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o
valor da coletividade. O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do
indivíduo como aquele que cria; mas de outro lado, estabelece a sociedade
como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão
de equilíbrio e de medida.32
6. Outros autores brasileiros – já pautados na Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 –
apresentam observações interessantes sobre certos aspectos da função social dos contratos.
Abordaremos, contudo, apenas alguns dos quais acreditamos que contribuíram para a
formação de nosso entendimento sobre o tema.
7. Humberto Theodoro Júnior posiciona-se no sentido de que a função social é um
limite à liberdade do contratante, além de interferir no conteúdo do negócio jurídico, devido à
importância para sociedade que o instituto contratual tem.33 E vai além, infere que o ambiente
para se suscitar a influência da função social do contrato é na aplicação do princípio da
relatividade dos efeitos do contrato:
Os problemas do comportamento ético entre os próprios contratantes são
cuidados por outro princípio novo do direito contratual, que vem disposto no
art. 422, do Novo Código Civil, e não naquele que implanta a função social
do contrato (art. 421). Se o legislador cuidou de disciplinar separadamente os
dois princípios foi porque lhes reconheceu individualidade. Não cabe ao
intérprete confundi-los, reduzindo todos a um só regime e a uma única
justificação teórica.34
Para o autor, se essa diferenciação não fosse promovida, o princípio da função social
do contrato tornar-se-ia a panaceia indefinida e indefinível de qualquer problema contratual
sugerido pelas partes; apta a solucionar das menores às piores questões trazidas pelos
contratantes ao Judiciário, com enorme ameaça à segurança jurídica e com incomensuráveis
prejuízos ao desenvolvimento econômico nacional, sem o qual se torna inviável qualquer
atividade social hodiernamente em Estados Democráticos de Direito.35
A despeito de todo o expendido, clamando por maior rigor científico, “evitando efeito
demagógico, e de modismo intelectual suspeito”, o autor define princípio da eticidade regente
das regras de lealdade e de solidariedade entre os contratantes; por outro lado, o princípio da
socialidade preocupa-se com a ordem econômica e com a ordem social, além da
32
REALE, Miguel. Idem.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 98-99.
34
Ibidem, p. 48.
35
Ibidem, p. 49.
33
16
intervinculação entre ambas, porém tudo no plano exterior ao relacionamento travado entre os
contratantes. Dessa forma, ofende-se o princípio da boa-fé quando o contrato, ou a forma de
interpretá-lo ou executá-lo, cria prejuízo injusto a um dos contratantes; em oposição, há uma
agressão ao princípio da função social quando efeitos externos do contrato prejudicam
injustamente os interesses da comunidade ou de estranhos à relação contratual.36
8. O saudoso Antônio Junqueira de Azevedo ensina que os novos princípios
contratuais da boa-fé e o da economia contratual atuam somente entre as partes, enquanto a
função social somente produz efeitos perante a coletividade e terceiros. Entendia que função
social é um princípio cuja finalidade é integrar os contratos em uma ordem social harmônica
para coibir tanto aqueles que prejudiquem a coletividade (contratos contra o meio ambiente)
quanto aqueles que produzam efeitos deletérios ilicitamente a pessoas determinadas. Esse
princípio adveio, para o autor, de um dos fundamentos da República: o valor social da livre
iniciativa (art. 1º, inc. IV, da Carta Magna). Essa disposição impõe ao jurista em geral a
proibição de ver o contrato como um átomo, algo apenas relevante às partes, desvinculado de
um contexto social. Ora, qualquer relação jurídico-contratual tem importância para toda a
sociedade, e essa asserção, por força de norma constitucional, integra o ordenamento jurídico
brasileiro: art. 170, caput. Diante do exposto, o princípio da relatividade dos efeitos do
contrato necessitaria ser relido, conforme a Constituição. Terceiros não são partes no contrato.
Por outro lado, os terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse, fato
aceito no liberalismo, principalmente quando se almeja equilíbrio entre sociedade, Estado e
indivíduo. Ao aludir a juristas franceses, Azevedo traça uma distinção entre relatividade dos
efeitos e oponibilidade dos efeitos. Este tem por meta os estranhos às relações de direito
denominados “terceiros”, para melhor visualizar didaticamente que as coisas jurídicas, a eles
exteriores, não constituem negócios a eles estranhos. Exemplificativamente, o caso de terceiro
o qual promove o inadimplemento em relação jurídica do qual não faz parte e nas situações
albergadas pela teoria das redes contratuais.37
9. André Soares Hentz aduz em obra denominada Ética nas relações contratuais à
luz do Código Civil de 2002: as cláusulas gerais da função social do contrato e da boa-fé
objetiva que, quanto ao âmbito de aplicabilidade desse princípio,
36
Ibidem, p. 50-51.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do
mercado – direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – função social do contrato e
responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos
Tribunais, ano 1987, v. 750, abril de 1998, p. 113-120.
17
37
se dá na medida em que a função social do contrato tem por objetivo
principal mitigar os efeitos dos contratos (o contrato somente pode atingir as
partes, não prejudicando nem beneficiando terceiros), em que pese também
influenciar o princípio da autonomia da vontade, conforme se depreende da
análise dos Enunciados 21, 22 e 23 aprovados pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho de Justiça Federal durante a I Jornada de Direito
Civil.38
E conclui, paralelamente, porém com fundamentos diversos àqueles enunciados por
Humberto Theodoro Júnior, que
o contrato não atende sua função social quando sua execução possa
sacrificar, comprometer ou lesar interesse de terceiros ou metaindividuais,
nos quais estão compreendidos interesses públicos, difusos e coletivos.39
Desse trecho, denota-se que o autor também se posiciona no sentido de serem as
condutas contratuais prejudiciais a interesses da sociedade ou de terceiros que estão no âmbito
de aplicabilidade do princípio da função social do contrato. E, para ilustrar sua opinião,
apresenta um acórdão de lavra da Ministra Nancy Andrigui do Superior Tribunal de Justiça
proferido em um recurso especial interposto nos autos de agravo de instrumento. Em seu voto,
a Ministra sustentou que o art. 1.488 do Código Civil consubstancia-se em um dos exemplos
de materialização da função social dos contratos, por proteger terceiros de boa-fé que
adquirem imóveis em que a construção fora financiada por instituição financeira mediante
garantia hipotecária.40
38
HENTZ, André Soares. Op. cit., p. 84. A título de ilustração, os enunciados comentados pelo autor são 21, 22
e 23. Expressam, respectivamente, que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do Novo Código Civil,
constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a
terceiros, implicando a tutela externa do crédito”. “A função social do contrato, prevista no art. 421 do Novo
Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas
úteis e justas”. “A função social do contrato, prevista no art. 421 do Novo Código Civil, não elimina o princípio
da autonomia contratual, mas atenua e reduz o alcance do princípio quando presentes interesses metaindividuais
ou interesse relativo à dignidade da pessoa humana”.
39
Ibidem.
40
HENTZ, André Soares. Op. cit., p. 87-89. Alguns trechos do acórdão mencionado merecem ser transcritos
para eventual esclarecimento do leitor: “A inoponibilidade de um contrato aos terceiros que dele não participam
é uma hipótese comumente associada, pela doutrina que se debruçou sobre o estudo dos negócios jurídicos sob o
ângulo da exigência, validade e eficácia, a uma limitação da eficácia do instrumento (...). Estamos, portanto,
claramente no âmbito do caput do art. 2.035 do Código Civil. Tratando-se de uma questão relacionada à eficácia
dos negócios jurídicos, bastaria o confronto entre o disposto nos arts. 1.488 e 2.035 do Novo Código Civil para
se concluir pela possibilidade da divisão do gravame hipotecário, porque os efeitos do contrato são
expressamente regulados pela Lei Nova. Todavia, é importante notar que essa conclusão não decorre unicamente
da interpretação literal da lei. Ela se coaduna com todos os princípios que informam o Código Civil de 2002 e
demonstra que seus dispositivos não estão estabelecidos de forma aleatória. Há não apenas uma harmonia interna
e o contexto histórico e social brasileiro. O art. 1.488, do CC/2002, consubstancia um dos exemplos de
materialização do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a
ideia que está por trás dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa-fé, adquirem imóveis cuja
construção – ou loteamento – fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia
18
Inúmeros outros autores fazem essa delimitação de âmbitos entre os princípios da boafé e da função social, isto é, que a abrangência de aplicabilidade dessa norma estaria
vocacionada a incidir em terceiros, tais como: Mariana Ribeiro Santiago,41 Jaime Santos
Briz,42 dentre outros.
10. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery inferem que a cláusula geral da
boa-fé, disposta no art. 422 do Código Civil, advém da função social do contrato. Diante
disso, a função social não será atendida igualmente quando a prestação contratual de uma das
partes for desproporcional ou quando se quebrar a boa-fé objetiva.
11. Na mesma linha segue Everaldo Augusto Cambler, para quem a função social dos
contratos atinge a liberdade dos contratantes com efeitos intrínsecos e extrínsecos. Na
hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as
prestações para aquisição de imóvel – pagamentos esses, muitas vezes, feitos à custa de enorme esforço
financeiro – são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem em função de
inadimplência da construtora perante o agente financeiro. Ora, a disposição introduzida no art. 1.488, do
CC/2002, veio amparar a boa-fé desses adquirentes criando uma exceção à regra da oponibilidade erga omnes da
hipoteca (art. 1.419, do CC/2002). Essa exceção se justifica exatamente por ser, no plano fático, excepcional à
própria hipótese regulada pela norma. É já cediça a compreensão, tanto pela doutrina como pela jurisprudência,
de que a única maneira de se otimizar a realização do princípio da igualdade é mediante o reconhecimento de
que, em algumas situações, os sujeitos de uma realização jurídica não se encontram em posição similar. Nesses
casos, em que as circunstâncias de fato provocam um desequilíbrio, tratar esses sujeitos de maneira
objetivamente igual não basta para a plena realização do princípio da isonomia. É necessário reequilibrar os
polos da relação, estabelecendo regras excepcionais que tutelam a parte mais frágil. Promove-se, com isso –
sempre nos termos estritos da lei – a igualdade substancial entre as partes, em detrimento da mera igualdade
formal – que, em última análise, é apenas uma roupagem diferente para o arbítrio. (...) Trata-se, portanto, de um
movimento claro e sistemático na direção da correção das distorções sociais, de uma tentativa de reduzir
desigualdades e propiciar ao juiz mecanismos para que possa, da melhor maneira possível, buscar a realização da
justiça. Naturalmente, como toda criação humana, o sistema é passível de falhas. A própria discussão acerca da
mitigação das garantias trabalhistas está a demonstrar que, com a evolução e aplicação do direito, todos os
princípios se lapidam, se adaptam, são levados aos seus extremos e, demonstradas suas incoerências, incitam os
aplicadores do direito a o repensarem, num movimento contínuo. Assim também ocorrerá com o princípio da
função social dos contratos. Somente a prática demonstrará quais os limites em que o magistrado transitará em
sua aplicação. Por isso é importante, em cada caso, relembrar o que levou o legislador a introduzir essa inovação
em nosso sistema jurídico e, especificamente, para cada caso concreto, verificar se há harmonia no sistema, se há
uma situação de fragilidade de uma das partes e se, dado tudo isso, a aplicação do princípio se justifica. Ora,
quando fazemos isso em relação ao caso sub judice, fica claro que a única solução possível é aplicação imediata
do art. 1.488 do Novo Código Civil. Nos autos, está fartamente comprovada a existência de inúmeras ações,
propostas em face da recorrente por terceiros que, tendo pago todas as prestações do financiamento dos imóveis
que adquiriram, pretendem ver reconhecido seu direito à transmissão do bem por escritura pública. Trata-se de
uma questão que apresenta um reflexo social considerável e que traz, tanto à recorrente como a esses terceiros,
um prejuízo considerável. A fragmentação da hipoteca, por outro lado, não implicará prejuízo à instituição
financeira, uma vez que, conforme muito bem notado pela magistrada de primeiro grau na decisão que concedeu
a tutela antecipada, trata-se nitidamente de um caso em que o reconhecimento do suposto direito de uma parte
implicará um desnecessário agravamento da situação de todos os demais polos da relação jurídica. E de uma
hipótese em que a mitigação desse aparente direito equilibra perfeitamente o sistema. O princípio da função
social dos contratos, portanto, clama por aplicação no caso concreto. O fracionamento da hipoteca é providência
de rigor. No mérito, portanto, merece acolhimento o direito da recorrente à tutela antecipada pleiteada” (Recurso
Especial n. 691.738-SC, 3ª turma, DJ 26/9/2005, p. 372).
41
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Princípio da função social do contrato. 2. ed. rev., atual. e amp. Curitiba:
Juruá, 2008. p. 102 e s.
42
BRIZ, Jaime Santos. La contratación privada: sus problemas en el tráfico moderno. Madri: Montecorvo,
1966. p. 33.
19
primeira hipótese, defende-se o equilíbrio econômico. Já na segunda hipótese, têm-se efeitos
contra implicações negativas que decorram para a sociedade do contrato.
12. Cláudio Luiz Bueno Godoy, em excelente obra sobre o tema, avança em sentido
similar, ao inferir que função social do contrato tem dois conteúdos: um “inter partes” e outro
“ultra partes”. Nesse caso, sua atuação está correlacionada a interesses metaindividuais
ventilados na relação civil e igualmente em interesses relativos à dignidade da pessoa
humana. O autor, além do mais, depreende que a função social do contrato, atualmente,
conduz à reformulação na compreensão do instituto do contrato, ao atrelar-lhe novos ou
relidos princípios voltados a possibilitar a circulação econômica, mas também garantir e
promover valores constitucionais reputados fundamentais, como a dignidade da pessoa
humana e o solidarismo social. Considera-a tanto um princípio como uma cláusula geral da
forma com a qual foi redigida no Código Civil: restritiva de liberdade contratual e regulativa,
que integra o conceito de contrato.43
E de qual forma seria um conteúdo genérico “inter partes” para esse autor? O
significado de função social, ou seja, um dever-poder no sentido da coletividade que o titular
de um determinado direito deve perseguir, ter como objetivo. Com efeito, o contrato se
funcionalizou, e não serve somente à resolução de conflitos de interesses, mas à organização
da sociedade, inclusive no sentido de atividades afirmativas, promocionais e distributivas
entre direito e todos os subsistemas sociais, como comentamos alhures. Essa funcionalização
se revela no instante no qual há o exercício de poderes ínsitos aos indivíduos, por exemplo: à
autonomia privada – a qual se efetiva representativamente como afirmação da pessoa e de sua
dignidade – acrescenta-se dever de que essa consecução manifeste correlatamente alguma
utilidade à concretização de interesses gerais da comunidade (solidariedade). Ou seja, quando
confrontados interesses particulares com direitos subjetivos indisponíveis, direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos, prevalecerão os últimos. Portanto, só contratos nos quais
houver respeito a valores e propósitos ligados à dignidade da pessoa humana e ao solidarismo
é que serão reconhecidos e protegidos pelo sistema jurídico. Do contrário, não lhes será
concedida eficácia jurídica. Por outras palavras, tais negócios devem ser úteis socialmente à
coletividade, senão não serão respaldados e acobertados pelo sistema jurídico. Com isso, na
esteira do princípio da socialidade, almeja-se enfraquecer o individualismo presente na
sociedade liberal. Ora, o homem necessita viver em sociedade para se desenvolver
plenamente. Direitos subjetivos só fazem sentido quando a pessoa é considerada partícipe das
43
GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. cit., p. 103-111.
20
relações sociais e da construção de um projeto de sociedade que a todos favoreça. Aliás – isso
deve ficar claro –, a função social não se presta meramente como um limite negativo, mas
também positivo, por determinar a escolha de objetivos e finalidades do contrato, com
fundamentos em valores inferidos do sistema, que, então, é fonte normativa do sistema
jurídico-contratual, do ajuste, que não repousa mais unicamente na vontade dos contratantes.
Enfim, de acordo com o artigo 170, caput da Constituição Federal, e o artigo 421 do Código
Civil, o ato proveniente da livre iniciativa deve exprimir um conteúdo valorativo consoante às
opções provenientes do legislador constituinte originário e derivado, além do ordinário, com
respeito integral aos direitos humanos na sua plenitude. Dessa maneira, devemos expandir o
sobredito: o autor considera que a liberdade contratual só pode ser reconhecida para produção
de efeitos e para merecer proteção jurídica se incitar a evolução da pessoa, isto é, se expandir
suas virtualidades e sua dignidade, além de respeitar valores albergados no sistema.44
Por derradeiro, nas palavras de Godoy, deve-se entender a aplicação da função social
“inter partes” como:
o solidarismo social ostenta um princípio contorno, que vale para qualquer
das relações jurídicas, paritárias ou não, de, justamente, preservar uma
substancial igualdade entre as pessoas, garantindo que suas contratações
sejam justas e, mais marcadas pelo padrão e exigência de colaboração entre
os contratantes, assim socialmente úteis, enquanto palco de prestígio das
escolhas valorativas do sistema. De outra parte, significa também a
promoção da justiça distributiva, quando fomenta o acesso a bens e serviços,
em especial, embora não só, ao se cuidar de relações profissionais, e, aí,
intrinsecamente desiguais.45
Disso decorreriam contratos mais equilibrados entre as partes, o que garantia a
dignidade social de ambos os indivíduos.
13. Maria Helena Diniz tem uma opinião semelhante à do autor supracitado. Assevera
estar a autonomia da vontade limitada pela intervenção estatal, ante à função econômicosocial do contrato, a qual o impele ao cumprimento do bem comum e fins sociais. A
supremacia da ordem pública veda convenções que lhe sejam contrárias ou aos bons
costumes; a vontade dos contratantes deve se submeter ao interesse coletivo. De acordo com o
artigo 421 do Código Civil, o contrato deverá conter por finalidade e por limite a função
social, que é norma de ordem pública, segundo o art. 2.035, parágrafo único da Lei Civil.
44
Muito se escreve neste trecho sobre dignidade da pessoa humana e solidariedade social. Para aprofundamento,
consultar obra Ética: direito, moral e religião no mundo moderno de Fábio Konder Comparato (São Paulo:
Companhia das Letras, 2006).
45
Ibidem, p. 132.
21
Extirpados estão, dessa forma, os abusos provenientes do individualismo e da autonomia da
vontade; garantido estará o justo processo legal substantivo, pois o contrato deve ter utilidade
social. Os valores que norteiam a função social seriam: a solidariedade, a justiça social, a livre
iniciativa, o equilíbrio das prestações, os quais coíbem a desproporcionalidade, os valores
jurídicos, sociais, econômicos e morais, o respeito da dignidade humana (art. 3º, inciso I, art.
170, caput; art. 1º, inc. III, da Carta da República). Afirma, igualmente, que a liberdade
contratual é defendida pelo sistema, porém este a condiciona à função social do contrato, o
qual o implica a valores como boa-fé e probidade (art. 422 do Código Civil). Na esteira do
Enunciado n. 23 do Superior Tribunal de Justiça (aprovado na Jornada de Direito Civil, em
2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal), a função social do
contrato não elide a liberdade contratual, mas apenas a reduz ou atenua seu alcance, quando
presentes interesses metaindividuais ou interesse individual coletivo relativo à dignidade da
pessoa humana. Para a autora, a autonomia da vontade seria o poder conferido aos
contratantes de estabelecerem vínculo obrigacional, desde que sejam respeitadas as normas
jurídicas e seus fins não contrariem o interesse geral, de forma que a ordem pública e os bons
costumes constituem limites à liberdade contratual. Tais restrições promovidas contra o
princípio da autonomia da vontade advieram do “dirigismo contratual” – intervencionismo
estatal na economia do negócio jurídico contratual –, gerador dessas restrições. Esse termo
designa, precipuamente, medidas restritivas estatais invocadoras do princípio da supremacia
do interesse coletivo sobre os individuais dos contratantes, com o fim de dar execução à
política estatal de organizar setores da vida econômica e de proteger os vulneráveis
economicamente. Às vezes, sacrificam-se benefícios privados em prol da coletividade, mas
sempre procurando conciliar esse conjunto de interesses. Enfim, em suas palavras, a função
social do contrato adveio
para atender aos interesses sociais, limitando o arbítrio dos contratantes, para
tutelá-los no seio da coletividade, criando condições para o equilíbrio
econômico-contratual, facilitando o reajuste das prestações e até mesmo sua
resolução...46
Intimamente ligadas a esse princípio estão a teoria da imprevisão ou a cláusula rebus
sic stantibus (arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil) e a cláusula da boa-fé (arts. 113, 187
e 422 do Código Civil).
46
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil. V. 3: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 21.
ed. rev. e atual. de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 33 e s.
22
A realidade social tem induzido a lei, a doutrina moderna e a jurisprudência a abrir
margem, em situações graves e excepcionais (superveniência de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis na concretização da convenção), para revisão judicial de
contratos quando estes se tornarem excessivamente onerosos a uma das partes, o que gera
impossibilidade subjetiva de execução desses negócios jurídicos. O magistrado, nessa
circunstância, pode fixar indenizações, reduzir equitativamente as prestações ou ter a revisão
dos contratos, ao se inspirar na equidade e nos princípios do justo equilíbrio entre os
contratantes e da socialidade, em busca de justiça contratual e equivalência objetiva da
prestação e da contraprestação. Uma das aplicações dessa revisão judicial do contrato é a
cláusula do rebus sic stantibus supracitada, cuja fórmula expressa: contractus qui habent
tractum sucessivum et dependentium de futuro rebus sic stantibus intelliguntur. Traduzido,
nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório entende-se subordinado à
continuação daquele estado de fato, vigente ao tempo da estipulação.47
Outra hipótese de revisão judicial do contrato está disposta no art. 413 do Código
Civil, alusivo à cláusula penal, a qual autoriza o magistrado a intervir no contrato, para
reduzir proporcionalmente a pena estipulada em caso de mora ou inadimplemento, quando
houver cumprimento parcial da obrigação e quando o valor de sua cominação superar o
estipulado em contrato.
A autora conclui que a função social do contrato busca a boa-fé dos contratantes, a
transparência negocial e a efetivação da justiça contratual, enquanto o princípio da boa-fé
objetiva (art. 422) privilegia o respeito à lealdade.48
14. Judith Martins-Costa – corrobora a opinião daqueles que vislumbram efeitos entre
as partes – chama a atenção para as três sendas nas quais devemos compreender o art. 421 do
Código Civil, sob uma perspectiva estrutural e funcional: primeira, o princípio da liberdade de
contratar inaugura a regulação do Capítulo referente ao Direito dos Contratos, em caráter
genérico, e guia o setor; segunda, a função social caracteriza-se sob a forma de um limite à
liberdade de contratar; e, por fim, a função social situa-se também como um fundamento da
mesma liberdade. Vale lembrar que princípios contêm valor integrativo na disciplina
contratual e vinculante ao intérprete. São normas produtoras de normas. Liberdade é um valor
fundamental, decorrente do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como base do
Direito e do Estado, reconhece-se pré-juridicamente a autodeterminação, coração do Direito
Civil. A liberdade, contudo, é situada em um contexto histórico-social constituído por uma
47
48
Op. cit. p. 36-37.
Ibidem, p. 43.
23
comunidade sempre criativa, que é o ambiente onde se realizam negócios jurídicos. Para se
chegar a um significado do princípio da função social do contrato deve se levar em conta
esses fatores. A autora faz uma distinção importante entre a liberdade de contratar e a livre
iniciativa econômica. A primeira é instrumental, é meio, ou seja, tem por finalidade assegurar
o exercício da segunda. Destarte, a liberdade de contratar não existe em si, mas para algo,
condicionada aos fins aos quais se destina, que são: liberdade de iniciativa econômica e
igualmente os princípios estruturantes do art. 1º, as diretrizes das normas-objetivo delineadas
nos arts. 3º e 170, bem como nas liberdades e direitos dos arts. 5º e 7º, todos encartados na
Carta da República. Então, ao vislumbrarmos liberdade de iniciativa econômica privada,
nesse contexto constitucional, já visualizamos o desenvolvimento das atividades privadas em
um quadro desenhado pelo poder público, sujeitas, assim, a limitações e em busca do bemestar coletivo, não apenas o individual. Uma ordem econômica compreendida nesses moldes
deve estar integrada por valores, diretrizes, garantias e direitos, limitados em algumas
circunstâncias a uma dimensão interindividual, e outras vezes a uma dimensão
transindividual. É essa a concepção da autora sobre os fins almejados pelo princípio da
socialidade. Ora, todo o indivíduo é social e seu desenvolvimento apenas pode ser alcançado
socialmente. Aliás, a autora, por consequência, designa a antiga autonomia privada de
“autonomia privada solidária” ou situada.49
Toda função é uma competência dirigida a uma finalidade. Para Martins-Costa, o
adjetivo social que qualifica a “função” ora em comento diz respeito ao direito subjetivo da
liberdade de contratar e pode ter conotação ou à expansão intersubjetiva da liberdade ou à
49
MARTINS-COSTA, Judith. Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. In. Revista Direito
GV, v. 1, n. 1, maio de 2005, p. 42. Pensamento similar, mutatis mutandis, é o de Nelson Rosenvald, como se
denota, in verbis: “Estatui o art. 421 do Código Civil que 'a liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato'. A norma é propositalmente inserida ao início do Título V do Livro de
Obrigações, pontificando o estudo dos contratos. O destaque é justificado; afinal, em poucas e bem
colocadas palavras, demonstra-se a imprescindível conjugação entre princípios da liberdade e solidariedade. (...)
A adequada compreensão do negócio jurídico pressupõe a redescoberta do conceito de autonomia privada. A
vontade mantém a sua condição de suporte fático do negócio jurídico, mas, inegavelmente, a sua força normativa
é a conferida pelo ordenamento jurídico. A utilidade econômica visada pelas partes é condicionada às aspirações
éticas do sistema. Apesar do silêncio do Código Civil de 2002 – sobremaneira no art. 104, ao eleger os requisitos
de validade do negócio jurídico –, podemos justificar o reencontro do direito privado com a noção de causa,
entendida esta como as razões que as partes perseguem com o contrato e as suas finalidades perante o meio
social. Percebemos que, no negócio jurídico, a causa – ou a especificação da função que desempenha – é o
elemento que o define, que lhe é próprio e único, e que serve a diferenciá-lo de qualquer outro negócio, típico ou
atípico. É, portanto, também o elemento que lhe dá – ou nega – juridicidade. A função social se converte na
própria ratio de qualquer ato de autonomia privada, não mais como um limite externo e restritivo à liberdade do
particular, mas como limite interno hábil a qualificar a disciplina da relação negocial a partir da investigação
das finalidades empreendidas pelos parceiros por meio do contrato. Passa a fazer todo o sentido a afirmação do
art. 421: ‘A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato’. A função
social recebe o status de fundamento para o exercício meritório da liberdade contratual” (grifo nosso) (A Função
Social do Contrato. In. Direito Contratual – temas atuais. Flávio Tartuce e Giselda Hironaka (Coords.).
São Paulo: Método, 2008. p. 84 e 87).
24
expansão transubjetiva da liberdade. A liberdade humana dá-se pela vontade jurisdicizada
expressada pela “manifestação de vontade”. Quando há duas manifestações de vontade
concordes entre si forma-se o contrato.
Para a autora, com a funcionalização do direito subjetivo ocorrida no século XX,
formulam-se teorias negativas sobre direito subjetivo, engendrando duas teses sobre o tema: a
dos limites externos ao direito e a dos limites internos. Esta descreve os limites aos direitos
como imanentes a qualquer posição jurídica, isto é, existe um conteúdo delimitado de cada
direito, o direito nasce com conteúdo e limites, dessa forma, o âmbito de proteção de um
direito é o âmbito de sua garantia efetiva. Já aquela, por outro lado, caracteriza os direitos e as
restrições como dimensões separadas. As restrições são desvantagens impostas externamente
aos direitos. O âmbito de proteção de um direito é superior àquele garantido efetivamente.
Essa teoria crê na existência de direitos sem limites. Certas normas devem externamente
intervir em seu âmbito de atuação para restringi-los, do contrário não encontrariam limites,
continuariam ilimitadamente em expansão. Diante dessa teoria, o direito subjetivo conta
somente com uma dimensão negativa, a ideia de abuso da liberdade contratual. Por isso, a
livre iniciativa, a propriedade e o contrato, dotados dessa “absolutividade”, apenas
encontrariam limitações perante a lei imperativa ou norma de ordem pública. Quais seriam as
consequências da função social como limite externo? A jurista entende que seria um muro
formado de preocupações solidaristas, expressadas, anteriormente – nos primeiros anos do
século XX –, sob a denominação socialismo jurídico e, posteriormente, de dirigismo
contratual. Nesse sentido, haveria uma oposição entre liberdade contratual e função social.
Sucede, assim, a limitação da amplitude de eficácia do princípio da liberdade contratual, e,
portanto, o papel da função social seria exclusivamente de limite, que engendra deveres
negativos. Com base nesse princípio, o juiz poderia impor deveres negativos além daqueles
cominados expressamente em lei, como já ocorre na jurisprudência, conquanto nem sempre
com fundamentação adequada. Contudo, a autora afirma que, se fosse apenas esse o
significado de função social, seria inútil o artigo 421 do Código Civil, uma vez que sua
análise jurisprudencial evidencia que ou as hipóteses são apanhadas pela regra do artigo 187
do Código Civil (consagrador da ilicitude dos meios), ou não se trataria da incidência do
princípio constitucional da função social, senão de hipóteses de interpretação favorável ao
aderente, integração segundo a boa-fé, ou casos já regulados por lei especial, verbi gratia,
Código de Defesa do Consumidor e Estatuto da Terra.
Com efeito, para essa autora, o termo “em razão da” função social indica,
primeiramente, sua integração constitutiva à maneira em que se exercita o direito subjetivo da
25
liberdade contratual; em segundo, apresenta-se como seu baluarte, ou seja, reconhece-se que
qualquer relação contratual possui, em diversos graus, duas distintas dimensões: uma
intersubjetiva (com efeitos aplicáveis entre as partes) e outra transubjetiva (a qual vislumbra a
reverberação das obrigações e direitos assumidos pelos contratantes na esfera de terceiros
determinados ou indeterminados). Assim sendo, a função social do contrato é mais do que um
limite externo, pois integra o campo de função da autonomia privada no domínio da liberdade
contratual. Quanto à sua eficácia intersubjetiva, decorre a possibilidade de se impor deveres
positivos aos contratantes, pois o direito subjetivo50 já nasce atrelado a deveres de prestação,
que visam às condutas dirigidas a promover ou favorecer interesses justificados da
contraparte, verbi gratia: contratos que instrumentalizam a propriedade dos bens de produção;
ou que viabilizam, a uma das partes, prestações essenciais; ou contratos comunitários. Por
outro lado, a eficácia transubjetiva é aquela cujos efeitos excedem a bilateralidade em graus e
medidas diversos, o que afeta, por isso, o princípio da relatividade. Exemplo disso seria a
tutela externa do crédito, contratos com interdependência funcional, ainda na esfera de
terceiros determinados, contudo, há também contratos em que há extensão da eficácia a
terceiros não determinados e a bens fundamentais da comunidade.51
15. Antonio Rulli Neto, conjuntamente com Maria Helena Diniz e Judith MartinsCosta, crê na eficácia entre as partes da função social do contrato. Inclui igualmente os efeitos
diagonais ou reflexos da função social, ocorrente no momento em que a revisão de um
contrato pode provocar a revisão de outras relações, ainda que não sejam as mesmas partes,
ou com objetos diversos, mas cujos efeitos já foram combatidos. Destarte, a eficácia diagonal
50
Direito subjetivo, segundo Maria Helena Diniz, “é, na lição de Goffredo Telles Jr., a permissão dada a alguém
por meio de norma jurídica válida para fazer ou não alguma coisa, para ter ou não algo, ou, ainda, a autorização
para exigir por meio dos órgãos competentes do poder público ou dos processos legais em caso de prejuízo
causado por violação da lei, o cumprimento da norma infringida ou a reparação do mal sofrido. Infere-se daí que
duas são as espécies de direito subjetivo: a) o comum da existência, que é a permissão de fazer ou não fazer e de
ter ou não alguma coisa, sem violação de preceito normativo, por exemplo, o direito de ter um nome, um
domicílio, de ir e vir, de casar, de trabalhar, de alienar bens etc.; b) o de defender direitos ou de proteger o direito
comum da existência, ou seja, a autorização de assegurar o uso do direito subjetivo, de modo que o lesado pela
violação da norma está autorizado por ela a resistir contra a ilegalidade, a fazer cessar o ato ilícito, a reclamar
reparação pelo dano e a processar criminosos, impondo-lhes pena (Goffredo Telles Jr.). É comum dizer que o
direito subjetivo é facultas agendi. Porém, as faculdades humanas não são direitos, mas qualidades próprias do
ser humano que independem de norma jurídica para sua existência. Compete a esta ordenar tais faculdades
humanas; logo, o uso delas será lícito ou ilícito, conforme for permitido ou proibido, portanto, o direito subjetivo
é a permissão para o uso das faculdades humanas. Como se vê, a chamada facultas agendi é anterior ao direito
subjetivo; primeiro a faculdade de agir e, depois, a permissão de usar essa aptidão. Ante essa concepção, não
podem ser aceitas as três teorias sobre a natureza do direito subjetivo consagradas pela doutrina tradicional, que
são: a) a da vontade (Savigny e Windscheid), que entende que o direito subjetivo é o poder da vontade
reconhecido pela ordem jurídica; b) a do interesse (Ihering), para o qual o direito subjetivo é um interesse
juridicamente protegido por meio de uma ação judicial; e c) a mista (Jellinek), que define o direito subjetivo
como o poder da vontade reconhecido e protegido pela ordem jurídica, tendo por objeto um bem ou interesse”
(Dicionário jurídico. V. 2. 3. ed. rev., atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 194-195).
51
Ibidem, p. 41-50.
26
é aquela que atinge indiretamente terceiros, ligados ou não a um contrato, mas atrelados a
uma atividade ou setor comum e que acabam por sentir os efeitos decorrentes de uma relação
à qual não estão vinculados naquele negócio jurídico. Diferente da eficácia perante terceiros,
que os atingiria diretamente de maneira positiva ou negativa, a oponibilidade dos contratos
significa que da mesma forma que a relação jurídica dos contratantes não pode trazer efeitos
deletérios a terceiros, estes não podem interferir na relação daqueles. Exemplo disso é o caso
do famoso sambista, aliciado por empresa do ramo cervejeiro a quebrar o contrato com outra
empresa de cerveja, para integrar seu projeto de publicidade. Para tal autor, função social do
contrato constitui um princípio moderno a ser observado pelo intérprete na aplicação dos
contratos. O contrato passa, dessa maneira, a promover a realização de uma justiça
comutativa, ao aplainar desigualdades substanciais entre os contratantes, visto que o art. 421
do Código Civil subordina a liberdade contratual à função social, com prevalência dos
princípios condizentes com a ordem pública. Sua natureza é de princípio e cláusula geral. O
atendimento desse princípio está sujeito a dois aspectos: um, individual, relativo aos
contratantes, que utilizam o contrato com o fim de alcançar seus próprios interesses, e outro,
público, que se resume no interesse da coletividade sobre o contrato. Dessa forma, a função
social do contrato apenas será respeitada quando sua finalidade de distribuição de riquezas for
atingida de maneira justa, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social.
Assim, a liberdade contratual permanece adstrita à ordem pública e aos bons costumes. A
vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo, condicionada ao atendimento
dos fins sociais e bem comum. Sua aplicação apenas poderia se dar quando não houver norma
específica a disciplinar o caso concreto. A função social do contrato terá como fundamento e
limites os direitos fundamentais e o sistema jurídico para o autor. Ao aplicar o art. 421 da Lei
Civil, o juiz deve levar em consideração sua função econômica do contrato (que garante a
circulação de riquezas e segurança jurídica) que não se dissociaria do contrato. O juiz também
deve levar em consideração os efeitos diagonais, quando possível, além de respeitar a tutela
da confiança e o efetivismo (resultados éticos e tempestivos).52
16. Entretanto, aquilo de mais interessante em sua obra “Função social do contrato”
(porém não unicamente) é a análise dos princípios contratuais perante a função social do
contrato. Diante desse fato, ao utilizarmo-lo de parâmetro, faremos o mesmo com o fulcro de
tornarmos clara, nítida e acurada – se é possível isso – nossa concepção sobre a extensão dos
efeitos do princípio da função social nos negócios jurídico-contratuais. Para tanto, iniciaremos
52
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 190-252.
27
com o princípio da autonomia privada, supedâneo da liberdade contratual. Define-se como a
oportunidade das partes, mediante uma convenção, para optarem por certos interesses em
conformidade à lei, delimitando seu conteúdo e a própria liberdade de escolher com quem
contratar.
Lembramos que ao alçarmos o valor da dignidade da pessoa humana ao centro do
ordenamento jurídico brasileiro, o núcleo do direito civil passou a ser a pessoa e sua
valorização em todos os sentidos. Por conseguinte, tal autonomia a qual anteriormente era
referida “da vontade” (ao se referir ao campo psicológico e subjetivo da parte contratante),
passa a ser designada de privada por dar ênfase, hodiernamente, ao sujeito objetivamente e
seu poder de escolha. A vontade não exerce papel relevante tal qual ocorria no passado,
quando predominava a teoria da vontade (conforme foi discorrido supra). Ora, a autonomia
não é da vontade, mas da pessoa; decorre de um princípio constitucional, e pode ser
restringida por normas.53
A liberdade de contratar é nela fundada, bem como o poder de autorregulamentação
dos interesses das partes, o conteúdo da avença, se irá ou não celebrar o contrato, com quem
irá ou não acordar. Caio Mario da Silva Pereira explicita quatro momentos fundamentais
quando a liberdade de contratar se manifesta à pessoa: 1º) há a possibilidade de contratar ou
não; 2º) de escolher a pessoa com quem contratará; 3º) o poder de fixar o conteúdo do
contrato; 4º) concluído o contrato, este passa a constituir fonte formal do direito e dá ensejo às
partes usarem o aparelho coator do Estado para exigir seu cumprimento e garantir sua
execução.54
A liberdade contratual é limitada pela supremacia da ordem pública, que lhe impede
contrariedade aos bons costumes e vincula-a ao interesse coletivo e aos demais princípios
eleitos pelo direito civil. O artigo 421 do Código Civil foi claro ao elidir o individualismo
outrora reinante no sistema legal. Demonstrou que o legislador admite somente função
institucional e econômico-social ao contrato, cujo controle deve se dar pelo aparelho estatal.
Isso é decorrência direta do princípio da socialidade, inserido nesse Código, o qual já foi
esmiuçado acima. A cláusula geral da função social do contrato disciplinada nesse preceito
normativo é aplicável a qualquer avença, como bem dispôs Maria Helena Diniz. Aliás, função
social, seja do contrato ou da propriedade, está voltada à solidariedade (art. 3º, inciso I, da
Carta da República), à justiça social (art. 170, caput da Carta Magna), à livre iniciativa, ao
progresso social, à livre circulação de bens e serviços, à produção de riquezas, ao equilíbrio
53
54
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 97.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Op. cit., p. 22.
28
das prestações, o que evita o abuso do poder econômico, à desigualdade dos contratantes e à
desproporcionalidade aos valores jurídicos, sociais, econômicos e morais, ao respeito à
dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal brasileira).55 Portanto,
muito similar à concepção sobre função social exposta neste trabalho de Sílvio Luís Ferreira
da Rocha, in verbis:
Esta – a função social – é instrumento de realização de valores acolhidos no
texto constitucional, tais como, a solidariedade, a dignidade humana, a
valorização do trabalho, a proteção ao meio ambiente, a ordenação do espaço
urbano...
O artigo 2.035, parágrafo único do Código Civil, garante a vinculação dos contratos a
princípios constitucionais, ou seja, as partes devem submeter sua vontade às normas de ordem
pública e aos bons costumes. Tal preceito vai além: eleva a função social dos contratos ao
status de norma de ordem pública e interesse social, na esteira de Nelson Nery Júnior e Rosa
Maria de Andrade Nery.56 Entendemos também, conjuntamente a esses autores, que o juiz
deve aplicar a cláusula geral da função social do contrato de ofício, a qualquer tempo ou grau
de jurisdição, não estando sujeita à preclusão. Além disso, por consequência, não incide a
regra de congruência entre pedido e sentença (arts. 128 e 460 do Código de Processo Civil),
de modo que é imune ao vício da decisão extra ou ultra petita.57 Com absoluta certeza, esse
dispositivo normativo e essa interpretação erguem reservas em alguns segmentos da
comunidade jurídica.
55
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 96-103.
Atualmente, generaliza-se a expressão “norma de ordem pública” “para indicar as leis imperativas que,
conforme o texto do Digesto, não podem ser modificadas por convenções dos particulares (jus publicum,
privatorum pactis mutari non potest, Dig. 1.2., t. 14, fr. 38, De pactis). As “normas de ordem pública” não se
confundem com o “direito público”, tal como é conceituado atualmente. Pois parte do direito privado é
constituído de normas de ordem pública, isto é, de normas imperativas que não podem ser modificadas pela
vontade das partes. É o caso de quase todas as normas do direito de família e de um número, cada vez maior, de
normas relativas ao direito das obrigações, como os contratos de trabalho, locação de imóveis, empréstimos,
seguros, defesa do consumidor etc., em que o Estado, através de normas imperativas, e tendo em vista o interesse
público, restringe a liberdade contratual dos interessados. É esse um dos aspectos da conhecida tendência à
publicização do direito privado” (MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 341). Já para Caio Mário da Silva Pereira, normas de ordem pública são
“normas que instituem a organização da família (casamento, filiação, adoção, alimentos); as que estabelecem a
ordem de vocação hereditária e a sucessão testamentária; as que pautam a organização política e administrativa
do Estado, bem como as bases mínimas da organização econômica; os preceitos fundamentais do Direito do
Trabalho; enfim, as regras que o legislador erige em cânones basilares da estrutura social, política e econômica
da Nação. Não admitindo derrogação, compõem leis que proíbem ou ordenam cerceando nos seus limites a
liberdade de todos” (Instituições de Direito Civil. V. 3. 19. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2003).
57
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado e legislação
extravagante: atualizado até 15 de junho de 2005. 3. ed. rev., atual. e ampl. da 2. ed. do Código Civil anotado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
29
56
Dessa forma, concluímos que a função social do contrato não elide a autonomia
privada, mas a restringe o alcance quando se apresentar perante interesses metaindividuais ou
interesse individual coletivo relativo à dignidade da pessoa humana. Para isso, o dirigismo
contratual, que significa a intervenção do Estado nas relações privadas, através do Estado-juiz
aplica medidas com base em tais interesses para conciliar o interesse das partes com os da
sociedade, exempli gratia: uma vertente da função social dos contratos está na cláusula rebus
sic stantibus. Com efeito, os contratos não estão em risco, tal como demonstramos com as
afirmações supramencionadas de Miguel Reale. Na verdade, sucede a conciliação de
interesses dos contratantes (econômico) e os da sociedade, segundo apontamos no parágrafo
acima. É a mesma compreensão de Arnoldo Wald, eis suas palavras: “Deve-se, entretanto,
ponderar que a função social do contrato não deve afastar a sua função individual, cabendo
conciliar os interesses das partes e da sociedade...”.58
Igualmente a cláusula do pacta sunt servanda (ou princípio da obrigatoriedade da
convenção) não foi excluída pela função social do contrato, porquanto interessa à coletividade
que contratos sejam cumpridos, pois engendra confiança no cumprimento dos contratos em
geral. Para Rulli Neto, a continuidade, outrossim, é uma vertente da função social do contrato,
pois tal fato é almejado pela sociedade, bem como a segurança dos negócios jurídicos. Na
hipótese de descontinuidade da relação jurídica, os prejuízos sociais e econômicos podem ser
grandiosos para a sociedade. Eis aí a importância da tutela da confiança.59
Clóvis Couto e Silva, ao pensar na teoria da obrigação como um processo, afirma que
todos os trâmites do negócio jurídico-contratual (previamente ao contrato, em seu
desenvolvimento e posteriormente) estão inseridos em um contexto de confiança da sociedade
na própria sociedade, cumpridora de obrigações como regra geral e o descumprimento
excepcional, visto que as obrigações contratuais nascem para serem cumpridas.60
Aliás, a aplicação da função social dos contratos não pode desconsiderar o princípio da
segurança jurídica, fator elementar ao desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.
Deve haver convivência harmônica entre eles no sistema jurídico. Frisamos e reiteramos,
entretanto: a finalidade do Direito é a dignidade da pessoa humana, demais princípios devem
ser interpretados à sua luz, visto que alguns são, inclusive, decorrentes dela.
A cláusula da função social do contrato age de maneira repressora, na qual visa a
impedir a produção de atos indesejados, ou promocional, cujo efeito é incentivar atos
58
WALD, Arnoldo, apud HENTZ, André Soares. Op. cit., p. 82, nota de rodapé 186.
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 103.
60
SILVA, Clóvis V. Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 39.
59
30
desejáveis. A finalidade promocional dá-se da forma a seguir delineada. Se o conteúdo do
contrato estiver em desacordo com a cláusula da função social dos contratos e não houver
surtido qualquer efeito deletério a interesse de terceiros ou metaindividuais, o problema pode
ser solvido judicial ou administrativamente. Nesse caso, basta às partes alterarem as cláusulas
cujos efeitos pudessem trazer danos a tais interesses. Eventualmente, na hipótese de uma das
partes discordar, o contratante que almeje atender à função social do contrato poderá pleitear
judicialmente a alteração de cláusulas possivelmente danosas a tais interesses no decorrer de
sua fase de execução, isto é, a revisão do contrato. Ora, obrigações contrárias à função social
dos contratos, norma de ordem pública (art. 2.035, parágrafo único do Código Civil), são
consideradas inválidas pelo ordenamento jurídico, nulas e sua eficácia inadmissível. Caso
tenham ocorrido danos, estes deverão ser indenizados.
17. As relações jurídico-contratuais nascem de um consenso puro dos interessados,
sem exigência a priori de forma especial para a formação do vínculo. Isso era normal durante
o século XIX e início do século XX. Atualmente, percebeu-se a necessidade de regras com
fim de limitar a aplicação demasiadamente ampla do princípio. Daí a forma obrigatória em
algumas hipóteses.61 Devemos somente lembrar que esse princípio está intimamente
interligado à confiança e sua manutenção depende da função social dos contratos.
18. O princípio da obrigatoriedade da convenção (ou pacta sunt servanda) já
começamos a tratar, quando abordávamos a relação entre o princípio da autonomia privada e
da função social do contrato. Expressa que os contratantes deverão cumprir aquilo
convencionado, pois os contratos integram o ordenamento ao menos para as partes.
De acordo com Antonio Rulli Neto pautado em Antonio Jeová Santos, é errônea a
comparação de contrato com lei, ou que o contrato faria lei entre as partes. Ora, a lei é um
grande contrato de todos os homens da sociedade. Ao seu lado, muitos outros contratos são
firmados. Equiparar contratos a lei é emprestar soberania às partes. A única semelhança entre
ambos é a obrigatoriedade. Em contrapartida, as diferenças são mais numerosas: “a lei tem
caráter geral e abstrato, os contratos não; a lei alcança e obriga a todos e, enquanto não
revogada, é perene; o modo de interpretação da lei não é o mesmo do contrato”.62
Antigamente, o contrato era intangível ou imutável, salvo se houvesse caso fortuito e
força maior. Como já asseveramos ao comentarmos as ideias de Maria Helena Diniz, tal
princípio teve seus efeitos atenuados pelo princípio do equilíbrio contratual, isto é, a teoria da
imprevisão, cuja doutrina denomina de cláusula rebus sic stantibus. Isso significa que o
61
62
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 19 e s.
Op. cit., p. 108.
31
Estado-juiz em situações excepcionais poderá alterar os termos contratuais, o que suplanta a
obrigatoriedade da convenção. Se a resolução é possível, a revisão também o é, quando
houver alteração da situação, para desonerar uma das partes. A regra se mantém à
continuidade da relação jurídico-contratual. Esse é o entendimento também da Jornada de
Direito Civil: “Função social do Contrato. Cláusula Geral. Conservação do Contrato. Jornada STJ 22:
A função social dos contratos, prevista no artigo 421 do Novo Código Civil, constitui cláusula geral
que reforça o princípio de conservação dos contratos, assegurando trocas úteis e justas”. Segundo
Cláudio Luiz Bueno Godoy, a preocupação do legislador brasileiro foi a de dar continuidade
aos negócios, de preservá-los diante da potencialidade negativa de seu desfazimento. Além
disso, preocupou-se com o aproveitamento da vontade negocial das partes aquilo que houver
de útil à ordem social – “ao instituto da conversão substancial, previsto para quando, nulo um
contrato, se possa recebê-lo como outro, se seus pressupostos estiverem atendidos e se se
puder concluir que o quereriam os contratantes, cientes da nulidade do negócio praticado”.63
O art. 170 do Novo Código Civil segue nesse sentido, “se, porém, o negócio jurídico nulo
contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir
supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”; ou ainda a hipótese chamada
de adimplemento substancial, advinda do direito inglês, isto é, o cumprimento da obrigação
quando estiver tão próximo de seu resultado final que, em face de um pequeno
inadimplemento do devedor, não se justifica a sua resolução do contrato. A atitude do credor
não atenderia a boa-fé objetiva.
No direito brasileiro não há regra específica para o princípio da conservação, malgrado
haja o axioma clássico o qual contém sua essência: quotis in stipulationibus ambigua oratio
est, commodissium est id accipi quo res de qua agitur in tuto sit. Portanto, a sociedade tem
interesse em contratos equilibrados e duradouros, cujos efeitos sejam aproveitáveis e úteis à
própria coletividade, por isso que a função social do contrato protege eventualmente a parte
mais fraca do contrato, com o fim de manter seu equilíbrio, como no direito alemão: §§ 157 e
242 do Código Civil alemão.64 Deve sempre haver, assim, ponderação diante do caso
concreto, quando não houver regra específica que discipline a hipótese, de princípios, quais
sejam: pacta sunt servanta e função social do contrato; pois é necessária a continuidade dos
contratos para a coletividade com vistas a dar segurança jurídica aos negócios. Ao engendrar
inseguranças, estas acabariam por gerar custos e aumento em preços eventualmente.
63
GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. cit., p. 170-172.
O § 157 dispõe: “Os contratos são interpretados como exigido pela boa-fé, considerando-se os costumes
negociais”; e o § 242: “o devedor é obrigado a cumprir a prestação com boa-fé, levando em conta os costumes
negociais”. (Trad. Antonio Rulli Neto. Op. cit., p. 110).
32
64
Entretanto, certos valores informadores da função social do contrato (norma de ordem pública
e interesse social – art. 2.035, parágrafo único do Código Civil) não autorizam a continuidade
da relação jurídico-contratual, principalmente se atrelados à dignidade da pessoa humana,
valor máximo hierarquicamente no sistema jurídico brasileiro e internacional, obviamente
também do direito civil.
19. O princípio da relatividade dos efeitos do negócio jurídico-contratual informa que
o contrato apenas produz efeitos em relação às partes as quais lhe integram – tal qual
aduzimos acima –, salvo algumas exceções de contratos estipulados em favor de terceiros, por
exemplo os dispostos nos arts. 436 a 438 do Código Civil. Segundo o adágio jurídico romano
res inter alios acta tertio nec nocet nec prodest (negócio realizado entre outros não prejudica
nem aproveita). A importância desse princípio depreende-se da garantia de que ninguém
ficará preso a uma convenção senão quando manifestar sua vontade nesse sentido ou que a lei
determine.
No período pré-clássico e clássico, contratos em favor de terceiros eram considerados
nulos e, portanto, não emanavam efeitos em relação aos contratantes. No entanto, tal fato
sofreu atenuação com o passar do tempo, mesmo no período clássico, com a criação de um
meio indireto de compelir o contratante que se dispusera a cumprir alguma obrigação em
favor de terceiro: a cláusula penal. Isso era possível quando uma das partes contratantes
tivesse interesse no cumprimento da obrigação a terceiro. A este somente no direito
justinianeu se admitiu direito de ação para exercer nesses casos.65 Atualmente, é aceita a
atenuação desse princípio, o qual cinge o contrato em duas categorias: os contratos oponíveis
e os contratos inoponíveis, como já discorremos. Conquanto os primeiros admitam a oposição
de terceiro quando o contrato alheio à sua pessoa, entendido como fato, causa-lhe prejuízo
digno de proteção; os segundos não admitem oposição de terceiro, seja por não interferir em
sua esfera jurídica, seja porque o interesse do terceiro deva ser sacrificado em favor de
interesses mais relevantes.66 Orlando Gomes classifica os efeitos contratuais em internos e
externos. Os primeiros estão adstritos aos contratantes e os circunscrevem restritivamente,
pois,
em regra, não é possível criar mediante contrato, direitos e obrigações para
outrem. Sua eficácia interna é relativa; seu campo de aplicação comporta,
somente, as partes. Há contratos que, fugindo à regra geral, estendem seus
65
66
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 111-112.
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Curso avançado de Direito Civil..., p. 37-38.
33
efeitos a outras pessoas, quer criando, para estas, direitos, quer impondo
obrigações.67
A influência da função social do contrato sobre o princípio da relatividade dos efeitos
do contrato foi amplamente analisada, com a devida profundidade, pelos autores (Calixto
Salomão Filho, Humberto Theodoro Júnior, Antonio Junqueira de Azevedo, Fábio Ulhoa
Coelho, André Soares Hentz etc.) em cujos trabalhos se focaram, mormente, na análise de sua
eficácia externa, segundo o supracitado. Tais estudos devem ser usados como baluarte na
aplicação do art. 421 do Código Civil especificamente na eficácia metaindividual ou externa
dos contratos. Contudo, cumpre-nos asseverar que os motivos empregados por esses autores
para justificar a não existência de efeitos entre partes da função social do contrato não
convencem. Se houver uma agressão à dignidade da pessoa humana ou afronta aos valores
dela emanados em um contrato, isso poderá ser corrigido pelo juiz através da aplicação da
cláusula da função social do contrato, pois ela é instrumento para efetivação desses valores,
porta de entrada dos direitos fundamentais conjuntamente com outras cláusulas, como
esboçou o Ministro Gilmar Mendes.68 Diante da importância desses valores e princípios, não
se poderá argumentar eventuais empecilhos à necessidade difusa que surgir de se equilibrar
economicamente uma relação contratual quando forem afrontados.
Moralidade administrativa20. Sobre o princípio da boa-fé, segundo Sílvio
Rodrigues, “é um conceito ético, moldado nas ideias de proceder com correção, com
dignidade, pautando sua atitude pelos princípios da honestidade, da boa intenção e no
propósito de não prejudicar ninguém”.69 Conforme Sílvio Luís Ferreira da Rocha, boa-fé
comporta duas espécies: a denominada subjetiva, que reflete o estado psicológico relativo ao
conhecimento ou desconhecimento de algum vício; e a objetiva, consistente em uma regra de
conduta, ou modo de proceder.70 Menezes de Cordeiro, em sua obra Da boa-fé no direito
67
GOMES, Orlando, apud RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 112.
No Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 201.819 do Estado do Rio de Janeiro, julgado em
11/10/2005, por exemplo, o Ministro Gilmar Mendes taxativamente afirma: “Um meio de irradiação dos direitos
fundamentais para as relações privadas seriam as cláusulas gerais (Generalklausel), que serviriam de ‘porta de
entrada’ (Einbruchstelle) dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado”. Ou, em artigo por ele escrito,
adverte que cabe ao legislador “garantir as diversas posições fundamentais relevantes mediante fixação de
limitações diversas. Um meio de irradiação dos direitos fundamentais para as relações privadas seriam as
cláusulas gerais (Generalklausel), que serviriam de ‘porta de entrada’ (Einbruchstelle) dos direitos fundamentais
no âmbito do Direito Privado” (apud RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 75-76).
69
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. V. III, 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 60.
70
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Curso avançado de Direito Civil, p. 41 e s. Conforme Sílvio de Salvo
Venosa: “Na boa-fé subjetiva, o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de
conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve
ser considerado. A boa-fé objetiva, por outro lado, tem compreensão diversa. O intérprete parte de um padrão de
conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais
34
68
civil, expressa as exigências globais do sistema e da ciência do direito que exigem uma boa-fé
ética – que seria objetiva, no caso –, que não pode ser aplicada de forma conceitual, devido à
possibilidade de se tornar inútil. Tem como escopo a proteção da confiança ou tutelar de
certas situações materiais.71 A boa-fé, enfim, é um padrão genérico, objetivo, de
comportamento, que demanda do contratante uma atuação refletida, preocupada com a outra
parte. À boa-fé objetiva é atribuída a dupla função de ser fonte de novos deveres especiais de
conduta durante o vínculo contratual, denominados obrigações acessórias, e agir de maneira a
limitar o exercício abusivo de direitos objetivos, que anteriormente era lícito. Por conseguinte,
ao lado da obrigação principal, surgem deveres ou obrigações acessórias ou anexas que
formam ou informam toda obrigação contratual em todas as suas fases, seja pré, durante ou
pós contrato.72 Judith Martins-Costa posiciona-se no sentido de que a boa-fé objetiva se trata
de
um mandamento de otimização dos deveres e cânone de interpretação e
reconhece sua tríplice função, ou seja, de atuar como cânome hermenêutico e
integrativo, como fontes de deveres jurídicos e como limite ao exercício de
direitos subjetivos. A dimensão da boa-fé objetiva é a do peso e do valor,
diferente daquela atribuída às regras jurídicas.73
Mandamento de otimização reflete uma norma a qual determina que algo seja
realizado na maior medida possível, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
Rulli Neto assevera que, hodiernamente, os contornos da boa-fé estão muito próximos dos
contornos da confiança (frente ao dever de lealdade) e da segurança.74
A boa-fé, como cláusula geral, já vinha mencionada no corpo do Código Comercial de
1850, em seu art. 131, inciso I: “Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a
interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:
“1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé,
e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita
significação das palavras”.
envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um
dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos. (...) Dessa forma,
avalia-se sob a boa-fé objetiva tanto a responsabilidade pré-contratual como a responsabilidade contratual e a
pós-contratual. (Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 7. ed. São Paulo: Atlas,
2007. p. 379-380).
71
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. 4. reimp. Coimbra:
Almedina, 2011, p. 1283-1286.
72
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Ibidem.
73
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 427 e s.
74
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 117.
35
Segundo o jurista português Menezes Cordeiro, boa-fé distingue-se de bons costumes
e da ordem pública, da culpa e da diligência, da função social e econômica dos direitos.
Dentro do conteúdo material da boa-fé, estão os princípios da confiança e materialidade da
regulação jurídica, historicamente contrária à concepção do formalismo jurídico. Em suas
palavras, “a boa-fé traduz, no caso concreto, a projecção dos dados imateriais relevantes do
sistema, a cuja luz devem ser vistas a confiança e a materialidade”.75 Por um lado, confiança
exprimiria a situação de que uma pessoa adere “em termos de actividade ou de crença, a
certas representações, passadas, presentes e futuras, que tenha por efectivas. O princípio da
confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela”.76 Por outro lado,
no seu papel de facultar uma tutela a situações materiais, a boa-fé surge, num
primeiro grupo, com funções instrumentais, subordinadas a outras regras.
Fá-lo de uma de três formas: reforçando a aplicação de normas constitutivas
da situação, complementando essas normas, através da cominação de
deveres de cuidado e de lealdade, mesmo, as normas em causa”.77
Entretanto, na opinião do autor luso, função social tem cobertura geral no sistema.
Quando o Direito atribui às pessoas ou reconhece a elas espaço de liberdade, seja genérico ou
específico, pressupõe um campo de livre-arbítrio. Por outro lado, quando faz referência à
função social e econômica exprime a concepção de que a liberdade não seria total, ou seja,
75
CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. 4. reimp. Coimbra:
Almedina, 2011. p. 1298-1299. Frisamos, seguindo o autor, que “a boa fé sofre, actualidade, as conseqüências do
divórcio entre os discursos metodológicos oficiais e a dogmática jurídica. E de modo agravado: noção vaga,
carregada de história, rica em implicações emotivas e objecto de utilização alargada, embora de contornos pouco
conhecidos, ela presta-se, por escelência, a desenvolvimentos verbais, numa aporética dominada por uma
linguagem grandiloquente e vazia de conteúdo. Há uma mitificação da boa fé.
“(...) Os paradoxos que dominam o entendimento comum da boa fé têm, na verdade, a nível de algumas das suas
características, a sua razão de ser. A boa fé objectiva não comporta uma interpretação-aplicação clássica. Desde
cedo, tem sido traçado o seu paralelo com as lacunas. A disposição que remeta para a boa fé não tem, ela própria,
um critério de decisão: a interpretação tradicional de tal preceito não conduz a nada. Na sua aplicação, o
processo subsuntivo torna-se impossível as críticas habituais à subsunção não retiram significado a essa
impossibilidade. Embora ontologicamente não haja subsunções, pode entender-se, na generalidade dos casos,
que a constituição da premissa menor do silogismo judiciário é conseguida por operações expeditas, consistentes
na determinação da similitude entre a figuração dogmática, obtida da previsão normativa, e o caso concreto. Em
imagem, admita-se a subsunção como corrente na maioria das decisões. A boa fé corresponde, nesta óptica, à
minoria.
“A boa fé objectiva é entendida como do domínio do Direito jurisprudencial: o seu conteúdo adviria não da lei,
mas da sua aplicação pelo juiz. Torna-se, nessa medida, impraticável locubrar sobre os textos que a consagrem.
O estudo do litígio concreto, a comparação de casos similares, a sua dogmatização e a sistematização
subsequente formam a base essencial duma investigação sobre a boa fé. (...)
“A boa fé objectiva, embora jurídica, parece escapar à lei. Na fase anterior à formação de um Direito
jurisprudencial seguro, ela implica uma actividade judicante que, sem mediações normativas, deixa face a face o
sistema global e o caso a resolver. E como o Direito jurisprudencial, a forma-se, é sempre parcelar, deixando, em
crescimento permanente, áreas por cobrir, o fenómeno mantém-se” (Op. cit., p. 42-44).
76
Op. cit., p. 1234-1235.
77
Op. cit., p. 1252-1253.
36
os comportamentos levados, no seu seio, a cabo, deveriam respeitar o escopo
social e económico que presidiu à sua constituição, quer produzindo uma
maior utilidade pessoal – função pessoal – quer social – função social, a que
se pode acrescentar o complemento de económia.
Limitações funcionais, para ele, são somente aplicáveis caso a caso, situação a
situação, o que deixa ao pesquisador a tarefa genérica de estudar os diversos limites eventuais
engendrados às inúmeras posições jurídicas. Diante ao pano de fundo dos ideais liberais,
momento nos quais direitos eram absolutos, e da interpretação sistemática, decorrente do
exegetismo, entende-se o acentuar da funcionalização e seu uso para combater abusos
manifestos. Entretanto, na Ciência Jurídica hodierna, Cordeiro não vê necessidade de função
social, pois ela teria sido substituída, com vantagem, pelas dimensões funcionais, teleológicas
e sinépicas das operações de interpretação-aplicação. Não se deveria falar em função social
dos direitos, mas sim em apurar, face cada situação, até onde vai o espaço de liberdade
concedido pela ordem jurídica, através da utilização de todas as dimensões de interpretação.
Portanto, o autor defende a inutilidade atual de uma função social e econômica como
princípio dispositivo. Mantém-na apenas como política legislativa, diante do avanço
científico, com inovações na seara interpretativa dos direitos.78
Por outro lado, frisamos o pensamento de Maria Helena Diniz, cuja acepção é de que a
função social do contrato busca a boa-fé dos contratantes, a transparência negocial e a
efetivação da justiça contratual, enquanto o princípio da boa-fé objetiva privilegia o respeito à
lealdade entre as partes.79 Tal autora assevera que o princípio da boa-fé previsto no artigo 422
do Código Civil, intimamente ligado à interpretação do contrato (a intenção inferida da
declaração de vontade deve prevalecer sobre o sentido literal da linguagem) e ao interesse
social de segurança nas relações jurídicas, determina às partes a obrigação de agirem com
lealdade, honestidade, honradez, denodo e confiança, isto é, devem esclarecer os fatos e o
conteúdo inserido nas cláusulas, com o fim de sempre haver o equilíbrio nas prestações e
desfavorecer o enriquecimento injustificado etc. Em suas palavras:
É uma norma que requer o comportamento leal e honesto dos contratantes,
sendo incompatível com quaisquer condutas abusivas, tendo por escopo
gerar na relação obrigacional a confiança necessária e o equilíbrio das
78
79
Ibidem, p. 1230-1232.
Op. cit., p. 43.
37
prestações e da distribuição dos riscos e encargos, ante a proibição de
enriquecimento sem causa.80
Se um dos contratantes não cumprir tais deveres e ofender, assim, a boa-fé objetiva,
estará caracterizado o inadimplemento do ato negocial, independentemente de culpa, na
esteira do Enunciado 24 da Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:
Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422, a violação dos
deveres anexos (p. ex. informação sobre o uso do bem alienado; prática de
atos necessários à realização da finalidade pretendida pela outra parte
contratante; ato de evitar situações de perigo etc.) constitui espécie de
inadimplemento, independentemente de culpa”.81
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em seu art. 51, incisos I a XVI,
detalha melhor os efeitos desse princípio nas relações contratuais de consumo, em que declara
haver nulidade quando for observado um descumprimento de deveres anexos. No entanto, a
nulidade incide na cláusula descumpridora do princípio da boa-fé (discorrida no dispositivo
sobredito), não invalidará o contrato por inteiro, segundo o artigo 51, § 2º do Código de
Defesa do Consumidor.
Para a doutrina em geral, a boa-fé objetiva costuma conter três funções: função
interpretativa ou de colmatação, função criadora de deveres jurídicos anexos ou de proteção e
função delimitadora do exercício de direitos subjetivos. A primeira função está relacionada
com o art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, o qual disciplina que a
aplicação das normas pelo juiz deverá atender seus fins sociais e ao bem comum. O art. 113
do Código Civil trata desse tema: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A boa-fé objetiva tem função de orientar o
magistrado na integração de lacunas. Quanto à segunda função, a boa-fé impõe aos
contratantes certos deveres, tais como: lealdade e confiança recíprocas, assistência,
informação, sigilo e confidencialidade etc. Por fim, a boa-fé tem a função de coibir o
exercício abusivo de direitos subjetivos. Exemplo disso são as cláusulas leoninas ou abusivas,
com onerosidade excessiva para um dos contratantes, que, dessa forma, têm um papel
delimitador da cláusula. O art. 187 do Código Civil dispõe que: “Também comete ato ilícito o
80
Ibidem, p. 42.
Outros enunciados que se referem à boa-fé das Jornadas de Direito Civil e muito ilustram o tema são: “Boa-fé
objetiva. Conceito. Cláusula Geral. Aplicação pelo Juiz. Jornada STJ 26: A cláusula geral contida no artigo 422
do Novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boafé objetiva, entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes”. E: “Boa-fé objetiva. Cláusula
Geral. Interpretação. Jornada STJ 27: Na interpretação da cláusula da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema
do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos.”
38
81
titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Os princípios da boa-fé e da função social do contrato, então, estão um contido no
outro, conforme Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery os compreendem; da forma
como Maria Helena Diniz e Sílvio Luís Ferreira da Rocha os apontam e os enquadram, isto é,
a boa-fé é fator da própria função social, pois a amplitude de seu funcionamento reflete na
função social de cada contrato e também na função do contrato perante a coletividade. Na
esteira de Antonio Rulli Neto, a boa-fé, macroscopicamente, influencia a tutela da confiança.
Ora, a confiança das partes no negócio e seu comportamento razoável e esperado é um
interesse da sociedade e parte da função que os contratos devem ter, com fim de manter
equilíbrio, justiça e paz social, pois, sem isso, sem comportamento leal entre os contratantes,
haveria insegurança jurídica, resultado péssimo à coletividade e seus negócios, e desrespeito à
solidariedade ética e, por consequência, à dignidade da pessoa humana.
21. O princípio da equivalência de prestações (ou da distribuição equitativa – ou justa
– de ônus e riscos) está relacionado à igualdade material das partes (ou substantiva) no
contrato ou de justiça contratual substancial objetiva, em que se deve uma relação necessária
entre prestação e contraprestação e de respeito aos limites do negócio. Tal princípio, nos dias
atuais, é muito importante nos contratos de adesão e padronizado. Empresas industriais,
comerciais e de prestação de serviço, ao elaborarem contratos que oferecerão aos seus clientes
aderentes, são levadas pela ganância excessiva corriqueira no sistema capitalista, competitivo
de maneira selvagem, a transferir inúmeros encargos e riscos, possíveis e ilusórios. Os
tribunais brasileiros já reconheceram esse princípio em julgados, verbi gratia, Recurso
Especial n. 706.417 do Estado do Rio de Janeiro, cuja relatoria pertencia à Ministra Fátima
Nancy Andrighi. A onerosidade excessiva e a lesão são hipóteses autorizadoras da aplicação
desse princípio, devendo haver fato superveniente a formação do negócio, tal qual exige o
artigo 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor e art. 476 do Código Civil; salvo no
caso de dolo de aproveitamento, em que uma das partes sabe que a outra depende, precisa de
um negócio em razão de extrema necessidade ou o faz por inexperiência. Se houver lesão, por
outro lado, o negócio é feito embasado em declaração de vontade enfraquecida ou turbada, o
que engendra uma prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
Em ambos os casos seria permitida a revisão dos efeitos do contrato, com fim de reequilibrálo e mantê-lo, visto que é do interesse da coletividade que o contrato não seja perene ou
instável, o que tutela-se, assim, é a confiança. A equivalência de prestações, obviamente, é
pautada na boa-fé e no necessário equilíbrio entre as partes, pois nas relações civis se deve
39
zelar da igualdade material das partes e da autonomia da vontade. A ideia de uma relação
equilibrada em que as prestações se equivalem cumpre a função social do contrato.82
22. Incluímos também o princípio da dignidade social – importado do direito italiano
–, o qual necessita ser respeitado nesse contexto, porquanto garante que as aptidões de cada
ser humano devem ser respeitadas e aproveitadas pela sociedade. A autodeterminação de cada
qual deve ser acatada e compreendida como o poder de cada indivíduo gerir livremente sua
esfera de interesses, com o fim de que sua vida seja orientada segundo suas preferências.
Trata-se de um conceito pré-jurídico, com mais amplitude, como valor, do que a autonomia da
vontade.83 Em nosso sistema, há relação óbvia entre a dignidade da pessoa humana e os
direitos sociais. O princípio da função social dos contratos, por consequência, deve observar a
dignidade, assim como a dignidade social da pessoa. Exemplo claro disso está na hipótese de
um sujeito que, devido à falta de educação suficiente, não consegue exercer sua
autodeterminação (analfabeto). O analfabetismo é uma realidade ainda, conforme dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que assola quase 10% de nossa
população. Em uma situação na qual uma das partes seja analfabeta, pode suceder quebra de
equilíbrio por falta de informação adequada (art. 6º do Código de Defesa do Consumidor) ou,
ainda, lesão (art. 157 do Código Civil). Ambos os casos são solvíveis por outros dispositivos
no direito brasileiro.
23. A despeito do esposado nas linhas acima, urge-nos ressalvar que, de fato, uma das
funções primordiais do contrato, na seara privada, continua a ser a econômica, de circulação
de riquezas, conquanto não possa ser mais encarada isoladamente, pois deve se adequar a
todos os princípios acima elencados, inclusive a função social do contrato e a dignidade da
pessoa humana. É o que igualmente se entendeu na I Jornada de Direito Civil, que foi
expresso no enunciado 23, o qual elucida bem a questão: “A função social do contrato,
prevista no art. 421 do Novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual,
mas atenua e reduz o alcance do princípio quando presentes interesses metaindividuais ou
interesse relativo à dignidade da pessoa humana”. Portanto, se se estiver diante de interesses
metaindividuais ou interesse relativo à dignidade da pessoa humana, o princípio da autonomia
contratual terá sua abrangência reduzida pela função social do contrato.
24. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery alertam-nos corretamente que
a norma contida no art. 421 do Código Civil tem função instrumentalizadora, de ordem
pública e interesse social. Por seu caráter de cláusula geral e ordem pública não se opera
82
83
GODOY, Claudio Luiz Bueno. Op. cit., p. 171-172; e RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 121-122.
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 125.
40
preclusão ou prescrição sobre ela, além de não ser aplicável o princípio da demanda (arts. 460
e 128 do Código de Processo Civil). O juiz ao aplicar essa norma exerce função integrativa e
ao materializar a norma torna-a parte do sistema do contrato. A sentença de materialização da
norma pode ser chamada de determinativa. Nas palavras de tais autores:
A cláusula geral aqui examinada tem função instrumentalizadora, vale dizer,
o juiz deve servir-se de sua enunciação abstrata para dizer, na situação
concreta que se lhe apresenta, o que seria dar função social àquele
determinado contrato que está sob sua análise. Por função
instrumentalizadora deve entender-se a atividade do juiz de dar concretude à
enunciação abstrata do CC 421. Não é regra de interpretação, tampouco
princípio geral de direito. Na prática, a cláusula geral de função social do
contrato permite que o juiz faça a lei entre as partes, isto é, o juiz vivifica, no
caso concreto, a norma abstrata e estática posta pela lei.84
Nesse ponto, insta-nos, pela sua importância, demonstrar o seguinte: aquilo que se
convencionou denominar materialização da norma jurídica traduz um conjunto de atividades
estatais com caráter jurídico tendente à implementação de objetivos e finalidades do sistema
político. Portanto, possui caráter normativo diferente da simples repetição de proposições
formais contidas na norma legal.85 Ora, no momento em que se concretizou o Estado Social, o
Direito assumiu um papel implementador de transformações sociais e, por consequência,
veiculador inclusive de prestações públicas. Ocorre uma rematerialização da racionalidade
legal, como Günther Teubner observa:
Comparado com o clássico Direito formal, o direito material próprio da
moderna era industrial assume desde logo uma nova função social. Tal
direito não se limita a satisfazer os imperativos de resolução dos conflitos
impostos pelo funcionamento de uma sociedade de mercado, mas serve
também os imperativos políticos de intervenção e de direção próprios do
moderno Estado-Social: quer dizer, o direito é instrumentalizado em função
dos objetivos e finalidades do sistema político, que agora assume a
responsabilidade pela condução de certos processos sociais, e
nomeadamente, na definição dos objetivos a alcançar, na escolha dos
instrumentos normativos, no processo de formulação e de implementação de
normas.86
84
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado e legislação
extravagante: atualizado até 15 de junho de 2005. 3. ed. rev., atual. e ampl. da 2. ed. do Código Civil anotado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 378.
85
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 128, nota de rodapé 364.
86
TEUBNER, Günther apud TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição dirigente e o direito regulatório
do Estado social: o direito sanitário. In. Direito sanitário e saúde pública. Ministério da Saúde, Secretaria de
Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde; Márcio Iorio
Aranha (Org.). Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p. 22-38. Além do mais, Günther Teubner ainda nos informa
que: “juridificação não significa apenas crescimento do Direito, mas designa antes um processo no qual o Estado
Social intervencionista cria um novo tipo de Direito, o direito regulatório. Apenas quando ambos estes elementos
41
As mudanças de ordem estrutural e funcional, assim, advindas da rematerialização da
racionalidade do Direito contemporâneo, do qual o ponto das Constituições conterem um
caráter dirigente é uma evidência, exigem uma nova atuação não apenas daqueles que editam
leis, mas também daqueles que as operacionalizam, aplicam e têm responsabilidade conjunta
de implementarem suas missões transformadoras.87
Perante o analisado, percebe-se a importância da função jurisdicional para os contratos
e para a aplicação da cláusula geral da função social do contrato (também um princípio),
porquanto garante a efetividade do primeiro e aplicabilidade da segunda.
25. A proteção da dignidade da pessoa humana depende em ampla medida da solução
de um problema, cuja magnitude desafia os governantes em toda a história, inclusive os atuais
mandatários, qual seja: Como colocar o Direito acima da vontade dos homens? A causa
primeira da desordem ética é abuso de poder individual ou coletivo, emanados em qualquer de
suas formas, seja econômico, político, militar etc. Por conseguinte, na esteira do aludido
mestre, a função primordial do direito, seja interno ou internacional, consiste em refrear a
liberdade natural, que dá ensejo ao conflito e ao senhorio dos mais fracos pelos mais fortes, a
fim de se instaurar a liberdade política, fundada no mútuo respeito da pessoa humana, em
todas as suas múltiplas diferenças biológicas e culturais. Para tanto, as garantias institucionais
abordadas alhures podem e devem ser encaradas como princípios fundamentais do
ordenamento constitucional e internacional. Nessa condição, apresentam as três características
basilares e essenciais – frisamos novamente –, quais sejam: supremacia normativa, ilimitado
âmbito de aplicação e ilimitado grau de aplicação. A ilimitação de aplicabilidade de um
princípio suscitada não significa que ele não possa ser considerado como plenamente
cumprido, mas está ligada a sempre possível majoração contínua de seus efeitos.88
– materialização e finalismo político-intervencionista – são tomados em atenção conjuntamente, poderemos
entender a verdadeira e específica natureza do contemporâneo fenômeno da juridificação. Em suma, o direito
regulatório – que ‘especifica coercitivamente a conduta social em ordem à consecução de determinados fins
materiais’ – caracteriza-se pelo primado da racionalidade material relativamente à racionalidade formal e pode
ser definido de acordo com os seguintes aspectos: no plano de sua função, é um direito associado às exigências
de direção e conformação social, próprias do Estado Social; no de sua legitimação, é um direito onde assumem
fundamental relevo os efeitos sociais despoletados pelas suas próprias regulações conformadoras e
compensadoras; finalmente, no plano de sua estrutura, o direito regulatório afigura-se como um direito
‘particularístico’, finalisticamente orientado e tributários das ciências sociais” (Ibidem).
87
TOJAL, Sebastião Botto de Barros. Idem.
88
COMPARATO, Fábio Konder. As garantias institucionais dos direitos humanos. p. 21 e s. Disponível em:
<www.escoladegoverno.org.br>. Insta-nos alertar os leitores que as características dos princípios foram mais
apropriadamente trabalhadas no capítulo inicial deste estudo, portanto remetemo-los, se, eventualmente, tiverem
dúvidas sobre nosso entendimento, a retornar a tal trecho.
42
Ora, o contrato deixou de regular direitos ou interesses antagônicos, pois, atualmente,
existe nos contratos algo semelhante à affectio societatis entre sócios de sociedades
empresariais, isto é, há uma forma de colaboração entre os contratantes. Em vez de se
tratarem como adversários, os contratantes, por imposição legal, transformaram-se em
parceiros, os quais almejam entre si uma relação equilibrada e igualitária, resumida em uma
união de interesses equilibrados. Destarte, trata-se de um meio de cooperação leal e obra de
confiança mútua. Dessa maneira, não é admitido tirar vantagem maior do que aquele
racionalmente aceitável, tanto no momento de celebração quanto no período de execução do
negócio jurídico.
Aliás, o regime anterior já repelia o abuso de direito através do Código Civil de 1916,
o direito constitucional já continha o princípio da função social da propriedade e a Lei de
introdução às normas brasileiras autorizava o juiz a interpretar a lei segundo parâmetros
sociais. Contudo, o Novo Código Civil passou a admitir a interpretação a partir de uma norma
aberta. O princípio da operabilidade demonstra ética e valorização do ser humano através de
seu advento com essa lei, pois privilegia a continuidade dos negócios jurídicos; e, igualmente,
a modificação em razão da onerosidade excessiva do acordo, não mantendo a continuidade do
contrato como algo penoso a uma das partes. Os valores éticos, conjuntamente às realidades
econômicas e sociais, devem prevalecer em detrimento do excesso de conservadorismo que
impede o desenvolvimento da sociedade e de radicalismos os quais descontinuam instituições.
As soluções devem tender ao justo equilíbrio entre justiça e segurança. A ética é componente
da boa-fé e deve nortear a interpretação dos contratos no sentido de valorizar o ser humano, o
que engendra efeitos positivos ao bem comum. Nessas condições, é extremamente relevante o
equilíbrio específico ou simétrico das relações jurídico-contratuais para a equalização das
relações entre todos os elementos do contrato, pois isso é determinante para o cumprimento da
função social. O equilíbrio assimétrico existe em algumas relações, como as consumeristas e
trabalhistas, efetivado por determinação legal, devido à hipossuficiência ou vulnerabilidade de
uma das partes. Nessas hipóteses, impõe-se elemento assimétrico ou diferenciador dentro da
relação. O equilíbrio dos contratos, com base na função social do contrato, tem papel
importante na confiança de toda a coletividade no sistema contratual e nos negócios em geral,
não apenas por causa da segurança jurídica, mas na certeza da adoção de determinados
comportamentos éticos pelas partes e pela sociedade.89
89
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 132-135.
43
A função social do contrato, sob seu aspecto de promoção do solidarismo, ostenta um
contorno para quaisquer relações jurídicas, paritárias ou não, de preservar uma substancial
igualdade entre as pessoas, pois visa a garantir contratações justas, marcadas pelo padrão e
exigência de colaboração entre os contratantes, através de acordos socialmente úteis, na
esteira das escolhas valorativas do sistema. Significa também a promoção da justiça
distributiva, quando fomenta o acesso a bens e serviços, isto é, tal princípio impõe que o
contrato deve ter efeito distributivo, o que significa compreendê-lo como instrumento não só
da racionalização da atividade econômica, mas como veículo com o objetivo maior de
garantir e mesmo facilitar o acesso ao consumo.90
26. A confiança é elemento do contrato decorrente da boa-fé. O novo papel do
contrato e do Estado-juiz na proteção de relações contratuais, acima explanado, entrega ao
Poder Judiciário a tarefa de manter a confiança como elemento essencial nas relações
jurídicas. Trata-se da ideia de confiança legítima no sistema, cujo objetivo é o de proteger
comportamentos esperados na sociedade e mesmo das pessoas em relação ao Estado. A teoria
da confiança preocupa-se com o conteúdo declarado em relação à parte que acreditou de boafé. Portanto, a confiança é elemento de expectativa e perspectiva das obrigações que passaram
a ter importância significativa no sistema jurídico brasileiro, de maneira que deve ser
protegida como forma de se proteger inclusive a segurança jurídica. A tutela da confiança
pode ser verificada por três ângulos: a tutela da confiança propriamente dita, da qual flui: a
tutela das partes pelas partes, isto é, o dever de probidade, transparência, informação, dentre
outros, mútuo; e a tutela pelo poder jurisdicional (Estado-juiz) das relações, com o fim de
garantir o funcionamento ético e a continuidade da relação contratual. Este último gera efeitos
reflexos passíveis de influenciar um grupo de pessoas direta ou indiretamente. A confiança é
tutelada pela lei, pelo Estado-juiz e gera a necessária continuidade (com ou sem alterações dos
termos do negócio) ou a indenização pela responsabilidade da quebra de confiança. Ela é
elemento da função social do contrato: seus efeitos diagonais e reflexos são um exemplo
disso. É um elemento do mercado, por lhe imprimir segurança e operabilidade, mantendo,
dessa maneira, relação com os interesses gerais da sociedade e do comércio. Ela inclusive
compõe preços. Quando se quebra um contrato pode não só se atingir as partes, mas também
terceiros ou a coletividade. A insegurança jurídica, conforme Felipe Frisch, eleva em até 17%
o valor dos juros no contrato no Brasil.91
90
91
GODOY, Claudio Luiz Bueno. Op. cit., p. 131-133.
RULLI NETO, Antonio. Op. cit., p. 137-146.
44
No entanto, o Estado-juiz deve analisar caso a caso a aplicação da função social do
contrato, pois, como já dissemos, inúmeras vezes acompanhamos empresas industriais,
comerciais ou de prestação de serviço repassarem essa insegurança a outra parte contratante,
em total desrespeito ao princípio da distribuição equitativa de ônus e riscos. Portanto, precisase de muita cautela ao abordar esse tema, principalmente no sistema capitalista, o qual
privilegia o lucro a todo custo em detrimento da dignidade da pessoa humana ou dos valores
éticos. Daí a importância da atividade jurisdicional, que foi envolvida, nos dias hodiernos,
com princípios contidos na Constituição, os quais direcionam os magistrados a atingir o mais
próximo possível a pacificação com justiça. Para tanto, garante-se independência e
imparcialidade ao legitimado a exercer a atividade jurisdicional, assim como se garante o
princípio do juiz natural, dentre outros, como garantia dos jurisdicionados. Ao aplicar a
função social no caso concreto, o Judiciário deverá visar ao bem comum e à dignidade da
pessoa humana, isto é, na esteira de Dalmo de Abreu Dallari, “a busca e criação de condições
que permitam a cada homem e a cada grupo social a realização de seus respectivos fins
particulares”, dentro do Estado Democrático de Direito, fundado na supremacia da vontade
popular, a perquirir a igualdade de possibilidades, com liberdade, para assegurar a expressão
concreta de uma ordem social justa.92
O juiz poderá aplicar a função social do contrato ao apreciar cada caso, como cláusula
geral e norma cogente, participando ativamente no deslinde da causa, diante de seu novo
papel, e verificar as consequências cuja decisão pode engendrar, ao reequilibrar ou não o
negócio, uma revisão contratual etc. Apenas de resvalo, afirmamos, conforme o movimento
efetivista no direito brasileiro, ser necessária uma superação da excessiva burocratização do
Judiciário, para que haja uma justiça mais acessível e participativa, e alcance resultados úteis
e tempestivos.93
27. Ao avançarmos no tema, Calixto Salomão Filho adverte salutarmente que
contratos potencialmente danosos especificamente a interesses de terceiros ou metaindividuais
carecem de eficácia, no mínimo, nas cláusulas aptas a atingi-los, suscitando uma grande
virtude decorrente da função social dos contratos, qual seja: “não mais será necessário
identificar em estatuto específico regra protetora de interesse institucional cujo
descumprimento permita declarar a nulidade do contrato”. Assim, contratos que impliquem
em risco de dano ambiental, se comprovado, permitiria a contestação das cláusulas cujos
92
Op. cit., p. 268.
Para aqueles que almejarem se aprofundar no tema, pesquisar em O direito constitucional e a efetividade de
suas normas, de Luis Roberto Barroso.
45
93
efeitos ainda não geraram lesão específica a dispositivo da lei ambiental. Quando declarada a
ineficácia do contrato por violação à cláusula geral da função social, a obrigação principal não
poderá ser adimplida, contudo, as obrigações acessórias, desde que não violem o princípio da
função social concretizado na cláusula do art. 421 do Código Civil, não terão o mesmo
destino. Haverá necessidade de se trabalhar no caso concreto para avaliar tal possibilidade.94
Em oposição, quando o contrato já houver lesado interesses de terceiros ou metaindividuais,
estará caracterizada a não observância da cláusula geral da função social. Por ser norma de
ordem pública, engendrará a nulidade do negócio jurídico com base no art. 166, inc. VI, da
Lei Civil pátria, com consequente responsabilização dos contratantes, com fixação de
pagamento de indenização pelos prejuízos gerados. Essa é a finalidade repressora da função
social dos contratos.95 Obviamente, o contratante que, eventualmente, sentir-se prejudicado
não poderá exigir seu cumprimento ao Poder Judiciário, mas pode tão somente exigir o
cumprimento das obrigações laterais, se for o caso ainda, pois, se violarem os interesses de
terceiros ou metaindividuais, nem isso. Nessa situação, o juiz deverá julgar a ação
improcedente motivada em nulidade do contrato. Ainda, deverá remeter cópias ao Ministério
Público, órgão com competência para defender interesses metaindividuais, para a adoção de
medidas que se fizerem necessárias para responsabilização dos contratantes, na esteira de
Fábio Ulhoa Coelho96. A responsabilidade dos contratantes será objetiva e a indenização
direcionada à recuperação do bem lesado, de acordo com art. 13 da Lei 7.347/1985.97 Na
opinião de Calixto Salomão Filho, o controle material difuso posto pela cláusula geral da
função social dos contratos complementou os instrumentos processuais, tais como a ação civil
pública.98
Todos esses pontos esboçados pelos autores suscitados se justificam a partir da análise
feita no Capítulo 1. Os direitos humanos e fundamentais estão no topo do ordenamento
jurídico brasileiro e têm como finalidade última a dignidade da pessoa humana. Nenhum
contrato que lese ou prejudique tais princípios pode subsistir, principalmente com a
positivação da cláusula da função social dos contratos.
94
SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social dos contraltos: primeiras anotações. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 823, maio de 2004, p. 84-85.
95
HENTZ, André Soares. Op. cit., p. 92-93.
96
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: contratos - vol. 3. 3ª ed., rev., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 37.
97
Op. cit., p. 75.
98
Op. cit., p. 86.
46
2.
FUNÇÃO SOCIAL DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ADMINISTRATIVOS
28. Após estudarmos a evolução e o conteúdo do princípio da função social na seara
privada, tentaremos demonstrar a incidência de seus efeitos, assim como fez, corajosamente,
Sílvio Luís Ferreira da Rocha no caso da propriedade pública, nos negócios jurídicos
administrativos.
Para tanto, faz-se necessário, inicialmente, verificarmos as peculiaridades de tais
negócios, de forma sucinta, quando cotejados aos negócios jurídicos privados; para,
posteriormente, vislumbrarmos as especificidades da aplicação da função social aos negócios
jurídicos administrativos.
2.1. Considerações gerais
29. Como bem sabido, a Administração Pública exerce função pública, a qual foi
delimitada por Celso Antônio Bandeira de Mello, de forma lapidar, como “quando alguém
está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem,
necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são
instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades”.99
Destarte, difere-se da atividade privada por nela não se vislumbrar liberdade individual
ou autonomia da vontade na busca de interesses egoísticos; mas, pelo contrário, como já
esboçamos alhures, tal função persegue o bem comum, o interesse público primário, isto é, o
interesse da coletividade (art. 3º, inciso IV, da Lei Máxima Nacional).
30. Na esteira de Renato Alessi, interesses públicos primários não são interesses da
Administração Pública enquanto pessoa jurídica de direito público (interesse público
secundário), isto é, de seu aparato administrativo. Estes apenas podem ser norte para o Poder
Público quando coincidentes, e na fronteira dessa coincidência com o interesse público
primário; ao passo que aqueles são o conjunto de interesses dos indivíduos enquanto cidadãos
integrantes de uma determinada sociedade.100
99
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27. ed., rev. e atual. até a
Emenda Constitucional 64, de 4/2/2010. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 71. Ou, ainda, como bem
pontua Ruy Cirne Lima: à “administração o dever e a finalidade são predominantes; no domínio, a vontade”
(Princípios de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 52.
100
Renato Alessi, grande mestre italiano, esclarece: “Questi interessi pubblici, collettivi, dei quali
l’amministrazione deve curare il soddisfacimento, non sono, si noti bene, semplicemente l’interesse dela
amministrazione intesa come aparato organizativo, sibbene quello che é stato chiamato l’interesse collettivo
primario, formato dal complesso degli interessi individuali prevalenti in una determinata organizzazione
giuridica della colettività mentre l’interesse dell’apparato, se puó esser concepito un interesse dell’apparato
unitariamente considerato, sarebbe semplicemente uno degli interessi secondari che si fanno sentire in seno alla
47
Dessa forma, são aqueles interesses que visam à felicidade geral, como ressaltou
Thomas Jefferson na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, da
seguinte maneira:
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os
homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos
inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da
felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos
entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos
governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva
de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo
governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela
forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a
FELICIDADE (grifo nosso).
Quando houver colisão entre interesse público primário com secundário, deve
prevalecer o primeiro; essa é a razão pela qual deve haver mecanismos que garantam a
utilização legítima do poder pela Administração no sentido do interesse coletivo. Como
exemplo, citaremos elucidações do autor italiano supracitado: é interesse público secundário
da Administração Pública pagará seus próprios empregados o menos possível e aumentar ao
máximo os impostos, com o fim de maximizar a própria disponibilidade de caixa. No entanto,
o interesse coletivo (primário) exige, respectivamente, que os servidores administrativos
sejam pagos de modo suficiente, para colocá-los nas melhores condições para prestarem um
serviço eficiente e de qualidade, bem como os cidadãos não podem ser gravados com valores
excessivos na tributação, para que a sociedade não empobreça.101
Outro exemplo didático da situação é: todos nós temos interesse na existência de multa
de trânsito, pois senão seria inviável todos trafegarem organizadamente pelas vias de trânsito,
devido à extrema confusão e desordem resultante (interesse enquanto cidadão). Muito embora
ninguém se sente satisfeito de pagar eventual multa de trânsito recebida por desrespeito às
normas de trânsito (interesse egoístico). Ou, ainda, suscitado por Ricardo Marcondes Martins
e atrelado à função legislativa: um senador, um deputado ou um vereador pode perseguir um
interesse próprio, desde que vinculado à sua condição de partícipe no meio social, porquanto
um interesse público é formado de interesses particulares. Não pode persegui-lo enquanto
interesse individual, desconectado da dimensão coletiva. Ou seja, quando um agente no
exercício de competência legislativa almeja aprovar lei protetiva dos idosos não estará, pelo
collettività, e che possono essere realizzati soltanto in caso di coincidenza, e nei limiti di siffatta coincidenza,
con interesse collettivo primario” (Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano. 3. ed. rev., reel. e
ampl. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1960. p. 197-199 e nota de rodapé 3.
101
ALESSI, Renato. Op. cit., p. 198-199, nota de rodapé 4.
48
fato de ser idoso, em princípio, praticando ato antijurídico, porquanto a proteção do idoso é
um valor consagrado na Carta Magna de 1988 (art. 230).102
Como bem ensina Sérgio Ferraz,
interesse público não é, pois, aquele pertinente à pessoa pública que o
titularize; nem mesmo é, pura e simplesmente, o interesse público. (...) dos
interesses indivisíveis de uma pluralidade, do todo, transcendência essa que
substancia a ideia-cerne de interesse público. Nessa dimensão, aí sim, podese ver no interesse público não a simples soma, mas o conjunto dos
interesses pessoais dos indivíduos, considerados em sua qualidade de
membros da sociedade.103
Como cidadania e dignidade da pessoa humana constituem baluartes republicanos –
constantes em incisos do art. 1º da Carta da República –, interesses de seus cidadãos, em
rigor, são princípios e fins da função administrativa e de qualquer função estatal. As virtudes
republicanas são intrínsecas à ordem social.
No entanto, tal como realça Eros Roberto Grau, a noção que temos sobre coisa pública
está atrelada não ao povo, como teoricamente deveria ser, mas ao Estado. O público é o
estatal, daquele que governa, e não o comum a todos. O modelo econômico individualista
possessivo vigente permite-nos visualizar o que pertence a cada um e os bens ditos públicos
são arrebatados pelo Estado, tido como inimigo de cada um, apartado completamente, sempre
a perfilhar, em tese, interesses secundários, muitas vezes, ou pior, de partidos ou
corporações.104
O Estado é um meio para consecução de certas finalidades. A síntese dessas ideias está
incutida conjuntamente na expressão bem comum, de certo povo, situado em um determinado
território, isto é, o conglomerado de todas as condições de vida social que consintam e
favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana dos integrantes desse povo,
em função de suas peculiaridades culturais, históricas e sociais.105
102
MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros Editores,
2008. p. 43-45, nota de rodapé 19. Quanto à função jurisdicional, o autor cita Cândido Rangel Dinamarco para
distinguir o interesse do jurisdicionado na tutela jurisdicional do interesse do Estado, o qual visa ao bem comum
através da pacificação com justiça. Nas palavras de Dinamarco, “o Estado aceita a provocação do interessado e a
sua cooperação, instaurando um processo e conduzindo-o até o final, na medida apenas em que o interesse deste
em obter a prestação jurisdicional coincidir com aquele interesse público de atuar a vontade do direito material e,
com isso, pacificar e fazer justiça” (Apud MARTINS, Ricardo Marcondes. Op. cit., p. 44, nota de rodapé 20).
103
FERRAZ, Sérgio. Regulação da economia e livre concorrência: uma hipótese. Revista de Direito Público
da Economia – RDPE, p. 203-205.
104
GRAU, Eros Roberto. O Estado, a liberdade e o direito administrativo. Revista crítica jurídica, p. 164.
105
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. 26. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007.
p. 107.
49
31. Todas as funções estatais devem buscar essa finalidade, tal qual pudemos inferir
do conceito supramencionado de Celso Antônio Bandeira de Mello. Bem como qualquer
função estatal decorre da imposição, portanto, de um dever. Não há faculdade no exercício de
atividades estatais, precipuamente nas hipóteses de competência vinculada; surgem alguns
problemas quando há discricionariedade, isto é, em certas hipóteses, frente a um caso
concreto, é possível se verificar a maneira mais adequada de se atingir o bem comum. Se
diante dos fatos não houver dúvidas da maneira de se atingir mais adequadamente o interesse
da coletividade, então, não há discricionariedade. No entanto, se a controvérsia não puder ser
solucionada sobre qual a melhor forma de garantir o interesse público (decorrente do
pluralismo inerente ao Estado Democrático de Direito), ou otimizar os princípios
constitucionais e os direitos humanos, o sistema relega a opção ao encargo do legislador ou do
administrador da definição da melhor solução. Portanto, é a concepção do agente público
sobre a mais adequada forma de realizar o bem comum.106
Há inúmeras formas de controle da discricionariedade. Conquanto não se trate do tema
desta dissertação,107 urge ressalvarmos que os princípios gerais de Direito são a última
106
MARTINS, Ricardo Marcondes. Op. cit., p. 46-63. Nas palavras do autor: “A função estatal consiste na
edição de normas jurídicas que concretizem os princípios constitucionais. Se as normas editadas concretizarem
os princípios e obedecerem às primazias previstas no ordenamento, (...) é irrelevante o elemento volitivo, ou
seja, a vontade do agente editor da norma. (...) A questão encontra maiores dificuldades na seara da função
administrativa. Pacificou-se que o elemento volitivo é absolutamente irrelevante na competência vinculada. Se
não há liberdade de escolha para o agente, não importa que ele seja deficiente mental e não tenha discernimento
algum: se o ato praticado foi o exigido pelo Direito, é irrelevante o vício de vontade. Discute, contudo, a doutrina
se a vontade é relevante no exercício de competência discricionária. Já se afirmou que a discricionariedade não
está dissociada do dever, ínsito à função estatal... Ela pode configurar-se sempre que não for possível fixar
previamente, independentemente do caso concreto, qual é a melhor solução. Nessas hipóteses poderá haver uma
margem de liberdade, caso em que o administrador deverá escolher entre duas ou mais alternativas igualmente
possíveis. Sem embargo, sua decisão sempre estará vinculada a cumprir da melhor maneira possível o interesse
público, vale dizer, a concretizar oticamente os princípios constitucionais. Onde não houver dúvida em relação a
essa ‘melhor forma’ não haverá discricionariedade; onde houver dúvida, o sistema dá primazia à opção do agente
público no exercício da função administrativa: prepondera a visão dele sobre a ‘melhor forma’. Somente nessa
última hipótese haverá, em concreto, discricionariedade, e é somente nessa hipótese que a vontade assume relevo
na função estatal” (Op. cit., p. 55-57). Acrescentaríamos, além dos princípios constitucionais, a vinculação do
administrador público de cumprir os direitos humanos consagrados na consciência ética coletiva, bem como na
Declaração Universal dos Direitos Humanos. É o pensamento, por exemplo, de Fábio Konder Comparato, em
suas obras, já citadas, ou de André de Carvalho Ramos: “O que entendo essencial é esclarecer o dever do Estado
brasileiro em respeitar seus compromissos perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos, sabendo que
não poderá alegar, de modo lícito, qualquer óbice de direito interno (mesmo que constitucional) para cumprir os
comandos internacionais, isso tudo no momento da comemoração dos dez anos da ratificação da Convenção
Americana de Direitos Humanos pelo Brasil e com o reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte
Interamericana de Direitos Humanos” (Responsabilidade Internacional por violação de direitos humanos:
seus elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. p. 151).
107
Há alguns textos importantes sobre o tema, tal qual: Celso Antônio Bandeira de Mello, Op. cit., 2010, p. 958992; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa. In: Estudos
de Direito Público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello, Valmir Pontes Filho e outro (Orgs.).
São Paulo: Malheiros, 2006. p. 480-504; M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder
Judiciário. 7. ed., atualizada por Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p 52-96; Afonso Rodrigues
50
maneira de controle da discricionariedade estatal, tal como demonstra Eduardo García de
Enterría. Ora, esse autor espanhol nos demonstra que os Poderes Executivo e Administrativo
não são poderes soberanos, senão uma organização subalterna a serviço da comunidade. Por
essa razão, não pode se afastar ou ignorar, em um caso concreto, quando faz uso de
competência discricionária, da aplicação de um princípio geral de Direito. Com efeito, as
normas que conferiram à Administração Pública ou ao Congresso Nacional (na esfera da
União) suas funções não podem derrogar o restante do ordenamento jurídico. Princípios gerais
do Direito são uma condensação dos grandes valores jurídicos materiais, os quais constituem
o substrato do ordenamento e da experiência reiterada da vida jurídica.108
Aliás, não devemos nos esquecer de que os princípios gerais do Direito,
por su propia naturaleza, existen con independencia de su consagración en
una norma jurídica positiva, como tales subsistirán cuando en un
Ordenamiento jurídico se recogen en un precepto positivo, con objeto de que
no quepa duda su pleno reconocimiento. Y buen número de principios se
encuentran en los cuerpos legales, principalmente en los constitucionales.
Pues, quizás, no existe lugar más adecuado que aquella norma que ocupa el
más alto grado en la jerarquía de las fuentes.109
Por decorrência lógica de nosso sistema jurídico, o legislador é limitado apenas pela
Carta da República e pelos direitos humanos emanados da própria norma máxima de nosso
ordenamento jurídico, das normas internacionais e da consciência ética coletiva, conforme
explicamos anteriormente, e vinculado à consecução do bem comum. Apenas para evitarmos
eventuais dúvidas e discordâncias, ressaltamos novamente, agora com a passagem do
eminente Dalmo de Abreu Dallari, esta conclusão:
Os direitos humanos são fundamentos necessários da Constituição, de
qualquer Constituição autêntica, e integram o conjunto de características
definidoras do novo constitucionalismo. E direitos humanos, apesar da
variedade de concepções, implicam sempre normas éticas, jurídicas e
sociais. (...) é possível fazer a classificação dos direitos em dois campos: o
dos direitos morais e o dos direitos legais. Estes são os que dependem de
Queiró, Reflexões sobre a teoria do desvio de poder em direito administrativo. Coimbra Editora, 1940. p. 83175; e Os limites do poder discricionário das autoridades administrativas. Revista de Direito Administrativo
da Fundação Getúlio Vargas, v. 97 jul./set. de 1969. p. 1-8; Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón
Fernández, Curso de derecho administrativo. V. I. 12. ed. Madri: Editora Civitas, 2004. p. 460-496; por fim,
Renato Alessi, op. cit., p. 187-189; Antônio Carlos Cintra do Amaral, Teoria do ato administrativo. Belo
Horizonte: Fórum, 2008. p. 89-105; Michel D. Stassinopoulos, Traité des actes administratifs, Préface de René
Cassin, Athènes, 1954.
108
Op. cit., p. 482-483.
109
PÉREZ, Jésus González. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev.,
atual. e ampl. Madri: Editora Civitas, 2004. p. 29-30.
51
base formal, que pode ser uma lei escrita ou um costume consagrado e
reconhecido. Os direitos morais são aqueles inerentes à natureza humana,
universais no tempo e no espaço, havendo direitos morais que em certas
circunstâncias são individualizados... Outros são direitos morais universais,
pertencendo concomitantemente a todas as pessoas, como o direito a
dignidade humana.110
Por outro lado, a atuação do administrador é igualmente limitada pelos direitos
humanos e pela Constituição, bem como pelas leis. Ambos, legislador e administrador, têm o
dever de buscar a melhor forma de garantir os princípios constitucionais ou dos direitos
humanos quando exercem competência discricionária. Dessa maneira, estão vinculados à
busca do bem comum (art. 3º da Carta da República). Haveria muito para se tratar sobre esse
tema. Deixamos de fazê-lo, pois mereceria, talvez, outra dissertação.
32. A função estatal age através da produção de normas jurídicas. Para tanto, os
legisladores utilizam-se de leis como veículos para essas normas; enquanto administradores
fazem uso de atos.111
33. Todas as funções estatais carregam essa finalidade acima explicada, porém, o que
difere a função administrativa das demais funções estatais? De forma magistral, Celso
Antônio Bandeira de Mello responde:
Função Administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes,
exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no
sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser
desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente,
infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo
Judiciário.112
Portanto, vê-se primeiramente que a função administrativa está por lei e Direito
(infralegal e, excepcionalmente, infraconstitucional) adstrita à consecução de certas
finalidades, obrigatórias para atingir os interesses de outrem. Onde há função, por
conseguinte, não há nem autonomia da vontade, nem liberdade e autodeterminação, nem,
110
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao Século XXI. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 305-306. Ou de acordo com Gustav Radbruch: “Quando uma lei nega conscientemente a
vontade de justiça, por exemplo, concede arbitrariamente ou recusa os direitos do homem, falta nela a validade
(...) também os juristas devem encontrar a coragem de lhe recusar o caráter jurídico”. E em outro trecho: “Podem
existir leis com tal medida de injustiça e de nocividade social que é preciso recusar-lhes o caráter jurídico (...)
pois existem princípios jurídicos fundamentais que são mais fortes que toda normatização jurídica, de modo que
uma lei que é contrária a eles carece de validade”. E ainda: “Onde a justiça sequer é perseguida, onde a
igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada pelas normas de direito positivo, a lei não
apenas é direito injusto, mas em geral carece também de juridicidade” (Apud BOBBIO, Norberto. Teoria geral
do Direito. Trad. Denise Agostinetti e rev. Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 35.
111
FREIRE, André Luiz. Manutenção e retirada dos contratos administrativos inválidos. Dissertação de
Mestrado em Direito do Estado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 1-17.
112
Op. cit., p. 36.
52
principalmente, a procura de interesses próprios; há a submissão ao escopo pré-determinado
pelo Direito e pela lei (interesse público primário). Para cumprir tais deveres, seguem-se
poderes servientes, que têm, então, caráter instrumental, sem os quais o agente não
conseguiria atender à finalidade que deve perseguir para satisfazer interesse alheio. Dessa
feita, quem desempenha função tem, na verdade, deveres-poderes que, vistos em conjunto,
formam as competências de agentes públicos e órgãos administrativos.113
O regime jurídico de uma disciplina jurídica autônoma corresponde a um grupo
sistematizado de princípios e regras que lhe dão identidade, os quais o singularizam diante das
demais disciplinas existentes em um determinado sistema legal. O regime jurídico
administrativo está alicerçado sobre alguns princípios (termo usado na conotação exposta
alhures em sua segunda fase evolutiva), os quais lhe são nucleares, os quais lhe apontam
diretrizes basilares. São eles: o do Estado de Direito, o Republicano e o Democrático.114
34. Urge ressaltarmos aquilo que foi esboçado em diversos momentos (reitera-se pela
razão de inúmeros se olvidarem desse valor absoluto e atualíssimo), isto é, que a dignidade da
pessoa humana permeia todo ordenamento jurídico brasileiro (artigo 1º, inciso IV, da
Constituição Federal de 1988), tem validade no regime jurídico administrativo, presente na
consciência ética coletiva global (artigo VI da Declaração Universal dos Direitos Humanos),
como um direito irrenunciável e irrecusável a qualquer pessoa. Ou, nas palavras de Carlos
Roberto Siqueira Castro,
a missão do postulado da dignidade humana, enquanto princípio material de
todos os comandos constitucionais: informar e orientar a interpretação e
aplicação do conjunto sistêmico das regras de Direito, mercê de sua
inexcedível eficácia reitora e corretiva das ações tanto públicas quanto
privadas, em sintonia com o ideal maior da Justiça solidarista e
humanitária.115
Isso é evidente no Direito Administrativo, visto que tal ramo do Direito foi concebido,
originalmente, para defesa do cidadão diante de eventuais abusos do Estado-Polícia, em
França, após a Revolução Francesa em 1789. Tal fato foi muito bem descrito por Maria
113
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 97-98.
Celso Antônio Bandeira de Mello tem opinião parcialmente semelhante – como ficará evidente
posteriormente no texto –, asseverando serem os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e
da indisponibilidade do interesse público, os quais distinguem o regime jurídico administrativo; visão
corroborada por inúmeros doutrinadores administrativistas, dentre os quais está a figura notável de Sílvio Luís
Ferreira da Rocha.
115
Dignidade da pessoa humana: o princípio dos princípios constitucionais. In: PONTES FILHO, Valmir e outro
(Orgs.). Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006. p. 202-203.
53
114
Estorninho,116 em Portugal, e por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello117 e Celso Antônio
Bandeira de Mello.118 Tem-se a errônea impressão desse ramo do Direito ter sido concebido
em favor do poder, com o desiderato de vergar os administrados, quando na verdade é “um
conjunto de limitações aos poderes do Estado ou, muito mais acertadamente, como um
conjunto de deveres da Administração em face dos administrados”.119 Obviamente, não se
está a afirmar que o único objetivo dessa seara jurídica seja a proteção do cidadão frente a
eventuais abusos estatais, visto que a dignidade da pessoa humana obriga a Administração a
proteger outros valores através de prestações positivas. Isso adveio com o Estado Social, ou
do Bem-estar, o qual impeliu a emergência da prestação estatal positiva, guiada pela
igualdade substancial e solidariedade, para garantir a todos, independentemente de raça, cor,
credo, sexo etc., o cumprimento de seus direitos humanos e a redução da desigualdade social,
consoantes também com a dignidade de cada indivíduo.
Entretanto, qual norma singulariza a atividade administrativa?
Princípio Republicano
35. Hodiernamente, o conceito de República foi esvaziado de seu sentido prático.
Quando ressaltamos esse princípio, não o abordamos com esta conotação, mas em seu sentido
original: o clássico.
Demonstramos que o adjetivo “publicus” designava aos jurisconsultos o que pertencia
em comum aos romanos. Por isso, “res publica” é coisa pública ou bem do povo. Nesse
contexto, na República romana, o serviço do povo tinha primazia sobre os deveres e interesses
privados. A função pública era tida como um encargo honroso em benefício do povo.
Em um regime republicano, como o brasileiro,120 há distinção entre interesses
particulares e o bem comum de todos os integrantes da sociedade, com a obrigatoriedade de
este se sobrepor àquele; ou conforme Celso Antônio Bandeira de Mello sintetizou sob o termo
de supremacia do interesse público sobre o privado, cuja essência se traduz assim:
116
ESTORNINHO, Maria João. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p.
23 e s.
117
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. V. I: Introdução. 3. ed.
São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 76 e s.
118
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 38 e s.
119
Ibidem, p. 43.
120
A Carta da República, em seu art. 1º, caput¸ evidencia este dado: “A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito”.
54
Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público.
Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a
prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da
sobrevivência e asseguramento deste último.121
No Brasil, esse princípio foi sempre menosprezado e até hoje é. Já afirmava o frei
Vicente de Salvador sobre os colonizadores e demais habitantes brasileiros: “Donde nasce
também que nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão
cada um do bem particular”,122 ou então de seu grupo, associação, corporação ou partido
político. Basta abrirmos qualquer meio de comunicação de massa – prestem ou não – e
encontraremos diversos exemplos de favorecimento pessoal, corporativo ou classista dos
agentes públicos em geral.
Porém, já acentuava Aristóteles, no início de sua obra A Política, que o ser humano é
gregário, “mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos”, isto é, para
desenvolver-se “nenhum pode bastar a si mesmo”. Em seu terceiro livro, o filósofo explica
que há três formas de se exercer o governo: por um só; por alguns; ou por muitos. A
República é o Estado onde o governo é “aquele em que a multidão governa para a utilidade
pública...”. Será justo apenas quando o governo buscar a felicidade geral.
A essência da propriedade privada, um dos pilares do sistema econômico vigente,
retrata nada mais nada menos do que a vedação de que todos os outros membros de uma
comunidade usem, gozem e possam dispor de um bem, salvo aquele que detém seu
domínio.123 O próprio, evidentemente, é antagônico ao comum. Aliás, bem público –
precipuamente o comum – é manifestamente contrário à apropriação, pois são aqueles
compartilhados em igualdade de condições pelos cidadãos integrantes da sociedade.
121
Op. cit., p. 69.
SALVADOR, frei Vicente do apud COMPARATO, Fábio Konder. Ética..., p. 619.
123
Ao relembrarmos, na esteira do entendimento do mestre Sílvio Luís Ferreira da Rocha, que a dignidade da
pessoa humana é o núcleo do direito privado, fundamento da República Federativa do Brasil e do sistema
internacional de direitos (art. 6º da Declaração Universal dos Direitos Humanos), devemos interpretar todos os
direitos de maneira a se ajustarem a tal preceito. Destarte, apenas se pode considerar propriedade, como direito
fundamental propriamente dito, quando ela visa elementarmente a garantir este status de respeito à pessoa
humana. No restante das hipóteses, trata-se de um mero direito ordinário. Por exemplo, a moradia, direito social
prescrito no art. 6º da Carta da República, engendra a propriedade como um direito fundamental, tendo em vista
que é um dos componentes necessários à sobrevivência digna das pessoas. Por outro lado, aqueles bens
desnecessários a tanto não configuram casos de direitos fundamentais e não devem ser sopesados quando se está
diante de outros valores constitucionais. Isso gera efeitos dos mais variados. À luz dessa interpretação, torna-se
inconcebível que inúmeros cidadãos brasileiros passem fome e vivam na miséria para se sustentar um direito
ordinário, sejam juros da dívida pública, grandes extensões de terra, imóveis destinados à locação, enfim, bens
destinados a satisfazer o lucro propriamente. A finalidade dessa interpretação atende claramente aos objetivos
conferidos pela Constituição Federal de 1988 ao Estado brasileiro, tais como buscar uma sociedade livre, justa e
solidária, e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incisos I e III).
55
122
Com efeito, o espírito do regime republicano é de igualdade entre os cidadãos, os
quais vivem segundo a virtude, não em função de vaidades e honra, como nas aristocracias,
ou do temor, como nos regimes despóticos. Nas palavras de Montesquieu:
O temor dos governos despóticos nasce de si mesmo entre ameaças e
castigos, a honra das monarquias é favorecida pelas paixões e as favorece
por seu turno, mas a virtude política é a renúncia a si mesmo, o que é sempre
muito penoso. Pode-se definir essa virtude como amor das leis e da pátria.
Esse amor, exigindo uma preferência contínua pelo interesse público sobre o
interesse privado, suscita todas as virtudes particulares; elas nada mais são
do que essa preferência.124
É evidente que para despertar esse espírito nos membros da sociedade brasileira exigese educação cívica e política para todos, visto que, caso contrário, dificilmente tal
característica aflorará nos homens e mulheres brasileiros. O art. 3º, inciso II, da Constituição
Federal impõe isso ao Estado, porquanto o desenvolvimento humano, isto é, social, cultural e
político, é um dos elementos do desenvolvimento nacional e mais um direito humano de todos
como bem demonstra o constitucionalista José Afonso da Silva em seu Comentário contextual
à Constituição.125
Portanto, o princípio republicano dirige a atuação estatal à supremacia do bem comum
que se necessário deve sobrepujar o particular, obviamente respeitados os direitos e garantias
individuais. Se isso não fosse assim, a comunidade se dividiria entre ricos e pobres, fortes e
124
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, p. 48.
Devido à qualidade inestimável da passagem, por mais que seja longa, transcrevemo-las em sua íntegra: “O
desenvolvimento nacional constava da Constituição de 1967 como um dos princípios da ordem econômica que
tinha por fim realizar a justiça social (art. 157), e da Constituição de 1969 como um fim a ser realizado pela
ordem econômica juntamente com a justiça social (art. 160). Agora aparece como um dos objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil. Têm importância interpretativa essas mudanças de posição. Nas Constituições
anteriores ligava-se à ordem econômica, o que dava uma visão estreita do desenvolvimento como
desenvolvimento econômico. Como um dos objetivos fundamentais da República, alarga-se seu sentido para
desenvolvimento nacional em todas as dimensões. Mas as relações contextuais mostram que o desenvolvimento
econômico e social, sujeito a planos nacionais e regionais (art. 21, IX), está na base do desenvolvimento
nacional, objeto do art. 3º, II. Não se quer um crescimento econômico, sem justiça social – pois, faltando esta, o
desenvolvimento nada mais é do que simples noção quantitativa, como constante aumento do produto nacional,
como se deu no regime anterior, que elevou o país à oitava potência econômica do mundo, ao mesmo tempo em
que o desenvolvimento social foi mínimo e a miséria se ampliou. Isso é simples crescimento, não
desenvolvimento; pois incremento econômico sem participação do povo no seu resultado, sem mudanças, não
caracteriza desenvolvimento, pois ‘o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político
abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com
base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí
resultantes’. Por isso é que a Constituição quer um desenvolvimento nacional equilibrado (art. 174, § 1º). É nesse
sentido também que se fala, hoje, num direito ao desenvolvimento como forma de direito fundamental de terceira
geração voltado para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, ‘direito humano inalienável em virtude do quê
toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social,
cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
possam plenamente ser realizados’” (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual da Constituição. 3. ed.
de acordo com a Emenda Constitucional 53, de 19/12/2006. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 47).
56
125
fracos... Por conseguinte, o combate negativo e positivo da desigualdade social está
intimamente relacionado à função social da atuação administrativa. Ou, nas palavras de
Comparato, “o povo é resultado nunca acabado de uma política republicana de combate às
desigualdades e preservação das legítimas diferenças biológicas e culturais”.126
O princípio republicano decorre do princípio da igualdade cidadã e, por isso, reflete
categoricamente a supremacia do interesse comum de todos os membros da coletividade sobre
os interesses de particulares, de famílias, de corporações, de classes sociais, ou, inclusive, do
próprio Estado (interesses públicos secundários, v.g., superávit primário, aumento de receitas
tributárias ou redução de despesas salariais enquanto pessoa jurídica de direito público,
flagrantemente avesso ao desenvolvimento nacional etc.).
É impossível não se verificar a incompatibilidade entre o princípio republicano,
norteador da atividade pública, e o capitalismo, sistema econômico vigente. Ora, esse sistema
busca através da propriedade privada (modelo de organização social), precipuamente, o
interesse próprio de cada agente econômico, isto é, o lucro a qualquer custo, em oposição ao
respeito do bem comum.
A competição em todos os setores da vida social, da infância à terceira idade,
engendrada por tal sistema econômico, moldou a mentalidade social (entendida segundo visão
de Émile Durkhein) brasileira e mundial ao longo de sua evolução, gerou um acirramento das
desigualdades existentes no seio social e criou novas. São inexistentes, então, essas divisões
impostas por esse sistema entre Estado e sociedade civil, esfera econômica e social.
Se o princípio republicano exige o contínuo desenvolvimento ético da sociedade
(conforme os direitos humanos, os quais guiam como mandamentos de otimização o Estado, a
moldar a atividade da Administração Pública, em seu interior e em suas relações externas, em
busca do bem comum), então, existe incompatibilidade com tal princípio nas seguintes
hipóteses apontadas: a) todo e qualquer privilégio pessoal e corporativo de agentes públicos;
b) a apropriação ou o controle por particular de bens ou serviços públicos que, pela sua
natureza, são comuns a todos os integrantes do corpo social, cujo dever seria o de atender a
todos igualmente; e c) a não publicidade integral dos atos oficiais. Isso se justifica pelo caráter
educativo e ético que tais medidas teriam no seio social. Aliás, é o que preceitua de maneira
incontestável o art. 37, caput da Carta da República (princípios da imparcialidade, moralidade
e publicidade).
126
Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 621.
57
Esse processo de apropriação do público pelo privado foi perfeitamente descrito por
Karl Marx, para quem o caráter anticomunitário da apropriação privada de bens, uma
realidade no sistema capitalista, leva à inversão da relação pessoa-coisa ou reificação, ou seja,
enquanto o capital é personificado e elevado à dignidade de direitos (como vemos em
algumas teses), o trabalhador é suprimido à situação de coisa, insumo de produção ou
consumidor, nas sociedades de massas hodiernamente.127
Nesse sentido, o princípio da função social dos contratos é um mandamento de
otimização do sistema contratual. Quando incidente em negócios jurídicos celebrados pela
Administração Pública, obriga o integral respeito aos direitos humanos sociais, econômicos,
culturais e ambientais, todos corolários da dignidade da pessoa humana. Por conseguinte,
dirige qualquer negócio administrativo à eliminação de desigualdades econômico-sócioregionais – fim elencado no art. 3º da Carta da República –, bem como impede a sua criação,
em benefício da atual e das futuras gerações.
O princípio da função social dos contratos exige igualmente de negócios jurídicos
administrativos sua regulação ética em proveito da coletividade em todas as hipóteses.
127
O grande economista nos chama a atenção à mercadoria. Inicialmente, algo trivial. “O caráter misterioso que
o produto do trabalho apresenta, ao assumir a forma de mercadoria, donde provém? Dessa própria forma, claro.
A igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob a forma de igualdade de produtos do trabalho como
valôres; a medida, por meio da duração, do dispêndio da fôrça humana de trabalho toma a forma de quantidade
de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se afirma o caráter
social dos seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre os produtos do trabalho. A mercadoria é
misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as
como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a
relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social
existente, à margem dêles, entre os produtos do seu trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do
trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. A
impressão luminosa de uma coisa sôbre o nervo ótico não se apresenta como sensação subjetiva dêsse nervo,
mas como forma sensível de uma coisa existente fora do órgão da visão. Mas, aí, a luz se projeta realmente de
uma coisa, o objeto externo, para outra, o olho. Há uma relação física entre coisas físicas. Mas, a forma
mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com
a natureza física dêsses produtos nem com as relações materiais dela decorrente. Uma relação social definida,
estabelecida entre os homens, assume à forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um
símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de
vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os sêres humanos. É o que ocorre com os
produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos
produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias. Êsse
fetichismo do mundo das mercadorias decorre conforme demonstra a análise precedente, do caráter social
próprio do trabalho que produz mercadorias. Objetos úteis se tornam mercadorias, por serem simplesmente
produtos de trabalhos privados, independentes uns dos outros. O conjunto dêsses trabalhos particulares forma a
totalidade do trabalho social. Processando-se os contactos sociais entre os produtores, por intermédio da troca de
seus produtos de trabalho, só dentro dêsse intercâmbio se patenteiam as características especificamente sociais
de seus trabalhos privados. Em outras palavras, os trabalhos privados atuam como partes componentes do
conjunto do trabalho social, apenas através das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e,
por meio destes, entre produtores. Por isso, para os últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados
aparecem de acordo com o que realmente são, como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre
coisas, e não como relações sociais diretas entre indivíduos e seus trabalhos”. (MARX, Karl. O capital: crítica
da economia política. Livro 1 – O Processo de produção do capital, vol. I. Trad. Reginaldo Sant’Anna.12ª ed.,
Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A., 1988, p. 81-82).
58
Alguns poderiam suscitar pessimismo perante as palavras sobreditas, falta de
pragmatismo. Porém, não podemos olvidar que a mentalidade coletiva foi moldada pelo
capitalismo durante séculos, seja na vida no seio social ou nos meios de comunicação de
massa (através de filmes hollywoodianos, emissoras aliadas a ditaduras militares), em que em
tudo há um preço, inclusive na dignidade do próximo, mesmo que a solidariedade contenha
status de axioma do sistema (art. 3º, inc. I, da Magna Carta). Sua mudança só será possível, ao
longo do tempo, através de educação cívica.
Princípio do Estado de Direito
36. Estado de Direito ou Rechtsstaat é uma expressão que surge na Alemanha no
início do século XIX. Inicialmente caracterizado por meios abstratos, como “Estado limitado
e nome da autodeterminação da pessoa”. Na Inglaterra, antes dos germânicos, manifestou-se
sob a expressão The Rule of Law, advinda com a Magna Charta de 1215. Nos Estados
Unidos, sob a denominação de The Reign of Law, que se refere à ideia de um Estado
Constitucional que estava always under the law. Esse Estado tem uma lei superior em que são
estabelecidas questões essenciais do governo e suas limitações. Dentro dessas questões
estavam os direitos e liberdades dos cidadãos, inerentes à Lei Maior americana, plasmada por
escrito. Desde logo, o governo é subordinado às leis, entendidas como um esquema regulativo
consistente e coerente unido por princípios de justiça e de direito. Apenas o governo que
respeitar, em suas ações, interpretações ou resoluções, tais princípios e regras de direito, de
natureza duradoura e superior, será aceito e justificado, tal qual se lê naquela Constituição
norte-americana. Na França, tais ideias foram expressas, mutatis mutandis, sob a terminologia
L’État légal.128
Nesse contexto, figura-se na essência desse princípio a concepção de que todo poder,
seja público ou privado, inclusive o soberano, deve ser limitado e controlado. Caracteriza-se,
diante disso, em seu espírito a ideia de que o poder não é um privilégio, mas é enfaticamente
um serviço ao povo.
Como bem esclarece Aristóteles,
querer que o espírito comande equivale a querer que o comando pertença a
Deus ou às leis. Entregá-lo ao homem é associá-lo ao animal irracional. Com
efeito, a paixão transforma todos os homens em irracionais. A animosidade,
principalmente, torna cegos os altos funcionários, até mesmo os mais
128
CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 93-101.
59
íntegros. A lei, pelo contrário, é o espírito desembaraçado de qualquer
paixão”.129
Mais à frente, esclarece que não pode haver Estado que seja governado
adequadamente senão quando governado de acordo com o texto legal, por ser um guia
desapaixonado e seguro. Ele justifica tal afirmação pelo fato de um homem valer menos do
que uma multidão, que julga melhor do que um particular, visto que é mais árduo corrompê-la
ou assisti-la tomada pela cólera.
Daí por que Celso Antônio Bandeira de Mello, bem como Renato Alessi, sintetiza o
princípio do Estado de Direito como uma das vigas mestras do regime jurídicoadministrativo, pois a matéria em si é uma consequência dele. Ora, é a consagração da
submissão do Estado à lei e ao Direito, isto é, “da ideia de que a Administração Pública só
pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é
atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à
lei”.130
Percebe-se, claramente, a contraposição com exacerbações personalistas de
governantes. Mas por quê? Barão de Montesquieu esclarece:
A democracia e a aristocracia não são, por sua natureza, Estados livres. É
tão-só nos governos moderados que se encontra a liberdade política.
Entretanto, ela nem sempre existe nos Estados moderados; porém, a
experiência eterna nos mostra que todo homem que tem poder é sempre
tentado a abusar dele; e assim irá seguindo, até que encontre limites. E –
quem o diria! – até a própria virtude tem necessidade de limites”.131
129
A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 153.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 100.
131
Op. cit. p. 164. De acordo com Fábio Konder Comparato, a paixão pelo poder “é, seguramente, a maior de
todas as paixões, mais potente que a paixão erótica, religiosa ou argentária. É uma força capaz de superar as
limitações biológicas e, até mesmo, de suplantar o amor materno, como o gênio de Shakespeare bem intuiu” em
Macbeth (Reflexões desabusadas sobre o abuso do poder político. In: PONTES FILHO, Valmir e outro (Orgs.).
Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006. p. 317). Após traçar um histórico da evolução do Estado brasileiro, tratando de situações e
normas onde se sucediam abusos políticos pela oligarquia deste país, termina o artigo por, categoricamente,
demonstrar o quão imperiais ainda são os poderes do Executivo de nosso Estado: “Além de apreciáveis poderes
administrativos – de nomear ou contratar funcionários, de liberar verbas orçamentárias, de usar as instituições
financeiras oficiais para direcionar o crédito estatal para as empresas ou setores que bem entender –, o Presidente
da República detém, em suas mãos, o poder legislativo, pela via das medidas provisórias, como, até mesmo, o
poder de reforma constitucional. Até fins de 2003 – ou seja, em 15 anos de vigência – a Constituição de 1988 foi
remendada 46 vezes – o que dá uma apreciável média de mais de três mudanças por ano – sempre por iniciativa
direta, ou com o consentimento expresso, do Chefe do Poder Executivo. (...) Tudo isso sem se falar na
capacidade, ainda existente, dos chefes do Executivo, na União e nos Estados, para avassalar o Judiciário e o
Ministério Público” (Op. cit., p. 319-323).
60
130
Portanto, a Administração Pública deve se submeter aos direitos humanos e princípios
gerais do Direito, à Constituição e às leis promulgadas pelo Poder Legislativo, com fim de se
evitar abusos, tais como, por exemplo: favoritismos, perseguições ou desmandos. Almeja-se
com tais normas gerais, impessoais e abstratas garantir que a atuação do Executivo nada mais
seja que a concretização da vontade geral.132
Com efeito, ao particular o Princípio do Estado de Direito se manifesta na existência
de dever jurídico de fazer ou deixar de fazer alguma coisa somente em virtude de lei (art. 5º,
inciso II, da Constituição Federal); à Administração Pública, pelo contrário, só é permitido
fazer alguma coisa ou buscar algum fim em virtude daquilo que a lei ou o Direito
determinarem (art. 37, caput da Carta Magna).
Com efeito, importante ressalva se faz obrigatória nesse ponto, feita pelo
constitucionalista português Jorge Miranda, para quem
Estado de Direito não significa, porém, mera observância formal da
legalidade instituída pelo próprio poder. Pois, se o poder tem de cumprir as
leis que cria para que haja a segurança indispensável à vida coletiva, apesar
disso ele sempre pode substituí-las e desaparecem então as garantias que
eventualmente tenha outorgado.
Corretamente, para esse autor
Estado de Direito significa observância de limites que transcendem o Estado:
limitação do poder pelos direitos fundamentais e inalienáveis do homem,
inscritos na consciência coletiva e consagrados na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, aprovada pelas Nações Unidas em 1948.133
Tal advertência necessita de complementação, dada magistralmente por Dalmo de
Abreu Dallari, para quem não basta que as Constituições atuais contenham esse rol de direitos
humanos. É necessário mais do que isso. Esses direitos precisam estar concretamente ao
alcance do povo. É indispensável a existência de meios eficazes de garanti-los
permanentemente:
Uma Constituição que consagre o Estado de Direito não pode admitir que
qualquer governante ou órgão do Estado possa agir arbitrariamente, fora dos
limites constitucionais, sob pretexto de conveniência pública ou de
necessidade e urgência que justifiquem a prática de atos arbitrários.134
132
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ibidem.
MIRANDA, Jorge. Constituição e Democracia. Lisboa: Petrony, 1976. p. 31.
134
DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de Direito e direitos fundamentais. In: PONTES FILHO, Valmir e outro
(Orgs.), Estudos de direito público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006. p. 215-223.
61
133
Tal princípio deve ser garantido, essencialmente, pelo Poder Judiciário, de acordo com
art. 5º, inciso XXXV, da Carta da República, pois qualquer lesão ou ameaça de lesão passará
pelo seu crivo, mesmo que decorra da Administração Pública.135
37. De forma sucinta, sem entrar demasiadamente em detalhes, por não ser objeto
deste trabalho, afirma-se: sempre poderá suceder controle jurisdicional diante de atos
administrativos vinculados. Entretanto, onde houver exercício de atividade discricionária, o
controle jurisdicional é mais complexo, visto que não há o controle minucioso da lei perante o
caso concreto, devido a conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais etc., ou, então,
em situações cuja própria norma deixou hipótese de escolha ao administrador no caso
concreto e, portanto, confiou-lhe a escolha da opção mais benéfica ao interesse público. José
Afonso da Silva explica que:
O problema da atividade discricionária se põe aí, por que, exatamente, por
não ser regulada em lei, refoge ao controle de legalidade, nos limites da
discricionariedade, claro, ainda que o Judiciário venha ampliando esse
controle, em observância daquelas regras antes não jurídicas, mas agora
constitucionalizadas
(moralidade,
probidade,
finalidade
pública,
impessoalidade etc.), a que a Administração deve adequar-se para poder dar
às suas decisões caráter de razoabilidade, de logicidade, de congruência,
faltando o qual as decisões se manifestam viciadas de excesso de poder,
saindo, por assim dizer, do campo da discricionariedade para ingressar no
limiar da arbitrariedade.136
Princípio democrático
38. A atividade administrativa, por exercer poder, sofre influências específicas do
princípio democrático, principalmente com o advento da Constituição Federal de 1988, que
logo em seu art. 1º, caput, expressa ser a República Federativa do Brasil um Estado
Democrático de Direito, não apenas Estado de Direito, mas Democrático. Disso segue que
“quando, na República, o povo em conjunto possui o poder soberano, trata-se de uma
democracia”.137
135
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 82.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 26. ed. rev. e atual. nos termos da
Reforma Constitucional até a Emenda Constitucional n. 48, de 10/8/2005. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
p. 428.
137
MONTESQUIEU. Op. cit., p. 23. Para Hans Kelsen, v.g., a essência da democracia estaria na ideia de
liberdade, “concebida como autodeterminação política do cidadão, como participação do próprio cidadão na
formação da vontade diretiva do Estado” (KELSEN, Hans. A Democracia. Trad. Ivone Castilho Benedetti,
Jefferson Luiz Camargo, Marcelo Brandão Cipolla e Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 28).
62
136
Celso Antônio Bandeira de Mello adiciona certas características aferíveis por outros
ângulos desse princípio:
para além das controvérsias suscitáveis pelo conceito de democracia, dada a
fluidez da noção, seria aceitável convir em que esta expressão designa um
sistema político assentado nos postulados da liberdade e da igualdade de
todos os homens e volvido a assegurar que o governo das sociedades seja
fruto de deliberações (respeitosa destes valores) tomadas, direta ou
indiretamente, pelo conjunto de seus membros, havidos como os titulares
últimos da soberania.138 (grifo nosso)
Tal princípio, destarte, funda-se na diretriz de que o poder político pertence ao povo
(art. 1º, parágrafo único, da Carta da República). Os governantes são apenas mandatários.
Deveriam, com base nessa norma, prestar contas ao mandante (o povo) de seus atos e
omissões, bem como sujeitar-se a responsabilidade pessoal pelos desmandos praticados, como
no contrato de mandato na seara cível. Assim, o povo deteria efetivamente o poder de controle
da ação dos órgãos públicos. Estes – tal qual se verá adiante mais detidamente – devem
resguardar a confiança popular cujo poder o escrutínio popular lhes conferiu (boa-fé dos
cidadãos). No entanto, nas “democracias modernas”, é aferível uma índole diferente, em que
os governantes tendem a considerar o Poder como bem próprio, o que torna a representação
política em uma encenação teatral diária.139
O Ministro Carlos Ayres Britto expõe, mutatis mutandis, isso em sua obra Teoria da
Constituição e acrescenta ainda que tais decisões tomadas pelo povo têm caráter imperativo,
pois simbolizam decisões coletivas que constroem a história político-jurídica de uma
sociedade, quando esta toma as rédeas de seu destino.140
39. Contudo, quais seriam os efeitos do princípio democrático no Direito
Administrativo, que só em 1988 abdicou de sua unilateralidade no Brasil?
Primeiramente, como foi esboçado nas linhas acima, à Administração Pública só é
permitido atuar quando houver lei que lhe determine isso (art. 37, caput, da Carta da
República). Nem um cidadão ou ente estatal sobrepuja a obrigatoriedade legal cogente. Suas
138
MELLO, Celso Antônio Bandeira de apud MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo:
princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. 4. ed. rev., atual. e aum. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p.
81-82.
139
Há inúmeras propostas para melhorarmos a democracia brasileira. Uma delas é a de Fábio Konder
Comparato, ensinada na Escola de Governo, da qual é fundador, na Universidade de São Paulo. Dentre as
propostas, algumas estão dispostas no artigo já citado neste trabalho, qual seja: Reflexões desabusadas sobre o
abuso do poder político. In: PONTES FILHO, Valmir e outro (Orgs.). Estudos de Direito Público em
homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 323-332.
140
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro, 2006. p. 183.
63
finalidades estão plasmadas igualmente no sistema normativo de um país, bem como nos
direitos humanos e na consciência ética coletiva.
Entretanto, o que é a lei? É o veículo pelo qual o Poder Legislativo emana normas
jurídicas aplicáveis à sociedade. Essa lei necessita ser aprovada em processo legislativo, em
que aqueles “teoricamente” representantes do povo (vereadores, deputados e senadores) a
proporão, a discutirão, a emendarão e talvez a aprovarão, conforme as necessidades coletivas,
respeitados os alicerces arquitetados pelo constituinte originário, bem como os direitos
humanos e a consciência ética coletiva. Essa é a forma indireta na qual se colhe a vontade
popular. Porém, há também a maneira direta de o povo propor leis ou aprová-las, mediante
iniciativa popular, plebiscito e referendo.141
Diante disso, essa lei contém, em tese, a vontade popular, à qual a Administração está
adstrita e dela não se pode desviar (princípios da legalidade e finalidade).
No entanto, para que a norma abstrata e geral produzida pelo Poder Legislativo se
torne, em concreto, um ato administrativo, ou seja, o veículo usado pela Administração para
editar normas jurídicas concretas, é necessário um processo administrativo anterior.142 É por
141
Na esteira de José Afonso da Silva: “Por processo legislativo entende-se o conjunto de atos (iniciativa,
emenda, votação, sanção, veto) realizados pelos órgãos legislativos visando à formação das leis constitucionais,
complementares, leis ordinárias, resoluções e decretos legislativos. Tem, pois, por objeto, nos termos do art. 59,
a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas
provisórias, decretos legislativos e resoluções”. Por outras palavras, do mesmo autor: “Processo legislativo é um
conjunto de atos preordenados visando à criação de normas de Direito. Esses atos são: (a) iniciativa legislativa;
(b) emendas; (c) votação; (d) sanção e veto; (e) promulgação e publicação” (Op. cit., p. 524-525).
142
Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que “no procedimento ou processo se estrutura, se compõe, se
canaliza e a final se estampa a “vontade” administrativa. Evidentemente, existe sempre um modus operandi para
chegar-se a um ato administrativo final” (Op. cit., p. 488). Adolf Merkel, em sua obra Teoría General del
Derecho Administrativo, aduz que “a teoria processual tradicional considerava o ‘processo’ como propriedade
da Justiça, identificando-o com o procedimento judicial. (...) não é sustentável esta redução, porque o ‘processo’,
por sua natureza, pode dar-se em todas as funções estatais. (...) O caminho que se percorre a chegar a um ato
constitui a aplicação de uma norma jurídica que determina, em maior ou menor grau, não apenas a meta, mas
também o próprio caminho, o qual, pelo objeto de sua normação, apresenta-se-nos como norma processual”
(Apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de). Para Egon Bockmann Moreira, “o processo não é mais visto na
condição de acanhado ‘adjetivo’ do direito material; tampouco realidade demarcada pelos termos ‘civil’ e
‘penal’. Toda atividade do Estado que desenvolva essa espécie de relação jurídica com particulares, desde que
não pontual, subsume-se ao conceito de processo”. Explica o autor que “o conceito de relação jurídica é o de
vínculo entre pessoas, regulado pelo Direito. A relação pode ser estática (relação jurídica material) ou dinâmica
(relação jurídica processual). Assim, caso essa ligação desdobre-se no tempo, através da prática de série lógica e
autônoma de atos – requisito preliminar ao ato final visado pelos sujeitos da relação – trata-se de relação
processual. Tal relação continuada é de direito público, pois não tem como objeto imediato o direito material,
mas normas que regulam a sequência de atos cuja prática é direito e/ou dever das pessoas participantes do
processo. Mais do que isso: é de direito público porque envolve exercício de poder público e sua regulação
normativa, bem como direito-garantia de o cidadão participar da formação das decisões públicas. (...) Um dos
sujeitos exerce poder (dever-poder), oriundo de mandamentos normativos, seja ele membro do Poder Judiciário,
seja agente da Administração” (Processo administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. 4. ed.
atual., rev. e aum. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 42-64). Mônica Martins Toscano Simões assevera
que “o entendimento mais correto parece ser aquele segundo o qual a função administrativa realiza-se mediante
processo, haja ou não contrariedade. Já, o procedimento seria a forma específica de manifestação do processo,
isto é, rito processual. (...) entende-se por processo administrativo o conjunto de atos e fatos jurídicos que,
64
essa etapa que o princípio democrático, igualmente, inocula seus efeitos no campo jurídicoadministrativo.
O princípio Democrático impõe à Administração uma adaptação da realidade sine qua
non da participação cidadã local ao sistema normativo, que se figura como um direito do
administrado na formação de sua “vontade”, na medida em que essa participação é uma
expressão da autonomia do homem.143
Jean-Jacques Rousseau frisava tal premissa no fato de que com o contrato social houve
a perda da liberdade natural, o que gerou em contrapartida a liberdade civil e política. Essa é a
razão pela qual esse autor francês sustentava ser a melhor forma de Estado aquela que
satisfaça a condição de cidadania do autogovernante, cuja participação do homem na máquina
estatal é direta.144
Nos Estados Unidos da América, na incipiente democracia recém-moldada lá, há
centenas de anos, Thomas Jefferson já enaltecia, equivalentemente, o princípio democrático
em processos de concretização administrativa, in verbis:
Pensamos, na América, ser necessário introduzir o povo em todo
departamento de governo enquanto tenha capacidade de exercer-lhe as
observando uma sucessão ordenada, encaminha-se à produção de determinado ato administrativo, com vistas
sempre à satisfação do interesse público” (O processo administrativo e a invalidação dos atos viciados. São
Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 35-38).
143
É o que os professores da Universidade de Salamanca, na Espanha, Zulima Sánchez Sánchez, e do Rio
Grande do Norte, David de Medeiros Leite concluem, em artigo intitulado “O direito de participação e sua
relevância para a democracia, Administração Pública e cidadania”. Essa guinada vem diante de críticas ao
sistema de partidos, devido ao problema da escassa representatividade dos partidos e da distância entre
representantes e representados – é grande o número de autores que encontram o problema nos representantes.
Esperava-se deles altruísmo, perseguição do interesse geral e do bem-estar alheio, porém, a conduta deles em
geral causa suspeita. Nesse sentido, a falta de mecanismos de controle entra no rol dos motivos da crise da
representatividade. Por suas palavras: “a participação dos cidadãos nas discussões que lhes afetam, como o
direito a serem ouvidos nos processos de decisão e elaboração de normas ou o direito a sugerir a regulação de
um aspecto concreto (direito de petição), estimula a confiança nos representantes por parte dos representados.
Esse processo de controle externo da política mediante participação tem sido posto em dúvida por autores como
Laporta, dada a impossibilidade de que a dita teoria seja levada à prática. (...) A importância que essas formas
coletivas de participação vêm ganhando nos últimos anos adverte que não se pode prescindir das mesmas na hora
de estudar o fenômeno participativo. As formas de participação coletiva suscitam atualmente a prova de que a
crise da Democracia Representativa pode ser superada mediante a democratização das instituições e através da
interação entre a Administração Pública e a sociedade” (Op. cit.. In: PAULA, Marco Aurélio Borges de;
MAGRINI, Rachel de Paula (Orgs.). Estudos de Direito Público. Campo Grande: Centro de pesquisas e estudos
jurídicos de Mato Grosso do Sul, 2009. p. 100-105).
144
Nas próprias palavras do autor franco: “Há comumente grande diferença entre a vontade de todos e a vontade
geral; esta só fita o interesse comum; aquela só vê o interesse privado, e não é mais que uma soma de vontades
particulares; porém, quando se tira dessas vontades os mais e os menos, que mutuamente se destroem, resta por
soma das diferenças a vontade geral. (...) Para que haja pois a exata declaração da vontade geral, importa não
haver no Estado sociedade parcial e que cada cidadão manifeste o seu parecer. Tal foi a única e sublime
instituição do famoso Licurgo. Se há sociedades parciais, cumpre multiplicá-las e impedir sua desigualdade,
como o fizeram Sólon, Numa e Sérvio. São essas as mais eficazes precauções, para que a vontade geral seja
sempre clara, e não se iluda o povo” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito
político. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 38-39).
65
funções e que este é o único meio de assegurar uma longa, contínua e
honesta administração dos poderes. (...) A verdade é que o povo,
especialmente quando moderadamente instruído, é o único seguro, porque o
único honesto, depositário dos direitos públicos, e deve ser, portanto,
introduzido na administração destes em todas as funções em que for
eficiente. Errarão às vezes, e acidentalmente, mas jamais deliberadamente,
com o propósito sistemático e constante de derrubar os livres princípios de
governo.145 (grifo nosso)
Gradativamente, o administrado tem sua participação ampliada no iter preparatório de
decisões que possam afetá-lo no processo administrativo, o que o torna um instrumento
democrático, muito embora a participação dos interessados ainda não tenha efeitos
vinculantes. Isso traz legitimidade popular ao ato administrativo e aos negócios jurídicoadminstrativos.
No âmbito internacional, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,
ratificada pelo Decreto Legislativo n. 348, de 18 de maio de 2005, e promulgada pelo Decreto
Presidencial n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006, no Capítulo referente à participação da
sociedade, em seu artigo 13, demonstra a necessidade de se otimizar tal princípio na esfera
administrativa como instrumento de combate à corrupção:
1. Cada Estado Parte adotará medidas adequadas, no limite de suas
possibilidades e de conformidade com os princípios fundamentais de sua
legislação interna, para fomentar a participação ativa de pessoas e grupos
que não pertençam ao setor público, como a sociedade civil, as organizações
não governamentais e as organizações com base na comunidade, na
prevenção e na luta contra a corrupção, e para sensibilizar a opinião pública
a respeito à existência, às causas e à gravidade da corrupção, assim como a
ameaça que esta representa. Essa participação deveria esforçar-se com
medidas como as seguintes: a) aumentar a transparência e promover a
contribuição da cidadania aos processos de adoção de decisões; b) garantir o
acesso eficaz do público à informação...
2.2. Atividades administrativas
40. As atividades, cujo encargo a Administração possui, podem ser prestadas direta ou
indiretamente. Esta sucede quando se transfere aos particulares o exercício de certas
atividades, ou na hipótese de se criar outras entidades para que as realizem. Para isso, algumas
terão personalidade jurídica de Direito Privado e outras de Direito Público. É através delas
que o Estado descentraliza as supracitadas atividades. Por outro lado, quando a prestação é
145
JEFFERSON, Thomas. Participação do povo em todos os ramos do governo. In: Jefferson, Federalistas,
Paine, Tocqueville. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 31-34.
66
direta (centralizada), há a repartição em unidades – denominadas de órgãos146 – de parcelas de
atribuições, isto é, competências públicas.147
Delimitada por Sílvio Luís Ferreira da Rocha,
a atividade administrativa é uma atividade teleológica. Caracteriza-se pelo
conjunto de atos e procedimentos realizados pela Administração Pública
com vistas à satisfação de necessidades coletivas. O alcance dessas
finalidades pode ser feito de modo direto e imediato – casos em que o agir da
Administração produz e alcança o fim almejado – ou de modo indireto e
mediato. Nesse último modo a atividade administrativa manifesta-se por
meio de fatos, atos e procedimentos que, em si mesmos, não tendem a obter
a satisfação das necessidades coletivas; estas são satisfeitas pela
Administração de maneira indireta e mediata mediante a promoção de certas
atividades dos particulares. A esta atividade administrativa denomina-se
fomento.148
Dessa maneira, a atividade ou função administrativa é a gestão, nos termos do Direito
e da moralidade administrativa, de bens, interesses e serviços públicos. Portanto, torna-se
evidente que essa atividade estatal não concede poderes para dispor, onerar, destruir ou
renunciar tais bens, interesses e serviços, mas unicamente guardá-los, conservá-los e
aprimorá-los. Quanto àqueles outros, apenas serão possíveis mediante aprovação legislativa
ou popular, como em alguns países mais democráticos que “a pátria amada, Brasil”.149
41. O termo descentralização administrativa delimita a transferência de uma atividade
própria da Administração Pública ou, mais especificamente, de um serviço público. No
entanto, se a atividade exercida pelo Estado não for definida como serviço público
legalmente, não se tratará de descentralização propriamente. É o caso das atividades
econômicas assumidas pelo Estado, como a hipótese suscitada no art. 173 da Constituição
Federal, com a criação de empresa estatal com o fim de cumprir uma atividade a título de
146
Órgãos não têm personalidade jurídica. Então, não podem ser sujeitos de direitos e obrigações. Não passam
de repartições internas criadas na intimidade de pessoas jurídicas de direito público, isto é, plexo de
competências públicas. Sintetizam vários círculos de atribuições do Estado, necessitando de agentes estatais para
concretizá-las no mundo real. Ora, o querer e o agir dos órgãos componentes estatais exprimem-se através do
querer e agir de agentes. Isto é que é imputado ao Estado. Sendo, então, os agentes, integrados nessas unidades
de plexos de competência (órgãos), que representam o Estado quando este se relaciona com outras pessoas. Isso
esta extremamente bem demonstrado e elucidado no Curso de Direito Administrativo do doutrinador Celso
Antônio Bandeira de Mello, em seu Capítulo III.
147
Nas palavras mais sapientes de Celso Antônio Bandeira de Mello, é “círculo compreensivo de um plexo de
deveres públicos a serem satisfeitos mediante o exercício de correlatos e demarcados poderes instrumentais,
legalmente conferidos para a satisfação de interesses públicos” (Op. cit., p. 144).
148
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 18.
149
GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 17. ed., atualizada por Fabrício Motta. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 107-108.
67
intervenção no domínio econômico. Isso porque, nesses casos o Estado sai de sua órbita
própria de ação para entrar no âmbito privado.150
Maria Sylvia Zanella Di Pietro utiliza o vocábulo parceria com o fim de designar todas
as formas de sociedade, em que não há a criação de uma nova personalidade jurídica,
organizadas entre setores públicos e privados, para a consecução do interesse público. A
natureza econômica não é relevante para a caracterização de parceria, bem como a ideia de
lucro pelo particular também não é, porquanto ela pode ocorrer na área social com entidades
privadas sem fins lucrativos.151
Quando ocorre a mudança do Estado Liberal para Social, como já aventado
anteriormente, as funções estatais “engordaram”. Ganha importância a função promocional e
distributiva, que galgam mesmo status da repressiva, típica da época anterior, do Estado
Liberal.152
2.3. Negócio jurídico administrativo
42. Cumpre-nos, antes de adentrarmos no tema propriamente dito, esclarecer o
significado de negócio jurídico administrativo adotado.
150
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração: concessão, permissão, franquia,
terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 43-44. Celso Antônio
Bandeira de Mello avisa: “O segundo elemento, necessário à caracterização da descentralização administrativa,
é, obviamente, que a atividade descentralizada seja administrativa, própria da Administração, pertinente a ela,
típica do Poder Público. Para caracterizar esse segundo elemento, é necessária uma pequena digressão. Como é
sabido, o Estado tanto pode agir com capacidade de direito público como com capacidade de direito privado. Em
outras palavras: o Estado tanto pratica atos de direito público como atos de direito privado. Por isso mesmo, nem
todos os atos praticados pelo corpo orgânico da Administração (Executivo) são qualificados como atos
administrativos, mas tão-só aqueles tidos como de direito público, portanto, típicos do Estado, expressivos de sua
função administrativa. Daí se segue, conseqüentemente, e de acordo com exigência de caráter lógico, que só há
descentralização administrativa quando a atividade descentralizada reproduza tais caracteres. Se a atividade ou
serviço não se qualifica como administrativa, não há descentralização administrativa. Outrossim, como só tem
sentido o falar-se em descentralização quando o objeto a ser descentralizado compete ao centro, só em face de
atividades públicas e administrativas, que são inerentes ao Estado, é que se coloca o problema. Logo, é
despropositado cogitar de descentralização administrativa quando se trata de atividade de direito privado – ainda
que desempenhada por uma pessoa governamental” (Prestação de serviços públicos e administração indireta.
2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 10-11).
151
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração: concessão, permissão, franquia,
terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 22-23.
152
Norberto Bobbio aclara “quem se coloca o problema da função do direito em termos de função repressiva ou
promocional, observa o meio pelo qual o direito opera...(...) Para julgar se o direito tem função repressiva ou
promocional basta levar em consideração o remédio” (A análise funcional do direito: tendências e problemas. In:
Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito... p. 81-113). Para o autor, ao citar J. F. Glastra van
Loon, função distributiva é “a função pela qual aqueles que dispõem do instrumento jurídico conferem aos
membros do grupo social, sejam eles indivíduos, ou grupos de interesse, os recursos econômicos e não
econômicos de que dispõem” (Op.cit., p. 95). Quanto à função promocional, trata-se “de uma função de
estímulo, de provimento, de provocação da conduta dos indivíduos e dos grupos, que é a antítese exata da função
protetora ou apenas repressora” (Op. cit., p. 100-101).
68
Inicialmente, fato jurídico é um fato material (acontecimento ou evento) ao qual as
normas jurídicas atribuem o efeito de criar, extinguir ou modificar relações jurídicas. Fatos
materiais que não produzem efeitos jurídicos são irrelevantes para o Direito. Contudo, um fato
material da natureza pode produzi-los, como uma tempestade violentíssima que destrói
automóvel coberto por contrato de seguro contra acidentes naturais. Tais fatos podem decorrer
de atividade humana ou de fatos naturais. Fatos advindos da vontade humana, em regra,
produzem efeitos jurídicos desejados ou não pelo indivíduo (fatos jurídicos voluntários,
compra, venda, locação, v.g., ou involuntários, tal como morte, nascimento etc.).153
43. Atualmente regulado pelo art. 104 e seguintes do Código Civil de 2002, negócio
jurídico é o fato humano em que há a manifestação de intenção do sujeito, com o fim de
produzir resultado previsto no ordenamento jurídico. Ou seja, dentre os fatos jurídicos, há
aqueles que se manifestam por uma declaração de vontade de uma pessoa, conforme
estipulações previstas no sistema legal, os quais emanam resultados de acordo com a vontade
do agente. Quanto à expressão “ato jurídico”, atualmente utilizada apenas uma vez no Código
Civil vigente, em seu art. 185, tem caráter residual ou de constituir referência aos atos
involuntários, pois mesmo lícitos, emanam efeitos por adstrição de seu resultado ao comando
normativo e não por ter relação com a vontade de seu autor.154
44. Qual a relação disso com o Direito Administrativo? Os fatos jurídicos os quais
classificamos como atos administrativos são voluntários e se enquadrariam no conceito de
negócio jurídico? Expliquemos por partes.
De início, urge delimitarmos o que denominamos de vontade na seara jurídica.
Vontade, por si só, é um impulso livre do homem, o qual pode ser projetado ou não no mundo
jurídico. Enquanto processo volitivo interno, não produz efeitos jurídicos. Projetada no
mundo do Direito, a vontade pode ter a forma de ato jurídico ou negócio jurídico. Daí a
importância de se diferenciar o que é manifestação daquilo que é declaração de vontade.
Através dos ensinamentos de Edmir de Araújo Netto, quando manifestações de vontade:
(...) Ocorrem de acordo com certas condições e requisitos formais, admitidos
ou prescritos pelo ordenamento jurídico como produtores de determinados
efeitos jurídicos, a pessoa estará emitindo declarações de vontade, se o faz
querendo, admitindo ou assumindo as consequências dessas declarações.
153
ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
464. PEREZ, Marcos Augusto. O negócio jurídico administrativo. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO (Orgs).
Os caminhos do ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 263-283.
154
PEREZ, Marcos Augusto. Op. cit., p. 265-266.
69
Manifestação de vontade, portanto, é gênero (pois abrange inclusive o
silêncio ou omissão), do qual a declaração de vontade é espécie.155
Em consequência, atos jurídicos compreendem exclusivamente declarações de
vontade, visto que seus efeitos são aqueles desejados, assumidos ou admitidos pelo agente.
45. O agente público age de maneira equivalente àquele que representa uma pessoa
jurídica de direito privado, porquanto suas decisões são fruto de processos decisórios
explicitados em sua organização normativa, direcionados à consecução de suas finalidades
intrínsecas e extrínsecas vislumbradas pelo Direito. O Estado, assim como a pessoa jurídica
de direito privado, emana sua vontade através de indivíduos, pessoas físicas que o
representam. Destarte, o agente pode manifestar vontade psicológica e interna, que não
produzirá efeitos, mas somente a declaração de vontade, externada pelos meios e formas
expressos na lei, de acordo com as regras de competência, com o fim de atingir o interesse
público, é que será ato do Estado. Haverá decisões da alçada de um funcionário, bem como
aquelas submetidas aos escalões superiores ou a coletivos formados internamente, assim
como com a participação da sociedade, cujo interesse, em última análise, os administradores
públicos devem representar. Em suma, não se trata de uma vontade subjetiva, mas objetiva,
destinada a satisfazer as necessidades da coletividade.
De acordo com Marçal Justen Filho,
uma característica da função administrativa consiste na funcionalização e
objetivação da vontade do indivíduo que atua como órgão público. A
manifestação individual é um processo volitivo humano, mas não é protegida
em si mesma pelo direito. Somente é tutelada quando for objetivamente
vinculada à satisfação das necessidades coletivas. Esse vínculo entre vontade
humana do órgão e a realização dos fins estatais caracteriza a atividade
administrativa. Existe uma vontade funcionalizada e objetivada, o que
diferencia o ato administrativo do ato privado.156
Os efeitos jurídicos previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro são criar, extinguir
ou modificar relações jurídicas. Em algumas ocasiões, os efeitos estão já prescritos pelas
normas aplicáveis, e se realizarão caso o agente declare a vontade daquela forma determinada,
independentemente de querer ou não. Esses são os atos jurídicos stricto sensu, geralmente
unilaterais. Por outro lado, o ordenamento admite que, quando a vontade for externada de
determinada forma, a declaração de vontade produza os efeitos pretendidos pelo agente no
155
156
Op. cit., p. 465.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 259.
70
momento em que criou tal declaração, criando, dessa maneira, uma situação jurídica nova.
Nessa hipótese, trata-se de negócios jurídicos, geralmente bilaterais.157
Dito de outra maneira, os fatos jurídicos voluntários dividem-se em atos jurídicos com
efeitos jurídicos voluntários ou prescritos pelo ordenamento, de acordo com os arts. 104 e 185
do Código Civil; e, também, atos ilícitos. Estes geralmente involuntários, impondo ao seu
agente a pena ou a indenização, muito embora, no caso de crimes, possam ser voluntários
(dolosos), isto é, quando o agente assume ou admite os efeitos previstos no sistema jurídico.
Os atos jurídicos (em sentido amplo) dividem-se em: a) atos jurídicos em sentido estrito ou
não negociais, cujos efeitos são preestabelecidos em normas jurídicas. Podem ser atos
materiais em consonância com vontade ou declaração de vontade conforme os efeitos
prescritos no ordenamento; e não criam vínculos jurídicos que não existiam anteriormente.
Portanto, os efeitos independem, nessa hipótese, da vontade declarada, não obstante com ela
possam coincidir. b) E, também, em negócios jurídicos ou atos jurídicos negociais, dos quais
advêm consequências jurídicas desejadas pelo agente, não previstas no sistema legal, mas por
ele admitidas ou reconhecidas. Têm por finalidade autorregular interesses, os quais
engendram vínculos jurídicos antes das declarações inexistentes.158
Os efeitos podem se irradiar, nesse tema de atos jurídicos e negócios jurídicos, em
decorrência do número de partes que declaram a vontade ou em razão das pessoas afetadas
por tais fatos jurídicos. Quanto ao número de partes que intervêm na formação do ato jurídico,
este pode ser unilateral, com um ou mais sujeitos contidos na mesma parte, portanto, que
emanem declaração de vontade em um único sentido, com o mesmo objetivo; ou bilateral (ou
plurilateral): circunstância esta em que o ato volitivo é resultado de vontade declarada por
duas ou mais partes, opostas, como no caso do contrato, ou coincidentes, como na hipótese do
convênio e consórcios. Pode ser simples (situação em que confere direitos a uma parte e
deveres a outra), sinalagmático (hipótese onde os direitos e deveres, encargos e benefícios,
são divididos entre ambas as partes), bem como comutativo (quando existe relação de
equivalência entre encargo(s) e contraprestação(ões)) ou aleatório (quando não há
equivalência).159
Ressaltamos novamente que não se trata de uma vontade psicológica e individual,
impulso livre como que o ser humano tem, mas trata-se de uma vontade funcional do agente
público, correspondente à vontade de, no exercício de suas funções, declarar a vontade estatal
157
ARAÚJO, Edmir Netto de. Op. cit., p. 466-467.
Ibidem, p. 167.
159
Ibidem, p. 468-469. O autor adverte que tal classificação não é adotada pela doutrina administrativista
unanimemente, como bem avisa José Cretella Jr.
71
158
(igualmente como é feito em pessoas jurídicas de direito privado, empresas), isto é, a vontade
normativa. A vontade funcional expressa-se para realizar fins ou interesses de uma
coletividade. Aquela, no caso do Estado brasileiro, são os fins estabelecidos na Constituição
Federal de 1988 e nos direitos humanos. Dessa maneira, o que importa é a vontade declarada,
e não a vontade psicológica, a qual antecede a declaração, que, inclusive, pode com aquela
coincidir.
46. Ato jurídico não é peculiar da seara privada ou pública. Trata-se de uma categoria
jurídica, em cuja conceituação vem da teoria geral do Direito. Todo ato jurídico, cuja
formação concorre a Administração, é ato administrativo, não obstante apenas aqueles
pertencentes a matéria administrativa o são.
Os atos administrativos, destarte, não são involuntários, são expressão de uma vontade
finalística, objetiva, fruto da confluência de diversas posições e concepções, isto é, de
interesses diferentes, os quais convivem dentro do Estado e convergem por meio dos
processos decisórios regulados para a concretização dos objetivos sociais colimados na
Constituição Federal e na consciência ética coletiva, em prol do bem comum. É exatamente
por essa razão que essa afirmação, isto é, a prática de atos voluntários ou de negócios
jurídicos efetuados pela Administração Pública, não afasta a aplicação dos princípios da
impessoalidade, da legalidade e da indisponibilidade do interesse público.
Todo ato praticado no exercício dessa atividade ou função administrativa pode ser
englobado pela expressão genérica de ato da Administração. Tais atividades podem ser
jurídicas ou não. Aquelas designadas por não jurídicas são atos materiais (atividade
administrativa em seu aspecto técnico ou operacional). Alguns autores os denominam atos de
administração ou fatos administrativos.
O ato da Administração, conforme pontuamos alhures, trata-se de gênero, do qual ato
de administração e ato jurídico da Administração são espécies. Todo ato oriundo da
Administração Pública é ato da Administração. Os atos jurídicos da Administração são todos
os atos jurídicos praticados pela Administração, sejam unilaterais ou bilaterais. Se for editado
em matéria administrativa, será ato jurídico administrativo, porém, caso seja editado em
matéria de direito privado, será ato jurídico privado da Administração.
Os atos jurídicos unilaterais da Administração são aqueles produzidos por uma
declaração de vontade unitária, quer advenha de uma pessoa só, quer de várias pessoas, a agir
dentro da mesma direção, único foco de interesses. Já os atos jurídicos bilaterais da
Administração são aqueles que se engendram pelo encontro de vontades de duas partes.
72
Podem ser multilaterais ou plurilaterais, nos quais duas partes intervêm e criam a todos
direitos e obrigações.160
Nem todos os acordos de vontade são da mesma espécie. Como Agustín Gordillo nos
ensina, alguns representam interesses opostos em acordo, cujas partes criam vínculos jurídicos
antes inexistentes, e elegem uma relação jurídica que as obrigará. Em outras hipóteses, os
interesses não são opostos, as partes especificam meios e condições para a obtenção de
resultados de interesse comum, ou ainda certa pessoa declara sua vontade com o intuito de
produzir certo efeito determinado pelo ordenamento jurídico. Essa declaração, em algumas
situações, precisará de um acordo em menor nível, como uma simples aquiescência do
destinatário para que produza os efeitos queridos.161
Dos atos jurídicos administrativos bilaterais, isto é, aqueles acordos que pressupõem a
existência de mais de uma declaração de vontade unitária, portanto de pessoas diversas, o
negócio jurídico administrativo é a mais importante modalidade. Trata-se de vontades
negociais, e é por essa razão que diferem do ato jurídico administrativo unilateral. Vontade
negocial pretende construir, através de acordo, uma relação jurídica nova, que não existia
anteriormente da exteriorização da declaração de vontade.
Conforme Edmir Netto de Araújo, o negócio jurídico administrativo consiste na
conjugação de duas declarações de vontade, uma estatal ou de sua entidade, através de agente
público, o qual emite vontade funcional, inspirado no interesse público concretamente
existente, situando-se em posição de supremacia, configurada pela inserção explícita ou
implícita de cláusulas de prerrogativa, preordenadas a produzir, mediante esse acordo, que
será instrumentalizado, os efeitos desejados. Por outras palavras, são acordos bilaterais ou
multilaterais pactuados entre a Administração Pública e o particular, ou entre órgãos dotados
de personalidade jurídica própria da Administração, contendo mais de uma declaração
unitária de vontade, que sirva de baluarte para a produção de efeitos jurídicos específicos “ex
voluntate”, em relação que não havia em momento anterior à exteriorização dessas
declarações.162
160
RÁO, Vicente. Ato jurídico: Noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais: O problema do conflito
entre os elementos volitivos e a declaração. 4. ed., anotada, rev. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 66-67.
161
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo, 1º tomo: Parte general. 7ª. ed. Belo Horizonte:
Del Rey e Fundación de Derecho Administrativo, 2003. Capítulo X.
162
Op. cit., p. 724-726. Em opinião contrária a esta classificação está, por exemplo, José Cretella Júnior, o qual
pontua que, quando visto como acordo bilateral da Administração com o particular, caracteriza-se apenas como
operação negocial nos acordos os quais o Estado, “despindo-se de suas prerrogativas de puissance publique ou
de potestade pública, celebra horizontalmente contratos de direito civil com o particular, como o de compra e
venda e o de locação, o de permuta...”. Contudo, “é inaplicável a expressão negócio jurídico ao mero ato
73
A eventual posição de supremacia, em razão do interesse público, o qual o Estado
venha a assumir, é o traço característico dos negócios jurídicos administrativos. Essa sua
natureza não desvirtua o caráter de uma das vontades declaradas ser do particular. Em certas
circunstâncias, o Estado desveste-se de suas prerrogativas e trava negócios com os
particulares em igualdade de condições, a despeito do que sempre um resquício do regime
jurídico-administrativo perdurará, pois a aptidão do Estado para contratar não se mede pela
capacidade civil, senão pelas regras de competência do Direito Administrativo. Além do mais,
o ente estatal necessita cumprir imperiosamente certos requisitos preliminares ao negócio que
são parte do direito público, como autorizações ou aprovação de determinados órgãos do
Estado, processo de licitação, o qual é a regra no sistema jurídico brasileiro, conforme art. 37,
inciso XXI, da Carta Política.163
Em resumo, Maria Sylvia Zanella Di Pietro classifica os atos da Administração em:
1.
atos de direito privado, como doação, permuta, locação, compra e
venda etc.;
2.
atos materiais, os quais não preordenam à produção de qualquer
efeito jurídico, mas envolvem a execução, como a realização de um
serviço, de uma demolição etc., muito embora possam gerar efeitos
de natureza jurídica, a exemplo da indenização de um dano;164
3.
atos de conhecimento, opinião, juízo ou valor, os quais não
expressam uma vontade e, então, não produzem efeitos jurídicos, v.
g., certidões, pareceres, votos;
4.
atos políticos, que estão sujeitos a regime jurídico-constitucional;165
5.
contratos;
6.
atos normativos da Administração, bem como os decretos,
portarias, resoluções, regimentos, com efeitos gerais e abstratos;
administrativo, stritu sensu, bem como aos contratos de direito público, à concessão (para exploração de serviço
público, para o uso privativo de bem público pelo particular), pois os contratos de direito público são submetidos
a regras especiais de direito público, exorbitantes ou derrogatórias do direito comum, imunes assim ao elemento
volitivo, elemento este de presença obrigatória na conceituação do negócio jurídico”.
163
GORDILLO, Agustín. Op. cit., p. XI-17.
164
Através dos ensinamentos de Diogenes Gasparini, que os denominou de atos ajurídicos ou fatos
administrativos, percebe-se que não se destinam a produção de efeitos jurídicos, não expressam manifestação de
vontade, juízo ou conhecimento da Administração Pública sobre dada situação. Porém, “com isso não se está
afirmando que deles não possa decorrer efeito de natureza jurídica, a exemplo do direito à indenização que o
administrado tem se, ao ser operado, o cirurgião servidor público atuou negligentemente e lhe causou um dano
estético. São exemplos de atos materiais os de dar aula e os de varrer a rua” (Op. cit., p. 109).
165
Diogenes Gasparini, ao abordar a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre estes atos, dispõe:
“embora esse autor atribua aos atos de governo ou políticos um regime diverso do que os autores costumam
emprestar a esses atos... A Administração Pública somente pratica atos materiais, atos regulados pelo Direito
Privado e atos administrativos. Daí a bipartição em atos ajurídicos e atos jurídicos” (Ibidem).
74
7.
atos administrativos propriamente ditos.
Os contratos administrativos são espécies dos negócios jurídicos que são espécies dos
atos jurídicos in abstrato, segundo o Código Civil. A caracterização de ato administrativo
negocial não equivale ao conceito de negócio jurídico, porquanto, nesse caso, não ocorre a
conjugação de vontades para a produção de efeitos antes inexistentes. Ora, todos os efeitos do
ato citado se perfazem ex lege. Aliás, se ato equivalesse a negócio haveria uma contradição.
Isso somente é possível se se considera, como aqui fazemos, atos administrativos em sentido
amplo.
Enfim, contratos administrativos para Maria Sylvia Zanella Di Pietro são “os ajustes
que a Administração, nessa qualidade, celebra com pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou
privadas, para consecução de fins públicos, segundo o regime de direito público”.166 Seu traço
característico é regime jurídico-administrativo, com prerrogativas e sujeições. As primeiras
atribuem à Administração posição de supremacia sobre o particular; as segundas são impostas
como limites à atuação administrativa e a ela pressupostas para garantir o respeito às
finalidades públicas e aos direitos do cidadão. As cláusulas exorbitantes contidas em tais
avenças são prerrogativas administrativas. São exorbitantes em relação ao direito comum,
pois nos contratos entre particulares não seriam lícitas. Elas existem implicitamente, não
necessitam ser expressas no conteúdo do contrato e são indispensáveis para manutenção da
posição de supremacia do ente estatal. A forma deve ser aquela prescrita em lei. Contém
natureza de contrato de adesão, intuitu personae e apresenta mutabilidade. Disso decorre a
manutenção
obrigatória
do
equilíbrio
econômico-financeiro,
assentada
em
texto
constitucional.
2.4. Aplicação nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual da função
social
2.4.1. Fase pré-contratual
166
Op. cit., p. 257. Há um dissenso enorme sobre a existência de contrato na seara pública ou não. Não iremos
adentrar no tema tão bem estudado por Maria João Estorninho na obra Requiem pelo contrato administrativo.
Há a posição que nega a existência de contrato administrativo. Há a oposta, cujo entendimento é que todos os
contratos celebrados pela Administração são contratos administrativos. Há, derradeiramente, aquela posição que
aceita a existência do contrato, com regime jurídico de direito público, derrogatório e exorbitante ao comum.
75
47. Salvo exceções expressas em lei, os negócios jurídicos administrativos são
obrigatoriamente precedidos de processo de licitação pública167 que garanta igualdade de
condições a todos os concorrentes, de acordo com que impõe o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal de 1988, com os termos seguintes:
Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços,
compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação
pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com
cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições
efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá exigências
de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do
cumprimento das obrigações.
Essa exigência foi reiterada para as concessões e permissões de serviço público no art.
175 da Constituição de 1988.168 Foi regulamentada pela lei n. 8.666 de 21/6/1993 (Lei Geral
de Licitações e Contratações Públicas).169 Toda licitação conduz a um contrato; todo contrato
está direcionado a uma obra, a um serviço, a uma compra ou a uma alienação por interesse
público.170 Dessa forma, seguindo o prescrito nos arts. 22, inciso XXVII, e 37, inciso XXI, da
Carta Magna, e arts. 1º e 117 da Lei 8.666 de 1993, o objeto da licitação é tudo que pessoas
de direito público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e autarquias), governamentais
(sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações) e suas subsidiárias, inclusive
Poderes Legislativo (Câmara dos Vereadores, Assembleia Legislativa, Câmara dos Deputados
Federais, Senado Federal, Tribunais de Contas) e Judiciário, puderem obter de mais de um
167
Em sentido oposto ao adotado Lúcia Valle Figueiredo. Processo. Para esta autora, “seria, apenas e tão
somente, às situações em que há controvérsias, em que há sanções, punições disciplinares – portanto, situações
de acusações em geral ou litigância”. Enquanto procedimento “refere-se ao conjunto de formalidades
necessárias para emanação de atos administrativos, ora como a sequência de atos administrativos, cada qual per
se desencadeando efeitos típicos (...) tendentes ao ato final, servindo-lhe de suporte de validade” (Curso de
Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 437-438).
168
Como bem aponta Celso Antônio Bandeira de Mello, no parágrafo único deste artigo há uma impropriedade,
pois permissão trata-se de um ato administrativo e não contrato (Op. cit., p. 525, nota de rodapé 1). Edmir Netto
de Araújo tem posicionamento semelhante, conforme se aduz do seguinte trecho: “Já havíamos nos posicionado,
na época da promulgação da Constituição Federal de 1988, da mesma forma que entendia a maior parte da
doutrina brasileira, no sentido de que a permissão de serviço público, em sentido tecnicamente preciso, “é a
título precário e sem prazo certo, em caráter interino ou emergencial caso em que se terá ato administrativo
stricto sensu, unilateral, embora a outorga dependa de provocação e aceitação do permissionário” (Op. cit., p.
185-186).
169
A lei 8.666 de 1993 é a norma geral de licitações e contratações, prevista no art. 22, inciso XXVII, da Carta
da República. Marçal Justen Filho aduz que normas gerais “são aquelas que vinculam a todos os entes
federativos, enquanto normas especiais são aquelas de observância obrigatória apenas na órbita da União. Ou
seja, o diploma traduz o exercício de duas competências legislativas diversas. Existem normas nacionais,
aplicáveis em todas as esferas federativas. E há normas puramente federais, aplicáveis apenas ao âmbito da
União” (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010. p. 14
e 15).
170
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo: De acordo com a Lei 8.666, de 21/6/1993,
com todas as alterações posteriores. 15. ed., atual. por José Emmanuel Burle Filho, Carla Rosado Burle e Luís
Fernando Pereira Franchini. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 25-28.
76
ofertante ou interessar, pelo menos em tese, a mais de um dos administrados. Apesar disso,
não são apenas os objetos dispostos nesses preceitos normativos os quais estão sujeitos ao
processo licitatório, pois aquilo neles enunciado é meramente exemplificativo, conforme
explica Diogenes Gasparini, porquanto há outros tantos negócios jurídicos desejados pela
entidade obrigada a licitar que também devem ser objetos desse certame, como, v.g.,
arrendamento, empréstimo e permissão de uso de bem público.171
Celso Antônio Bandeira de Mello a conceitua como um certame que as entidades
governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas
travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa
às conveniências públicas.172
Enquanto Odete Medauar a define da maneira a seguir:
Licitação, no ordenamento brasileiro, é processo administrativo em que a
sucessão de fases e atos leva à indicação de quem vai celebrar contrato com
a Administração. Visa, portanto, a selecionar quem vai contratar com a
Administração, por oferecer proposta mais vantajosa ao interesse público. A
decisão final do processo licitatório aponta o futuro contratado.173
Dessas definições e do art. 3º, caput da Lei 8.666 de 1993 (antes da Lei 12.349 de
2010), inferimos que a licitação pública visa a certos fins impostos à Administração Pública,
quais sejam: isonomia entre os concorrentes e competitividade, para garantir a escolha da
proposta mais vantajosa ao atendimento do interesse público. Seguir os trâmites formais
propostos na lei não garante automaticamente os valores por ela ambicionados. Por isso, o
administrador e o intérprete têm o dever de verificar, caso por caso, se as solenidades
selecionadas efetivamente alcançam os valores protegidos pelo Direito. O princípio da função
social dos negócios jurídicos administrativos afeta não apenas as licitações públicas
normativamente com hipóteses de sua dispensa (alguns incisos sobreditos do art. 24 da Lei de
Licitações e Contratações Administrativas), mas também suas finalidades, isto é, tal processo
torna-se um instrumento para o desenvolvimento nacional sustentável social, ético, ambiental,
econômico e político, na esteira do arts. 3º e incisos da Constituição Federal e 3º da Lei de
Licitações e Contratações Públicas. Protege ainda interesses metajurídicos e individuais
relativos à dignidade da pessoa humana.
171
GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 17. ed., atual. por Fabrício Motta. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 552-553.
172
Op. cit., p. 524-525.
173
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2006. p. 179.
77
Esse princípio possui evidente função normativa para o instituto do negócio jurídico
administrativo, quando aparece como manifestação do princípio da solidariedade, inspirador
das relações entre os indivíduos e a sociedade dentro de uma comunidade política, inclusive
quando o poder constituinte atribui ao legislador a missão de desenvolvê-lo por meio das
inúmeras formas típicas em que se apresentam os negócios jurídicos administrativos
hodiernamente. A função normativa desenvolve-se tanto no momento de se atribuir o direito,
fazendo da segurança jurídica advinda dos negócios jurídicos um direito causal, como em seu
exercício,
cujo
conteúdo
deverá
responder
sempre
à
causa
que
motivou
seu
reconhecimento.174
Assim, as partes de um negócio jurídico administrativo deverão respeitar os deveres
assumidos na relação jurídica e mais alguns deveres acessórios (lealdade, probidade,
honestidade, retidão etc.), os quais advêm da função social e da boa-fé objetiva (arts. 421 e
422 do Código Civil), com o intuito de garantir confiança entre as partes e da sociedade para
com a Administração Pública. Dever de probidade administrativa está, ademais, inscrito na
Constituição Federal de 1988, nos arts. 37, caput, e 85, inciso V. 175
A função administrativa, desde 1988, com base em seu art. 3º, inciso III, exige dos
gestores públicos, inclusive daqueles responsáveis por licitações, garantir o desenvolvimento
nacional (humano, social, econômico e ético, isto é, sustentável), enquanto objetivo
republicano (na acepção exposta aqui), bem como reconhecer a defesa do meio ambiente e a
busca do pleno emprego, como nortes à produção e o consumo de bens e serviços.176
A Lei Complementar n. 123 de 2006 (Estatuto da Microempresa e da Empresa de
Pequeno Porte) foi elaborada e publicada em consonância com os objetivos inscritos na
Constituição Federal de 1988 (supracitados). Trata-se de uma clara aplicação do princípio da
função social, além da competitividade e isonomia, nas licitações públicas, devido ao fato de
propiciar real preferência pela contratação de pequenas empresas pelo Poder Público. Ou seja,
174
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 7172.
175
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estabilidade dos atos administrativos: segurança/boa-fé/confiança. In:
Grandes temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 174-175. Tal passagem
corrobora o sobredito: “Em quaisquer de seus atos, o Estado – tanto mais porque cumpre a função de ordenador
da vida social – tem de emergir como interlocutor sério, veraz, responsável, leal e obrigado aos ditames da boafé. De seu turno, os administrados podem agir na seriedade, responsabilidade, lealdade e boa-fé do Poder
Público, maiormente porque a situação dos particulares é, em larguíssima medida, condicionada por decisões
estatais, ora genéricas, ora provenientes de atos administrativos concretos”.
176
FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: desenvolvimento nacional sustentável (no e do
Brasil, antes e depois da MP n. 495/2010. In: Fórum de Contratação e Gestão Pública. Belo Horizonte, ano 9,
n. 107, nov. 2010, versão digital.
78
visa ao real direcionamento in concreto a tais empresas, mediante sua regular interpretação e
aplicação, de maneira a cumprir as finalidades contidas nessa lei, sob pena de nulidade.177
Na mesma linha, seguem as leis cujo teor seja sustentabilidade ambiental, as quais
tratam, com maior ou menor ênfase, no plano nacional ou regional, de pressupostos técnicos
específicos para a realização de licitações em relação a fornecedores – na delimitação do
objeto licitado – ou critérios para a aferição da proposta mais vantajosa. Com isso, o poder de
compra da Administração Pública deve ser utilizado, de acordo com o princípio da função
social dos contratos, com o intuito de fomentar o desenvolvimento de certas atividades e
produtos, cada vez mais ambientalmente salutares, isto é, está a se incentivar a iniciativa
privada à produção de bens e serviços que contribuam para o desenvolvimento nacional
sustentável. Verifica-se, nitidamente, uma atividade administrativa de fomento, tal qual
esboçada acima, em passagem de Sílvio Luís Ferreira da Rocha.
A Medida Provisória n. 495/2010 eleva o desenvolvimento nacional a status de
finalidade imposta pela lei, em igual patamar à isonomia e à seleção da proposta mais
vantajosa, nas licitações públicas. Dessa forma, não seguir tal preceito, a partir da edição
dessa norma, é descumprir a norma, com consequências aos agentes públicos e à validade da
relação jurídico-administrativa produzida. Anteriormente, apenas se tratava de um fim
remoto, indireto à Administração Pública, inferido da Carta da República, cujo
descumprimento não acarretava sanções.
A função social na licitação pública impõe ao administrador público a finalidade de
buscar o desenvolvimento nacional sustentável, como se infere da Constituição Federal de
1988, precipuamente de seu art. 3º, o qual enuncia os objetivos da República Federativa do
Brasil, isto é: I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento
nacional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. Isso pode e deve ser investigado pelos
interessados, pelas Cortes de Contas, pelo Ministério Público e pela sociedade civil em geral,
em todos os negócios jurídicos pactuados pela Administração Pública, inclusive nos processos
licitatórios, ora em comento. A partir do advento da Lei federal n. 12.349 de 2010, a busca
pelo desenvolvimento nacional sustentável passou a ser uma condição de validade ou
requisito teleológico, imposto por lei.
177
FERREIRA, Daniel. Ibidem.
79
Cumpre-nos abrir um parêntese neste ponto do trabalho. Já destrinchamos a diferença
entre desenvolvimento nacional econômico do humano, com base nos ensinamentos de José
Afonso da Silva e Fábio Konder Comparato. Quando a Medida Provisória n. 495/2010 inclui
no art. 3º da Lei de Licitações e Contratações Públicas “desenvolvimento nacional
sustentável”, coloca os agentes públicos a serviço da homeostase, cujo significado é dado por
Juarez Freitas como: “a capacidade biológica e institucional de promover o reequilíbrio
dinâmico e propício ao bem-estar sustentável, com expectativa objetiva de longevidade e
qualidade subjetiva de vida”.178
A licitação pública, nessa medida, ganha a função de fomento de atividades, públicas e
privadas, que contribuam para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Ou,
como acentua Daniel Ferreira, a função social da licitação pública a torna instrumento para
consecução, não somente do interesse público primário (de uma particularizada coletividade)
ou secundário (do aparato administrativo), mas de vários interesses públicos.179 Ou, posto
com outras palavras, a licitação pública que contribuir para bem-estar digno para todos,
presentes e futuros, estará a cumprir a função social dos negócios jurídicos. Será instrumento
para não prejudicar as gerações futuras e contribuirá para alcançar a justiça social e
sustentável.
Uma das consequências que poderíamos suscitar como decorrência ao sobredito se
relaciona aos editais, os quais precisam adotar em nome da função social dos negócios
jurídicos critérios de concretização do princípio da sustentabilidade social, econômica, ética,
ambiental e jurídica, com consequências, v.g., na qualificação técnica de futuros
contratados.180 Alias, é o que a Instrução Normativa n. 1, de 19 de janeiro de 2010, em seu art.
178
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 15 e s. Leciona esse
jurista que sustentabilidade é multidimensional, isto é, ética, social, econômica, político-jurídica e ambiental. O
desenvolvimento de hoje não pode impedir a possibilidade daquele do amanhã. Com isso não quer se dizer que
se deve abdicar de buscar a dignidade de todos. Pelo contrário, deve-se fazê-lo, sem impedir que a próxima
geração tenha essa possibilidade. Outra faceta da sustentabilidade é de direcionar o desenvolvimento econômico
para algo diferente daquele falacioso crescimento material como um fim em si, pois este não faz uso justo dos
recursos naturais e muito menos busca o bem-estar material e imaterial digno para todos, mas somente para
alguns.
179
Ibidem e Licitações para a Copa do Mundo e Olímpiadas – Comentários sobre algumas inovações da Lei n.
12.462/2011. In: Fórum de Contratação e Gestão Pública. Belo Horizonte: Editora Fórum, ano 10, n. 117, set.
2011, versão digital.
180
Devido à sua imensa importância neste contexto, não se pode olvidar, neste ponto, a aplicação dos princípios
da prevenção e da precaução, no instante em que se trabalharem valores tão caros para o bem de todos. Esses
princípios são exigidos de administradores públicos honestos e probos, compromissados com a função social dos
negócios jurídicos administrativos que firmarão em nome do povo. O princípio da prevenção (art. 227 da
Constituição Federal) determina: “mais até do que o da precaução, determina, sem mora ou sofisma
acomodatício, o cumprimento diligente, eficiente e eficaz, dos deveres de impedir o nexo causal de danos
perfeitamente previsíveis, sob pena de responsabilização do Estado. (...) não há desculpa para o passivismo
complacente, submisso, servil e obscurantista” (FREITAS, Juarez. Op. cit. , p. 311-313). Seus requisitos para
80
1º, do Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão da Administração Federal, já o faz, ao estabelecer a obrigatoriedade de
na aquisição de bens, contratação de serviços e obras por parte dos órgãos e
entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional
deverão conter critérios de sustentabilidade ambiental, considerando os
processos de extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e
matérias-primas.
Há, ainda, hipóteses de dispensa de licitação, nas quais se manifesta o princípio da
função social dos contratos, isto é, são situações em que o legislador pondera os valores da
isonomia e competição com solidariedade e igualdade substantiva.
As hipóteses de dispensa de licitação pública estão previstas principalmente no art. 24
do Estatuto Federal Licitatório, porém não são todas que nos interessam. A primeira delas é a
do inciso XX: contratação de associação de portadores de deficiência física. Nesse caso, os
recursos públicos além de atender a uma necessidade pública, objeto da contratação,
incentivarão a atividade de certas entidades privadas não integrantes da Administração
Pública, mas cuja atuação se relaciona ao bem comum. Não obstante a lei suscite somente
deficientes físicos, está contida na hipótese de incidência da norma qualquer associação que
congregue portadores de necessidades especiais. Essa é sua exata extensão. A justificativa
reside no fato de que tais pessoas se encontram em situação material peculiar, incomparável
às pessoas as quais não apresentam limitações equivalentes.181
No caso, tem-se uma hipótese de ponderação entre os valores da isonomia (igualdade
formal) e solidariedade, cujo sopesamento, em virtude da função social dos contratos, resultou
na presente situação de dispensa do processo licitatório. Não se pode olvidar da máxima
aristotélica supracitada, para analisar essas questões: “tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais, na proporção de suas desigualdades”.
O inciso XXVII do art. 24 da Lei 8.666 de 1993, incluído pelo art. 57 da Lei federal n.
11.445, de 5/1/2007, com o fim de substituir a hipótese anterior do dispositivo (contratações
de grande complexidade), é outro exemplo claro de aplicação do princípio da função social às
licitações públicas, nessa fase pré-contratual. Dispõe que tal certame será dispensável
aplicação, conforme Juarez Freitas, são: a alta e intensa probabilidade de dano especial e anômalo e atribuição e
possibilidade de o Poder Público evitar dano social, econômico ou ambiental. O Estado-Administração
remanesce com o ônus de produzir prova excludente do nexo de causalidade intertemporal. Por outro lado, o
princípio da precaução (art. 225 da Carta Magna e Lei de Biossegurança, n. 11.105/2005, art. 1º), eficaz direta e
imediatamente, impõe à Administração diligências não tergiversáveis, adotando medidas antecipatórias
proporcionais, diante de casos de incerteza da eclosão de danos fundamentamente temidos. A não observância
desse princípio, para esse jurista gaúcho, configura omissão antijurídica, específica, certa e anômala.
181
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos..., p. 335-337.
81
na contratação da coleta, processamento e comercialização de resíduos
sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis, em áreas com sistema de coleta
seletiva de lixo, efetuados por associações ou cooperativas formadas
exclusivamente por pessoas físicas de baixa renda reconhecidas pelo poder
público como catadores de materiais recicláveis, com o uso de equipamentos
compatíveis com as normas técnicas, ambientais e de saúde pública.
Evidentemente ligada ao desenvolvimento sustentável social e ambientalmente do
Estado brasileiro, esse preceito normativo contribui para incluir socialmente inúmeras pessoas
que não têm condições econômicas para sobreviver dignamente, bem como incentiva a
separação de resíduos sólidos, de maneira a reduzir efeitos ambientais deletérios desses
objetos quando descartados. Tal ponto é fundamental para o bem-estar de todos.
Com efeito, ao longo do tempo, a atividade de coleta de dejetos sólidos ganhou
relevância econômica, isto é, tornou-se atividade econômica informal para diversas pessoas.
Era uma alternativa de sobrevivência para inúmeros miseráveis e excluídos da sociedade.
Com o tempo, a referida atividade ganhou importância socioeconômica decorrente dos
problemas gerados pelo lixo. Importa em garantir não apenas a dignidade dessas pessoas, mas
sua integração à atividade econômica formal, inclusive para garantir sua seguridade social.
Além de evitar a contínua destruição da natureza e a elevação do índice de poluição.
Infelizmente, até o presente momento, tem-se verificado uma omissão estatal no tocante à
atividade de coleta de dejetos nas áreas urbanas. Tal situação se resolve com a atuação
privada do setor de reaproveitamento de dejetos sólidos nas áreas urbanas. O dispositivo em
comento, nitidamente, incentiva a atuação estatal no setor.182 Permite-se, então, à
Administração contratar diretamente associação ou cooperativa para coleta, processamento e
comercialização de resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis, desde que uma e
outra sejam constituídas apenas por pessoas físicas de baixa renda e catadores de materiais
recicláveis. Deverá se verificar a regularidade da constituição da associação ou da cooperativa
passível de contratação, assim como a regularidade fiscal e a capacitação técnica, no que
respeita à utilização de equipamentos os quais respeitem as normas técnicas, ambientais e de
saúde pública. A contratação poderá ser realizada sem ônus à associação ou à cooperativa, ou
com a cobrança de certo valor determinável pela Administração Pública. O prazo poderá ser
de cinco anos, de acordo com o art. 57, inciso II, da Lei federal 8.666 de 1993; ou por um
certo prazo prorrogável por iguais e sucessivos períodos de até no limite de sessenta meses.183
182
183
Ibidem, p. 351-353.
GASPARINI, Diogenes. Op. cit., p. 604-605.
82
Essa hipótese de dispensa de licitação, por contribuir com o desenvolvimento humano
e sustentável, social e ambiental, é sempre desejável e obrigatória quando existir associação
ou cooperativa que preencha os requisitos supramencionados. Em tal circunstância, se houver
processo de licitação para contratação de outra pessoa jurídica diversa dessas que se adequam
à hipótese do art. 24, inciso XXVII, da Lei federal 8.666 de 1993, estar-se-á descumprindo a
função social do contrato administrativo e a finalidade almejada pelo art. 3º da Lei 8.666 de
1993. Será nulo o processo licitatório ou a contratação ocorrida, com a responsabilização
disciplinar do agente público.
2.4.2. Fase contratual
48. Na consecução de negócios jurídicos, o princípio da função social atua de maneira
a exercer função interpretativa, integrativa e inibidora.184
Passamos a seguir a tratar de cada uma delas separadamente.
Cumpre-nos, preliminarmente, fazer uma ressalva. Em capítulo anterior, suscitamos a
conexão entre os princípios da função social e da boa-fé. Reiteramos o que já dissemos.
Porém, especificamente frisamos que a boa-fé objetiva decorre da função social do contrato,
de maneira que tudo o que se disser sobre a primeira deve ser considerado como integrante da
segunda.185
Sílvio Luís Ferreira da Rocha explica que o princípio da função social forçou a revisão
da teoria contratual, de forma a enfatizar a concepção social dos contratos, isto é, não obstante
a importância da vontade nos negócios jurídicos, há, igualmente, a necessidade de
observância da condição social e econômica das partes, bem como seus efeitos, com fim de se
184
Como já pontuamos nos capítulos introdutórios, princípios têm força normativa. Para melhor elucidação, ler
capítulo inicial desta dissertação. Paulo Bonavides ensina que de sua antiga fonte subsidiária nos Códigos, os
princípios gerais – tal como a função social –, com as Constituições da segunda metade do século XX, tornaramse “fonte primária de normatividade, corporificando do mesmo passo na ordem jurídica os valores supremos ao
redor dos quais gravitam os direitos, as garantias e as competências de uma sociedade constitucional” (Op. cit.,
p. 283). Mais à frente, ao citar o jurista espanhol F. de Castro, descreve as três funções que os princípios
preenchem, quais sejam: “a função de ser ‘fundamento da ordem jurídica’, com ‘eficácia derrogatória e diretiva’,
sem dúvida a mais relevante, de enorme prestígio no Direito Constitucional contemporâneo; a seguir, a função
orientador do trabalho interpretativo e, finalmente, a de ‘fonte em caso de insuficiência da lei e do costume’...”
(Ibidem). Cita, igualmente, o trabalho de Norberto Bobbio: Principi generali di diritto; no qual o autor
reconhece a tetradimensionalidade funcional dos princípios jurídicos, isto é, a interpretativa, a integrativa, a
diretiva (própria dos princípios programáticos) e a função limitativa. O exercício de princípios nessa função
atinge seu grau máximo de “intensidade vinculante”.
185
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 378-379, nota 10.
83
alcançar um equilíbrio substantivo e real nas relações jurídicas. Daí o elo com a boa-fé
objetiva, com as expectativas das partes e com a valorização da confiança.186
Por outras palavras, o princípio da boa-fé é condição sine qua non para que os
negócios jurídicos administrativos cumpram sua função social. Dessa maneira, há um elo
entre os dois princípios extremamente bem demonstrado por Nelson Nery Junior, em que a
função social é um princípio que abarca a boa-fé.187
Não é à toa que a I Jornada de Direito Civil realizada pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal em seu enunciado 22 pontua: “A função social do
contrato, prevista no art. 421 do Novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o
princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. E a III Jornada de
Direito Civil resultou no enunciado 167:
Arts. 421 a 424: Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte
aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do
Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são
incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”.
Este último enunciado citado relembra-nos, igualmente, da existência de uma teoria
geral dos negócios jurídicos, formada por princípios gerais de Direito que produzem, sim,
efeitos na seara contratual (de negócios jurídicos administrativos) pública. Não é à toa que o
enunciado 414 da V Jornada de Direito Civil aduz: “Art.187. A cláusula geral do art. 187 do
Código Civil tem fundamento Constitucional nos princípios da solidariedade, devido ao
processo legal e a proteção da confiança e aplica-se a todos os ramos do direito”.188 (grifo
nosso) O art. 187 do Código Civil, por sua vez, dispõe: “Também comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou bons costumes”.189
Por fim, na IV Jornada de Direito Civil, no enunciado 360, fez-se cristalina a ideia de
que o princípio da função social não produz efeitos apenas ultra partes, mas, inclusive, inter
186
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Curso avançado de..., p. 40-41.
Aludido às páginas 120 e s.
188
Igualmente, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que “o princípio da boa-fé, da lealdade e o da confiança
legítima, tanto como o da segurança jurídica, têm aplicação em todos os ramos do Direito e são invocáveis
perante as condutas estatais em quaisquer esferas: legislativa, administrativa e jurisdicional” (Estabilidade dos
atos administrativos: segurança/boa-fé/confiança. In: Grandes temas de direito administrativo. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009. p. 177).
189
O enunciado 413 da V Jornada de Direito Civil assevera que “os bons costumes previstos no art. 187 do CC
possuem natureza subjetiva, destinada ao controle da moralidade social de determinada época, e objetiva, para
permitir a sindicância da violação dos negócios jurídicos em questões não abrangidas pela função social e pela
boa-fé objetiva”.
84
187
partes nos negócios jurídicos: “Art. 421: O princípio da função social dos contratos também
pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”.
Feitas essas considerações, avancemos para análise das funções de tal princípio.
2.4.2.1 Função integrativa
49. A função integrativa foi a primeira a ser atribuída aos princípios jurídicos,
utilizada para solucionar um caso concreto em que não há regra específica que a discipline.
Nos negócios jurídicos, pressupõe também a omissão das partes em sua regulamentação.190
Dessa feita, a função integrativa da boa-fé e da função social não só apresenta efeitos
em situações de discricionariedade, mas também para atingir as lacunas das normas legais,
completando as inúmeras hipóteses de regulação de nascimento de relações jurídicas, do
exercício de direitos e do cumprimento de obrigações.191
Deveres de: impedir a desproporção manifesta nas prestações devidas (arts. 3º, inciso
I, e 170, caput, da Carta Magna; art. 157 e parágrafos do Código Civil) e o consequente
enriquecimento sem causa192 (art. 49 do Decreto-Lei n. 2.300 de 21/11/1986; art. 59,
parágrafo único da Lei federal 8.666 de 21/6/1993,193 e arts. 884 e seguintes do Código Civil);
de coibir lesão a interesses metaindividuais (arts. 5º, caput, e incisos IX, XXXII, XXXV e
LXIII; 37, inciso VIII; 129, inciso III; 150, § 5º; 170, incisos III e V; 220; 221; 225, caput; e
226 a 230 da Lei Máxima Nacional; art. 5º da Lei federal 7.347 de 1985; arts. 22 e seu
parágrafo único, bem como o 81 do Código de Defesa do Consumidor194) ou individuais que
190
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Curso avançado de Direito Civil. V. 3: contratos. Everaldo Augusto
Cambler (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 100. Rafael Valim, em sua dissertação O
princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro, explana que “a função integrativa,
historicamente a primeira função assinada aos princípios jurídicos, traduz-se no mecanismo posto à disposição
do órgão judicante, em face da proibição do non liquet, de se socorrer dos princípios jurídicos para solucionar
um caso concreto para o qual não há regra específica. Ou seja: os princípios funcionam na colmatação de lacunas
normativas” (São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 38).
191
PÉREZ, Jésus González. Op. cit., p. 112 e s.
192
Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua enriquecimento sem causa da seguinte maneira: “É o incremento
do patrimônio de alguém à custa do patrimônio de quem o produziu sem que, todavia, exista uma causa
juridicamente idônea para supeditar esta consequência benéfica para um e gravosa para outro” (Curso de direito
administrativo..., p. 661). Trata-se do brocardo romano nemo locupletari potest cum aliena jactura, ou seja,
ninguém deve se locupletar com o dano alheio.
193
Art. 59 da Lei federal n. 8.666 de 1993: “A declaração de nulidade do contrato administrativo opera
retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir
os já produzidos”. Seu parágrafo único: “A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o
contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos
regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe
deu causa”.
194
José Geraldo Brito Filomeno e os autores do Anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, Lei federal
8.078, de 11/9/1990, aduzem: “Quando aqui se tratou do conceito de fornecedor, ficou consignado que também o
85
envolvam a dignidade da pessoa humana (arts. 1º, inciso III, 3º, incisos I, III e IV, da Carta da
República); de fomentar cooperação e defesa de interesses recíprocos são impostos a todos
que integram a relação jurídico-administrativa, queiram as partes – inclusive a Administração
Pública – ou não (art. 37, caput Constituição Federal brasileira; art. 3º, caput da Lei federal de
8.666 de 21/6/1993; arts. 2º, parágrafo único, inciso IV; 3º e 4º, inciso II, da Lei federal 9.784
de 29/1/1999195). Incluem-se nesse rol os deveres de transparência, de informação, de
esclarecimento, de cuidado, de guardar segredo, mesmo quando o negócio jurídico tenha
alcançado seu término. Ao possibilitar a criação desses deveres, a função social e a boa-fé
atuam como fonte (de acordo com o entendimento de Miguel Reale supramencionado) no
conteúdo do negócio jurídico, impondo sua contínua otimização, independentemente de sua
previsão voluntária.196
Poder Público, como produtor de bens ou prestador de serviços, remunerado não mediante a atividade tributária
em geral (impostos, taxas e contribuições de melhoria), mas por tarifa ou ‘preço público’, se sujeitará às normas
ora estatuídas, em todos os sentidos e aspectos versados pelos dispositivos do Novo Código do Consumidor,
sendo, aliás, categórico o seu art. 22” (grifo nosso) (GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman
de Vasconcellos et alii. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. 8. ed.
rev., ampl. e atual. conforme o Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 153 e s). A
Lei federal n. 8.987, de 13/2/1995, dispôs sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços
previstos no art. 175 da Carta da República. Em seu Capítulo II, especifica o que vem a ser “serviço adequado”,
isto é, de seu art. 6º ao art. 13. Já no Capítulo IX da lei colacionada cuida da intervenção do poder concedente:
arts. 32 ao 34.
195
O art. 2o é claro, por isso, merece transcrição integral: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros,
aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. Seu parágrafo único especifica tais deveres
acessórios: “Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I – atuação conforme
a lei e o Direito; II – atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou
competências, salvo autorização em lei; III – objetividade no atendimento do interesse público, vedada a
promoção pessoal de agentes ou autoridades; IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;
V – divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição; VI –
adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior
àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; VII – indicação dos pressupostos de fato e
de direito que determinarem a decisão; VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos
administrados; IX – adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e
respeito aos direitos dos administrados; X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações
finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas
situações de litígio; XI – proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei; XII –
impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados; XIII – interpretação
da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada
aplicação retroativa de nova interpretação”. O art. 3º trata dos direitos do administrado, sem prejuízo de outros
presentes externamente à lei, ou aferíveis de direitos humanos: “I – ser tratado com respeito pelas autoridades e
servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações; II – ter ciência
da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter
cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; III – formular alegações e apresentar
documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente; IV – fazer-se
assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei”. Por outro
lado, são deveres dos administrados aqueles prescritos no art. 4º da Lei em comento. São eles: “I – expor os fatos
conforme a verdade; II – proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III – não agir de modo temerário; IV –
prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos”.
196
Judith Martins-Costa conceitua os deveres acessórios ou secundários impostos pelo princípio da boa-fé como
“deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé (princípio geral de Direito) em vista
86
Caso haja desrespeito a tais deveres anexos engendrados pelo princípio da função
social, estar-se-á sob a hipótese de inadimplemento do negócio jurídico ou de cláusulas
contratuais, independentemente de culpa, nos moldes do arts. 59, caput da Lei de Licitações e
Contratos Administrativos, e 187, 421 e 422 do Código Civil.197
2.4.2.2. Função interpretativa
50. A interpretação de um negócio jurídico é a procura do real significado que deve ser
atribuído ao seu conteúdo, total ou parcial, para que, com isso, elucidem-se os efeitos
jurídicos que dele se produzirão. Pressupõe-se a controvérsia entre as partes sobre seu
conteúdo, total ou parcialmente, no momento da execução. Caberá ao Poder Judiciário dirimir
a controvérsia, quando as partes não solverem-na por conta.198
A função social é um critério interpretativo para as normas gerais e especiais, as quais
fazem referência aos negócios jurídicos em seus vários momentos e aspectos. Inclusive, faz
parte do conceito de negócio jurídico, ou seja, não se vislumbra ela como seu elemento
externo. Portanto, compõe o próprio conteúdo dos negócios jurídicos, ou, dito de maneira
do fim do contrato (...) dada a relação de confiança em que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis
com as circunstâncias concretas da situação. Ao ensejar a criação desses deveres, a boa-fé atua como fonte de
integração de conteúdo contratual, determinando a sua otimização, independentemente da regulação
voluntaristicamente estabelecida. (parênteses nosso)” (A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. p. 440). Tais deveres anexos são, para a doutrina, divididos em deveres de proteção e
segurança, em deveres de informação e transparência e em deveres de lealdade e cooperação.
197
Não é demais relembrar que o art. 187 do Código Civil foi considerado aplicável a todos os ramos do Direito,
pelo enunciado 414 da V Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal. A despeito disso, mesmo que não houvesse esse entendimento, por ser um princípio geral do
Direito, a função social tem aplicação em todo ordenamento jurídico. E também que, como disciplina Jésus
González Pérez (e este presente trabalho em seus capítulos iniciais), os princípios gerais de Direito, por sua
natureza, existem com independência de sua consagração numa ordem jurídico-positiva e, como tais, subsistirão
quando num ordenamento jurídico se reconhecem em um preceito normativo (Op. cit., p. 44-48).
198
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Curso avançado de Direito Civil. V. 3: contratos. Everaldo Augusto
Cambler (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 95. Sobre interpretação, Carlos Maximiliano
ensina: “As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem
normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a
pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o
Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra
positiva; e logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que
na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do
Direito” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 1).
Adverte Celso Ribeiro Bastos: “Faz sentido aqui a diferença posto que hermenêutica e interpretação levam a
atitudes intelectuais muito distintas. Num primeiro momento, está-se tratando de regras sobre regras jurídicas, de
seu alcance, sua validade, investigando sua origem, seu desenvolvimento etc. Ademais, embora essas regras, que
mais propriamente poder-se-iam designar por enunciados, para evitar a confusão com as regras jurídicas
propriamente ditas, preordenem-se a uma atividade ulterior de aplicação, o fato é que eles podem existir
autonomamente do uso que depois se vai deles fazer. Já a interpretação não permite esse caráter teórico-jurídico,
mas há de ter uma vertente pragmática, consistente em trazer para o campo de estudo o caso sobre o qual vai se
aplicar a norma” (BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso
Bastos Editor, 1997. p. 21).
87
mais restrita, dos contratos, tal qual pudemos demonstrar no capítulo referente ao tema
“negócios jurídico-administrativos”. É por essa razão que o art. 421 do Código Civil assim
descreve esse princípio geral de Direito, in verbis: “A liberdade de contratar será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato”.199
Com efeito, a função social instrumentaliza os negócios jurídicos administrativos,
direcionando a interpretação das normas legais e de suas cláusulas. A relação jurídicoadministrativa resultante de tais avenças deverá estar em congruência com os objetivos do
Estado brasileiro. Com isso não se está a afirmar apenas a hipótese de interesse público
primário local e concreto ou secundário, isto é, o objeto imediato do acordo de vontades; mas,
inclusive, interesses metaindividuais e individuais relativos à dignidade da pessoa humana,
valores consagrados na Constituição Federal de 1988, no direito internacional e na
consciência ética coletiva.200
Ora, o fato de a Administração Pública perseguir interesse comum a todos não lhe
confere direito de ignorar um princípio geral de Direito, não lhe isenta de constrições morais,
pois de forma alguma os fins justificam os meios. O princípio da função social e da boa-fé
tem, nessa circunstância, o efeito de compensar uma posição de desigualdade que o
administrado tem perante a Administração e também para coibir arbitrariedades, as quais
inúmeras vezes caracterizam a atividade negocial administrativa. Nesse sentido, deve-se
sempre interpretar de maneira restrita as prerrogativas administrativas e de forma ampla as do
direito dos usuários.
As normas reguladoras da constituição de negócios administrativos, assim como
aquelas que regulamentam seu desenvolvimento (no exercício de direitos e cumprimento de
199
Não se pode olvidar que o instituto do negócio jurídico, bem como dos contratos, pertence à Teoria Geral do
Direito, como corretamente explicam Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Edmir Netto de Araújo, Agustín Gordillo,
Romeu Felipe Bacellar Filho, dentre outros. Não obstante, a Lei federal 8.666 de 1993, em seu art. 54, caput,
discipline a incidência do Direito Civil nas contratações administrativas, “muitos princípios contratuais foram
alocados tradicionalmente no campo do Direito Civil, pois este foi o ramo do Direito Privado que primeiro se
desenvolveu, além de ter sido o berço da noção de contrato. (...) o contrato é uma categoria jurídica que não
pertence nem ao Direito Privado nem ao Direito Público, com caráter de exclusividade.” (BACELLAR FILHO,
Romeu Felipe. Direito administrativo e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 175-176 e
182). Apesar de que, como já expresso alhures, “a cláusula da função social da propriedade, da qual se infere a
função social dos contratos, integra o direito positivo brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988
(art. 5º, XXIII), não constituindo, em si, uma novidade do Novo Código Civil. Desse modo, a validade de cada
contrato, inclusive quanto à adequação às exigências de sua função social, deve ser examinada em função do
quadro normativo existente quando de sua celebração” (BARROSO, Luis Roberto apud BACELLAR FILHO,
Romeu Felipe. Ibidem, p. 179, nota de rodapé 421).
200
Ou seja, adota-se no presente trabalho, por exemplo, as ideias contidas no Relatório Brundtland, que é o
documento intitulado Nosso Futuro Comum (Our Common Future), publicado em 1987. Nesse documento, o
desenvolvimento sustentável é concebido como: “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. O Relatório foi elaborado
pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
88
obrigações), deverão ser interpretadas sempre no sentido mais congruente ao comportamento
leal, fiel e honesto daqueles que sejam seus sujeitos.201 A confiança legítima dos
administrados na Administração Pública deve ser protegida, para que haja estabilidade nas
relações jurídicas por ela pactuadas. É um dever de probidade do administrador público,
insculpido no texto constitucional, nos arts. 37 e 85, inciso V.202
A justificativa, para tanto, afigura-se na dissertação de Thulio Caminhoto Nassa,
defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2010. O autor demonstra que
o direito administrativo hodierno se funda na delegação de poder do povo para o Estado, em
uma perfeita relação de administração, de acordo com art. 1º, parágrafo único da Carta
Magna. Por isso, é inegável reconhecer que, nessa situação de mero representante e guardião
do interesse da coletividade, o dever de boa-fé, isto é,
o de corresponder à confiança depositada na tutela de interesse que não lhe
pertence, consiste num princípio fundamental para o exercício da atividade
administrativa. (...) Apresenta conceito próprio que assim pode ser
sintetizado: dever de corresponder à confiança depositada pelo cidadão na
tutela do interesse público, conforme padrões de conduta exigidos e
juridicizados pela sociedade numa relação de espaço-tempo.203
Dito de outra forma, por Jésus González Pérez, as Administrações Públicas entre si e
diante de particulares devem agir com lealdade e confiança, tanto no momento da
constituição, desenvolvimento e extinção das relações jurídico-administrativas como,
inclusive, quando existirem máculas, isto é, quando exercerem competência de revisão ou
anulação, suportando com boa-fé os efeitos da extinção, sempre a atuar com fundamento no
bem de todos. Isso porque a confiança legítima ampara a confiança do indivíduo de boa-fé na
ação estatal.204
A lealdade entre Administrações facilita a colaboração e a cooperação entre si. Se boafé significa confiança, fidelidade, segurança e lealdade na relação com os demais, os titulares
dos órgãos administrativos hão de ajustar o cumprimento de suas competências com as
exigências em relação a todos, ao interesse público e às demais Administrações Públicas.
201
PÉREZ, Jésus González. Op. cit., p. 106-112.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estabilidade dos atos administrativos..., p. 173-175.
203
A boa-fé no regime jurídico de direito administrativo. São Paulo: Mestrado em Direito, PUC-SP, 2010. p.
163.
204
Rafael Valim explica que “diversamente do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, assimilados à tradição
do Direito Brasileiro e que se cogita de relações jurídicas constituídas validamente e infensas à intromissão de
quaisquer normas jurídicas, a confiança legítima ampara a confiança do indivíduo de boa-fé na ação do Estado, a
qual pode se traduzir em um direito subjetivo invalidamente constituído ou em uma mera expectativa legítima
gerada pelo Estado” (Op. cit., p. 112).
89
202
Devem respeitar, ao cumprir sua competência, outras competências autônomas (União,
Estados, Distrito-Federal, Municípios), agindo com lealdade para não ferir o equilíbrio
federativo. Devem, igualmente, garantir a participação democrática da comunidade na
articulação e execução de atividades administrativas. Isso impõe que os agentes
administrativos não podem nem devem se limitar à letra fria da lei, mas deles deve se esperar
uma conduta civilizada, normal, honesta e leal.205
Enfim, ao analisar as cláusulas dos negócios jurídicos administrativos, deverá o
magistrado interpretá-las de maneira a aproximá-las da lealdade, da confiança e da
cooperação entre as partes da avença, em aplicação à teoria da confiança, bem como proteger
interesses metaindividuais e individuais ligados à dignidade da pessoa humana.
Ao tratarem, exempli gratia, de hipóteses relacionadas ao art. 59, parágrafo único da
Lei de Licitações e Contratações Administrativas, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça
exemplifica a questão da interpretação da boa-fé do contratado, v.g., no Recurso Especial n.
579.541/SP, julgado em 17/22004, DJ de 19/4/2004, de relatoria do Ministro José Delgado; e
no Recurso Especial n. 440.178/SP, julgado em 8/6/2004, DJ de 16/8/2004, de relatoria do
Ministro Francisco Falcão. O particular que participou de boa-fé de contratação inválida com
a Administração Pública deve ter seu patrimônio indenizado, para que não ocorra
enriquecimento sem causa dela por um ato ilícito.206
Outrossim, a boa-fé objetiva e função social devem ser usadas na interpretação das
normas jurídicas aplicáveis às relações negociais administrativas, pois se trata de princípio
geral de Direito, implícito na Constituição Federal.
A confiança no direito administrativo deve ser entendida como aquela depositada pelo
cidadão na tutela do interesse público, conforme os padrões impostos pela consciência ética
coletiva, pelos direitos humanos e pela Constituição de um país, em prol do bem de todos e do
desenvolvimento nacional sustentável.
Portanto, a Administração Pública, parte do negócio jurídico administrativo, tem tarefa
de buscar de maneira leal, honesta e proba, para manter a confiança dos particulares que com
ela negociam, a concretização imediata de um dos inúmeros interesses públicos necessários ao
bem-estar social de um grupo, em determinado tempo, sem desrespeitar os fins a que a
sociedade eticamente se impôs.
Exemplos dessa interpretação, conforme a função social dos negócios jurídicos
administrativos, são vislumbráveis na obra de Carolina Zancaner Zockun. A autora defende a
205
206
PÉREZ, Jésus González. Op. cit., p. 22-30.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos..., p. 748.
90
proteção do direito do usuário e do concessionário no caso de haver necessidade do serviço
público, mas o usuário não ter condições financeiras de arcar com a tarifa. Nesse caso, seu
entendimento é de que não pode haver o corte na prestação, bem como a concessionária não
pode ficar sem receber os valores decorrentes do serviço por ela prestado. A via seria a ação
de cobrança ou de execução. Se o usuário não tiver condição de arcar com a tarifa, e se isso
ocasionar desequilíbrio econômico-financeiro no contrato de concessão, as partes da avença
deverão tentar sua repactuação para restabelecê-la. Ora, a população carente não pode ficar
sem a prestação de tais serviços, pois isso iria de encontro ao valor fundamental da dignidade
da pessoa humana, devendo, então o Estado subsidiar obrigatoriamente seu fornecimento.207
2.4.2.3. Função inibidora
51.
Abordamos
desenvolveram
que
peculiaridades
os
negócios
diferentes
jurídicos
daquelas
administrativos,
dos
negócios
historicamente,
jurídico-comuns.
Especificamente, os contratos administrativos contam com a possibilidade do uso de cláusulas
exorbitantes previstas na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Art. 58 e incisos da
Lei federal 8.666 de 21/6/1993), justificáveis pela supremacia do interesse público sobre o
privado. Exemplos delas são: alteração ou rescisão unilateral do contrato, fiscalização de sua
execução, aplicação de penalidades, anulação, retomada do objeto e restrições ao uso do
princípio exceptio non adimpleti contractus. Em contrapartida, o contratante tem direito à
garantia da intangibilidade do equilíbrio econômico-financeiro, o qual tem amparo no art. 37,
inciso XXI, da Lei Máxima Nacional e art. 65, §§ 5º e 6º, da referida lei.
A função inibidora do princípio da função social dos contratos está relacionada às
cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. Elas apenas se justificam quando não
alterem o equilíbrio econômico-financeiro da avença (art. 37, inciso XXI da Carta da
República) e, igualmente, respeitem a função social do contrato, isto é, quando não usurpem
nem a confiança e a boa-fé do contratante (eficácia interna), nem a dos administrados
207
ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros
Editores, 2009. p. 175. Muitos podem perguntar de onde alocar essas verbas. Primeiramente, se se busca
sustentabilidade ética e social para a construção de uma sociedade que atenda aos bens de todos, deve-se elevar,
definitivamente, como asseveramos em diversas partes do presente trabalho, a dignidade da pessoa humana
como vértice efetivo dos sistemas jurídico e econômico. E serviços públicos, no caso, são meios fornecidos ao
cidadão para terem condições mínimas necessárias para uma sobrevivência decente, permitindo sua inclusão
social e auxiliando na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que todos possam ter garantida
sua dignidade e possam exercer salutarmente sua cidadania. Fábio Konder Comparato, em sua obra Ética:
direito, moral e religião no mundo moderno (São Paulo: Companhia das Letras, 2006), demonstra, dentre outras
coisas, como a tributação e aplicação de recursos no Brasil é desproporcional e também como se poderia torná-la
mais justa. Assim como o fez Juarez Freitas em trabalho intitulado Sustentabilidade: Direito ao futuro.
91
(eficácia externa). Do contrário, não se tratará de cláusula exorbitante, mas abusiva,
suprimível administrativa ou judicialmente, com base no art. 5º, inciso XXXV, da Carta da
República, sob os moldes do art. 59 da Lei federal 8.666.208
O princípio da função social exige, para que o uso das cláusulas exorbitantes seja justo
para o particular e útil para a sociedade, que o art. 2º, parágrafo único e seus incisos da Lei
9.784, de 29/1/1999, seja aplicado, no que couber, mutatis mutandis, analogicamente, com
fim de se preservar a confiança entre as partes, através da transparência dos motivos de fato e
de direito que engendram o uso dessas prerrogativas públicas; com base em finalidade pública
e não para promoção pessoal de agentes ou autoridades; segundo valores aferíveis da ética e
da boa-fé, respeitando-se formalidades essenciais às garantias do administrado; com
adequação do ato exorbitante ao direito comum (meio) ao fim que se almeja promover; com
interpretação afinada o máximo possível à consecução de fins públicos, vedando-se a
retroatividade dessa interpretação.
A boa-fé obriga ao Poder Público o uso de suas prerrogativas de maneira honesta,
normal, reta e proba. Não é admissível sua utilização maliciosa, confusa ou equivocamente,
muito menos de forma a exceder à prerrogativa, dando ensejo ao abuso. O interesse público
deve ser resguardado e cláusula exorbitante usada de maneira a trazer o menor transtorno
possível ao patrimônio do particular. Do contrário, deve ser revisto judicialmente o
contrato.209
208
Abuso de poder não é uma norma jurídica. “Trata-se de uma qualificação doutrinária de certas situações
jurídicas. (...) Abuso de poder é o nome dado à situação jurídica da Administração que se configura quando ela
edita atos jurídicos (rectius, atos administrativos) inválidos por vício de finalidade, de contentorização ou de
sujeito” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São
Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 60-62). O gênero “abuso de poder” ou “abuso de autoridade” reparte-se em
duas espécies bem caracterizadas: o excesso de poder e o desvio de finalidade. Hely Lopes Meirelles os
conceitua, in verbis: “O excesso de poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, vai
além do permitido e se exorbita no uso de suas faculdades administrativas. (...) O desvio de finalidade ou de
poder verifica-se quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos
ou por fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público” (apud ibidem). Conforme
adverte Ricardo Marcondes Martins, a expressão “desvio de poder” engloba os vícios de finalidade e os de
contentorização os quais, respectivamente: “o ato administrativo não concretiza o princípio exigido pelo sistema
normativo, entenda-se, o princípio mais pesado no caso concreto, ou, apesar de ter concretizado o princípio mais
pesado, não o faz pelo meio de concretização exigido pelo Direito globalmente considerado. (...) a finalidade
refere-se à escolha do princípio a ser concretizado; a contentorização refere-se à escolha do meio de
concretização” (Ibidem, p. 61). Ilustração salutar é dada pelo mesmo autor: “Assim, a Administração Pública é
obrigada a apurar todos os princípios incidentes, v.g., P1, P2, P3, PF1, PF2, PF3, a ponderá-los e a realizar a
medida de concretização exigida pelo sistema, v.g., M1 e M3. Se a Administração concretiza o princípio errado
P2, ou concretiza o princípio certo pelo meio errado, M2, edita, v.g., o ato administrativo concretizador de P2 por
M2, incide em desvio de poder, modalidade de abuso de poder. Quando a edição do ato dá-se por agente
incompetente ou ilegitimado, incide em excesso de poder, modalidade de abuso de poder” (Ibidem, p. 62).
209
Clóvis Couto e Silva leciona que a boa-fé enriquece o conteúdo das obrigações, de modo que não deve apenas
satisfazer os deveres expressos em lei e no Direito, mas, inclusive, verificar a utilidade que resulta para outra
parte sua efetivação, quando por mais de um modo puder ser cumprida (O princípio da boa-fé no Direito
brasileiro e português. In: O Direito privado brasileiro na visão de Clóvis Couto e Silva, p. 54-55).
92
Com efeito, princípio da boa-fé também promove a aplicação da máxima dolo agit qui
petit quod statim redditurus est, ou seja, vedação ao exercício inútil de direito e deveres, sem
produção de efeitos práticos, de molde não a obter qualquer resultado proveitoso, mas causar
dano considerável a terceiro.
A motivação – como se denota – é vital para o uso de cláusulas exorbitantes, não
sendo admissível a invocação de algum interesse público de conteúdo material indeterminado.
A honestidade e exatidão da menção ao motivo concreto, real e definido se impõem pela
confiança depositada pela sociedade no agente público e por lealdade com o particular que se
comprometeu a um conteúdo negocial, o qual será alterado, provavelmente, a engendrar
modificações em seu cumprimento. Deverá, inclusive, demonstrar sua não existência antes da
contratação. A modificação deverá guardar proporção com as circunstâncias que a
embasaram.
Além de interditar o abuso de poder no uso de prerrogativas administrativas legítimas,
o princípio da boa-fé veda a atuação da Administração-parte em situações de venire contra
factum proprium: situação contraditória em que uma das partes se comporta de maneira
dissonante, por via comissiva ou omissiva, à determinada anteriormente, a qual desenvolveu
expectativas de comportamento na outra parte. É aceito o entendimento na jurisprudência
pátria, como nesta hipótese próxima ventilada:
“APELAÇÃO
CONTRATO
CÍVEL
E
REEXAME.
ADMINISTRATIVO,
DIREITO
CONCESSÃO.
PÚBLICO.
PEDÁGIO.
ADMINISTRATIVO,
RESCISÃO
JUDICIAL.
INADIMPLEMENTO DO PODER CONCEDENTE. O princípio da boa-fé objetiva impede o venire
contra factum proprium, a conduta contraditória. As partes, ao celebrarem o contrato, estabelecem
uma relação de confiança de que não apenas o contrato será cumprido, mas também de que as ações
não previstas contratualmente e ocorrentes na vida de relação, necessárias para alcançar o seu
cumprimento, sejam exercidas por meio de comportamentos que indiquem a intenção de colaboração.
Caso em que o Poder Concedente exerceu de forma ostensiva conduta contraditória com a de
cumprimento do contrato afirmando publicamente que não iria dar ordem de início dos trabalhos e
causou abalo na confiança de cumprimento do contrato, além de deixar de exercer no tempo e forma
previstos no contrato obrigações cujo cumprimento era condição para o início da exploração da
outorga de concessão, o que justifica a rescisão judicial a pedido da concessionária. RECURSOS DAS
PARTES PARCIALMENTE PROVIDOS E REDEFINIÇÃO DO DIES A QUO DOS JUROS POR
93
REEXAME” (Ap. n. 70044786192, 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul).210
O art. 59, parágrafo único do Estatuto Licitatório, também é exemplo de aplicação do
princípio da função social, com o fim de inibir o enriquecimento sem causa do Estado e
eventuais danos ao contratado, cuja execução do negócio jurídico pode já ter iniciado. A
nulidade de um negócio jurídico administrativo não isenta a Administração Pública de
indenizar o particular de boa-fé. No entanto, comprovada sua má-fé, a afirmação anterior não
procede. No Superior Tribunal de Justiça, há inúmeros julgados que asseveram importância
desse preceito, com o fim de resguardar a confiança daqueles que com o Poder Público
contratam.211
Mais uma situação em que se pode suscitar a aplicação do princípio da função social,
justiça contratual, nos negócios jurídicos administrativos concerne à preservação do equilíbrio
econômico-financeiro. Trata-se de um dever de renegociação imposto às partes da avença,
previsto no art. 37, inciso XXI, da Carta Política e art. 65, inciso II e §§ 5º e 6º, da Lei de
Licitações e Contratações Públicas, bem como no art. 317 do Código Civil (dirigismo
210
Julgado retirado do site: www.tjrs.jus.br
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA E AÇÃO DE COBRANÇA. LICITAÇÃO. NULIDADE. CONCORRÊNCIA DO
PARTICULAR. OBRA EFETIVAMENTE ENTREGUE CONFORME AS ESPECIFICAÇÕES DO EDITAL.
INDENIZAÇÃO. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO
49 DO DECRETO-LEI 2.300/86 (ATUAL ART. 59 DA LEI 8.666/93). 1. Argumenta a autarquia federal que o
artigo 49 do Decreto-Lei 2.300/86 (atualmente artigo 59 da Lei 8.666/93) “estabelece como condição para o
dever de indenizar o contratado a não imputabilidade da irregularidade que motivou a nulidade do contrato
firmado com a Administração”, o que não ocorreu no caso em que foi constatada a participação da contratada na
nulidade contratual em virtude de superfaturamento da obra. 2. O caput da regra geral estabelece para todos os
casos de nulidade do contrato administrativo o retorno ao estado anterior à avença (art. 49. A declaração de
nulidade do contrato administrativo opera retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que ele,
ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos) exatamente como ocorre no direito
privado (art. 182 do CC/02). O parágrafo único protege o contratante de boa-fé que iniciou a execução do
contrato, merecedor, portanto, de proteção especial à sua conduta (A nulidade não exonera a Administração do
dever de indenizar o contratado, pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada, contanto
que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa). 3. Em relação ao
contratado de má-fé, não lhe é retirada a posição normal de quem sofre com a declaração de invalidade do
contrato – retorno ao estado anterior, prevista no caput do art. 49 do Decreto-Lei 2.300/86. Esse retorno faz-se
com a recolocação das partes no estado anterior ao contrato, o que por vezes se mostra impossível, jurídica ou
materialmente, como ocorre nos autos (obra pública), pelo que as partes deverão ter seu patrimônio restituído em
nível equivalente ao momento anterior, no caso, pelo custo básico do que foi produzido, sem qualquer margem
de lucro. 4. Recurso especial não provido”. (grifo nosso) (REsp 1153337/AC, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª
Turma, julgado em 15/5/2012, DJe 24/5/2012). Outros exemplos da aplicação desta regra estão no REsp
753.039-PR, REsp 408.785-RN, REsp 730.800-DF, REsp 662.924-MT, REsp 1.096.917-PE, REsp 1.238.466SP, EDcl nos EDcl no AgRg no REsp 1.055.031-RJ, REsp 728.341-SP, REsp 1.184.973-MG.
94
211
contratual já mencionado em capítulo anterior), com o fim de manter o equilíbrio de direitos e
prestações entre as partes.212
Celso Antônio Bandeira de Mello assenta sobre o tema, em Fundamentos da
preservação do equilíbrio econômico-financeiro, que, embora a supremacia dos interesses
públicos sobre os particulares seja um dos núcleos do Direito Administrativo, as entidades
estatais que sacrificam o direito alheio para colher vantagens patrimoniais estão a esquivar-se
do cumprimento do interesse público e de cumprir direito de terceiros:
Com efeito, o Estado não é um especulador e não se pode converter em
explorador ganancioso. Em relação que pressupõe um voluntário atrelamento
de vontades convergentes, onde primam os deveres de lealdade e boa-fé,
descabe à Administração procurar esquivar-se ao dever de restaurar o
equilíbrio econômico segundo cujos termos obteve a vinculação
espontânea.213
Para a Administração Pública, a revisão do negócio jurídico para reequilibrar sua
equação econômico-financeira é um dever-poder, e não uma faculdade. Três são os requisitos
para se caracterizar a imperiosidade dessa revisão com o intuito de reestabelecer seu
equilíbrio econômico-financeiro. O primeiro é a ocorrência de evento imprevisível ou
previsível de consequências incalculáveis (é o caso da teoria da imprevisão: cuja previsão
antecipada da ocorrência do fato ou de suas consequências não era possível; ou da teoria do
fato do príncipe, na qual agravos econômicos oriundos de atos do Poder Público expedidos
supervenientemente com competência alheia à sua posição de contratante). O segundo: a
superveniência de evento (à apresentação da proposta pelo particular). Por derradeiro, se
houver desproporcional alteração no encargo assumido pelo particular (causador de
212
Art. 37 da Lei Fundamental: “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: Inciso XXI: ressalvados os casos especificados
na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública
que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de
pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as
exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. Art.
65, caput da Lei 8.666 de 1993: “Os contratos regidos por esta lei poderão ser alterados, com as devidas
justificativas, nos seguintes casos: Inciso II: por acordo das partes: Alínea ‘d’: para restabelecer a relação que as
partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a atribuição da Administração para a justa
remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro
inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis, porém de consequências
incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou ainda, em caso de força maior, caso
fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”. Art. 317 do Código
Civil: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e
o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto
possível, o valor real da prestação”.
213
In: Grandes temas de direito administrativo..., p. 246-249.
95
impossibilidade econômica de cumprimento do contrato, ou, ao menos, de relevantes
dificuldades na sua execução). O reestabelecimento do equilíbrio pode ser feito administrativa
ou judicialmente.214 Tais teorias têm expressa guarida no disposto no art. 65, inciso II, alínea
“d” da Lei federal 8.666.
A tutela do equilíbrio econômico-financeiro nas avenças públicas destina-se a
beneficiar a própria administração. Caso os particulares tivessem de suportar consequências
de todos os eventos danosos possíveis, passariam a formular propostas mais onerosas. A
Administração Pública arcaria com esses eventos meramente possíveis, mesmo quando
inocorressem. Conclui-se ser benéfico chamar os particulares a oferecerem propostas
possíveis como se quaisquer fatos prejudiciais ou onerosos futuros, hipoteticamente, não
fossem ocorrer. Dessa maneira, as entidades estatais só responderiam pelo custo desses
eventos se realmente se deflagrassem.215
Quanto à alegação da exceptio non adimpleti contractus, em um primeiro instante,
entendia-se inaplicável. Porém, os incisos XIV e XV, do art. 78, da Lei de Licitações e
Contratos Administrativos consagraram essa hipótese. Em todas essas hipóteses, caso o
particular decida pela continuidade do negócio jurídico, fará jus à revisão do equilíbrio
econômico-financeiro, com fulcro no disposto no Código Civil, em seu art. 479. É uma
aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos, caso não haja interesse público
contrário. Entretanto, se a preferência for a rescisão, caberá indenização prevista no art. 79, §
2º, da Lei federal 8.666.
O art. 478 do Código Civil deve incidir, por justiça contratual (arts. 421 e 422 do
Código Civil), em todas as situações de fato impeditivas do cumprimento, pelo particular, de
sua obrigação, não subsumidas na hipótese do art. 78, inciso XVI, da Lei federal 8.666. Na
doutrina argentina, Marienhoff demonstrou que não se pode sustentar o sacrifício de uma
única pessoa ou, muito menos, aceitar sua ruína econômica, para transformá-la em financiador
de obras estatais, salvo no caso de prestação de serviço público.216
Diante do exposto e do princípio da função social, dito equilíbrio necessita de
obrigatoriamente ser mantido ao longo de todo o trâmite dos negócios jurídicos
administrativos, para que não ocorra qualquer indevida redução do lucro (justo e razoável, e
não desproporcional) do particular contratado, ou, por via transversa, seu enriquecimento
214
FERREIRA, Daniel; GUÉRIOS, Patrícia Borges. “Função social” e equilíbrio econômico-financeiro dos
contratos,
privados
e
administrativos.
Disponível
em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9548#_ftnref8> Acesso em: 14 de ago.
de 2012.
215
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos..., p. 776.
216
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo e o Novo Código Civil..., p. 182.
96
indevido, na hipótese de minoração de encargos. Mas não é apenas isso! Para tanto, é
indispensável a aplicação da boa-fé objetiva na fase pré-contratual, momento onde se formam
os vínculos e o equilíbrio econômico do contrato.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro sintetiza que o equilíbrio econômico-financeiro contém
dois aspectos: o da equivalência material das prestações, ou seja, a equivalência objetiva,
atendendo à valoração econômica das contraprestações e invocando em seu amparo o ideal de
justiça comutativa; e o da equivalência subjetiva, atendendo ao valor subjetivo que para cada
uma das partes tem a prestação.217
O princípio da função social também impõe à Administração Pública o princípio do
favor negotti ou, como mais usual, favor acti do direito civil, previsto nos arts. 475 e 479 do
Código Civil e no enunciado 21, aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida pelo
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de
setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, o qual
dispõe que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do Novo Código Civil, constitui
cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e
justas”.
Jésus González Pérez adverte que a confiança derivada da constituição de um ato leva
ao dever de todos os que intervieram para isto de conservação, de maneira que apenas se
busque em última análise sua anulação, utilizando de interpretações que corrijam seu
significado ou o convalidem. Bem como sempre que faltar um mínimo para o cumprimento da
prestação para o término da avença, sua resolução não está de acordo com a função social.218
Estamos diante da aplicação, mutatis mutandis, da obra de Weida Zancaner. Se for
possível à Administração Pública sanar vício formal, ela tem o dever-poder de fazê-lo. Como
deduzido pela jurista, o dever de invalidar cede passo à boa-fé dos administrados. Trata-se,
efetivamente, de um limite ao dever de invalidar.219 Seria abuso de direito do Poder Público
anular avenças com vícios formais não essenciais.220
André Luiz Freire leciona a questão com contundência em sua obra Manutenção e
retirada dos contratos administrativos inválidos, in verbis:
217
Direito administrativo..., p. 281.
PÉREZ, Jésus González.
219
Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p.
114-117.
220
Abuso de direito é “una inmoralidad o antisocialidad manifestada en forma subjetiva (cuando el derecho se
actúa con la intención de perjudicar o sencillamente sin ese fin serio y legítimo) o en forma objetiva (cuando el
daño proviene de exceso o de anormalidad en el ejercicio del derecho)” (VÁZQUEZ, Castán apud PÉREZ, Jésus
González. Principio general de la buena fe... p. 178.
97
218
Se houver dúvida quanto à retirada ou à manutenção (passiva) do contrato
inválido tendo em vista a indeterminação de conceitos normativos, caberá ao
órgão competente conservar o ato administrativo inválido (unilateral ou
bilateral). Isso porque, em razão do princípio da conservação dos atos
jurídicos (...), deverá o aplicador optar pela preservação do ato inválido.221
Sabe-se que a forma é causa garantidora do interesse das partes pública e privada. A
partir do princípio da conservação dos contratos tratado acima, infrações à forma apenas
devem afetar a validez de negócios jurídicos administrativos quando o impeçam de alcançar
seu fim ou o desamparem. Trata-se de hipótese em que os defeitos formais são determinantes
da invalidez, situação em que se configura abuso de nulidade por motivos formais. Quem,
apesar de conhecer o defeito de forma, cumpre o negócio jurídico ou aceita seu cumprimento
pela outra parte não pode pôr em dúvida a validez do acordo, muito menos impugná-la, por
ser contrário a normas de ordem pública, tal como a boa-fé e a função social.
O princípio da função social dos negócios jurídicos possui eficácia interna de forma a
estabelecer justiça comutativa entre as partes, mas eficácia externa promocional e distributiva,
tendo como fim a sustentabilidade e a proteção de interesses metajurídicos e individuais
relativos à dignidade da pessoa humana.
Uma primeira consequência prática, a qual poderíamos propor, exemplificativamente,
está presente em negócios jurídicos administrativos com o Terceiro Setor, suscitada por Sílvio
Luís Ferreira da Rocha em sua obra Terceiro Setor. Trata-se de uma afronta ao princípio
função social do contrato por desrespeito à repartição dos riscos ou do risco compartido,
previsto na Lei 4.320, de 17/3/1964, em seu art. 16.222 Tal lei impede de se considerar a
atividade de fomento como simples ato de liberalidade administrativa, o qual exonere o
beneficiário de todo o risco ou da obrigatoriedade de aportar recursos próprios para a
atividade fomentada,223 como ocorre, v.g., no Estado de São Paulo e no Município de São
Paulo com as Organizações Sociais na área de saúde.224 Inúmeros contratos de gestão225 são
221
Op. cit., p. 133.
Art. 16. “Fundamentalmente e nos limites das possibilidades financeiras a concessão de subvenções sociais
visará à prestação de serviços essenciais de assistência social, médica e educacional, sempre que a
suplementação de recursos de origem privada aplicados a esses objetivos revelar-se mais econômica”.
Parágrafo único: “O valor das subvenções, sempre que possível, será calculado com base em unidades de
serviços efetivamente prestados ou postos à disposição dos interessados obedecidos os padrões mínimos de
eficiência previamente fixados”.
223
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro Setor, p. 33 e 106-107.
224
A Lei 9.637, de 15/5/1998, conversão da Medida Provisória 1.648, criou e disciplinou as Organizações
Sociais. “São pessoas jurídicas organizadas sob a forma de fundação privada ou associação sem fins lucrativos,
que recebem ‘título jurídico especial de organização social, conferido pelo Poder Público, mediante atendimento
dos requisitos previstos expressamente em lei’” (ALVES, Francisco de Assis apud ROCHA, Sílvio Luís Ferreira
98
222
firmados entre o Poder Público do Estado de São Paulo ou do Município de São Paulo e
Organizações Sociais, com base na Lei Complementar Estadual n. 846, de 4 de junho de
1998, e Lei Municipal n. 14.132, de 24 de janeiro de 2006, respectivamente. Trata-se de
onerosidade excessiva ao erário público e desrespeito da boa-fé objetiva na fase précontratual, a qual, inclusive, não conta com licitação pública.
A segunda consequência estaria nas privatizações ocorridas por preço pífio, de forma
manifestamente desvantajosa para o Estado ou a sociedade, mesmo em épocas de necessidade
econômica.226 Trata-se de lesão ao erário público por tais avenças. Um exemplo clássico
presente na memória dos brasileiros é o da Companhia Vale do Rio Doce. Sua cotação feita
pela corretora Marril Lynch foi no valor de dez bilhões de reais. Leiloada em maio de 1997,
por três bilhões e trezentos milhões de reais, o patrimônio da empresa era de mais de noventa
e dois bilhões de reais.227 Sem entrar em detalhes, está-se diante de flagrante violação da
função social dos negócios jurídicos administrativos, pois não há equivalência material
mínima da prestação e contraprestação, com afronta ao princípio comutatividade dos
contratos. Por ser uma norma de ordem pública aplicável a todo sistema, por ser princípio
constitucional implícito, tal negócio deveria ter sido considerado, respeitosamente, nulo pelos
julgadores. A ação popular intentada por Celso Antônio Bandeira de Mello, Fábio Konder
Comparato, Dalmo de Abreu Dallari e outros ainda não foi julgada definitivamente no
Superior Tribunal de Justiça.
Mais uma hipótese a ser aventada é aquela em que as prestações dadas ao Poder
Público valem menos que as contraprestações por ele ofertadas. Quando prestação e
contraprestação estão desproporcionais, a confiança da sociedade na entidade estatal é
afrontada. Isso ocorre no caso da ementa abaixo. Contrato administrativo inválido:
“APELAÇÃO (CODENUNCIADOS). AÇÃO POPULAR. IRREGULARIDADE NO
PREÇO
DA
AQUISIÇÃO
DE
PRODUTO
(FRANGO).
RESPONSABILIDADE
da. Op. cit., p. 98). Para mais informações especificamente sobre o tema, vide: MADY, Fernando K.
Organizações sociais da saúde no Estado de São Paulo. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2922, 2 jul. 2011.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19457> Acesso em: 14 de ago. de 2012.
225
Diogenes Gasparini ensina que é “o ajuste celebrado pelo Poder Público com órgãos e entidades da
Administração direta, indireta e entidades privadas qualificadas como organizações sociais, para lhes ampliar a
autonomia gerencial, orçamentária e financeira ou para lhes prestar variados auxílios e lhes fixar metas de
desempenho na consecução de seus objetivos” (Op. cit., p. 874-875). Sobre o tema, com o objetivo de
aprofundar, recomenda-se consultar obra indispensável de Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Terceiro Setor, p. 95 e
s.
226
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administtrativo, 1º tomo: Parte generale. 7. ed. Belo Horizonte:
Del Rey e Fundación de Derecho Administrativo, 2003. p. XI-23-24.
227
Disponível em: <http://www.sasp.org.br/index.php/notas/124-venda-da-vale-do-rio-doce.html>.
99
SOLIDÁRIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA - DENUNCIAÇÃO DA
LIDE.
PARTICIPAÇÃO NA LICITAÇÃO. INTERESSES DIFUSOS TUTELADOS. INTERESSE
POLÍTICO INOCORRENTE. LEGALIDADE DO ATO DESCARACTERIZADA. PREÇO
APURADO POR MEIO DE PERÍCIA. SUPERFATURAMENTO. REQUISITOS DA
AÇÃO POPULAR PRESENTES. PRESERVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE
PÚBLICA. SENTENÇA ULTRA E EXTRA PETITA. NÃO CONFIGURADA. APELO
IMPROVIDO. APELAÇÃO (PREFEITO E SECRETÁRIO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS).
AÇÃO POPULAR. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. AGRAVO RETIDO. CONHECIDO
E
IMPROVIDO.
LESIVIDADE
DEMONSTRADA.
LEGITIMIDADE
DE
AGIR.
MANIFESTA. COERÊNCIA ENTRE A PRETENSÃO E A PRESERVAÇÃO DO
INTERESSE PÚBLICO. SOLIDARIEDADE REFLEXA DO VÍCIO DO CONTRATO
ADMINISTRATIVO.
PRORROGAÇÃO
DESINFLUENTE
AO
PREÇO
FINAL
PRATICADO. PESQUISA DE PREÇOS. PERÍCIA. QUANTIDADE QUE JUSTIFICARIA
PREÇO CONDIZENTE. AGRAVO E APELO IMPROVIDO. APELAÇÃO (SECRETÁRIO
DA EDUCAÇÃO) AÇÃO POPULAR. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. AGRAVO
RETIDO CONHECIDO E IMPROVIDO. PASTA DA EDUCAÇÃO. COMPRA FEITA
PARA
MERENDA
PRESERVAÇÃO
DA
ESCOLAR.
PODER
MORALIDADE.
GERENCIAL
COMPARAÇÃO
E
DE
ADMINISTRATIVO.
PREÇOS.
APELO
DESPROVIDO. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS.” (Apelação cível n.
9111904-28.2007.8.26.0000, da Comarca de Osasco, 5ª Câmara de Direito Público do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator Carlos Abrão, julgado em 18/4/2011)
O Poder Público é obrigado a fiscalizar a execução do contrato, conforme arts. 58,
inciso III, e 67 da Lei federal 8.666 de 1993. Tanto o excesso como a não utilização de
prerrogativa pública constituem afronta ao princípio da função social, pois é passível de gerar
injustiças. Se a Administração Pública viola determinada norma jurídica, não poderá exercer,
sem incorrer em abuso, a situação jurídica que essa mesma norma lhe atribui. É a inaplicação
do tu quoque, que não pode ser utilizada para se beneficiar da atitude de particulares em
desrespeito aos valores metajurídicos e individuais relativos à dignidade humana.
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCEDIMENTO
SUMARÍSSIMO.
RESPONSABILIDADE
SUBSIDIÁRIA
DA
ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA POR CULPA “IN VIGILANDO”. INTERPRETAÇÃO SISTÊMICA DOS ARTS.
67 E 71 DA LEI n. 8.666/93. A responsabilidade subsidiária dos entes da administração
100
pública resulta da interpretação sistêmica dos arts. 67 e 71 da Lei n. 8.666/93 com os
princípios e valores expressos na Constituição Federal que direcionam no sentido da
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. “In casu”, o Tribunal Regional
decidiu que, se a reclamada se omitiu na fiscalização do cumprimento das obrigações
trabalhistas pela empresa contratada para lhe prestar serviços, não pode se esquivar da
responsabilidade indireta quanto a essas obrigações. Nos termos do art. 67 da Lei n. 8.666/93,
é dever da Administração Pública velar pela adequada e correta execução do contrato
administrativo, que se estende à observância dos direitos trabalhistas dos empregados da
empresa contratada. Nesse contexto fático-probatório, não se divisa afronta literal e direta aos
preceitos constitucionais indicados no recurso denegado, uma vez que a própria Lei de
Licitações estabelece a obrigatoriedade de a Administração Pública fiscalizar o cumprimento
das obrigações contratuais a cargo do contratado, aí incluídos os encargos trabalhistas, sendo
a responsabilidade subsidiária estendida a multas e indenizações. Deve ser mantida, portanto,
a decisão agravada. Agravo de instrumento a que se nega provimento.” (AIRR
1304405520065210005 130440-55.2006.5.21.0005, Relator(a): Walmir Oliveira da Costa,
Julgamento: 4/5/2011, Órgão Julgador: 1ª Turma, Publicação: DEJT 13/5/2011)
Outra hipótese suscitável está insculpida no art. 230 da Carta Política e no Estatuto do
Idoso, em seu art. 40 e incisos, em que se promove a interpretação distributiva e promocional
dos negócios jurídicos administrativos, com base na solidariedade e interesse metajurídico da
aplicação de sua função social.
“CONSTITUCIONAL
E
ADMINISTRATIVO.
TRANSPORTE
COLETIVO
INTERESTADUAL DE PASSAGEIROS. ESTATUTO DO IDOSO. GRATUIDADE E
DESCONTO NO PREÇO DA PASSAGEM. DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL.
EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. GARANTIA PRÓPRIA DE CONTRATO
CELEBRADO MEDIANTE LICITAÇÃO. FONTE DE CUSTEIO. DESNECESSIDADE.
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO ADMINISTRATIVO. 1. Dispõe a Constituição, no art.
5º, § 2º, que os direitos expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 2.
A lei pode estender os direitos fundamentais sociais expressamente previstos na Constituição,
aplicando os princípios constitucionais pertinentes, assim como fez ao estabelecer “benefício
tarifário” para os idosos no transporte coletivo interestadual de passageiros. 3. O reequilíbrio
econômico-financeiro é direito de categoria inferior e, por isso, não se pode antepô-lo ao
101
direito fundamental dos idosos ao transporte coletivo gratuito ou incentivado. 4. As limitações
administrativas, dentro do razoável, estão implícitas na função social da propriedade (“lato
sensu”). Exigir compensação sempre que a lei restringe a potencial exploração econômica
seria compelir o Estado a regular mediante compra, regime evidentemente impraticável. 5.
Não houve limitação desproporcional, em nome da função social, do contrato administrativo
de prestação de serviço público de transporte coletivo de passageiros (cuja finalidade é
assegurar o direito fundamental de ir e vir), aos interesses econômicos em causa. 6. Decidiu o
STJ: “Registra-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a matéria em
questão nos autos da Suspensão de Segurança 3.052/DF, já se manifestou, por intermédio de
decisão proferida pelo eminente Ministro Gilmar Mendes, que suposto prejuízo ou
desequilíbrio de custos na equação da prestação dos serviços concedidos pode ser
eventualmente superado, a partir da atuação da própria Administração, ou desta em conjunto
com as prestadoras do serviço.” (STJ, RESP 200800978446, Rel. Ministra Denise Arruda, 1ª
Turma, DJ de 10/12/2009) 7. Apelação provida para, reformando a sentença, julgar
procedente o pedido inicial. 8. Condenação da Ré ao pagamento de honorários advocatícios
de 10% sobre o valor da causa”. (Apelação Cível n. 46.786/MG, 0046786-47.2004.4.01.3800,
Relator: Des. João Batista Moreira, Julgamento: 28/9/2011, Órgão Julgador: 5ª Turma,
Publicação: e-DJF1 p. 404 de 7/10/2011)
Ora, na esteira da abordagem em capítulo anterior sobre terceiros, a função social
possui eficácia protetora de terceiros de boa-fé, cujo descumprimento leva à invalidade do
negócio jurídico administrativo, com base no art. 54 da Lei federal 8.666 de 1993 e art. 421
do Código Civil, aplicado subsidiariamente. Os deveres anexos devem ser cumpridos
inclusive diante de terceiros, v.g., usuários e da sociedade. Não apenas os deveres de proteção,
mas igualmente os de lealdade e transparência. O fundamento da eficácia protetora de
terceiros reside na solidariedade (art. 3º, inciso I, da Carta Política).228
228
Corroboram tais assertivas aquilo disposto alhures, especialmente nas lições de Calixto Salomão Filho,
Arnoldo Wald, André Soares Hentz, Fábio Ulhoa Coelho, Claudio Bueno Godoy, dentre outros. Bem como a
Corte alemã entende em negócios do direito comum: “Com os seus antecedentes, a dogmática específica do
contrato com eficácia protetora de terceiros arrancou com a sentença do BGH de 25-Abr.-1956. Um fornecedor
entrega a uma fábrica certa máquina, sabendo, com naturalidade, que ela destinava-se a ser utilizada por
terceiros. A máquina era perigosa, vindo um trabalhador a ferir-se; este, terceiro na compra e venda da máquina,
acionou o fornecedor por violação de deveres contratuais que lhe assistiriam, vindo a ter êxito. Em anotação
favorável, Larenz celebra o que considera mais um passo em frente no progresso dos deveres de proteção,
imputando-os à boa-fé. Outro caso importante pelas reações doutrinárias que veio suscitar é o de BGH 15Mai.1959. O R. fornecia a uma fábrica – uma empresa siderúrgica – um meio protetor de ferrugem. Durante anos
entregou um produto não inflamável; sem explicações oportunas mudou, de súbito, para uma matéria
combustível a qual, numa aplicação, inflamou-se, vindo uma empregada a sofrer queimaduras. Esta aciona
102
Um dos casos mais divulgados é o da construção do Complexo Hidrelétrico Belo
Monte, na bacia do Xingu. O processo licitatório ocorreu com a vitória do consórcio Norte
Energia. Contudo, os habitantes da bacia interpuseram petição na Organização dos Estados
Americanos afirmando, em síntese, que seu direito constitucional de audiência não foi
adequadamente respeitado.229 Obviamente, está-se diante de uma possível violação de direito
de terceiro de boa-fé, não promovido de forma leal. Não obstante a construção da hidrelétrica
em comento cumpra com os requisitos legais, os índios têm o direito de ser ouvido de forma
transparente, pública e que respeite sua pujante diversidade existente naquela região do Brasil.
Não há apenas uma comunidade lá, mas inúmeras, as quais têm direito de exercê-lo
singularmente. O Estado brasileiro tem o dever de ouvi-las e informá-las com lealdade e
transparência.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por conta disso, assim decidiu,
cautelarmente:
MC 382/10 – Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará,
Brasil: Em 1 de abril de 2011, a CIDH outorgou medidas cautelares a favor dos membros das
comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, no Pará, Brasil: Arara da Volta Grande do
Xingu; Juruna de Paquiçamba; Juruna do “Kilómetro 17”; Xikrin de Trincheira Bacajá;
Asurini de Koatinemo; Kararaô e Kayapó da terra indígena Kararaô; Parakanã de Apyterewa;
Araweté do Igarapé Ipixuna; Arara da terra indígena Arara; Arara de Cachoeira Seca; e as
comunidades indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu. A solicitação de medida
cautelar alega que a vida e integridade pessoal dos beneficiários estariam em risco pelo
impacto da construção da usina hidrelétrica Belo Monte. A Comissão Interamericana solicitou
ao Estado brasileiro que realize processos de consulta, em cumprimento de suas obrigações
diretamente o fornecedor do produto por violação de deveres contratuais acessórios que a protegeriam. O BGH,
em nome da boa-fé, deu provimento à ação. As reações foram positivas, malgrado algumas reticências. Uma
jurisprudência persistente confirmaria esta orientação. Férteis são, em especial, as situações em que se
responsabiliza o locador por danos sofridos contra terceiros, ligados ao locatário. Tenha-se sempre presente que
a responsabilidade, reconhecida pelo BGH perante terceiro, é do tipo obrigacional” (Apud CORDEIRO, Antônio
Manuel da Rocha e Menezes. Op. cit., p. 620-621).
229
O art. 231, caput, dispõe: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O § 1º explica o que são terras tradicionais indígenas: “São
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar
e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. O § 3º disciplina
como a União pode aproveitar recursos hídricos dentro de terras indígenas: “O aproveitamento dos recursos
hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só
podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes
assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
103
internacionais, no sentido de que a consulta seja prévia, livre, informativa, de boa-fé,
culturalmente adequada e com o objetivo de chegar a um acordo, em relação a cada uma das
comunidades
indígenas
afetadas,
beneficiárias
das
presentes
medidas
cautelares.
Adicionalmente, a CIDH solicitou ao Estado garantir que, previamente a realização dos
citados processos de consulta, essa mesma consulta seja informativa, e que as comunidades
indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto,
em um formato acessível, incluindo a tradução aos idiomas indígenas respectivos. Igualmente,
a Comissão solicitou a adoção de medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos
membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu, e para prevenir a
disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades indígenas beneficiárias das
medidas cautelares como consequência da construção da hidrelétrica Belo Monte, tanto
daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona, como da exacerbação
dos vetores de transmissão aquática de doenças como a malária. (grifo nosso)
Evidentemente, as partes nas avenças administrativas devem respeitar os direitos de
terceiros, devido à função social dos contratos, bem como os deveres anexos a eles que
possuem direitos: deveres de lealdade e informação.
Os princípios da função social e da boa-fé incidem, igualmente, como elemento
valorativo para a Administração exercer o juízo de proporcionalidade na aplicação e na
dosimetria de penalidades administrativas àqueles que contratam com o Poder Público e
inadimplem, total ou parcialmente, as obrigações assumidas em negócio jurídico.230 A
gravidade das condutas ilícitas deve estar de acordo proporcionalmente com a severidade das
sanções. Agustín Gordillo adverte que as sanções devem ser interpretadas restritivamente e
aplicadas proporcionalmente ao cumprimento da obrigação pactuada.231 A jurisprudência
pátria acompanha essa aplicação desses princípios.232
230
NASSA, Thulio Caminhoto..., p. 156-159.
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo, I. tomo: Parte general. 7ª ed., Belo Horizonte: Del
Rey e Fundación de Derecho Administrativo, 2003, p. XI-25-XI-26.
232
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 87 DA LEI N.
8.666/93. 1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau assim ementado (fl. 186):
DIREITO
ADMINISTRATIVO.
CONTRATO
ADMINISTRATIVO.
INADIMPLEMENTO.
RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666/93. MANDADO DE SEGURANÇA.
RAZOABILIDADE. 1. Cuida-se de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade militar que
aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em licitação devido ao atraso no cumprimento da
prestação de fornecer os produtos contratados. 2. O art. 87, da Lei n. 8.666/93, não estabelece critérios claros e
objetivos acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mas por óbvio existe uma gradação
acerca das penalidades previstas nos quatro incisos do dispositivo legal. 3. Na contemporaneidade, os valores e
princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam
mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que,
104
231
Fase pós-contratual
52. A função social dos negócios jurídicos administrativos é aplicável inclusive na
fase posterior ao cumprimento das obrigações dos negócios jurídicos administrativos. Os
deveres anexos ou acessórios decorrentes da boa-fé não se exaurem ao término da relação
jurídico-administrativa. Produzem seus efeitos posteriormente.
É o assentado no Superior Tribunal de Justiça, em decisão de relatoria de Nancy
Andrighi, in verbis:
“PROCESSO CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PRESCRIÇÃO. NOTA
PROMISSÓRIA. OCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRITÂNICA.
AFASTAMENTO. APLICAÇÃO DAS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO. CARTA
DE
FIANÇA.
AUSÊNCIA
DE
REQUISITO
FORMAL.
CONDENAÇÃO
POR
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. MANUTENÇÃO. CONDENAÇÃO PELA PENA DO ART. 940
DO CÓDIGO CIVIL. MANUTENÇÃO. Reexame de fatos. Interpretação de cláusulas
contratuais. Inadmissibilidade. Fundamentação. Ausente. Deficiente. Súmula 284/STF.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Alteração do valor fixado. Incidência da Súmula 7/STJ.
Embargos de declaração. Omissão, contradição ou obscuridade. Não ocorrência. – Contrato
de mútuo avençado com seguro. Ocorrido o sinistro, considera-se cumprido em face do
pagamento do prêmio pelo devedor. – O ajuizamento de execução, quando o credor já
recebeu, pela seguradora, parte da importância cobrada, e o restante, no curso da própria ação,
constitui-se em vulneração do art. 940 do CC-02, e desobediência à regra de conduta de boafé entre os contratantes. – O fiel adimplemento da obrigação decorrente da relação de débito e
crédito é o ponto culminante da conduta esperada reciprocamente pelas partes, persistindo,
desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de
boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual. 4.
Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contratado pela Administração
Pública, e desse modo, o art. 87, da Lei n. 8.666/93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade,
adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento
substancial e a proporcionalidade. 5. Apelação e Remessa necessária conhecidas e improvidas. 2. Aplicação do
princípio da razoabilidade. Inexistência de demonstração de prejuízo para a Administração pelo atraso na entrega
do objeto contratado. 3. Aceitação implícita da Administração Pública ao receber parte da mercadoria com
atraso, sem lançar nenhum protesto. 4. Contrato para o fornecimento de 48.000 fogareiros, no valor de R$
46.080,00 com entrega prevista em 30 dias. Cumprimento integral do contrato de forma parcelada em 60 e 150
dias, com informação prévia à Administração Pública das dificuldades enfrentadas em face de problemas de
mercado. 5. Nenhuma demonstração de insatisfação e de prejuízo por parte da Administração. 6. Recurso
especial não provido, confirmando-se o acórdão que afastou a pena de suspensão temporária de participação em
licitação e impedimentos de contratar com o Ministério da Marinha, pelo prazo de 6 (seis) meses”. (grifo nosso)
(REsp 914.087/RJ, Rel. Ministro José Delgado, 1ª Turma, julgado em 4/10/2007, DJ 29/10/2007, p. 190).
105
contudo, os efeitos pós-contratuais, não obstante extinto o negócio pelo adimplemento. – A
responsabilidade pós negocial, no sentido lato, vem sempre anelada ao princípio da boa-fé
objetiva – veda-se cobrar dívida já paga. – Não caracteriza enriquecimento ilícito do art. 884
do CC-02, a devolução em dobro da quantia cobrada indevidamente, quando o devedor
adimpliu a obrigação, mediante pagamento de prêmio do seguro que garantia o cumprimento
da obrigação avençada no mútuo. – A vulneração da conduta leal dentro do processo, em suas
múltiplas formas, fragiliza a segurança jurídica necessária para a entrega da prestação
jurisdicionada. – Inviável a análise de insurgência deduzida em recurso especial, quando a
solução da controvérsia exige o reexame de matéria fática. – A ausência de fundamentação ou
a sua deficiência implica o não conhecimento do recurso quanto ao tema. – Recurso especial
conhecido e não provido.” (grifo nosso) (REsp 1068271/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª
Turma, Julgado em 24/4/2012, DJe 15/6/2012)
No caso, era parte o Banco do Brasil, sociedade de economia mista (isto é, “pessoa
jurídica de direito privado, em que há conjugação de capital público e privado, participação
do poder público na gestão e organização sob a forma de sociedade anônima, com as
derrogações estabelecidas pelo direito público e pela própria lei das S.A. (Lei n. 6404, de
15/12/1976); executa atividades econômicas, algumas delas próprias da iniciativa privada
(com sujeição ao art. 173 da Constituição) e outras assumidas pelo Estado como serviços
públicos (com sujeição ao art. 175 da Constituição233), esteve a ferir a boa-fé objetiva pós
negocial ao cobrar dívida paga, o que caracteriza o enriquecimento ilícito. Trata-se de
comportamento abusivo, vedado pela lei civil no art. 940. Nas palavras da Ministra, em seu
acórdão:
Neste julgamento, vemos a materialização desta linha de compreensão, posto
que após o adimplemento exsurge a chamada “pós eficácia” decorrente do
negócio jurídico extinto pelo pagamento, cujo descumprimento pode gerar
danos. Trata-se da responsabilidade pós negocial em sentido lato e anelada
ao princípio da boa-fé objetiva. Cuida-se violação de deveres éticos, de
honestidade, de equilíbrio das relações jurídicas decorrentes da boa-fé
objetiva e da solidariedade. A prática deste ato vedado, ajuizamento da ação
de cobrança de dívida já paga, tem previsão normativa expressa e a forma de
aplicação da sanção civil, devendo ser aplicada a todos os contratantes que
ousarem descumprir a regra.
233
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo..., p. 420.
106
Tais deveres oriundos da boa-fé são aplicáveis não só a sociedades de economia mista,
mas a toda Administração Pública direta e indireta, decorrente da moralidade prevista nos
arts. 37, caput, e 85, inciso V, da Carta Política. Ora, se os particulares soubessem que tal
garantia não existe no Direito Administrativo, sua confiança legítima nos atos administrativos
não existiria, mas sim a contínua desconfiança, que elevaria os preços cobrados do erário
público. Engendrar-se-ia terrível instabilidade nas relações entre particulares e o Poder
Público. A cooperação necessária para aprimorar-se, v.g., o serviço público seria trocada pela
necessidade de se guardar trunfos na eventualidade de haver abuso de poder pelas pessoas
jurídicas de direito público, cujas prerrogativas exacerbam o direito comum, conforme
explicado alhures. Dessa maneira, ao utilizar-se de tais poderes, a Administração está
obrigada a guardar estes deveres anexos de lealdade, probidade, informação, transparência e
cooperação, com o fim de garantir negócios menos onerosos ao erário público e respeitar os
direitos do particular com os quais a Administração trava avenças.
Denomina-se culpa post pactum finitum. Em essência traduz-se:
Na busca de vetores materiais que concretizem a boa-fé nas ocorrências de
pós-eficácia, deparam-se, no essencial, a confiança e a materialidade das
situações em jogo. A confiança requer a proteção, no período subsequente ao
da extinção do contrato, das expectativas provocadas na celebração e no seu
cumprimento, pelo comportamento dos intervenientes. A materialidade das
situações exige que a celebração e o acatamento dos negócios não se tornem
meras operações formais, a desenvolver numa perspectiva de
correspondência literal com o acordado, mas que, na primeira oportunidade,
se esvaziam de conteúdo. O escopo contratual não pode ser frustrado a
pretexto de que a obrigação se extinguiu.234
A culpa post factum finitum corresponde à projeção simétrica da culpa in
contrahendo235 no período pós-negocial, em que extinto o contrato permanecem deveres de
proteção, de informação e de lealdade às partes, em termos específicos. Ou seja, não podem
provocar danos mútuos nas pessoas e nos patrimônios da outra. A título de exemplo, certas
obrigações pós-eficazes da função social típicas são: a confiança, no período subsequente ao
negócio jurídico, das expectativas provocadas na celebração e execução da extinta relação
jurídico-negocial, com o fim de que as contratações não se tornem meras celebrações formais.
234
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. 4. reimp. Coimbra:
Almedina, 625-631.
235
Culpa in contrahendo é uma responsabilidade obrigacional, por violação de deveres específicos de
comportamento baseado na boa-fé (deveres de proteção, informação e lealdade), independentes ao futuro
negócio jurídico administrativo. Demonstrada a violação, presume-se a culpa da parte faltosa (Ibidem, p. 582585.
107
As partes devem desenvolver suas atividades posteriormente em uma perspectiva de
correspondência ao conteúdo e à finalidade latente na avença.
108
CONCLUSÃO
Apresentamos, no início do presente trabalho, mudanças ocorridas no direito civil.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, foram impostos ao ordenamento jurídico
princípios afluentes da dignidade da pessoa humana: através da inoculação da função social
ao seu conteúdo. O Novo Código Civil de 2002, em seu art. 421, consubstanciou a mesma
mudança no direito contratual, já implícita no texto magno. Esse instituto gera a
obrigatoriedade de se cumprir um dever-poder à coletividade para que ofereça segurança
jurídica às partes, no desiderato de alcançar a justiça contratual através do dirigismo
contratual. Os contratantes não mais devem se ver como adversários, mas como partícipes ou
colaboradores. Devem obediência a deveres anexos ou acessórios de transparência, proteção e
cooperação (art. 422 da Lei Civil). A função social dos negócios jurídicos já operava seus
efeitos nos contratos trabalhistas e consumeristas, em que a desigualdade entre as partes
amesquinhava o seu caráter comutativo, anteriormente ao Código Civil.
Posteriormente a sua análise histórica, compreendemos que a função social dos
negócios jurídicos é porta de entrada de direitos fundamentais nas avenças, proteção de
interesses metajurídicos e individuais relativos à dignidade humana. Esse princípio se
alimenta do valor da solidariedade. O Direito Administrativo não está isolado, imune ou
aquém de seus efeitos. Sílvio Luís Ferreira da Rocha provou arrojadamente isso em sua tese
de livre docência: Função social da propriedade pública. Os negócios jurídicos
administrativos também sofrem efeitos dessa norma constitucional implícita. Eles passam a
ser instrumento para a promoção de outros valores, como a solidariedade no caso de dispensa
de licitação dos incisos XX e XXVII do art. 24 da Lei de Licitações e Contratos
Administrativos. Igualmente a serem obrigados a adotar os deveres anexos ou acessórios entre
as partes do acordo e terceiros interessados. Passa-se a interpretar as prerrogativas
administrativas (as cláusulas exorbitantes) de maneira restritiva e os direitos dos usuários, no
caso de serviços públicos, abrangentemente.
Por fim, esse princípio inibe nas avenças administrativas afrontas a valores
fundamentais do sistema jurídico (metajurídicos e individuais relativos à dignidade da pessoa
humana), bem como protege de excessos ou faltas do Poder Público frente aos particulares
contratantes e terceiros interessados. Garante-se, com isso, a legítima confiança de
particulares e da sociedade ao travar negócios com a Administração Pública e, igualmente, a
boa-fé objetiva. Tudo com o fim de guiar a atuação administrativa à promoção de
desenvolvimento nacional sustentável, com respeito aos valores caros do povo brasileiro.
109
110
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