BOM SENSO. Com hífen ou sem hífen, eis a questão! Nos tempos que correm, nem precisam de consultar livros, pois basta navegar por algumas páginas da Internet para se concluir que a questão é controversa. Empregar, ou não, hífen? Ponto que sempre precisou de cuidados especiais. Grandes obras de referência em língua portuguesa não registam a expressão com hífen. Alto! A última edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (5.ª edição, 2009, p. 126), elaborado pela Academia Brasileira de Letras, regista: bom-senso. Sendo esta obra a fonte oficial para dúvidas ortográficas, os brasileiros, pelo menos, seguindo a norma-padrão, deveriam grafar com hífen. No entanto, nem tudo é o que parece! Consultemos a versão em linha desta mesma obra e, surpresa, “Nenhum resultado encontrado”. Advertência da instituição: “As divergências entre o VOLP impresso e a versão on-line resultam, quase sempre, de ter esta última incorporado as correções publicadas em suplemento, com as alterações feitas após a 5.ª edição.” Consultemos o dito suplemento. Nada, nada se encontra nas listas disponíveis de “Correções e Aditamentos a verbetes da 5.ª edição”. Afirmar que esta expressão nunca levou hífen é ignorar o original de um dos mais polémicos e violentos textos da nossa literatura portuguesa. Em 1865, no opúsculo «Bom-senso e bom-gosto», assinado por Antero de Quental e dirigido a António Feliciano de Castilho, polémica que ficou conhecida como a Questão Coimbrã ou mesmo a Questão do Bom-Senso e bomgosto*, é com hífen que está grafada. *Folha de rosto do opúsculo. Hoje, em sucessivas reedições, o vocábulo figura sem hífen. [email protected] – [email protected] Aos dicionários, apesar do muito que ainda se pode apontar, nunca faltou bom senso! Consultemos o Houaiss (versão brasileira ou a portuguesa), o Aurélio, a Infopédia, a Priberam, o da Academia… Alto! Embora o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, de 2001, polémico como qualquer obra verdadeiramente pioneira mas uma peça lexicográfica de inegável valor, registe bom senso, com uma abonação retirada de um periódico, «Mostra estar aberto ao diálogo e afirma querer uma solução de bom senso» (Público, 15.4.1993), melhor teria sido recorrer a um bom exemplo clássico, como, por exemplo, a um excerto de um texto escrito em 1887, assinado por Eça, com fortes laivos de atualidade no Distrito de Évora, que atesta a grafia sem hífen: «Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.» [sublinhado meu], o vocábulo também figura hifenizado no verbete “cabeça”, aceção número 15, enquanto sinónimo; no verbete “dedo”, na definição da expressão “ter dois dedos de testa”; na aceção 3 de “desconchavado”, e em mais alguns casos. Lamentável, diriam. Sim, mas de nada adianta apontar o erro, de nada serve criticar se não for para mudar, avançar. Daí que seja tão urgente a publicação de uma nova edição do Dicionário, essa que me encontro a coordenar e que junto de todos os académicos envolvidos se reúnem esforços para dar à luz uma obra da instituição que chama a si “o exigente papel de regulação da língua em Portugal” (cf. Ciberdúvidas). Apesar de instalada a confusão, na realidade “bom senso” sempre se registou sem hífen na dicionarística portuguesa*. Vale a pena ainda esclarecer que o emprego do hífen nada tem que ver com a aplicação das novas regras ortográficas. O texto do novo Acordo Ortográfico é lacunar em muitos pontos. É verdade, mas não é o responsável por um bom-senso, com hífen, ou pela falta dele. O hífen serve para ligar elementos de palavras compostas e é usado, no caso de um adjetivo (bom) e de um nome (senso) quando o conjunto dos elementos forma um sentido único. Reparem: um baixo-relevo não é um relevo que é baixo, mas antes uma escultura. O adjetivo, baixo, perde o seu sentido original e o conjunto dos vocábulos transmite um novo conceito, surgindo uma nova palavra que deve ser escrita com hífen; belas-artes são [email protected] – [email protected] manifestações artísticas; meio-dia é a hora. E o hífen de bom-tom não é obrigatório? Passemos, agora, a analisar aquilo que considero ser o busílis da questão: as duas palavras, bom senso, no seu conjunto constituirão uma unidade semântica? Pois haverá fortes argumentos que nos levam a responder afirmativamente. Bastará, pois, olhar para a definição: “disposição natural para julgar corretamente, para bem ajuizar em situações específicas ou em diferentes realidades”. Estivesse aqui Aristóteles e dir-nos-ia que, na verdade, é o “elemento central da conduta ética”, vai mais além de fazer o que está certo, ou que é bom, é chegar ao equilíbrio, ao meio-termo (ou querem que seja meio termo?) através da razoabilidade e ponderação. Enquanto lexicógrafa que observa atentamente a língua e o uso que os falantes fazem da mesma, declaro que estou diante de um bicho de sete cabeças! Há quem hifenize; há quem não o faça; há quem não saiba o que fazer! E de nada me adianta cortar algumas cabeças, o trabalho é de Hércules! Respeitando a tradição lexicográfica, dito o não uso do hífen, observando a estrutura do vocábulo e o seu sentido brado por um hífen! Não só eu, também Sacconi, no Brasil, o faz. Não gostaria de cair em contrassensos, mas haja um julgamento correto e equilibrado, que não mais me perturbe a alma, haja bom-senso! Porto, 2 de novembro de 2015 Ana Salgado *Agradeço ao leitor Rui Santos a seguinte chamada de atenção: “O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Sociedade de Língua Portuguesa, coordenação do Prof. José Pedro Machado, edição de 1989, Vol II, pág. 382, grafa "bom-senso". (…) Aí, é atribuído o significado de "disposição natural para julgar rectamente em assuntos concretos, que não admitem uma evidência lógica simples". No entanto, o mesmo dicionário, no vol XI, pág. 91, na entrada "senso", indica o significado (…) "aplicação da razão de uma pessoa, que lhe serve para julgar ou raciocinar em cada caso particular da vida; o acto de pensar calmamente para resolver ou julgar com equidade" (…)”. [email protected] – [email protected]