Debate inócuo ...
José R.A. de Sant’anna*
Interessante como a sociedade brasileira reage, uma parte, a bem da verdade, mas, além
de expressiva, ruidosa ao tema das políticas públicas, notadamente as célebres cotas
étnicas. Nesta altura dos acontecimentos irresistíveis, tal discussão, felizmente, já se
afigura vazia, sem sentido; todavia, teremos ainda que aturá-la e, mais do que isso,
derrotá-la com os dados hoje já matematicamente possíveis e disponíveis nas
universidades de levantamentos positivos em favor dos desiguais, não por coincidência,
em sua maioria esmagadora constituída de afrodescendentes a exibir, como sabemos, os
piores indicadores sócio-econômicos e, por isso também, a se acharem situados na
grande base da nossa pirâmide social e remetendo os índices gerais do país como um
todo para baixo, isto é, tem-se, naturalmente, um achatamento perverso de todos os
marcos de uma sociedade nacional minimamente decente, esse é o quadro em tintas
reais. Contudo, é curioso como ainda hoje, em pleno século XXI, reagem, setores
influentes da sociedade nacional à mudança paradigmática da evolução social insopitável;
já falamos isso antes, como registro histórico, inclusive de como se portavam os
escravocratas, lá pelos idos dos séculos XIX e XVIII, para os quais a retardatária e formal
abolição se constituía, com o hoje, em verdadeira quebra das estruturas vigentes
(ineficientes ...) com séria ameaça ao “status quo”. Seria cômico se não fosse antes
terrivelmente trágico; a cronologia histórica do nosso proverbial atraso tem suas raízes aí
fincadas. Corremos, novamente, o sério risco de outro retrocesso se não tivermos a
coragem de adotar as políticas públicas necessárias e específicas para os cronicamente
desiguais – afrodescendentes – dentre elas as emergenciais e temporárias cotas nas
universidades. A esse respeito, oportunamente, convém reproduzir trechos do Relatório
divulgado pela UFBA, mostra que, em 37 dos 61 cursos de graduação oferecidos pela
instituição, a maior nota foi obtida por aluno inscrito por meio de vagas para egressos de
escolas públicas. Dos 45% das vagas a alunos oriundos da rede pública, dessas, 85%
para os afrodescendentes e 2% para os índios descendentes, o que corresponde à
proporção dos segmentos da população do estado. Para o reitor, mesmo os alunos
cotistas poderiam dispensa-las com as notas obtidas, já que 86% dos aprovados tinham
nota suficiente e apenas 14% necessitaram das cotas, o que revela que as cotas não
reduzem a qualidade; mas, a existência da reserva incentiva os alunos da rede pública
principalmente aos cursos mais concorridos; antes nem ousavam concorrer. Após
monitoramento até 2004, por meio de questionários sócio-econômico, quanto a origem e
raça do aluno, foi possível detetar que o percentual de estudantes da instituição vindos da
rede pública do ensino médio saltou de 22% para 45% e o índice dos que se declaravam
afrodescendentes (negros e pardos) passou de 55% para 77%. Finalmente, convém
assinalar a obra “Discriminação positiva: ações afirmativas na realidade brasileira”,
originariamente dissertação no Mestrado no Direito Público da UFBA, do Procurador da
República, Sidney Madruga, orientado e prefaciado pelo professor titular Edivaldo M.
Boaventura da mesma universidade. Trata-se de contribuição substancial ao tema das
cotas tratado em capítulo especial ao buscar os antecedentes históricos tanto no Brasil
como em inúmeras outras partes do mundo.
* José R. A. de Sant’anna
Advogado - Professor da Faculdade de Direito da UFBA
2º Diretor-Secretário da ANAAD - Associação Nacional dos Advogados
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