INFÂNCIA E CIDADANIA FRANCO∗, Raquel Rodrigues - Capes [email protected] BATISTA∗∗, Cleide Vitor Mussini – UEL [email protected] Resumo Trilhar o caminho da construção da infância é importante e deve contar com a nossa constante reflexão e disposição em entender a infância na contemporaneidade. Afirmamos que há muitas maneiras de pensar a infância que é um tempo dentro de um universo constituído de muitos símbolos (brinquedo, linguagem, corpo etc). Cada uma delas constrói-se a partir de suas argumentações e discursos. Quando uma criança nasce já estão estabelecidos conceitos, as idéias e os valores sobre sua educação e sobre o seu futuro. Hoje reconhecemos o direito à infância que garante à criança viver sua condição em plenitude. Compomos uma idéia de infância que se manifesta na realidade prática de nosso fazer pedagógico, ou seja, de acordo com as idéias que temos acerca da infância destinaremos uma determinada prática metodológica condicionada por nossas expectativas sobre os alunos. Enunciar a criança como sujeito social e jurídico, conforme está estabelecido na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na LDB, e justificá-los com argumentos convincentes; não significa garantir-lhes uma proteção efetiva capaz de transformar essas nobres aspirações em exigências concretas no universo da criança. A infância como lugar de direitos suscita amplos campos de discussão, pois a realidade de muitas crianças é de exclusão, desigualdade e inoperância de seus direitos. A cidadania caracteriza-se pela existência de determinado status político-jurídico que implica a capacidade plena para o exercício dos direitos do homem. Discutir a cidadania na infância e na adolescência é discutir o presente e o futuro da cidadania de todos. A cidadania deve promover a participação social ativa e consciente da criança, mostrando-lhe os seus direitos e responsabilidades. Para isso devemos ouvir a voz das crianças sobre a sua própria condição, sobre o que desejam e o que imaginam ser certo para a construção de um mundo onde se compartilhe experiências significativas com o adulto. Palavras-chave: Infância; Direitos; Cidadania. Imagens da Infância [...] a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar a infância como um outro é, justamente, pensar essa ∗ Mestranda do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Londrina. Bolsista da Capes. Pós-doutora em Psicologia. Docente do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Londrina ∗∗ 1460 inquietação, esse questionamento e esse vazio. É insistir uma vez mais: as crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não compreendem a nossa língua (LARROSA, 2004, p.184). A infância está presente em cada um de nós. As memórias de nossa infância deixaram marcas profundas no nosso “eu”. Enquanto adultos deixamos que ela reviva por meio dos nossos atos, do nosso corpo, do discurso, dos costumes e do modo como convivemos com as crianças. Trilhar o caminho da construção da infância é importante e deve contar com a nossa constante reflexão e disposição em entender a infância na contemporaneidade. Vamos pensar em algumas questões que talvez já sejam conhecidas, embora tenhamos que concordar que novas releituras sempre são capazes de direcionar nosso olhar para outras novidades. O que são as crianças? Como a criança vive a sua infância? O que significa dizer que a criança é um sujeito de direitos? Parece uma pergunta um tanto comum, absurda até: quem não sabe o que é uma criança? No entanto, é preciso não somente pesquisar sobre a criança, mas com a criança, pois é ela que pode nos dizer mais sobre o seu mundo e sobre as suas perspectivas. O filósofo Rousseau (1968, p. 62) em sua obra Emílio ou da educação, pontua que: “[...] A humanidade tem seu lugar na ordem das coisas: a infância tem o seu na ordem da vida humana; é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança”. Temos que partir do pressuposto de que há uma diferença entre ser criança e ter infância. Por isso, é preciso que os adultos aprendam observar, ouvir e garantir o seu espaço trabalhando em defesa de seus direitos. De início, podemos afirmar que há muitas maneiras de pensar a infância que, sobretudo, é um tempo dentro de um universo constituído de muitos símbolos (brinquedo, linguagem, corpo etc). Cada uma delas constrói-se a partir de suas argumentações e discursos. Os discursos acerca da infância têm como pressupostos diversas teorias (complementares e conflitantes entre si) e, também, as opiniões que construímos no nosso cotidiano com base no senso comum. Isso quer dizer que quando uma criança nasce já estão estabelecidos conceitos, as idéias e os valores sobre sua educação e sobre o seu futuro. Segundo Lajonquière (2003, p.143), “quando um desse seres pequenos que temos o hábito intelectual de chamar criança chega de fato ao mundo, já faz um tempo que o adulto o habita”. 1461 Essa diferença e descontinuidade do tempo e do espaço criaram os discursos e as instituições para receber, cuidar e educar a criança para o espaço social. A educação é maneira que a sociedade responde à chegada (novidade!) daqueles que nascem, pois a educação tem a ver com o nascimento, com o fato de que constantemente nascem seres no mundo (ARENDT, 1988). Esta idéia do nascimento como algo novo, à primeira vista um tanto desconcertante e supostamente natural, carrega em si uma mensagem imensamente útil: a de que “[...] uma criança é algo absolutamente novo que dissolve a solidez do nosso mundo e suspende a certeza que nós temos de nós próprios” (LARROSA, 2004 p.187). Hoje reconhecemos o direito à infância que garante à criança viver sua condição em plenitude. Apesar disso, que sentido carrega e tem hoje a infância de crianças de rua, de crianças trabalhadoras, prostituídas? E daqueles que carecem de amor e afetividade? De acordo com Souza Martins (1991), há crianças que são adultos, embora tenham um corpo de criança. Criança sem infância não é sinônimo de criança abandonada. É noção que a esta inclui, mas a ela não se limita. Abrange, também, multidões de crianças que têm lar e família, mas não têm infância. É de outra carência que sofrem e elas próprias o dizem. Algumas carecem de amor, cujas famílias, às vezes mutiladas, sucumbem às adversidades de um mercado de trabalho excludente, ao trabalho incerto, ao salário insuficiente, à brutalização da chamada mão-de-obra sobrante. Outras carecem de justiça. Seus supostos direitos estão sendo negados. E elas sabem disso. Todas carecem de infância, pois nela já foi produzido à força o adulto precoce, a vítima precoce, o réu precoce (MARTINS, 1991, p.12-13) Devemos lembrar que as marcas da infância determinam a direção da vida dos adultos e que ótimas condições socioeconômicas também não garantem a felicidade da criança. É preciso segurança, tranqüilidade e compromisso para educar e estar com as crianças, já que o adulto é um modelo que a criança deseja imitar. A criança recebe do adulto as marcas da história que vem antes de seu nascimento. A apropriação dessas marcas se faz por meio dos momentos em que ela brinca sozinha, com seus coetâneos ou com o adulto. Brincando, aos poucos ela vai entendendo o mundo dos adultos tornando-se herdeira da cultura humana. Por meio da experiência (educativa, familiar e social), a criança vai registrando o mundo dos adultos. Quais situações oferecemos às crianças para experienciar este mundo? O que é preciso pensar, então, dessa bárbara educação que sacrifica o presente a um futuro incerto, que prende uma criança com correntes de todo tipo, e começa por torná-la infeliz preparando-a para a distante não sei qual suposta felicidade da qual tem de acreditar que não gozará jamais? A idade da alegria é passada entre lágrimas, castigos, ameaças, escravidão. Atormenta-se o desventurado para o seu bem, e não se vê a morte a que se chama e que irá se apoderar dele em meio deste triste aparato (ROUSSEAU apud SACRISTÁN, 2005, p.45). 1462 A escola como segmento da sociedade deve ser um espaço promotor dos direitos da criança. Então, nos cabe perguntar: que tipo de relação estabelecemos entre a infância e a condição de aluno? Será que conseguimos distinguir claramente a criança e o aluno? Compomos uma idéia de infância que se manifesta na realidade prática de nosso fazer pedagógico, ou seja, de acordo com as idéias que temos acerca da infância destinaremos uma determinada prática metodológica condicionada por nossas expectativas sobre os alunos. Muitas vezes somos tentados a conceber a infância de modo idealizado. Isso acontece não porque nos acostumamos a pensar a infância dessa maneira, mas porque construímos maneiras de concebê-la numa perspectiva moderna. Segundo esta perspectiva podemos conceber a infância como: a) algo universal e atemporal que se realiza de forma e circunstâncias iguais para todas as crianças: isso significa que o seu desenvolvimento segue os passos certos e já estabelecidos formalmente; b) um período de grandes potencialidades humanas: o homem sonhando-se a si mesmo busca projetar nesta criança ideais que permitirão ser o que ele desejaria para si mesmo de acordo com as suas concepções de mundo e de infância. Projeta a sua própria infância; c) um período de progressão linear submetido a transformações contínuas, graduais, cumulativa e previsíveis; d) uma idade da inocência onde se manifesta a pureza e promessas de um futuro melhor. A partir de estudos sociológicos atuais, a infância, segundo algumas proposições de Montandon (2001, p.51): a) é uma construção social; b) é variável e não pode ser inteiramente separada de outras variáveis como classe social, o sexo ou o pertencimento étnico; c) as relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas em si; d) as crianças são e devem ser estudadas como atores na construção de seu contexto social e não apenas como seres em devir. 1463 A partir dessas maneiras de conceber a infância, entendemos que não existe uma única maneira de entendê-la, ou seja, não existe uma infância referência. Aceitar que há uma infância referência é aceitar um regime de verdade onde apenas um modo de viver a infância seria o desejável. Implica em aceitar como natural os conceitos de uma infância idealizada segundo padrões que não correspondem à realidade da criança concreta. De acordo com a lição de Barbosa (2006, p. 73): Falar de uma infância como unidade universal pode ser um equívoco ou um modo de encobrir uma realidade. Todavia uma certa universalização é necessária para que se possa enfrentar a questão e refletir sobre ela, sendo importante ter sempre presente que a infância não é singular, nem única. A infância é plural: infâncias. Sabemos que os conceitos elaborados para entender a infância não estão dados para sempre, ao contrário, eles sempre serão transitórios porque fazem parte do cotidiano dinâmico das relações humanas. A criança como sujeito de direitos e a cidadania A partir da Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e outros documentos internacionais que sobrevieram posteriormente (Convenção Internacional dos Direitos da Criança aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 20.11.89), a criança passa a ser reconhecida como sujeito de direitos. Embora tal status seja amplamente reconhecido e aceito, não parece certo que os direitos que envolvem a infância possam ser tidos como óbvios. Assim como a concepção de infância é uma construção social, pode-se afirmar que os seus direitos são conquista de muitas lutas. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança foi um “[...] produto da discussão tão ampla quanto seu consenso, constitui, como já foi dito, verdadeiro divisor de águas na história de crianças e adolescentes”. Isso porque houve a mudança de paradigma da doutrina da situação irregular que se destinava à infância desvalida e excluída, portanto, os menores. Atualmente, o ECA (Lei 8.069/90) rompe com o paradigma anterior paradigma da proteção integral. Apenas enunciar a criança como sujeito social e jurídico, conforme está estabelecido na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na LDB, e justificá-los com argumentos convincentes; não significa garantir-lhes uma proteção efetiva capaz de transformar essas nobres aspirações em exigências concretas no universo da criança. Entre estes avanços legais e sociais, há um paradoxo no que é anunciado na lei e a sua 1464 consecução, entre a teoria e a prática, entre as promessas e as poucas realizações. Será que estas conquistas chegaram à escola? A infância como lugar de direitos suscita amplos campos de discussão, pois a realidade de muitas crianças é de exclusão, desigualdade e inoperância de seus direitos. De acordo com Kramer (2003, p.93), “[...] as crianças – com quem poderíamos aprender a mudar e a fazer história do lixo e reinventar a esperança – aprendem com os adultos a aniquilação dos direitos, o medo, a agressão”. Embora elas tenham adquirido um novo status desde a promulgação da Constituição de 1988, conquistando direitos e passando a serem vistas como cidadãs, o cotidiano demonstra exemplos que desafiam autoridades, profissionais da educação e do direito a se mobilizarem em prol de seus direitos. O desrespeito transforma as crianças em “[...] vítimas, evidenciando a face mais perversa do mundo que estamos construindo” (CANDAU, 2003, p.9). [...] a maior parte dos cidadãos latino-americanos tem pouca consciência de que são sujeitos de direito. Esta consciência é muito débil, especialmente em contextos como o nosso, marcados por uma cultura clientelista e autoritária em que os direitos são vistos como ‘dádivas’. A educação em Direitos Humanos deve começar por favorecer desde a infância à formação de sujeitos de direitos, em nível pessoal e coletivo (CANDAU, 2003, p.10). Reconhecer a criança como sujeito de direitos e dizer que ela é cidadã “é entender que tem direito à brincadeira, a não tomar conta de outras crianças, a não trabalhar, a não exercer funções que, em outras classes sociais, são exercidas por adultos” (KRAMER, 2003, p.122123). A contradição da idéia de que somente na Educação Infantil se deve assegurar o direito de brincar é apresentada por Kramer como resultado da fragmentação dos conceitos, da classificação dos profissionais, das crianças e das práticas educativas. Contradição que oferece aos professores “opções ilusórias” acarretando a dicotomia entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental como duas realidades estanques sem qualquer compasso de harmonia e coerente continuidade. Pensa-se que “[...] na educação infantil temos crianças e no ensino fundamental temos alunos! Ora, temos – ou precisamos ter – crianças, sempre” (KRAMER, 2003, p.62). A cidadania caracteriza-se pela existência de determinado status político-jurídico que implica a capacidade plena para o exercício dos direitos do homem. Discutir a cidadania na infância e na adolescência é discutir o presente e o futuro da cidadania de todos. O tema da 1465 infância está relacionado com a democracia e com a cidadania, pois segundo Mendéz (1998, p.199) Cidadania e democracia são conceitos autônomos, mas sem uma não existe a outra, que, por sua vez, não tem sentido sem a primeira. Ninguém que fale da infância, do ponto de vista do paradigma da proteção integral, deixa de falar em democracia. Mas são poucos os que, falando em democracia, falam de infância. Essa assimetria remete ao problema da construção crítica do tema da cidadania. A cidadania deve promover a participação social ativa e consciente da criança, mostrando-lhe os seus direitos e responsabilidades. Em relação a isso, nós, os adultos, desconfiamos que a criança tenha capacidade para reclamar os seus direitos. A criança somente irá adquirir sua condição de cidadã quando a ela se oferecer os bens de que necessita para garantir sua existência física, simbólica e social. À educação cabe subsidiar a formação cidadã da criança para que esta seja capaz de construir modelos de referência para a interpretação do contexto em que ela vive. A criança sendo sujeito de direitos deve ter a seu dispor a capacidade do uso real das técnicas jurídicas que irão assegurar a efetividade das normas voltadas para a infância. Outro ponto interessante que deve ser discutido é aquele que trata da criança e do aluno. Tomamos esses dois conceitos como algo indistinto, pois naturalizamos esses conceitos de forma espontânea como algo que sempre tivesse existido. Mas é preciso atentar que “o aluno, como a criança ou a infância, em geral, são invenções dos adultos, categorias que construímos com discursos que se relacionam com as práticas de estar e trabalhar com eles” (SACRISTÁN, 2005, p.13). Por isso, é oportuno nos questionar: quando estudamos a concepção de infância que imagens nós temos de aluno ou dos adolescentes escolarizados? Nossa idéia de aluno – com todas as variações, incoerência e contradições que possamos encontrar nos significados que tal categoria representa – é devedora e se alimenta da longa experiência de compreender e tratar os menores em geral, da herança de usos das instituições que os acolheram, daquilo que diferentes agentes esperam que estas instituições façam com eles e das condições sociais, políticas, econômicas e culturais nos quais tudo está inserido (SACRISTÁN, 2005, p.14). Será que nós não naturalizamos o modo de ser aluno com a maneira natural de ser criança? Esse modo de encarar a criança parte, segundo Sacristán (2005, p.16) de uma maneira magistrocêntrica, ou seja, visto a partir dos professores. É preciso refletir sobre a condição de aluno nas tramas do cotidiano escolar, pois parece algo natural. A condição de aluno é transitória e contingente, enquanto a criança é um ser concreto contextualizado numa cultura. Mais que isso, a criança como um ser em processo de mudança tem os seus desejos e 1466 direitos que “em muitos casos, não se acomodam à idéia que os adultos haviam feito deles” (SACRISTÁN, 2005, p.17). Ao aluno destina-se um campo de práticas, discursos e saberes que compõem modelos de referência. Por exemplo, quando pensamos no direito à educação, elevamos a “condição de aluno à categoria de um papel necessário que serve para a realização da dignidade humana” (SACRISTÁN, 2005, p.19). Essa idéia de que o direito à educação é uma maneira de assegurar e garantir a dignidade da criança é exposta no Princípio número 7 da Convenção dos Direitos da Criança: Princípio número 7: A criança tem direito a receber educação, que será gratuita e obrigatória pelo menos nas etapas elementares. Será dada a ela uma educação que favoreça a sua cultura geral e que permita, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver suas aptidões e seu julgamento individual, seu senso de responsabilidade moral e social, chegando a ser membro útil da sociedade. O interesse superior da criança deve ser o princípio condutor daqueles que têm a responsabilidade por sua educação; tal responsabilidade cabe, em primeiro lugar, a seus pais. Os adultos concebem os significados de infância e de aluno a partir de sua experiência cotidiana e de teorias que são assimiladas e reproduzidas. Dessa maneira, enxergamos a criança e o aluno segundo as idéias que elaboramos desejando que, por essa ou aquela maneira de educá-los, eles cheguem a ser de determinada forma. Portanto, é preciso ter cuidado para não tornar as crianças em apenas alunos! O cenário da infância que se mostra no contexto escolar ao educador nem sempre é dos melhores. Ali somos confrontados com as múltiplas infâncias. Temos desde os “anjinhos”, os alunos “vítimas” de maus-tratos, as crianças “brilhantes”, como também o estereótipo dos “pequenos demônios”. Além disso, encontramos pais que delegaram seus poderes e esperanças no profissional especializado gerando uma crise de papéis. Os educadores não conseguindo abarcar a imensidão das tarefas educativas que cabem aos pais têm que exigir destes o cumprimento de sua autoridade. Então cabe a reflexão: Por que as crianças são tão desafiadoras, tão difíceis de controlar na s últimas décadas do século XX? A resposta implica o fato de que não se vêem a si mesmo da mesma maneira que os adultos os vêem nessas instituições. As crianças pósmodernas não estão acostumadas a pensar e agir como seres pequenos que necessitam da permissão do adulto para agir (STEINBERG; KINCHELOE apud SACRISTÁN, 2005, p.49). Para isso devemos ouvir a voz das crianças sobre a sua própria condição, sobre o que desejam e o que imaginam ser certo para a construção de um mundo onde se compartilhe experiências significativas com o adulto. Sim! A criança deseja estar com o adulto e não 1467 apenas submeter-se às suas ordens, mas para viver a sua infância. Tonucci (2005, p.33) expressa brilhantemente a idéia de que “[...] A criança não é nem do pai nem da mãe, é ‘dela mesma’, e quando nasce tem o direito de ser feliz. Para ser feliz, uma criança precisa de uma mãe e um pai que a amem”. Para terminar deixamos aqui as sábias palavras de Kramer: Como respeitar is direitos de cidadania das crianças? Como propiciar que deixem de ser in-fans (aquele que não fala), para que adquiram voz e poder num contexto que, de um lado, infantiliza jovens e adultos e empurra para frente o momento da maturidade e, de outro, os ‘adultiza’, jogando para trás a curta etapa da primeira infância? As crianças são sujeitos sociais e históricos, marcados por contradições das sociedades em que vivem. A criança não é filhote do homem, ser em maturação biológica; ela não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto, no dia em que deixar de ser criança). Defendo uma concepção de criança que reconhece o que é específico da infância – seu poder de imaginação, fantasia, criação – e entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem. Esse modo de ver as crianças pode ensinar não só a entendê-las, mas também a ver o mundo a partir do ponto de vista da infância, pode nos ajudar a aprender com elas (KRAMER, 2003, p.90-91). A criança é capaz de propor e dar opinião sobre o mundo que a cerca. Isso parece difícil de ser compreendido pelo adulto porque esquecemos que o mundo que habitamos também é o contexto no qual elas partilham. O seu ponto de vista não pode mais ser ignorado e deve contar com a compreensão da linguagem infantil. Cabe a todos nós a luta para tornar a escola num espaço amado pelas crianças onde se concede a palavra acriança e permita-lhe expressar o que deseja e o que necessita, pois é “[...] preciso dar às crianças condições adequadas, sem pressa, sem controles, sem preocupações, para que possam errar, dizer bobagens, fazer ironias, exatamente como fazemos nós, os adultos” (TONUCCI, 2005, p. 18). Talvez este seja o caminho para partilhar o mundo entre os cidadãos adultos e os pequenos cidadãos. Partilhar um mundo possível onde se vivencie e sonhe com a criança concreta os direitos que não mais serão apenas promessas. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988. 348p. BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Por amor e por força: rotinas na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006. 240p. 1468 BATISTA, Cleide Vitor Mussini. Visão histórico-filosófica de infância, perspectiva da infância na contemporaneidade. In: ZAMBERLAN, Maria A. Trevisan (Org.) Educação Infantil: subsídios teóricos e práticas investigativas. Londrina: CDI, 2005. p.7-18. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos. São Paulo: Cortez, 2003. 136 p. BRASIL. Constituição Federal da República Brasileira de 1988. Oficial do Paraná, 2005. Curitiba: Imprensa CANDAU, Vera Maria F. (Org.) Sociedade, educação e cultura(s). Petrópolis: Vozes, 2002. CURY, Munir; SILVA, Antônio Fernando do Amaral; MÉNDEZ, Emílio Garcia (Coord). 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