100 anos d e a d o n i ra n A arte de falar errado As mil facetas do compositor que foi a voz de São Paulo “Táubuas” e “revórveres” eram propositais nas letras de Adoniran Barbosa. Foram Fotos: reprodução Se o sinhô não tá lembrado dá licença de contá: este ano Adoniran Barbosa completaria 100 anos. Ele nasceu João Rubinato em 6 de agosto de 1910, na cidade de Valinhos no interior paulista, mas se transformou no compositor que melhor traduziu a alma paulistana dos bairros operários, da garoa fria da madrugada e o espírito dos bares e dos amores boêmios. O dialeto marcante de suas letras era a fala dos imigrantes de alguns bairros populares, principalmente da zona leste de São Paulo, que rompeu essas barreiras geográficas e passou a ser ouvido em qualquer agrupamento de amigos, dedilhado por toda parte onde sua música se fizesse presente. Comemorar o centenário de Adoniran Barbosa é destacar uma trajetória ampla e diversificada. Uma série de eventos e lançamentos – um musical dirigido por Rubens Ewald Filho, programas para a TV e o relançamento da biografia, escrita por Celso Campos Jr. – devem relembrar o artista que nasceu multimídia. Merece destaque o Portal Adoniran, idealizado por sua filha Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa, e a Casa de Adoniran, projeto de um museu, ainda em fase inicial, que pretende catalogar um acervo riquíssimo com partituras, discos, letras de músicas, antigos programas de rádio e até as miniaturas que Adoniran costu- os erros no português que provocaram atritos entre o compositor e a ditadura militar. Um disco de 1973, com músicas gravadas nos anos 1950, teve algumas canções vetadas. A linguagem coloquial de composições como Samba do Arnesto e Tiro ao Álvaro foi considerada de "péssimo gosto" pela censura. A condição para liberar as músicas era corrigir os erros na pronúncia e gramática. Adoniran não abriu mão das letras originais e as músicas vetadas não foram regravadas naquele ano. mava confeccionar e presentear os amigos. Ator, cantor e compositor, poucos artistas conseguiram traduzir tão bem a cidade de São Paulo em personagens e canções. “Adoniran é um ícone da sonoridade paulistana tanto quanto a Avenida Paulista ou o Parque Ibirapuera são referências da cidade. Ele consegue expressar em suas músicas o que é se sentir paulistano”, afirma Maria Izilda Santos de Matos, historiadora da PUC-SP. Poesia das malocas Mais conhecido pelas músicas, Adoniran trabalhou em televisão e cinema, mas foi no rádio que atingiu seu auge como artista. Ele se aposentou como rádio-ator pela Record. Nos anos cinquenta e sessenta tinha o programa de maior sucesso da rádio paulista: o Histórias das malocas (1955), onde interpretava Charutinho, um malandro malsucedido e desocupado. “Seus tipos eram inspirados em pessoas comuns, falas e entonações de diferentes territórios da cidade”, conta Izilda Matos, que publicou, em 2007, A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Adoniran era, acima de tudo, um observador atento. Ele caminhava na cidade, conversava, ouvia, e, a partir dessas vivências, criava seus personagens. “O ser ator acabou imprimindo elementos que se tornariam 58 7_Cultura_32_p58a68.indd 58 27/07/10 21:39 fundamentais para o compositor”, complementa Matos. É da cidade que vem o sotaque inconfundível, uma síntese de elementos da oralidade de imigrantes, negros e nordestinos que conviviam na capital. Nas composições, melancolia e denúncia eram combinadas com humor, com a melodia contagiante e, por que não, uma boa dose de doçura. É um humor sempre ligado ao cotidiano das grandes cidades: despejos, demolição, desemprego, desencontros. Nesse sentido foi importante a contribuição de Osvaldo Moles, compositor, parceiro de Adoniran tanto nos programas de rádio, quanto nas letras de várias músicas. De acordo com Izilda Matos, a trajetória política de Osvaldo Moles, ligada a partidos de esquerda, conferia às suas letras esse teor de crítica à cidade que exibia sinais de progresso, mas com grandes contrastes. Progresso que não chegava para todos, excluindo, em particular, os moradores da “saudosa maloca”. “Era a denúncia de uma cidade em construção-destruição, com movimento e ritmo assustadores”, afirma a historiadora. “A cidade mostrava-se violenta em seu crescimento, criando uma visão idílica de um tempo perdido diante do progresso, um tipo de inconformismo que se aproxima da resistência e aponta a denúncia e, ao mesmo tempo, apregoa a paciência”, explica a historiadora. São exemplos de composições com esse pano de fundo, Abrigo de vagabundos, O despejo da favela e Iracema que morre atropelada por não se adaptar ao novo ritmo da cidade. Para ela diz Adoniran: O chofer não teve curpa, Iracema/Paciência, Iracema, paciência. A cidade como musa Em Saudosa ma- loca é explícita a nostalgia do tempo que passou: Saudosa maloca, maloca querida/...donde nós passemos os dias feliz de nossas vida. “Como um flaneur que capta, observa, talvez o papel do compositor seja ser um sujeito histórico do seu tempo, antenado, que capta tensões, sensibilidades, emoções e as transforma canções”, acredita Izilda. Por conta disso ele permanece atual para as novas gerações. Saudosa maloca foi gravada por Adoniran em um tom de denúncia, era uma música triste e nostálgica. De acordo com a historiadora da PUC, na época em foi lançada, em 1955, a música não fez muito sucesso. Somente quando foi gravada pelo grupo Demônios da Garoa, em 1965, em um tom irônico e bem humorado (o grupo introduziu palavras que dão ritmo para a composição) a música estourou. Elis Regina também gravou a música (1978) em um tom mais lento e triste fazendo com a que canção ganhasse novo sentido. “Hoje Saudosa maloca foi incorporada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), como uma espécie de hino”, conta Izilda Matos. “Quando vão fazer alguma manifestação eles cantam essa música, dando-lhe um sentido fortemente político. Ao permitir inúmeras reinterpretações, sua música e sua arte, centenárias, continuam atuais. Sobretudo, porque nos encontramos na cidade que ele descreve. Quando fala da cidade de São Paulo, Adoniran descreve também o cotidiano de tantas outras grandes cidades, das transformações constantes, da mistura de culturas, dos desencontros, da pressa para não perder o trem, da favela e do cortiço, do trabalho necessário e da preguiça desejada. Muito além do “filho único”, de Arnesto ou Iracema, a cidade é a grande personagem na obra de Adoniran, ela é sua musa. Patrícia Mariuzzo Samba na caixinha de fósforo João Rubinato, filho de imigrantes italianos, não terminou o curso primário. Em 1932 se tornou cantor-ambulante, utilizando uma caixinha de fósforo. No ano seguinte, conseguiu seu primeiro contrato como cantor e depois locutor de rádio. Em 1934 teve seu primeiro trabalho de destaque ao vencer o concurso carnavalesco da prefeitura de São Paulo com a marchinha Dona boa. Nas décadas de 1940 e 50 atinge seu auge como rádio-ator. Na verdade Adoniran só gravou seu primeiro disco em 1974, após o grande sucesso de Trem das onze. Durante as comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo, a TV Globo fez um concurso junto à população da capital que elegeu a música como a que mais representava a cidade. Trem das onze foi gravada em francês, espanhol, italiano e hebraico. 59 7_Cultura_32_p58a68.indd 59 27/07/10 21:39